Resumo: Este artigo se ocupa em tecer algumas considerações iniciais, mormente quando não se pretende esgotar toda a problemática, referente a um crescente movimento que está acontecendo em todo Judiciário brasileiro, pelo qual um particular, alegando violação a determinado direito fundamental que lhe é garantido constitucionalmente, ingressa com uma ação judicial contra outro particular, então responsável por tal violação. Todavia, como tese defensiva, este outro particular aduz que agiu dentro dos limites estabelecidos pela mesma Constituição, noutras palavras, protegido igualmente por outro direito fundamental de igual importância.A essa relação jurídica travada entre particulares denomina-se eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Em vistas disso, os magistrados, antes habituados a julgar violações de direitos fundamentais ocasionados pelo Estado, veem-se diante de uma nova realidade e, como tal, merecedora de especial atenção.
Palavras-chave: Constituição. Direitos Fundamentais. Eficácia.
1 INTRODUÇÃO
Os direitos e garantias fundamentais do indivíduo, garantidos por normas cogentes, são produtos de uma longa maturação histórica, abalizados, incialmente, como irremediável freio ao poderio estatal que, sob o pretexto do interesse público, promovia verdadeiras barbáries. Pois bem, a este sistema de controle passou a se denominar eficácia vertical dos direitos fundamentais, já que o Estado se encontra num patamar superior ao próprio indivíduo.
Por seu turno, com o advento da sociedade moderna, as relações entre os indivíduos acabaram se tornando mais complexas e, como consequência, as lides ora postas à prestação jurisdicional seguiram esta nova tendência.
Neste novo cenário, o indivíduo que anteriormente alegava violação do seu direito fundamental em face do Estado, acaba por promover a discussão sob o fundamento de violação causado por outro indivíduo, numa relação tipicamente privada, sejam elas pessoas físicas ou jurídicas. Como os particulares estão num mesmo patamar, convencionou-se chamar este tipo de colisão de eficácia horizontal de direitos fundamentais. Sob esta perspectiva, o Estado, além de ter que se abster de praticar condutas violadoras dos direitos do indivíduo, deve igualmente oferecer meios que o protejam quando outro indivíduo é o causador dos malefícios.
E é sobre o debruçar deste tema, ainda que em linhas introdutórias, que o presente estudo procura trabalhar.
Quanto à metodologia utilizada, o tipo de pesquisa adotado neste estudo é definido como pesquisa exploratória, já que busca trabalhar aspectos relevantes dentro do tema proposto, tornando-o o mais familiar e explícito possível. De seu turno, é classificada como pesquisa bibliográfica, pois envolve primordialmente o levantamento bibliográfico das obras e publicações que tratam do assunto objeto do estudo.
A pesquisa será desenvolvida utilizando-se como método científico o dedutivo, eis que parte de dados gerais para um universo particular. Já o método técnico utilizado é o observacional, dedicado à observação e compreensão dos significados, intimamente relacionado à pesquisa qualitativa.
Por seu turno, os instrumentos que serão aplicados para obtenção das informações e dos dados necessários ao desenvolvimento da pesquisa são livros doutrinários, artigos científicos, jurisprudências coletadas nos sites dos tribunais pátrios, especialmente do Supremo Tribunal Federal, e trabalhos acadêmicos disponibilizados na internet.
2 DIREITOS FUNDAMENTAIS: UMA ABORDAGEM TEÓRICA SOBRE SEUS ELEMENTOS E A QUESTÃO DE SUA EFICÁCIA. NOTAS DA DOUTRINA E DA JURISPRUDÊNCIA.
Inicialmente cumpre destacar que os direitos fundamentais podem ser compreendidos como intrínsecos ao próprio homem, ou seja, não representam qualquer concessão estatal, senão mero reconhecimento. Aliás, esse é o espírito consubstanciado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, que, em seu preâmbulo, já destaca o reconhecimento da dignidade do homem, como fundamento da liberdade, justiça e paz, ressaltando que esses mesmos direitos devem ser protegidos pelo Estado de Direito e finalizando ser da mais alta importância a observância dos seus preceitos.
Não menos brilhantes são as palavras do ilustre professor gaúcho Ingo Wolfgang Sarlet, coordenador do GEDF (Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Fundamentais – CNPq) que, em sua obra A Eficácia dos Direitos Fundamentais, assim descreve:
“Direitos fundamentais são, portanto, todas aquelas posições jurídicas concernentes às pessoas que, do ponto de vista do direito constitucional positivo, foram, por seu conteúdo e importância (fundamentalidade em sentido material), integradas ao texto da Constituição e, portanto, retirada da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos (fundamentalidade formal), bem como as que, por seu conteúdo e significado, possam lhes ser equiparados, agregando-se à Constituição material, tendo, ou não, assento na Constituição formal (aqui considerada a abertura material do Catálogo)”. (SARLET, 2005, p. 89).
Após isso, imperioso salientar que, para além da eficácia vertical, aquela relacionada entre o Estado e o indivíduo, há também a eficácia horizontal, relacionada unicamente entre os particulares, a que os alemães denominaram de Drittwirkung[1], ou seja, os direitos fundamentais não vinculam apenas o Estado, mas o próprio indivíduo que a eles se submetem.
Este tema vem sendo amplamente debatido pela doutrina e jurisprudência pátrias, daí a necessidade de sua apresentação.
O também professor Luiz Edson Fachin, importante estudioso do tema, principalmente no que tange à dicotomia direito público – privado, assim destacou:
O reconhecimento da possibilidade de os direitos fundamentais operarem sua eficácia nas relações interprivadas é, talvez, o cerne da denominada constitucionalização do Direito Civil. A Constituição deixa de ser reputada simplesmente uma carta política, para assumir uma feição de elemento integrador de todo o ordenamento jurídico – inclusive do Direito Privado. Os direitos fundamentais não são apenas liberdades negativas exercidas contra o Estado, mas são normas que devem ser observadas por todos aqueles submetidos ao ordenamento jurídico. A eficácia dos direitos fundamentais nas relações interprivadas se torna inegável, diante da diluição de fronteiras entre público e privado. (FACHIN, 2006, p. 100).
Para além das abordagens doutrinárias, igualmente os tribunais se veem impelidos a discorrer sobre a matéria, já que são constantes as demandas provocadas. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal, que representa o alto escalão da estrutura do Poder Judiciário, guardião da Constituição, se manifestou por diversas vezes sobre a quaestio, merecendo destaque o HC 71.373/RS, referente à submissão do paciente, em ação de investigação de paternidade, ao exame de DNA.
O voto condutor que serviu de orientação à Corte, e que fora contrário à manifestação do então ministro relator, foi trazido à baila pelo eminente ministro Marco Aurélio que, em dado momento do seu voto, assim pontuou:
“Ninguém está compelido, pela ordem jurídica, a adentrar a Justiça para questionar a respectiva paternidade, da mesma forma que há consequências para o fato de vir aquele que é apontado como pai a recusar-se ao exame que objetive o esclarecimento da situação. É certo que compete aos cidadãos em geral colaborar com o Judiciário, ao menos na busca da prevalência dos respectivos interesses, e que o sacrifício – na espécie, uma simples espetadela – não é tão grande assim. Todavia, princípios constitucionais obstaculizam a solução dada à recusa. Refiro-me, em primeiro lugar, ao da legalidade, no que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Inexiste lei reveladora de amparo à ordem judicial atacada neste habeas-corpus – no sentido de o Paciente, Réu na ação de investigação de paternidade, ser conduzido ao laboratório para a colheita do material indispensável ao exame. Ainda que houvesse, estaria maculada, considerados os interesses em questão – eminentemente pessoais e inegável carga patrimonial – pela inconstitucionalidade. Digo isto porquanto a Carta Política da República – que o Dr. Ulisses Guimarães, em perfeita síntese, apontou como “Carta Cidadã” – consigna que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas – inciso X do rol das garantias constitucionais (artigo 5º)”. (STF – Relator para o acórdão Min. Marco Aurélio – RTJ 165/902).
Também é salutar a exposição do acórdão proferido no HC nº 78.426/SP, de relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence, em relação ao cotejo entre a liberdade de expressão e o direito à honra. Neste caso, decidiu-se que, embora se trate de um homem que milita na vida política onde, naturalmente, sua vida privada se torna mais exposta que a de um homem comum, ele é carecedor da mesma proteção oferecida a este. Eis a ementa:
“Crime contra a honra e a vida política. É certo que, ao decidir-se pela militância política, o homem público aceita a inevitável ampliação do que a doutrina italiana costuma chamar a zona di iluminabilitá, resignando-se a uma maior exposição de sua vida e de sua personalidade aos comentários e à valoração do público, em particular, dos seus adversários; mas a tolerância com a liberdade da crítica ao homem público há de ser menor, quando, ainda que situado no campo da vida pública do militante político, o libelo do adversário ultrapasse a linha dos juízos desprimorosos para a imputação de fatos mais ou menos concretos, sobretudo se invadem ou tangenciam a esfera da criminalidade: por isso, em tese, pode caracterizar delito contra a honra a assertiva de haver o ofendido, ex-Prefeito, deixado o Município “com dívidas causadas por suas falcatruas”. (STF – Relator Min. Sepúlveda Pertence – RTJ 169/323).
Nesse diapasão, inúmeros casos também foram submetidos pelos diversos tribunais de justiças do país, especialmente aqueles relativos ao conflito envolvendo exatamente o direito à liberdade de informação e de expressão e o direito à honra e à imagem.
Entretanto, antes de avançarmos na temática, mister que se estabeleça alguns conceitos básicos que servirão de pilares para a construção desta abordagem teórica.
2.1. Terminologia
É inegável a imensidade de variações terminológicas a esse respeito. É possível encontrar na literatura várias expressões, como direitos humanos, direitos do homem, direitos civis, direitos fundamentais etc.
Como forma de padronizar a terminologia utilizada na pesquisa, preferiu-se adotar a expressão “direitos fundamentais”, tendo como principal escolha o didatismo utilizado pelo professor Ingo Sarlet (2005) para qual:
“O fator diferencial é o local onde estão previstos esses direitos. Os direitos fundamentais estão reconhecidos e protegidos pelo direito constitucional de cada Estado, previstos no texto constitucional; os direitos humanos estão presentes em tratados internacionais, na esfera dos direitos internacionais e os direitos do homem são inerentes à condição de seres humanos (direitos naturais), ainda não positivados”. (SARLET, 2005 apud RAMALHO, 2011).
Observando mais detalhadamente, é exatamente este o espírito de proteção exarado na Carta Política de 1988, a quem Ulysses Guimarães carinhosamente apelidou de “Constituição Cidadã”, ao estabelecer no seu preâmbulo a instituição de um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais.
2.2. Características
Superada a questão da terminologia adotada, outro ponto importante a ser abordado é o referente às principais características imanentes dos direitos fundamentais, trazidas pela quase totalidade dos constitucionalistas pátrios.
Primeiramente, tem-se que os direitos fundamentais têm caráter histórico, ou seja, são frutos de uma evolução histórica, não nasceram de um dia para outro, tendo inclusive, em várias ocasiões, que serem conquistados a duras penas.
Os direitos fundamentais também se apresentam como universais, noutras palavras, são destinados a todos os indivíduos, sem quaisquer restrições ou impedimentos, eis que próprios da condição humana.
São também inalienáveis, irrenunciáveis e imprescritíveis, quer dizer, não estão sujeitos à comercialização ou quaisquer outros atos de disposição, não podendo o sujeito de direitos renunciá-los a qualquer custo, tampouco o seu “não uso” é causa de extinção destes mesmos direitos, não sofrendo qualquer restrição pelo decurso do tempo.
Também podem ser caracterizados por sua aplicação imediata, consoante expressa disposição constitucional que, em seu festejado artigo 5º, § 1º, dispõe: “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. (BRASIL, 2012, p. 11).
Por fim, vale frisar que os direitos fundamentais são relativos, e é nessa especial característica que reside o campo de discussão deste trabalho. Ora, os direitos fundamentais não são absolutos, ilimitados. Na verdade, eles encontram barreiras na ordem pública, na ética social e, evidentemente, frente a outro direito fundamental igualmente importante.
2.3. Dimensões
Não é concebido falar em direitos fundamentais sem tecer comentários à teoria das gerações, posteriormente denominada pela doutrina moderna como teoria das dimensões, desenvolvida pelo jurista tcheco-francês Karel Vasak na segunda metade do século XX. Para ele, os direitos fundamentais se apresentam sob três gerações distintas e, em princípio, independentes.
Na sua brilhante tese de mestrado apresentada à Universidade Federal do Ceará, George Marmelstein Lima descreve uma divertida passagem relativa ao professor Vasak e à sua teoria:
“Certa vez, o professor Cançado Trindade perguntou ao professor Karel Vasak, autor intelectual da teoria das gerações dos direitos fundamentais, qual a razão de ele haver desenvolvido a referida teoria. A resposta do jurista tcheco: “Ah, eu não tinha tempo de preparar uma exposição, então me ocorreu de fazer alguma reflexão, e eu me lembrei da bandeira francesa”.
Assim, segundo Cançado Trindade, nem mesmo o próprio Vasak levou muito a sério a sua teoria, que desenvolveu em 1979, proferindo a aula inaugural no Curso do Instituto Internacional dos Direitos do Homem, em Estraburgo. Nessa aula, Vasak utilizou, pela primeira vez, a expressão “gerações de direitos do homem”, buscando, metaforicamente, demonstrar a evolução dos direitos humanos com base no lema da revolução francesa (liberdade, igualdade e fraternidade).
De acordo com Vasak, a primeira geração dos direitos humanos seria a dos direitos civis e políticos, fundamentados na liberdade (liberté), que tiveram origem com a Revolução Francesa e as demais revoluções burguesas. A segunda geração, por sua vez, seria a dos direitos econômicos, sociais e culturais, baseados na igualdade (égalité), ocasionada pela Revolução Industrial e com os problemas sociais por ela causados. Por fim, a última geração seria a dos direitos de solidariedade, em especial o direito ao desenvolvimento, à paz e ao meio ambiente, coroando a tríade com a fraternidade (fraternité), que ganhou força após a Segunda Guerra Mundial, especialmente após a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948.” (LIMA, 2005, p. 58-59).
Dessa forma, os direitos de primeira geração são aqueles intimamente ligados aos direitos civil e políticos; os direitos de segunda geração são os ligados aos direitos sociais, econômicos e culturais, enquanto que, os de terceira geração, são os ligados à preservação ambiental e à proteção ao consumidor, popularmente conhecidos como direitos de solidariedade.
Por seu turno, os modernos constitucionalistas preferem adotar a terminologia “dimensão”, em vez de “geração”, como proposta inicialmente por Vasak. A explicação disto é que o conceito de primeira, segunda e terceira geração dá a noção de sucessividade, de gradatividade, como se um fosse, ao longo dos tempos, substituindo o outro.
O que se defende, portanto, é que os direitos fundamentais coexistem harmoniosamente, não havendo falar em sucessão ou geração, mas que vão se desenvolvendo em relação à sua aplicabilidade e valoração. Noutras palavras, de acordo com a teoria das dimensões, os direitos fundamentais se transmutam com o tempo, não se substituem.
Mais não só. Há uma classe de constitucionalistas que defendem e escrevem sobre a quarta e quinta dimensões dos direitos fundamentais.
Todavia, como essas recentes classificações não são sequer uma unanimidade dentro da moderna doutrina constitucionalista, este estudo limitar-se-á a apontar apenas as três primeiras dimensões, já que ao longo sedimentadas no universo jurídico. Ademais, essas classificações ora deduzidas satisfazem por inteiro a pretensão do presente estudo que, de fato, não tem o condão de esgotar todo o disciplinamento da matéria.
2.4. Da Eficácia dos Direitos Fundamentais
2.4.1. Eficácia Vertical
Como já mencionado anteriormente, os direitos fundamentais foram positivados e expressamente previstos no ordenamento jurídico de cada Estado com o intuito de servir como verdadeiro freio às arbitrariedades costumeiramente praticadas pelo Estado contra os seus governados.
À essa relação Estado-Indivíduo, adota-se a denominação de eficácia vertical dos direitos fundamentais, já que o Estado se encontra numa posição de supremacia em relação ao particular.
Nessa esteira, os poderes públicos encontram-se vinculados aos direitos fundamentais individuais e, a este propósito, bem escreveu Gonet Branco quando se referia à vinculação do Poder Legislativo, do Poder Executivo e do Poder Judiciário aos preceitos assegurados aos direitos fundamentais:
“No âmbito do Poder Legislativo, não somente a atividade legiferante deve guardar coerência com o sistema de direitos fundamentais, como a vinculação aos direitos fundamentais pode assumir conteúdo positivo, tornando imperiosa a edição de normas que deem regulamentação aos direitos fundamentais dependentes de concretização normativa. […] A vinculação do legislador aos direitos fundamentais significa, também, que, mesmo quando a Constituição entrega ao legislador a tarefa de restringir certos direitos (p. ex. o de livre exercício profissional), há de se respeitar o núcleo essencial do direito, não se legitimando a criação de condições desarrazoadas ou que tornem impraticável o direito previsto pelo constituinte. […]
A vinculação da Administração às normas de direitos fundamentais torna nulos os atos praticados com ofensa ao sistema desses direitos. De outra parte, a Administração deve interpretar e aplicar as leis segundo os direitos fundamentais. A atividade discricionária da Administração não pode deixar de respeitar os limites que lhe acenam os direitos fundamentais. […]
A vinculação das cortes aos direitos fundamentais leva a doutrina a entender que estão elas no dever de conferir a tais direitos máxima eficácia possível. Sob um ângulo negativo, a vinculação do Judiciário gera o poder-dever de recusar aplicação a preceitos que não respeitem os direitos fundamentais.” (BRANCO, 2010, p. 321 – 326).
Dito isto, não restam dúvidas quanto à verticalização da eficácia dos direitos fundamentais frente ao Estado, mormente quando se trata dos poderes institucionalizados.
2.4.2 – Eficácia Horizontal
Com o advento da sociedade moderna, especialmente com o enfraquecimento de um
Estado Liberal que foi superado por um Estado Social (Welfare State)[2], as relações privadas reclamavam de maior proteção estatal, mas não em relação às ações praticadas pelo mesmo Estado. Agora a preocupação girava em torno de proteger um particular frente a outro particular. Com isso, gradativamente, o Direito Civil foi sofrendo influência do Direito Constitucional, não podendo aquele ser visto desvencilhado deste, sendo certo que o que se propunha era um amplo estudo sobre a eficácia dos direitos fundamentais neste âmbito privado, antes inimaginável.
Toda essa discussão se deu inicialmente na Europa, sendo no universo alemão em que ela aflorou.
Num didatismo excepcional, o doutor em Direito Comparado e juiz de direito do Rio Grande do Sul, Eugênio Facchini Neto, esclarece como isto se deu:
“A expressão Drittwirkung der Grundrechte (eficácia frente a terceiros dos direitos fundamentais) foi cunhada por H. C. Nipperdey em trabalho doutrinário publicado em 1954 (“Die Würde des Menschen”, inserido na obra coletiva Die Grundrechte. Handbuch der Theorie und Praxis der Grundrechte, organizada pelo próprio Nipperdey, juntamente com Neumann e Scheuner), na qual Nipperdey salienta que na sociedade contemporânea determinadas entidades privadas dispõem de enorme poder econômico e social, capaz de afetar um grande número de indivíduos em vários aspectos de suas vidas privadas – tanto quanto o Estado. Daí por que se entende que se é certo que determinados direitos fundamentais buscam proteger o indivíduo contra atuações estatais (que ele exemplifica com o direito de asilo, liberdade de reunião, liberdade de circulação, entre outros), outros direitos fundamentais existem que podem ser invocados pelos indivíduos contra a atuação de outros entes privados cujo poder econômico e social (Sozialmachte) os equipara ao próprio Estado. Dentre tais direitos encontrar-se-iam a dignidade humana, o livre desenvolvimento da personalidade, o princípio da isonomia entre homens e mulheres, a proibição de discriminação, etc. […]
Como Nipperdey, além de renomado jurista, era também Presidente de uma das sessões do Tribunal Federal do Trabalho alemão (Bundesarbeitsgericht), em uma demonstração de coerência entre pensamento e ação, teoria e práxis, aplicou ele sua tese ainda no mesmo ano de 1954. Num acórdão de 3 de dezembro daquele ano, Nipperdey sugere a relevância direta dos direitos fundamentais também nas relações inter privatos, afirmando que tais direitos contêm “princípios ordenadores para a vida social” (Ordnungsgrundsätze für das soziale Leben), de caráter vinculante, que têm “uma significação imediata” (unmittelbare Bedeutung) para as relações privadas, já que nenhum ato ou negócio jurídico, independentemente de quem sejam os partícipes, pode contrariar os princípios básicos e estruturantes de um ordenamento jurídico”. (NETO, 2006, p. 43).
Esta concepção trazida por Nipperdey foi chamada de Teoria da Eficácia Horizontal Direta dos Direitos Fundamentais, eis que esses direitos podem ser assegurados e aplicados diretamente às relações privadas, não necessitando de qualquer espécie de intervenção legislativa.
Porém não é demasiado mencionar, ainda que em menor número, que a doutrina clássica, inclusive a alemã, não discorda desta eficácia horizontal dos direitos fundamentais, porém alega que esta eficácia só pode operar nas relações entre particulares quando houver uma intermediação legislativa neste sentido, denominando-a de Teoria da Eficácia Horizontal Indireta dos Direitos Fundamentais.
3. CONCLUSÃO
É importante destacar que o universo teórico que circunda a temática da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, no Brasil, encontra-se em processo de maturação, não obstante esta discussão já ter se operado com maior antecedência na Europa, em especial na Alemanha, onde surgiram as primeiras sistematizações teóricas sobre o assunto e já apontadas acima.
Na terra brasilis[3], em que pese esta problemática ser até certo ponto recente, os doutrinadores pátrios parecem não temerem ao desafio proposto, haja vista o crescente aumento de obras que tratam a esse respeito. Tampouco os magistrados se veem acanhados de oferecer uma resposta efetiva à sociedade quando são provocados, pois verdadeiros ensaios acadêmicos podem ser extraídos de suas decisões, sempre em busca de uma efetiva prestação jurisdicional.
Mestrando em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Pernambuco. Especialista em Filosofia pela Universidade Estácio de Sá. Bacharel em Direito pela Faculdade Integrada de Pernambuco. Analista Ministerial do Ministério Público de Pernambuco
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