Regulação em Tempos de COVID-19 um Olhar Atento à Governança Regulatória

FLAVINE MEGHY METNE MENDES, Procuradora Geral da Agência Reguladora de Energia e Saneamento Básico do Estado do Rio de Janeiro, Mestre em Direito Público e doutoranda em Políticas Públicas pela UFRJ.

A pandemia do COVID-19, principal foco de atenção mundial, vem afetando nossas rotinas e exigindo medidas excepcionais diante de um contexto impregnado de insegurança no momento presente e no futuro. Entretanto, é na área jurídica, por excelência, que somos instigados à análise de situações variadas, como a legitimidade de atuação estatal, de cariz preponderantemente regulatória.

Em breve alusão histórica, ao longo das três últimas décadas do século XX, houve importante transformação no ambiente socioeconômico de muitas nações capitalistas, inaugurando-se novo estilo de governança do Estado. A interferência direta na ordem econômica e social não se reputava mais adequada às exigências da pós modernidade.

A partir dos efeitos provocados, em grande parte, pela abertura do mercado, o Estado passou a coexistir com outros centros de poder, internos e externos, na consecução de atividades imprescindíveis ao bom funcionamento da economia. Na prática, assiste-se a progressivo esvaziamento da antiga tendência à concentração de poder do Estado (produtor de bens e serviços) em favor de parcerias.

Aspecto igualmente relevante, no contexto do Estado da pós-modernidade é a proliferação de centros normativos, provocados pelo acentuado nível de descentralização dos governos.  Convive-se hoje com diversos graus e níveis de regulação os quais, não raro, trazem jurisdição compartilhada.  Entretanto, não é de se estranhar o fato de que algumas normas vigentes se dedicam a tecer particularidades e detalhes desnecessários à situação que se pretende regulamentar, fomentando atmosfera de escuridão e confiabilidade duvidosa, além de contribuir com o exercício da conformidade criativa.

Por outro lado, a concorrência normativa, envolvendo matérias de semelhante ou igual natureza, pode contribuir para incerteza jurídica, com repercussão no ambiente de negócios, diante do maior risco de inibição do dinamismo e inovação que se espera do setor privado.

O grande desafio que se projeta ao Estado pós-moderno é atender às exigências da economia global e, ao mesmo tempo, gerar benefícios à coletividade, sem perder de vista os ideais da ordem, paz e justiça social.

Quanto aos ideais de justiça e democracia, a atuação do Estado, neste momento de contenção exigido pela pandemia, tem sido materializada por meio de uma série de restrições às liberdades individuais e dos atores  econômicos, cujos efeitos, nem sempre desejáveis, se projetam na ambiência das agências reguladoras.

Se, por um lado, a dimensão inimaginável da crise provocada pelo COVI-19 requer atuação coparticipativa dos agentes públicos em prol da proteção à dignidade da pessoa humana, por outro, são prementes coordenação e estabilidade entre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.

Para ilustrar, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), em 07.04.2020, suspendeu a liminar que obrigava a Light a cumprir determinação da Lei Estadual nº 8.769/2020.  Esse diploma legal proíbe, entre outras medidas, cortes no fornecimento de energia de todos os tipos de clientes.  No entendimento do tribunal, cabe ao governo federal, por meio do órgão regulador (Agência Nacional de Energia Elétrica) legislar sobre o serviço público de energia elétrica.

No entanto, em 11.04.2020, o Presidente do TJ RJ determinou a suspensão dos cortes de energia por 90 dias no Estado do Rio de Janeiro. Sob a alegação de se tratar de situação excepcionalíssima, deliberou que a manutenção do serviço é a medida mais salutar à preservação da vida.

Tema semelhante foi enfrentado pelo Poder Judiciário de São Paulo. Em 15 de abril de 2020, o Presidente do Tribunal de Justiça suspendeu os efeitos da tutela de urgência deferida nos autos da ação civil pública nº 1017519-11.2020.8.26.0053.  A rigor, o juízo da 13 Vara de Fazenda Pública havia determinado ao Estado de São Paulo a apresentação de cronograma de implementação de medidas que garantam o abastecimento diário de água potável a todas as comunidades e aglomerados subnormais, presentes nos municípios atendidos pela SABESP. Em decorrência, por meio do pedido de suspensão de tutela de urgência apresentado pelo Estado de São Paulo, o Tribunal entendeu que compete ao Poder Executivo examinar as melhores condições e critérios na deliberação acerca do tema, suspendendo a eficácia da tutela de urgência anteriormente concedida.

Em coerência com a delegação de função essencial ao equilíbrio do mercado, é tempo de rememorar que a estrutura da atividade regulatória envolve comportamento dinâmico e permanente dos governos –  englobando, por óbvio, as entidades reguladoras vinculadas – e amplo domínio de atores, como o Legislativo, o Judiciário, bem como os níveis subnacionais e supranacionais de governo e atividades de normatização internacional, além do setor privado.

É inconteste que o momento atual demanda olhar mais atento ao princípio da segurança jurídica. Cumpre compreender a estrutura constitucional comanda e dirige as ações do Estado, estabelecendo claramente as competências constitucionais materiais e legiferantes que legitimam o agir estatal. A disparidade de entendimentos e a desarmonia federativa tem o poder corrosivo de enfraquecer a confiabilidade no sistema, esvaziando-se a missão constitucional confiada às agências reguladoras.

Não se pode perder de vista que o modelo das agências reguladoras traz a responsabilidade de concretização das diretrizes voltadas para o bom funcionamento do Estado Democrático de Direito, exigindo a multiforme consideração dos interesses concorrentes para a efetividade dos compromissos finalísticos.

Diante da insegurança que se projeta no presente e no futuro, os tempos atuais nos obrigam a reforçar os alicerces da governança regulatória, exigindo-se ações, interações e interpretações racionais à luz do programa constitucional construído no seio da democracia, sendo forçoso lembrar que o interesse público não tolera excessos e inoperâncias.

 

REFERÊNCIAS

BALDWIN, Robert; CAVE, Martin. LODGE, Martin. Understanding regulation. Theory, strategy, and Practice, Oxford, New York, 2012.

 

MENDES, Flavine Meghy Metne. Processo normativo das agências reguladoras: atributos específicos à governança regulatória. São Paulo: Giz Editorial.

 

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Poder, direito e Estado: o direito administrativo em tempos de globalização – in memoriam de Marcos Juruena Villela Souto. Belo Horizonte: Fórum, 2011.

 

OECD. Recomendação do Conselho sobre Política Regulatória e Governança. Disponível em: <https://www.oecd.org/gov/regulatory-policy/Recommendation%20PR%20with%20cover.pdf>. Acesso em 18.04.2020.

 

PUIGPELAT, Oriol Mir. Globalización, Estado y Derecho: Las transformaciones recientes del derecho administrativo. Madrid: Cuadernos Civitas, 2004.

 

 

 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *