Não se faz campanha eleitoral sem financiamento, que consiste no instrumento de captação de recursos financeiros para bancar as despesas da campanha eleitoral de todo e qualquer cidadão que se dispõe a disputar um cargo político eletivo para fazer jus à representação popular.
O nosso Estado adotou o sistema misto ou híbrido de financiamento de campanhas eleitorais. Por esse sistema as despesas das campanhas eleitorais são pagas com recursos públicos e com recursos privados.
Os recursos públicos que são utilizados no pagamento de campanhas eleitorais provêm de multas e penalidades pecuniárias aplicadas nos termos do Código Eleitoral e leis conexas; por recursos financeiros destinados por lei, em caráter permanente ou eventual; por doações de pessoa física ou jurídica, efetuadas por intermédio de depósitos bancários diretamente na conta do Fundo Partidário e por dotações orçamentárias da União. Todas essas rubricas de recursos compõem o Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos, popularmente conhecido por Fundo Partidário, que é gerido pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Criado em 1995, por meio da Lei 9.096 (Lei dos Partidos Políticos), o Fundo Partidário tem, nas dotações orçamentárias da União, a sua principal fonte de receita, cujo valor anual obtém-se através da multiplicação do número de eleitores inscritos no último dia do ano anterior à proposta orçamentária pelo coeficiente de R$ 0,97 (noventa e sete centavos de real). O Orçamento da União para este ano destina R$ 194,3 milhões para os partidos políticos, dos quais R$ 135,614 milhões em recursos da própria União e R$ 58,20 milhões provenientes da arrecadação de multas eleitorais.
Os recursos privados decorrem de doações feitas por pessoas físicas e jurídicas mediante depósitos em espécie, devidamente identificados, cheques ou transferência bancária, ou ainda em bens e serviços estimáveis em dinheiro, para as campanhas eleitorais. O candidato também poderá receber diretamente doações para a sua campanha eleitoral.
Até o décimo dia útil após a escolha de seus candidatos em convenção, o partido político constituirá comitês financeiros, com a finalidade exclusiva de arrecadar recursos financeiros e aplicá-los nas campanhas eleitorais, podendo optar por um comitê financeiro para prefeito e outro para vereador, no caso das eleições municipais.
Legalmente, as doações limitam-se a 10% (dez por cento) dos rendimentos brutos auferidos no ano anterior à eleição, no caso de pessoa física, e a 2% (dois por cento) do faturamento bruto do ano anterior à eleição, no caso de pessoa jurídica. O próprio candidato pode se auto-financiar, até o limite máximo dos gastos de campanha por ele informado à Justiça Eleitoral, por ocasião da entrega do seu requerimento de registro de candidatura.
Até aqui tudo bem. Quase todos os candidatos conseguem obedecer às regras estabelecidas em lei, e no final da campanha ter suas contas aprovadas pela Justiça Eleitoral.
Há uma relação direta entre os valores arrecadas para as campanhas eleitorais e os candidatos eleitos. Quase sempre quem recebe maiores doações são os candidatos com maiores chances de serem eleitos, que, coincidentemente, pertencem aos grandes partidos políticos, ou à coligações integradas por estes. É muito difícil os candidatos majoritários pertencentes a pequenas agremiações ganharem eleição, salvo no caso de siglas de aluguel, quando há brigas internas no âmbito dos grandes partidos políticos.
As últimas eleições municipais, ou seja, de 2004, segundo o Jornal Correio Brasiliense, edições 23.01.2005, custaram R$ 1,24 bilhões, com uma média nacional de R$ 12,00 (doze reais) por eleitor[1]. Seus custos foram o dobro das eleições gerais de 2002, quando foram declarados R$ 580 milhões na disputa pela Presidência da República, governos estaduais e vagas parlamentares. Há duas explicações para a constatação dessa enorme diferença. A um, porque foi justamente nas eleições de 2004 que, pela primeira vez na história, a arrecadação nos municípios foi totalizada a partir de dados oficiais do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Para alcançar as cadeiras de prefeito, 15.746 candidatos juntaram R$ 656 milhões. Na disputa pelas Câmaras Municipais, os 346.419 postulantes a vereador somaram R$ 378 milhões. Os comitês dos partidos ajudaram a engordar a cifra, ao distribuir R$ 213 milhões entre os candidatos. A dois por causa da utilização indiscriminada do caixa dois nas eleições gerais de 2002.
Agora, passando do campo do deve ser para o do ser, é no lixo, sim, no lixo mesmo, que os candidatos a Prefeito, e até a Governador ou mesmo Presidente da República, por via reflexa, obtêm a principal fonte real de financiamento de suas campanhas eleitorais, quase sempre.
Os relatórios oficiais dizem que, nos últimos 14 anos, foram destinados 154 bilhões de reais anualmente para programas de gerenciamento de resíduos sólidos nas cidades brasileiras. Porém, as estatísticas oficiais desse setor não merecem credibilidade, por inúmeras razões, dentre elas porque é justamente no lixo que os ratos da nossa política encontram os melhores insumos para os seus esquemas de fraudes e corrupção.
O negócio do lixo é tão bom que, segundo o Jornal Nova Democracia, ano VI, nº 42, edição de abril de 2008, o grupo Queiroz Galvão desdobrou-se, criando uma ramificação para operar apenas na área de saneamento, principalmente na coleta e destinação final de lixo em oito Estados da nossa federação, um nicho que já representa 20% do faturamento da construtora, que somou R$ 1,2 bilhão em 2004.
Segundo o IBGE, apenas 20% do lixo coletado em todo o país vão para aterros controlados. O restante, estimado em 147 mil toneladas diárias, é levado para os vazadouros, responsáveis por impactos ambientais praticamente invisíveis aos olhos do cidadão: contaminação de lençóis freáticos e do solo pelo chorume e do ar pelos gases emitidos pela destinação inadequada (lixões) dos resíduos gerados por 3.672 municípios (66% do total). A coleta e disposição do lixo é uma atividade muito pouco regulada que, além de mexer com a vida de um exército de pessoas empobrecidas — catadores e sucateiros — financia desde campanhas eleitorais de pessoas comprometidas com a expansão do negócio até a ampliação dos quadros de funcionários públicos, como instrumento da terceirização, com a contratação de pessoal sem concurso público.
A coleta de lixo é um serviço público prestado pelo Município ou por seus delegados, sob regime jurídico de direito público, com vistas ao saneamento das áreas urbanas e a saúde básica da coletividade. São, ao todo, 5.564 municípios[2]. Praticamente todas as prefeituras contratam empresas privadas para a coleta do lixo.
Em sendo um serviço público a coleta de lixo, que normalmente é feita por empresas privadas, estas deverão ser escolhida através de prévio processo de licitação pública, em obediência à norma contida no art. 5º, inciso XXI, da Constituição Federal, que assim estabelece:
“Art. 37. A Administração Pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, da moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (…)
XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratadas mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual permitirá as exigências de qualidade técnica e econômica indispensável à garantia do cumprimento das obrigações.”
Um fato que desperta a curiosidade, é que a regra constitucional acima começa com as exceções, para somente depois trazer a regra. É esquisito, mas ela diz expressamente que depois de retiradas as exceções, a regra é que todas e quaisquer obras, serviços, compras e alienações feitas pela Administração Pública serão precedidas de licitação pública, para escolha da melhor proposta, incluindo melhor preço e/ou técnica.
A regulamentação da norma constitucional acima, ou seja, das licitações e contratos da Administração Pública foi feita pela a Lei 8.666, de 21.06.1993. Esta lei, nos seus artigos 24 e 25, elencou 27 (vinte e sete) situações em que a Administração Pública pode contratar sem licitação, dentre elas destaco as seguintes situações: 1) para a compra de bens e serviços comuns e alienações no valor de até R$ 8.000,00 (oito mil reais), desde que não se refiram a parcelas de um mesmo serviço, compra ou alienação de maior valor que possa ser realizada de uma só vez; 2) nos casos de emergência ou de calamidade pública; e 3) na contratação de profissionais ou empresas de notória especialização. É justamente nessas três situações onde se concentram os esquemas de fraudes de corrupções.
É muito comum encontrar na contabilidade das prefeituras compras de bens e serviços, inclusive relacionados com a coleta de lixo, com valores pouco abaixo de R$ 8.000,00 (oito mil reais). Claro, tais compras não passam pela burocracia de um processo de licitação. E isso abra caminho para todo tipo de pequenas fraudes, tais como: aquisição de bens e serviços inexistentes, para saldar pequenas despesas de campanha; aquisições de notas fiscais frias para encobrirem farras de integrantes da administração pública, despesas com salões de beleza das damas do poder e despesas com residência e faculdade de amante do prefeito, na capital no Estado, etc.
Quando um grupo político que está no poder há muito tempo perde a sua hegemonia, é comum “abandonar” a cidade nos três últimos meses da sua administração. Como conseqüência, o novo grupo político que assume o poder recebe a cidade toda esburacada, fedorenta, com os esgotos estourados, e muito lixo.
Com a ascensão do novo grupo político acontecem duas grandes sucessões: 1) os apadrinhados do grupo político derrotado sedem o lugar para os do novo grupo político; 2) os ratos quadrúpedes que estão no lixo sedem o lugar para os ratos bípedes.
O novo chefe da administração decreta estado de calamidade pública da cidade e contrata, sem licitação pública, o grupo empresarial que fez a maior doação para campanha eleitoral, justamente para fazer, de forma urgente, a coleta do lixo da cidade; contrata também, sem licitação, outra empresa que contribuiu com doações expressivas, para tapar os buracos da cidade e consertar os esgotos. Quando não se decreta o estado de calamidade pública da cidade, contrata-se empresa com notória especialização técnica, sem licitação pública, claro, para fazer a coleta do lixo, ainda que esta empresa tenha sido constituída depois da vitória nas urnas, como aconteceu no ano de 2000, numa grande cidade brasileira. Neste caso, coincidentemente, a neo-empresa pertencia a um grupo empresarial que fez a maior doação para a campanha do alcaide.
O interessante, no caso acima, é que durante a campanha eleitoral seguinte, o candidato adversário, que tanto criticou e prometeu passar a limpo a questão da coleta do lixo, uma vez eleito e tendo assumido a prefeitura, nunca mais falou em lixo.
O lixo, numa relação direta e imediata, financia as campanhas eleitorais municipais. Mas, uma vez no poder, a nova administração, faz uso do lixo para pagar as despesas de campanha, no primeiro ano da administração; depois, para fomentar fundo destinado à reeleição; por fim, para arrecadar dinheiro para um projeto político mais arrojado, governadores e até presidente da República.
Por causa dos financiamentos de campanhas eleitorais vinculadas à coleta do lixo urbano, muitos incidentes políticos têm surgido por todo este país afora, de norte a sul e de leste a oeste, inclusive com assassinatos de vereadores e prefeitos.
A questão da coleta de lixo tem corrido tão frouxo, que os Tribunais de Contas dos Estados, ou dos Municípios, onde existem, mesmo se restringindo a fazerem uma análise meramente formal das contas dos gestores municipais, pois, não chegam ao nível de aprofundamento suficiente à identificação de firmas fantasmas, de “laranjas” e de notas fiscais “frias”, salvo nos casos de denúncia formal e bem documentada, tem identificado irregularidades nos números do lixo de diversas Prefeituras. E isso tem acontecido justamente por causa de deslizes dos administradores, dentre os quais se destacam: licitação direcionada e superfaturada, contratação de empresas que na prática nunca efetuaram o serviço, além de pagamento acima do valor da quantidade de lixo coletada.
Diante do exposto, conclui-se o seguinte: 1) há uma relação direta entre o valor das doações feitas por pessoas físicas e jurídicas na campanha eleitoral e o sucesso nas urnas; 2) o pagamento do financiamento da campanha eleitoral ocorre o primeiro ano de administração dos candidatos eleitos; 3) o esquema de fraude e corrupção na nova administração é montado durante o período de transição política, ou seja, nos dois meses que se segue ao resultado do pleito eleitoral; 4) os esquemas de fraudes e corrupção na coleta de lixo até hoje noticiados pela mídia e os identificados pelos Tribunais de Contas representam apenas a ponta do iceberg de uma prática difícil de combater, uma vez que a complexidade técnica do tema envolve cifras elevadas e toneladas de resíduos despejadas diariamente. Algo complicado (mas não impossível) de fiscalizar, ainda mais para quem faz vista grossa.
Juiz de Direito no Ceará, ex-Juiz de Direito na Paraíba e ex-Promotor de Justiça no Pernambuco. É ex-professor substituto de direito processual penal da Universidade Federal de Campina Grande-PB e ex-professor de técnica de sentença penal e de direito civil da a Escola Superior da Magistratura da Paraíba. É bacharel em direito pela Universidade Regional do Cariri – Crato-CE, turma de 1995. Pós-graduado (lato sensu) em Direito Processual Civil. Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais pela “Universidad del Museo Social Argentino”, em Buenos Aires
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