Resumo: Este artigo trata da relação entre a ideia de positivismo jurídico e a aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana. Inicialmente, delineia ambos os pontos, abordando em seguida a contradição entre eles. Apresenta, ainda, o esboço de um modelo teórico unificador orientado à decidibilidade.
Palavras-chave: Teoria geral do direito. Positivismo jurídico. Dignidade da pessoa humana.
Abstract: This article discusses the relationship between the idea of legal positivism and the principle of human dignity. Initially, outlines both points, and afterwards broaches the contradiction between them. It also presents the outline of a unifying theoretical model oriented to decidability.
Keywords: General theory of law. Legal positivism. Human dignity.
1 INTRODUÇÃO
O positivismo jurídico, cujo mais conhecido representante é Hans Kelsen, tem como base a concepção de que apenas as regras produzidas pelo Estado constituem direito, sendo este, portanto, produto apenas da ação humana, conforme a história de cada sociedade, e não obra divina ou da natureza, como defendido pelo jusnaturalismo.
Acreditam os positivistas que a moral e a justiça são inteiramente distintas do direito, uma vez que não têm por lastro a força política, ou seja, a capacidade de imposição baseada na possibilidade de aplicação de sanções físicas.
De outro lado, parte dos doutrinadores das últimas décadas, a exemplo de Cossio, Larenz e Canaris, sustenta que a valoração é indissociável da aplicação do direito. E o princípio da dignidade da pessoa humana é amiúde apontado como o mais importante dos valores, para as sociedades contemporâneas ocidentais em geral.
Deverá o operador do direito observar estritamente a norma jurídica posta pelo Estado, para todos os casos em que for aplicada, ou cabe a ele adaptar sua ação, de modo orientado à efetivação dos valores sociais, em especial a dignidade da pessoa humana?
Este trabalho apresenta a hipótese de que é possível conciliar o positivismo jurídico (muito embora não o positivismo austiniano ou kelseniano originais) com a possibilidade de valoração pelo aplicador do direito, em especial no que diz respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Tendo em vista tal recorte epistemológico, serão brevemente descritas ambas as idéias contrapostas, e delineados os fundamentos de um modelo teórico que possa unificá-las, criando condições de decidibilidade.
2 O POSITIVISMO JURÍDICO
2.1 ORIGENS, DENOMINAÇÃO E ESSÊNCIA
O positivismo jurídico é a corrente doutrinária de maior influência no direito de hoje. Ronald Dworkin relata que “O positivismo possui como esqueleto algumas poucas proposições centrais e organizadoras” (2002, p. 27-28), que corresponderiam à possibilidade de se delimitar quais normas são jurídicas, com base em critérios específicos; à crença de que, quando o agente estatal decide um caso não enquadrado em uma norma jurídica preexistente, estaria indo além do direito, e não o aplicando; e à convicção de que não existe obrigação jurídica não prevista em uma norma jurídica.
Aqui é apresentada uma breve análise da história e da estrutura dessa corrente da doutrina jurídica, em cujas idéias se pretende fundamentar a proteção da dignidade da pessoa humana, no nosso ordenamento atual.
O doutrinador inglês John Austin, que viveu entre 1790 e 1859, é, segundo Norberto Bobbio, “considerado o fundador do positivismo jurídico propriamente dito” (1995, p. 47). Hart, em 1955, o reconhece como o mais influente jurista de seu país[1].
Austin, em A determinação do campo da jurisprudência, relata que, em sua época (1906, p. 02):
“contrastado ao direito natural, ou ao direito da natureza (significando, por essas expressões, o direito de Deus), o agregado de regras, estabelecidas por superiores políticos, é frequentemente intitulado direito positivo, ou direito existente por posição [by position]”[2].
O positivismo jurídico tem seu nome e essência derivados da ideia de que o conhecimento jurídico diz respeito apenas ao direito em sentido estrito, aquele estabelecido pelo homem. Afirma o mesmo autor britânico que “O objeto da ciência do direito [jurisprudence] é o direito positivo [positive law]: direito, simples e estritamente assim chamado: ou direito estatuído pelos superiores políticos para os inferiores políticos” (ibidem, p. 01)[3].
Pouca relação há, portanto, entre essa corrente e o positivismo de Auguste Comte, o qual, na mesma época, sustentava em seu Curso de Filosofia Positiva que “cada uma das nossas concepções principais […] passa sucessivamente por três estados históricos diferentes: estado teológico ou fictício, estado metafísico ou abstrato, estado científico ou positivo” (2000, p. 22).
A teoria austiniana (1906), estabelece uma rígida separação entre direito em sentido estrito (direito positivo) e regras qualificadas como de mera opinião, desprovidas de coercibilidade, como as referentes à honra (hounor), à moda (fashion) e ao chamado direito internacional (International law), as quais integram o que o autor chama de moralidade positiva. Explica ele que “O nome moralidade as separa [as regras de mera opinião] do direito positivo, enquanto o epíteto positivo as aparta do direito de Deus” (ibidem, p. 03)[4].
Essa perspectiva, que acentua a importância da sanção (sanction), é “fixada incidentalmente por Locke em seu Ensaio acerca do Entendimento Humano” (ibidem, p. 79)[5], editado ainda em 1690, no qual este divide o direito em divino, civil e de opinião ou reputação (1828, p. 251-255)[6]. Para John Locke, o poder é essencial para garantir a existência do direito (law), constituindo a desaprovação dos membros da comunidade força bastante para lastrear as regras de opinião ou reputação.
O fato de que essa desaprovação, assim como o poder divino, tem natureza diferente daquela do poder humano que afiança o direito em sentido estrito, levou Austin a acreditar que a ciência do direito não deveria se ocupar das regras de opinião ou reputação.
O autor inglês, com sua teoria, rompeu definitivamente com o jusnaturalismo, cujos adeptos, segundo Norberto Bobbio, “tinham a ilusão de que existia para certos direitos do homem um fundamento absoluto e irresistível (que sempre convence), decorrente da própria natureza humana” (2004, p.16).
A extração da moral, por Austin, do campo da jurisprudência, é frontalmente contrária à posição de seu mentor, Jeremy Bentham, para quem “a legislação tem o mesmíssimo centro que a Moral, mas de maneira alguma a mesma circunferência”, uma vez que “há muitas ações nocivas que [a legislação] não deveria proibir, uma vez que a Moral pode muito bem fazê-lo” (1914, p. 79)[7].
2.2 DESENVOLVIMENTO KELSENIANO
O positivismo jurídico nascido com Austin tem como principal desenvolvedor o austríaco Hans Kelsen (1881-1973), conhecido especialmente pela sua teoria pura do direito, a qual, segundo o próprio autor, “Como John Austin, no seu famoso Lectures on Jurisprudence […] procura obter os seus resultados exclusivamente por meio de uma análise do Direito positivo” (2000, prefácio, p. XXX).
Mas, diferentemente deste, que “compartilha a opinião tradicional, segundo a qual o Direito e o Estado são duas entidades diferentes” (ibidem, p. XXXI), Kelsen pretende demonstrar que “o Estado imaginado como ser pessoal é, na melhor das hipóteses, nada mais que a personificação da ordem jurídica, e, mais freqüentemente, uma mera hipostatização de certos postulados político-morais” (ibidem, p. XXXI).
A essência de sua teoria positivista se traduz na busca da purificação do direito, definido com base na natureza física da sanção, em relação a influências como as da política, moral e religião. Segundo ele (2009, p. 37):
“Como ordem coativa, o Direito distingue-se de outras ordens sociais. […] a circunstância de que o ato estatuído pela ordem como conseqüência de uma situação de fato considerada socialmente prejudicial deve ser executado mesmo contra a vontade da pessoa atingida e – em caso de resistência – mediante o emprego da força física, é o critério decisivo.”
Escreveu, em 1944, que, nesse tempo, “decididamente ‘fora dos eixos’, quando os fundamentos da vida social foram profundamente abalados por duas Guerras Mundiais” (2000, p. XXXIII), não havia nenhuma influência que pudesse contrabalançar o interesse que os detentores do poder, e aspirantes a ele, tinham por uma teoria jurídica que satisfizesse a seus anseios, ou seja, por uma ideologia política.
Sua opção de adotar a coercibilidade monopolizada como critério de definição do direito é ainda mais nítida que em Austin, como se depreende do trecho: “O Direito é uma organização da força. Porque o Direito vincula certas condições para o uso da força nas relações entre os homens, autorizando o emprego da força apenas por certos indivíduos e sob certas circunstâncias” (ibidem, p. 30). Explica o autor (ibidem, p. 26):
“Quando a sanção é organizada socialmente, o mal aplicado ao violador da ordem consiste numa privação de posses – vida, saúde, liberdade ou propriedade. Como as posses lhe são tomadas contra a sua vontade, essa sanção tem o caráter de uma medida de coerção. Isso não significa que a força deva ser aplicada na execução da sanção. Onde a autoridade que aplica a sanção possui poder adequado, esse caso é apenas excepcional.”
Traços marcantes de sua doutrina são a ênfase na distinção entre ser (mundo dos fatos) e dever ser (mundo das normas), herança de Kant[8], e o rigor formal[9] com que construiu o que depois foi chamado de pirâmide normativa, em que as normas superiores emprestam força às inferiores, havendo sobre todas elas uma norma fundamental, rigor esse que se pode dizer análogo àquele presente no direito processual.
Seria impróprio afirmar que Kelsen e os demais positivistas clássicos não reconhecem a importância dos valores para a sociedade, como se aconselhassem os operadores do direito a ignorarem completamente a moral. Eles afirmam, na verdade, que esta não deve ser estudada pela teoria geral do direito. Os pós-positivistas, por sua vez, defendem a “superação da distinção entre normas e princípios”[10], ou seja, a normatividade dos princípios, admitindo o conteúdo axiológico das normas jurídicas.
3 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
3.1 BREVE HISTÓRICO
Conforme Ingo Wolfgang Sarlet, “No pensamento filosófico e político da antiguidade clássica, verifica-se que a dignidade (dignitas) da pessoa humana dizia, em regra, com a posição social ocupada pelo indivíduo” (2010, p. 32), mas Cícero[11] “desenvolveu uma compreensão de dignidade desvinculada do cargo ou posição social” (ibidem, p. 33), decorrente da qualidade ímpar de racional que tem o ser humano frente aos animais e outros seres.
Mas, nem mesmo para Cícero, havia isonomia, no que diz respeito à dignidade, entre todos os seres humanos, de maneira que, a rigor, inexistia uma completa desvinculação.
São Tomás de Aquino, no alto medievo, pregava em sua Summa Theologiae (ou Summa Theologica) que “a dignidade é algo absoluto e pertence à essência” (2001, p. 411)[12].
No período da Renascença, conforme Sarlet, também o “humanista italiano Pico della Mirandola, […] partindo da racionalidade como qualidade peculiar inerente ao ser humano[13], advogou ser esta a qualidade que lhe possibilita construir de forma livre e independente sua própria existência e seu próprio destino” (2010, p. 34).
Para o jurista alemão Samuel Pufendorf (1634-1694), “a noção de dignidade não está fundada numa qualidade natural do homem e tampouco pode ser identificada com a sua condição e prestígio na esfera social” (ibidem, p. 36), tampouco representando uma concessão divina.
Immanuel Kant sustenta, em conhecido trecho de sua obra, que:
“o Homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como um fim em si mesmo, não simplesmente como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. […] Os seres cuja existência depende, não em verdade da nossa vontade, mas da natureza, têm contudo, se são seres irracionais, apenas um valor relativo como meios e por isso se chamam coisas, ao passo que os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer, como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, por conseguinte, limita nessa medida todo o arbítrio (e é um objeto de respeito).” (1980, p. 134-135, apud Sarlet, 2010, p. 37-38).
Mas é com a repulsa aos horrores da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), na qual, segundo Eric Hobsbawn, morreram 54 milhões de pessoas (2003, p. 56), que o princípio da dignidade da pessoa humana teve seu maior estímulo[14]. Conforme Alessandro Marques de Siqueira:
A partir do segundo pós-guerra, ao menos no plano das leis, a concepção de que o respeito ao Ser Humano deve ocupar o centro de toda e qualquer atividade desenvolvida ganha força. Esta constatação rompe com as fronteiras do Estado Liberal para apresentar um modelo onde os valores essenciais ao Ser Humano são fundamentos da nova soberania. Desta forma os princípios informadores do Estado Democrático (Cidadania e Dignidade da Pessoa Humana) são trazidos para a realidade constitucional e passam a ser exigíveis no plano jurídico.
A Organização das Nações Unidas, em 1948, decide reforçar a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão feita pela França em 1789, cujos artigos 1º e 6º, respectivamente estabelecem que “Os homens nascem iguais e são livres em direitos”, e que “[…] Todos os cidadãos são […] igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo a sua capacidade e sem outra distinção que não seja a das suas virtudes e dos seus talentos”[15] (grifos acrescidos).
Proclama a ONU, então, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que dispõe, em seu primeiro artigo: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”[16].
Conforme a Declaração anterior, todos poderiam alcançar, segundo a sua capacidade, todas as dignidades, o que indica a adoção, ainda, da teoria da dignidade vinculada ao cargo ou posição social. Segundo a nova Declaração, todos já nascem iguais em dignidade, o que representa o abandono dessa teoria.
A Alemanha, derrotada pelas armas e pressionada pelas nações vitoriosas, promulgou em 1949 uma nova Lei Maior, cujo artigo 1º reza que “A dignidade humana é inviolável. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todo poder público”[17]. Tal disposição, a par de outras, significava uma espécie de garantia de que as histórias da Primeira e Segunda Guerras Mundiais não seriam repetidas.
Esse substrato histórico, porventura aliado à grande influência que a doutrina jurídica alemã sempre exerceu sobre o mundo, fez com que diversos países adotassem expressamente em suas Constituições o princípio da dignidade da pessoa humana, dentre os quais aponta Sarlet (2010, p. 73-74):
“Espanha (preâmbulo e art. 10.1), Grécia (art. 2°, inc. I), Irlanda (preâmbulo) e Portugal (art. 1°), […] Itália (art. 3°), […] Bélgica […] (art. 23), […] Paraguai (Preâmbulo), […] Cuba (art. 8º) […] Venezuela (Preâmbulo) […] Peru […] (art. 4º) […] Constituição Chilena (art. 1º) […] Constituição da Rússia […] art. 12-1 […] Colômbia (art. 1º), Bulgária (preâmbulo), Hungria (art. 54), Lituânia (art. 21), Polônia (art. 30), China (art. 38), Namíbia (preâmbulo e art. 8º), Cabo Verde (art. 1º) e África do Sul (arts. 1°, 10º e 39º).”
Por influência desse fluxo político internacional, e também como resultado do desenvolvimento do conceito de dignidade na história do pensamento, é que nossa Assembléia Constituinte gerou o célebre art. 1º, III, da Carta Magna de 1988: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: […] III – a dignidade da pessoa humana […]”.
3.2 DEFINIÇÃO
3.2.1 ATUAL INEXISTÊNCIA DE DEFINIÇÃO SATISFATÓRIA
Apesar de ter enorme importância para o direito atual, e de ser objeto de inúmeras obras, o princípio da dignidade da pessoa humana ainda carece de uma conceituação satisfatória. Krystian Complak retrata esse quadro, nos seguintes termos (2008, p. 107):
“No que tange à definição jurídica da dignidade humana, a maioria dos cultivadores deste campo do direito além de não formularem tal definição, alegam que é impossível elaborar uma explicação satisfatória sobre seu significado. Outros alegam que só se pode tratar de especificar os exemplos de sua violação dando uma espécie de definição negativa da dignidade da pessoa humana. Não é melhor a situação na jurisprudência. Os casos resolvidos exclusivamente com fundamento na dignidade humana são escassos e contraditórios.”
Sarlet, após mencionar a “questionável (e questionada) viabilidade de se alcançar algum conceito satisfatório do que, afinaI de contas, é e significa a dignidade da pessoa humana hoje” (2010, p. 47), arrisca (ibidem, p. 70):
“temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.”
Em que pese o fato de o doutrinador ser um dos maiores especialistas do país no assunto, não se pode deixar de observar que se trata de uma definição circular. Nela, a dignidade é a qualidade de determinados sujeitos que assegura que eles não serão indignamente tratados (ou seja, tratados de maneira desumana e degradante).
Robert Alexy, um dos mais influentes doutrinadores da atualidade em âmbito global, também propõe incidentalmente, uma definição jurídica de dignidade da pessoa (1993, p. 344-345):
“El concepto de la dignidad de la persona puede ser explicitado – a más de a través de fórmulas generales como la que dice que la persona no puede ser convertida en mero objeto – por un haz de condiciones mas concretas que tienen que darse o que no deben darse si ha de garantizarse”[18].
Essa proposição é tão tautológica quanto a de Sarlet, e, por isso, igualmente inaceitável. Nela, a expressão a ser definida está incluída na própria definição: a dignidade da pessoa corresponde ao conjunto de condições que devem ser proporcionadas ou evitadas para garantir a dignidade da pessoa.
3.2.2 DEFINIÇÃO AD HOC
Seria logicamente impossível conciliar o positivismo jurídico com a aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana, e, portanto, improfícuo este trabalho, se não se dissesse o que é esta última. Como forma de transpor tal barreira, aqui se propõe uma definição ad hoc.
A matéria abordada neste ponto – definição jurídica da dignidade da pessoa humana – poderia ser objeto de uma dissertação ou tese inteira. Não se pretende, em um trabalho de escopo limitado como este, exaurir o tema ou propor uma concepção com ânimo de definitividade, mas apresentar um conceito que fundamente de maneira viável o modelo teórico proposto, não sendo evidentemente tautológico como aqueles que a doutrina nacional e estrangeira tem oferecido.
Independentemente de qual das atuais concepções do direito se adote, é inquestionável, sendo mesmo um truísmo, o fato de que os aplicadores do direito são humanos, de modo que dizer que um ordenamento jurídico conhece essas ou aquelas coisas, esses ou aqueles objetos, significa apenas um modo figurado de se dizer que um aplicador, ou um conjunto de aplicadores, os conhece.
Isso vale para nossos ordenamentos atuais e também para os antigos, como os da Grécia e de Roma, aos quais não convém deixar de chamar de ordenamentos, somente porque eram formados por instituições diferentes das nossas. Seguir por esse viés significaria abdicar da pretensão de generalidade que caracteriza a ciência[19].
Um ordenamento jurídico, por ser um sistema abstrato, só pode tratar de ideias, relacionadas ou não ao mundo sensível. Do ponto de vista de um ordenamento jurídico genericamente considerado (rectius, do de seus aplicadores), de início, um ser humano, um animal, ou outra coisa, podem ser vistos da mesma forma, como objetos de conhecimento.
Os escravos, e. g., para os gregos e romanos antigos, tinham o mesmo estatuto jurídico que coisas sem vida, por mais que isso ofenda nossos atuais sentimentos de justiça. O ser humano é digno, e não os rios ou as plantas, nos ordenamentos de hoje, porque condicionamentos históricos levaram a isso.
Inexiste vergonha no fato de a dignidade do homem vir dele mesmo, e não de alguma ordem mística ou metafísica superior. Pelo contrário, essa verdade valoriza a dignidade como conquista e alerta para a necessidade de sua preservação e ampliação.
Com base nesses elementos, pode-se chegar a uma definição de dignidade de um objeto[20]. Ela é a existência, em um ordenamento jurídico, de um conjunto de direitos em favor desse objeto, superiores em quantidade e qualidade aos direitos de outros objetos individualmente considerados.
Se o objeto é considerado o mais digno, terá o maior conjunto de direitos. A dignidade de um monarca absolutista, v. g., consiste na existência, no respectivo ordenamento jurídico, de um conjunto de direitos em favor desse monarca, superiores em quantidade e qualidade aos direitos de todos os demais objetos individualmente considerados, desde os príncipes até os objetos inanimados, passando por arquiduques, duques, marqueses, condes, viscondes, barões, cavaleiros, servos e animais.
Dentro desse exemplo, os animais e objetos inanimados não têm dignidade, porque a eles não se relaciona nenhum conjunto de direitos; os servos quase não têm dignidade, porque dispõem de pouquíssimos direitos; e os nobres têm mais ou menos dignidade de maneira diretamente proporcional à sua posição na hierarquia nobiliárquica[21].
A par da definição de dignidade já delineada, que é verdadeiramente genérica, porque abrange todas as épocas e todas as coisas que podem ser tidas como dignas, se faz necessária, por conveniência prática, também uma definição de dignidade humana adequada aos ordenamentos de hoje, como o brasileiro.
Atualmente, para grande parte desses ordenamentos, todos os seres humanos são iguais perante a lei, o que significa que todos eles têm o mesmo conjunto de direitos[22]. Pode-se dizer, então, que neles, juridicamente, a dignidade de cada ser humano é, de certo modo, comparável à de um monarca absolutista: é a mais superior do respectivo ordenamento. Figuradamente, cada ser humano é um rei.
Para o ordenamento jurídico do Brasil, bem como para todos aqueles que adotam o chamado princípio da dignidade da pessoa humana, se tem que essa dignidade da pessoa humana representa a existência, no ordenamento jurídico, de um conjunto de direitos em favor de cada ser humano, superiores em quantidade e qualidade aos direitos de quaisquer outros objetos individualmente considerados.
O objeto ao qual esses ordenamentos jurídicos conferem um conjunto privilegiado de direitos, a rigor, é o ser humano, ser concreto, e não a pessoa[23] humana, ente abstrato. Mas a consagrada expressão “dignidade da pessoa humana” pode muito bem continuar a ser utilizada, desde que conhecida essa sutileza.
Os conjuntos de direitos que correspondem a cada objeto, bem como os critérios de superioridade qualitativa e quantitativa, são específicos para cada ordenamento, se adequando às peculiaridades das respectivas sociedades. Podem ser facilmente reconhecidos, em um dado ordenamento jurídico, por aqueles que o estudam.
4 ESBOÇO DE UM MODELO TEÓRICO UNIFICADOR
Este artigo tem o objetivo de fornecer um modelo teórico, ou ao menos o esboço de um, que não se limite a simplesmente constituir uma boa descrição do positivismo jurídico, do princípio da dignidade da pessoa humana e da harmonização entre ambos.
Se pretende que tal modelo, para além disso, sirva à aplicação prática do referido princípio, possibilitando a efetivação deste, dentro da perspectiva positivista.
O trabalho visa, se assim se quiser dizer, impedir que o positivismo jurídico obste a concretização desse princípio, ou seja, obste que seres humanos tenham vidas dignas.
A propósito da necessidade de a dogmática assumir uma orientação prática, ensina Tércio Sampaio Ferraz Jr. (2010, pp. 63-65):
“Seja qual for o objeto que determinemos para a Ciência Dogmática do Direito, ele envolve a questão da decidibilidade. […] Os enunciados da Ciência do Direito que compõem as teorias jurídicas têm, por assim dizer, natureza criptonormativa, deles decorrendo conseqüências programáticas de decisões, pois devem prever, em todo caso, que, com sua ajuda, uma problemática social determinada seja solucionável sem exceções perturbadoras. […] As questões dogmáticas são tipicamente tecnológicas. Nesse sentido, elas têm uma função diretiva explicita, pois a situação nelas captada é configurada como dever-ser. Questões desse tipo visam possibilitar uma decisão e orientar a ação. De modo geral, as questões jurídicas são dogmáticas, sendo sempre restritivas (finitas) e, nesse sentido, positivistas (de positividade).”
Antes de serem apresentadas as linhas gerais de um modelo teórico que adeque a aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana ao positivismo jurídico, convém demonstrar o que representa, para a doutrina, o conflito entre essas duas ideias.
Explana Clèmerson Merlin Clève, em sua apresentação do livro de Ingo Wolfgang Sarlet (2010, p. 23), o qual aborda o princípio em foco:
“O direito constitucional do homem, do cidadão, da dignidade da pessoa humana, dos direitos fundamentais, afasta-se daquele centrado, exclusivamente, na figura do Estado, dele dependente, criatura servindo o criador, instrumento de governo que dá satisfação aos interesses das maiorias conjunturais. O primeiro é o direito constitucional crítico, emancipatório, principiológico e repersonalizador. O segundo é o direito constitucional do status quo, dogmatista, positivista, cativo do princípio majoritário, mero instrumento da atuação estatal. O primeiro põe a dignidade da pessoa humana em lugar exterior ao debate político, tendo por acertado que a política haverá de servir a dignidade da pessoa humana. O segundo deixa a dignidade da pessoa humana à disposição do debate político e, portanto, à mercê dos humores políticos contingentes. São posturas distintas. Compõem histórias jurídicas apartadas. Cada qual é responsável pela sua opção metodológica”.
Em um artigo escrito logo após o término da Segunda Guerra Mundial, já propunha Gustav Radbruch (1946, p. 119, apud BIX, 2006):
“o conflito entre justiça e certeza jurídica pode ser bem resolvido do seguinte modo: o direito positivo, assegurado pela legislação e pelo poder, tem prioridade mesmo quando o seu conteúdo é injusto e não beneficiar as pessoas, a menos que o conflito entre a lei e a justiça chegue a um grau intolerável em que a lei, como uma “lei defeituosa”, deva clamar por justiça.”
Essa solução ainda não é satisfatória, devido à falta de critérios que delimitem o que seria uma “lei defeituosa”, ou seja, que estabeleçam a partir de quando o conflito entre a lei e a justiça se torna intolerável.
Caso esses critérios existissem, duas situações poderiam ocorrer, sob a ótica do direito estabelecido (positivo): ou o ordenamento proibiria que o aplicador, deles lançando mão, deixasse de afastar a lei injusta, ou não proibiria. No primeiro caso, se, inobstante a proibição, o aplicador deixasse de afastar uma lei injusta, estaria cometendo um delito.
Do mesmo modo, o ordenamento positivo pode ou não proibir o detentor do poder político, inclusive legislador, de atuar contrariamente a uma determinada esfera de valores, de que pode fazer parte a dignidade da pessoa humana. Caso exista a proibição, o detentor do poder cometerá um delito se a descumprir.
A questão deve ser colocada de maneira precisa. A princípio, não há nenhuma contradição entre a ideia de que o conhecimento jurídico diz respeito apenas ao direito em sentido estrito, estabelecido pelo homem, e a ideia de que em um dado ordenamento jurídico há um conjunto de direitos em favor de cada ser humano, superiores em quantidade e qualidade aos direitos de quaisquer outros objetos individualmente considerados por esse ordenamento (na verdade, considerados pelos aplicadores desse ordenamento). É perfeitamente admissível que esse conjunto de direitos tenha sido concedido, em favor de cada ser humano, pelo próprio homem, com lastro na possibilidade de uso da força.
O verdadeiro problema diz respeito antes ao atual ordenamento jurídico brasileiro e a seus assemelhados, os ordenamentos jurídicos de outros países democráticos, que à teoria geral do direito, propriamente dita.
Esse problema, colocado da maneira mais genérica possível, é o seguinte: existe, nesses ordenamentos jurídicos positivos, proibição jurídica de que alguém (administrador público, legislador, julgador, ou qualquer um, inclusive da esfera privada) atue contrariamente a uma determinada esfera de valores, da qual faz parte a dignidade da pessoa humana?
A resposta, evidentemente, é que sim.
O direito positivo pode muito bem proteger valores. De uma perspectiva teleológica, é a única coisa que faz. A instituição do homicídio, por exemplo, em que aquele que atenta contra a vida é punido, visa apenas resguardar o valor que a vida representa para a sociedade. Se esse valor não existisse, não haveria um instituto como o do homicídio.
A única diferença, de um ponto de vista positivista, entre os valores estritamente morais[24] e os valores jurídicos é simplesmente a circunstância de que estes estão protegidos pela possibilidade de uso da força, ou seja, a circunstância de que são jurídicos.
Um ordenamento positivo também pode eleger um conjunto de valores nucleares, considerados mais importantes que os demais, e a eles conferir proteção privilegiada. E isso ocorre, no ordenamento jurídico brasileiro e nos ordenamentos jurídicos a ele assemelhados.
É desnecessário enumerar os dispositivos constitucionais e legais que proíbem a atuação contrária ao conjunto de valores nucleares desses ordenamentos, do qual faz parte a dignidade da pessoa humana. Os intérpretes do direito conhecem bem tais dispositivos, em relação ao ordenamento que estudam.
O modelo teórico pretendido, assim, válido apenas para o ordenamento jurídico brasileiro e seus assemelhados, corresponde à verificação de que o direito positivo, nesses ordenamentos, elegeu um conjunto nuclear de valores jurídicos privilegiados, de que a dignidade da pessoa humana faz parte[25], para os quais existe uma proteção jurídica reforçada, ou seja, maior proibição jurídica.
Isso significa que todos (administradores públicos, legisladores, julgadores, ou quaisquer outros que possam adotar uma conduta[26], mesmo da esfera privada) têm deveres jurídicos, superiores em quantidade e qualidade a quaisquer outros dentro do respectivo ordenamento, correspondentes à proibição de atuação contrária a esse conjunto de valores.
Tal modelo cria condições práticas de decidibilidade.
O problema da chamada lei injusta, sobre o qual se debruçou Radbruch, é resolvido pela observação de que essa lei ou ofende valores jurídicos integrantes daquele conjunto essencial de valores privilegiados pelo ordenamento jurídico, ou não. Se ofende, sua aplicação deve ser afastada. É o que ocorre quando uma lei viola um princípio constitucional. Se não ofende, não pode, juridicamente, ser considerada “injusta”.
Apenas os valores positivados de uma sociedade é que podem assumir características de valores jurídicos, e não os valores pessoais do aplicador do direito.
O mesmo ocorre com a questão abordada por Clève, sobre a possibilidade de a dignidade da pessoa humana ficar “à disposição do debate político e, portanto, à mercê dos humores políticos contingentes”, com a adoção do positivismo. Existe positivamente um núcleo duro de valores[27], lastreado pelos deveres jurídicos que todos têm de não atuar contrariamente a esse núcleo, deveres esses superiores em quantidade e qualidade a quaisquer outros dentro do ordenamento. No mesmo sentido, o seguinte trecho de Renato Kenji Higa (2001):
“Não temos o medo de afirmar que qualquer norma que afronte a dignidade da pessoa deve ser afastada. Não se trata do direito alternativo. É perfeitamente possível buscarmos soluções justas no princípio da dignidade humana que está positivado na Constituição Federal.”
Assim sendo, mesmo contra os desejos momentâneos da maioria, não será possível, no Brasil atual, suprimir a dignidade da pessoa humana, a não ser pela revolução. Mas esta, quer se queira ou não, quase tudo pode. É perfeitamente possível, embora para muitos[28] não seja politicamente desejável, a instituição de um regime totalitário no Brasil atual, e a doutrina não pode fechar os olhos para essa possibilidade, criando modelos que são reflexo antes de como os estudiosos gostariam que fosse o direito, do que retrato de como ele é[29]. Mas, em nosso ordenamento atual, prevalece a proteção ao núcleo axiológico essencial, de modo que, inclusive, conforme pontua Eduardo Appio (2008, p. 193), “cabe ao Judiciário garantir, por meio do ativismo, na forma de juízos de razoabilidade, quais os direitos são reputados como fundamentais e qual é o limite máximo para sua regulação estatal”.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A dignidade de um dado objeto cognoscível é relacional, significando a existência, em um ordenamento jurídico, de um conjunto de direitos em favor desse objeto, superiores em quantidade e qualidade aos direitos de outros objetos individualmente considerados.
Para o atual ordenamento jurídico brasileiro, bem como para seus assemelhados, se tem que a dignidade da pessoa humana representa a existência, no ordenamento, de um conjunto de direitos em favor de cada ser humano, superiores em quantidade e qualidade aos direitos de quaisquer outros objetos individualmente considerados.
O positivismo jurídico, que prega que o direito é sempre estabelecido pelo homem, com base na possibilidade do uso da força, é plenamente compatível com a ideia de que a valoração, inclusive aquela em favor da dignidade da pessoa humana, é indissociável da aplicação direito, desde que se tenha em mente que essa valoração é sempre jurídica, ou seja, remeta somente a valores juridicamente protegidos.
Isso significa, inclusive, que o aplicador é obrigado a afastar uma determinada norma jurídica, quando esta for contrária a um valor juridicamente mais importante que o protegido por essa norma, efetuando uma aplicação sistêmica do direito positivo.
No ordenamento jurídico do Brasil de hoje, como em outros contemporâneos, todos aqueles que possam adotar uma conduta têm deveres jurídicos, superiores em quantidade e qualidade a quaisquer outros dentro do ordenamento, no sentido de não atuar contrariamente a um conjunto nuclear de valores jurídicos, do qual a dignidade da pessoa humana faz parte. Esses deveres encontram legitimidade democrática no seio da atual sociedade brasileira, uma vez que “pode-se hoje sentir um estado espiritual que inspira uma consciência coletiva voltada para as questões do homem, ainda que no Brasil a dignidade humana ainda seja solapada às escâncaras”[30].
O modelo teórico unificador assim delineado pretende criar condições de decidibilidade prática, constituindo um instrumento para que o aplicador possa se orientar com segurança em suas atividades cotidianas, buscando sempre dentro de seu ordenamento jurídico positivo os valores necessários para a aplicação do direito.
Mestre em Direito do Trabalho e Especialista em Direito Constitucional do Trabalho pela Universidade Federal da Bahia. Atua na assessoria de Desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 5 Região.
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