Os tribunais de contas e a aplicação da decadência nas concessões de aposentadoria

Resumo: o presente estudo destina-se a identificar a plausibilidade jurídica da aplicação do instituto da decadência nas concessões de aposentadorias aos servidores públicos. Analisam-se as competências constitucionais dos Tribunais de Contas para tal fim, sob a ótica do princípio da proporcionalidade, de cuja utilização, conforme o caso, redundará na prevalência da autonomia das Cortes de Contas ou na necessária preservação do princípio da segurança jurídica em prol do servidor.

Palavras-chave: Decadência. Aposentadoria. Servidor público. Tribunais de Contas. Princípios. Segurança jurídica.

1.  INTRODUÇÃO

O tempo é fator de grande relevância nas relações sociais, porquanto é fonte de aquisição, extinção ou exercício de direitos. Ademais, é senhor de modificar situações jurídicas individuais, como, por exemplo, a aquisição de capacidade para o incapaz, da propriedade, para quem tem posse mansa e pacífica.

Por outro viés de observação, o tempo também atua como limitador negativo, no sentido de tolher a possibilidade de alguém exercitar direitos de forma indefinida. A razão para tanto se situa na necessidade de harmonia social, plasmada no princípio da segurança jurídica, como forma de garantir o pleno exercício de direitos aos cidadãos, mas sem impor obrigações eternas a outros. Noutras palavras, equaciona o binômio credor/devedor nas relações jurídicas.

Acerca da concepção jurídica dos efeitos temporais, Caio Mário da Silva Pereira¹ salienta que:

“Onde ainda o tempo exerce função de relevo (…) é na consolidação e na extinção dos direitos subjetivos. Tem, então, aliado a outros fatores, o condão de tornar imune aos ataques a relação jurídica que haja estado em vigor por certo tempo, ou, ao revés, decreta o perecimento daquela que negligentemente foi abandonada pelo sujeito.”

 O tempo, juridicamente concebido, portanto, torna-se condição de validade de direitos, os quais, contudo, podem ser extintos em função de decurso de prazo, consubstanciado no instituto da decadência.

A propósito, o fio condutor da análise que se pretende no presente trabalho é exatamente estudar a possibilidade de aplicação da decadência sob a ótica da atuação dos Tribunais de Contas, mormente na concessão de aposentadoria aos servidores públicos.

 Adiante-se, contudo, que, para o fim aqui estimado, não há necessidade de adentrar-se de forma pormenorizada no estudo jurídico do instituto, pois o exame que se pretende é mais factual do que teórico. Afinal, o estudo aprofundado do instituto, em si, demandaria espaço próprio e mais alongado, eis que, conforme sabiamente sintetiza Caio Mário da Silva Pereira², “este é um dos pontos mais controvertidos da ciência jurídica”.

2.  BREVE CONCEITUAÇÃO DO INSTITUTO DA DECADÊNCIA

De forma simplificada, pode-se conceber que há decadência quando ocorre o transcurso de prazo, aliado à inércia do seu titular. Há, assim, perda insofismável do fundo de direito, não podendo mais ser utilizado de forma alguma, ocorrendo o que a doutrina denomina de caducidade.

A respeito da utilização da decadência no sistema da Previdência Social, Carlos Alberto Pereira de Castro e João Batista Lazzari3 ponderam que:

“A Previdência Social tem o poder-dever de anular os atos administrativos que decorram efeitos favoráveis aos seus beneficiários, quando eivados de vícios que os tornem ilegais. Nessas revisões devem ser observados os prazos da decadência, bem como, o devido processo legal e a proteção jurídica dos beneficiários de boa-fé, em decorrência dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança que deve prevalece nas relações de seguro social.”

Conforme leciona Flávio Tartuce4, “a decadência pode ter origem na lei (decadência legal) ou na autonomia privada, na convenção entre as partes envolvidas com o direito potestativo (decadência convencional).” Interessa a esta análise, portanto, a decadência legal, eis que a concessão de aposentadoria ao servidor público decorre de normas previamente estabelecidas.

Sob essa ótica, cumpre anotar que o legislador infraconstitucional incorporou expressamente o instituto da decadência na norma que regulou o processo administrativo no âmbito da Administração Pública (Lei nº 9.784/99). Contudo, nem sempre é tranquila a real caracterização da decadência, ainda que expressa no texto legal, mormente em função da difícil tarefa de distingui-la da prescrição, que é outro instituto similarmente decorrente do fator tempo.

Há que se desincumbir de tal mister, entrementes, pelo fato de que o Superior Tribunal de Justiça, que detém a competência para tal exame, em diversos julgados já deixou assentado que, de fato, o artigo 54 da citada Lei nº 9.784/99 trata mesmo de decadência 5.

A questão primordial passa a ser, então, se é devida a utilização da Lei nº 9.784/99 na concessão de aposentadorias aos servidores públicos, quando da análise pelos Tribunais de Contas. Antes, porém, torna-se necessário verificar a natureza jurídica da aposentadoria do servidor público, como forma de introduzir a reflexão que se verá mais adiante.

3. NATUREZA JURÍDICA DA APOSENTADORIA DO SERVIDOR PÚBLICO

A concessão de aposentadoria ao servidor público possui rito sofisticado ou, quiçá, confuso de tramitação. Isso porque há a conjugação de dois atos administrativos diferentes, um proveniente da Administração, outro, do Tribunal de Contas.

Nasce daí a divergência doutrinária e jurisprudencial acerca da natureza jurídica da aposentadoria: se ato complexo ou ato de controle. Julgados há no STF que afirmam a essência do ato complexo, todavia, inúmeros julgados de outras cortes, inclusive do STJ, adotam a classificação de ato de controle.

Para os adeptos da corrente que entende a atuação do Tribunal de Contas como um ato de controle, a aposentadoria, logo que concedida pelo ente a que está vinculado o servidor, está apta a produzir todos os efeitos legais.

Ampara-se essa corrente, primacialmente, no consagrado entendimento do Supremo Tribunal Federal de que o Tribunal de Contas não tem o poder de modificar o ato concessório, mas apenas de ordenar ou não o seu registro. Essa característica dá à atividade da Administração plena efetividade, eis que presente a não obrigatoriedade imediata da decisão da Corte de Contas.

Este é o entendimento de Lucas Rocha Furtado6, Procurador do Tribunal de Contas da União, para quem:

“(…) o ato pelo qual o Tribunal de Contas aprecia a concessão de aposentadoria ou pensão é ato de controle (externo), que não integra nem completa o ato de concessão, mas que converte a executoriedade precária (porque condicionada) da concessão em executoriedade definitiva.”

A seu turno, a corrente que entende o ato de aposentadoria como sendo ato administrativo complexo salienta que, para sua formação, contribuem duas ou mais vontades, de órgãos ou entidades diferentes. Distingue-se do processo administrativo na medida em que este se constitui de um complexo de atos, e não uma manifestação complexa de vontades. No ato complexo há identidade de conteúdo e de finalidade.

Assim, para aqueles que consideram a aposentadoria um ato complexo, o ato efetivado pelo Tribunal de Contas é o que garante ao ato inicial da Administração a condição de validade plena. Seabra Fagundes7 explica que a atuação dos Tribunais de Contas:

“(…) tem o caráter de manifestação de vontade, indispensável à integração do ato. Se favorável, este tem como perfeito. Se contrário, o ato se considera nenhum, porque, tendo por si a manifestação da vontade do agente criador, ter-lhe-á faltado, no entanto, a do órgão de controle, indispensável para o seu aperfeiçoamento como ato complexo. “

A questão, como se observa, é de difícil intelecção. Quer parecer, todavia, que assiste razão, em parte, a ambas correntes. Perfilha-se, nesse sentido, o entendimento de Inácio Magalhães Filho8, de cuja obra retira-se a singular conceituação de aposentadoria do servidor público:

“Neste contexto, tem-se a impressão de que a aposentadoria é um ato administrativo híbrido, com nuances de ato complexo, mas, também, com aspectos de ato de controle. Complexo, porque carece de duas vontades distintas e de órgãos diversos, sem as quais não tem o condão de definitividade. Entrementes, também é ato de controle do Tribunal, porquanto desde a primeira manifestação do órgão de origem, a concessão de aposentadoria já ganha contornos de eficácia, com resultados concretos no mundo jurídico.

Com essas ponderações, tem-se, portanto, que a aposentadoria é um ato administrativo vinculado, de natureza híbrida, destinado a garantir ao servidor público inatividade permanente remunerada, que necessita, para sua formalização definitiva, de atos emanados do órgão responsável da Administração Pública e do Tribunal de Contas, mas cujos efeitos no mundo jurídico ocorrem a partir da publicação em veículo de informação oficial.”

Em todo caso, na prática jurisprudencial, convém asseverar que o Supremo Tribunal Federal acabou por abraçar a tese do ato complexo, tendo em vista a edição da Súmula Vinculante nº 39, na qual aquela corte preocupou-se em garantir o contraditório e a ampla defesa apenas àqueles casos não afeitos à concessão inicial de aposentadoria, tendo em vista que antes da chancela das cortes de contas o ato de concessão ainda não foi aperfeiçoado.

A contrário senso, o ato de revisão de aposentadoria, que modifica situação já constituída, em função de ilegalidade posteriormente verificada, prescinde daquelas garantias constitucionais, exatamente por alterar ato jurídico perfeito e acabado.

4. APLICAÇÃO DA DECADÊNCIA NAS CONCESSÕES INICIAIS DE APOSENTADORIA PELOS TRIBUNAIS DE CONTAS

A possibilidade de utilização da decadência nos processos afeitos às Cortes de Contas ganhou relevo em virtude, principalmente, de sistemáticos atrasos nas apreciações dos processos de concessões de aposentadorias dos servidores públicos. Ocorre que, por vezes, situação constituída ao longo de vários anos vem a ser abruptamente invalidada.

Assim, ganhou espaço a discussão acerca da aplicação da norma contida no art. 54 da Lei nº 9.784/9910 também na apreciação da aposentadoria do servidor público pelos Tribunais de Contas.

A questão, por certo complexa, merece reflexão em campos bipartidos de análise: um, com relação à atuação daquelas cortes na função constitucional de apreciar, para fins de registro, a legalidade da concessão inicial de aposentadoria; outro, com relação à possibilidade de revisão da aposentadoria, por parte do Tribunal de Contas, em função de ilegalidade na concessão inicial, posteriormente identificada. De plano, à primeira possibilidade.

Como já salientado alhures, a concessão de aposentadoria do servidor público, em função de sua natureza híbrida, depende da atuação do Tribunal de Contas, para seu aperfeiçoamento. Dessa forma, estando a Corte a analisar a legalidade da concessão inicial da aposentadoria, ou seja, aquela ainda desprovida de registro definitivo, torna-se desarrazoada a aplicação da decadência.

 Autoriza esse raciocínio o fato de que a decadência prevista na Lei nº 9.784/99, portanto de natureza infraconstitucional, não pode sobrepujar-se à atribuição constitucional das Cortes de Contas de “apreciar, para fins de registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal (…), bem como a das concessões de aposentadorias, reformas e pensões” (art. 71, III, CF).

Note-se que não há que falar, também, no direito adquirido do servidor em ter sua aposentadoria mantida, caso haja alguma ilegalidade verificada pelo Tribunal de Contas, ainda que decorrido longo tempo. Isso porque não ocorre direito adquirido em face de um ato ainda sem a chancela de definitividade. Da mesma forma e pelos mesmos motivos, não cabe considerar a segurança jurídica, eis que a aposentadoria, nesse caso, é plenamente precária.

Não há, dessa forma, qualquer antinomia entre preceitos constitucionais. Ao contrário, ao afastar a aplicação da Lei nº 9.784/99, em casos que tais, vai-se ao encontro da supremacia da Constituição idealizada por Hans Kelsen11, para quem:

“A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é produto da relação de dependência que resulta do fato de a validade de uma norma, se apoiar sobre essa outra norma, cuja produção, por seu turno, é determinada por outra, e assim por diante, até abicar finalmente na norma fundamental–pressuposta. A norma fundamental hipotética, nestes termos – é, portanto, o fundamento de validade último que constitui a unidade desta interconexão criadora.”

De fato, ao apreciar um processo de aposentadoria, o Tribunal de Contas examina série de atos administrativos que integram a concessão, dentre eles, inclusive, aqueles relacionados às parcelas que compõem o arcabouço remuneratório do servidor. 

Ora, a concessão de aposentadoria é o principal do qual qualquer parcela indevida é acessória. Assim, pelo princípio natural de que o acessório acompanha o principal, a competência constitucional deferida aos Tribunais de Contas para apreciar processo de aposentadoria, por exemplo, atrai para ele também o exame de todos os atos acessórios.

Dessa forma, na hipótese de prevalecer entendimento contrário, a favor da decadência, os Tribunais de Contas teriam sua autonomia ferida, pois é de seu mister apreciar a concessão inicial da aposentadoria do servidor público. Nesse sentido, inclusive, cabe trazer à colação o seguinte entendimento do STF12:

“Inconstitucionalidade formal. Vício de iniciativa. Violação às prerrogativas da autonomia e do autogoverno dos Tribunais de Contas. (…) 2. Conforme reconhecido pela Constituição de 1988 e por esta Suprema Corte, gozam as Cortes de Contas do país das prerrogativas da autonomia e do autogoverno, o que inclui, essencialmente, a iniciativa reservada para instaurar processo legislativo que pretenda alterar sua organização e seu funcionamento, como resulta da interpretação sistemática dos artigos 73, 75 e 96, II, “d”, da Constituição Federal (cf. ADI 1.994/ES, Relator o Ministro Eros Grau, DJ de 8/9/06; ADI nº 789/DF, Relator o Ministro Celso de Mello, DJ de 19/12/94).(…)” (grifou-se).

De fato, a competência constitucional legada pelo constituinte originário aos Tribunais de Contas não pode ser devassada pela aplicação de norma de inferior hierarquia. Veja-se, a propósito da estatura constitucional das Cortes de Contas, o ensinamento do ex-ministro do STF Ayres Brito13:

“(…) O Poder Judiciário tem a força da revisibilidade das decisões do Tribunal de Contas, porém num plano meramente formal, para saber se o devido processo legal foi observado, se direitos e garantias individuais foram ou não respeitados. Porém, o mérito da decisão, o controle, que é próprio do Tribunal de Contas, orçamentário, contábil, financeiro, operacional e patrimonial, logo o mérito da decisão é insindicável pelo poder Judiciário. É uma exceção ao princípio da livre apreciação do Poder Judiciário sobre o direito material. O Poder Judiciário pode decidir toda e qualquer questão, salvo aquelas adjudicadas com exclusividade a outro órgão igualmente constitucional.  “(grifou-se).

Ao cuidar do tema acerca da competência constitucional dos Tribunais de Contas, Evandro Martins Guerra14 tece os seguintes comentários que corroboram sobremaneira o entendimento até agora exposto:

“O constituinte definiu com bastante precisão o rol das exclusivas competências destinadas aos Tribunais de Contas. Aliás, releva dizer, quando a Constituição determinou as competências a esses Tribunais não reservou espaço para preenchimento por lei, isto é, o constituinte reservou para si a representação do controle externo, não permitindo que fosse retomada a matéria por via legislativa. Assim, tendo as normas constitucionais dessa natureza eficácia plena, procurou o constituinte garantir a sua aplicação de forma independente e inequívoca, separando de forma expressa os serviços de cada um dos titulares do controle externo.

Entre tais competências (…) a maioria delas, a Constituição elencou as hipóteses de execução diretamente pelas Cortes de Contas.”

5. APLICAÇÃO DA DECADÊNCIA NAS REVISÕES DE APOSENTADORIA PELOS TRIBUNAIS DE CONTAS

Note-se que, até aqui, a insistência em destacar a concessão inicial não é acaso. Sim, porque a condição muda radicalmente, se o Tribunal estiver lidando com revisão de aposentadoria. Veja-se que, nesse último caso, o Tribunal já chancelou, anteriormente, a concessão inicial. Assim, ao proceder à revisão em função de ilegalidade posteriormente verificada, está-se diante de um ato jurídico perfeito e acabado e, portanto, sujeito a tratamento diferenciado.

Cabe consignar, por oportuno, que a revisão de que se trata não é aquela decorrente de mera alteração na fundamentação legal da concessão inicial (v.g, um servidor que deseja apenas integralizar seus proventos), porquanto, nesse caso, a operacionalização é a mesma da concessão inicial.

Passada essa explicação subjacente, crê-se que, diante de um ato concessório de aposentadoria já apreciado e registrado pelo Tribunal de Contas, ocorrerá o fenômeno da imutabilidade da aposentadoria, caso já tenha decorrido longo tempo.

Assevere-se, contudo, que tal fato não decorre da aplicação da Lei nº 9.784/99 – decadência –, pois, como salientado antes, seria inverter a ordem jurídica. Mas, sim, em função da aplicação do princípio da segurança jurídica, eis que a aposentadoria já completara seu ciclo de definitividade. Realmente, conforme adverte Jorge Ulisses Jacoby Fernandes15:

“Os tribunais de contas ao apreciarem a legalidade do ato de aposentadoria, pensão ou reforma, encontrando-o em conformidade com a lei procedem ao registro do ato.  Desse registro decorre a definitividade do ato. “

Observe-se que, na revisão de aposentadoria, em que o Tribunal de Contas, após decorrido longo tempo, pontifica por alterações na concessão inicial em virtude de posterior ilegalidade, há colisão de princípios constitucionais, uma vez que contrapõe a função constitucional daquele tribunal com a garantia do servidor público ancorada na segurança jurídica.

Nesse sentido, deve-se compreender que os princípios estão latentes no sistema jurídico, permitindo, quando necessário, a elaboração de soluções para as quais a norma positivada é insuficiente. Assim, ensina Canotilho16: “os princípios são normas com grau de abstracção relativamente elevado; de modo diverso, as regras possuem uma abstracção relativamente reduzida”.

Crê-se que, nesse caso, seja necessária a aplicação do princípio da proporcionalidade, que impõe ao legislador o dever de não estabelecer limitações inadequadas, desnecessárias ou desproporcionais aos direitos fundamentais.

De fato, o princípio da proporcionalidade, quanto ao seu conteúdo, segundo clássica doutrina alemã, subdivide-se em três subprincípios, quais sejam, a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito, como consequência dos avanços doutrinários nesta área.

O primeiro traduz uma exigência de compatibilidade entre o fim pretendido pela norma e os meios por ela enunciados para sua consecução. Trata-se do exame de uma relação de causalidade. Uma lei somente deve ser afastada por inidônea quando absolutamente incapaz de produzir o resultado perseguido.

A necessidade diz respeito ao fato de ser a medida restritiva de direitos indispensável à preservação do próprio direito por ela restringido ou a outro em igual ou superior patamar de importância, isto é, na procura do meio menos nocivo capaz de produzir o fim propugnado pela norma em questão.

Assim, diretamente ao ponto que interessa, cabe salientar que o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito diz respeito a um sistema de valoração, na medida em que ao se garantir um direito muitas vezes é preciso restringir outro. O juízo de proporcionalidade permite um perfeito equilíbrio entre o fim almejado e o meio empregado, ou seja, o resultado obtido com a intervenção na esfera de direitos do particular deve ser proporcional à carga coativa da mesma.

 A esse respeito leciona Valter Shuenquener de Araújo17:

“Diante da tensão inerente ao conflito entre o interesse de preservação do ato que deflagrou a confiança e o de alteração do ordenamento, é preciso encontrar uma força resultante que melhor satisfaça as demandas envolvidas. A concordância prática evita que seja realizada uma precipitada ponderação de interesses em que um bem jurídico obtém uma incondicional preferência em detrimento de outro. O próprio princípio da unidade da Constituição exige uma otimização dos bens jurídicos em conflito, e não a mera exclusão de um por conta da primazia pontual do outro.”

Nesse sentido, portanto, é que, nesse caso, valorando os princípios em conflito, crê-se que se deva dar primazia à segurança jurídica. Veja-se, nesse sentido, o seguinte julgado do STF18:

“SERVIDOR PÚBLICO.

Funcionário. Aposentadoria. Cumulação de gratificações. Anulação pelo Tribunal de Contas da União – TCU. Inadmissibilidade. Ato julgado legal pelo TCU há mais de cinco (5) anos. Anulação do julgamento. Inadmissibilidade. Decadência administrativa. Consumação reconhecida. Ofensa a direito líquido e certo. Respeito ao princípio da confiança e segurança jurídica. Cassação do acórdão. Segurança concedida para esse fim. Aplicação do art. 5º, inc. LV, da CF, e art. 54 da Lei federal nº 9.784/99. Não pode o Tribunal de Contas da União, sob fundamento ou pretexto algum, anular aposentadoria que julgou legal há mais de 5 (cinco) anos.” (grifou-se)

Muito embora se ouse discordar da Excelsa Corte quanto à aplicação da Lei nº 9.784/99, em função dos argumentos expostos alhures, percebe-se que o entendimento da Corte Suprema vai ao encontro de um pensamento que pretende preservar o princípio da segurança jurídica como um metaprincípio, capaz de, numa efetiva ponderação de princípios constitucionais, fazer valer o direito do cidadão, em oposição ao domínio estatal. Talvez, esteja aí a fórmula da justiça social encontrada pelo Supremo, esta também um metaprincípio externo ao próprio direito, segundo a definição de Dworkin19.

A propósito, Carlos Maximiliano20 adverte:

“A aplicação do direito consiste no enquadrar um caso concreto em a norma jurídica adequada. Submete às prescrições da lei uma relação da vida real; procura e indica o dispositivo adaptável a um fato determinado. Por outras palavras: tem por objeto descobrir o modo e os meios de amparar juridicamente um interesse humano.”

Definida a supremacia da segurança jurídica nesses casos de revisão da concessão por parte do Tribunal de Contas, cabe perquirir: qual seria o prazo para tornar a concessão imutável? Utilizando-se como analogia a orientação advinda da Súmula Vinculante nº 3 do STF, que cuida do direito ao contraditório e à ampla defesa, é possível entender que esse lapso seja de cinco anos.

O próprio julgado acima detalhado demonstra esse entendimento por parte do STF. Em realidade, o prazo de cinco anos, segundo a razão advinda do STF, denota a proteção objetiva do princípio da dignidade da pessoa humana, que é basilar do Estado de Direito.

Questão interessante, a partir de então, seria definir como seria feita a contagem do tempo. Afinal, para qualquer contagem, o dia do início é sempre importante, pois dele deflui consequências díspares, como a própria legalidade/ilegalidade do ato concessório.

Quer se crer que o dies a quo para tornar a concessão intangível, no caso de revisão de proventos aqui tratada, deva-se contar a partir da data do registro da concessão inicial pelo Tribunal de Contas, eis que, a partir daí, começa a configurar-se, para o servidor público, a segurança jurídica. Para tal raciocínio, utiliza-se, uma vez mais por analogia, o entendimento do STF no que diz respeito à observância do contraditório. Nesse sentido21:

“Mandado de Segurança.

2. Acórdão da 2ª Câmara do Tribunal de Contas da União (TCU). Competência do Supremo Tribunal Federal. (…)

5. Concessão parcial da segurança. I – Nos termos dos precedentes firmados pelo Plenário desta Corte, não se opera a decadência prevista no art. 54 da Lei 9.784/99 no período compreendido entre o ato administrativo concessivo de aposentadoria ou pensão e o posterior julgamento de sua legalidade e registro pelo Tribunal de Contas da União -que consubstancia o exercício da competência constitucional de controle externo (art. 71, III, CF). II -A recente jurisprudência consolidada do STF passou a se manifestar no sentido de exigir que o TCU assegure a ampla defesa e o contraditório nos casos em que o controle externo de legalidade exercido pela Corte de Contas, para registro de aposentadorias e pensões, ultrapassar o prazo de cinco anos, sob pena de ofensa ao princípio da confiança -face subjetiva do princípio da segurança jurídica. Precedentes. III -Nesses casos, conforme o entendimento fixado no presente julgado, o prazo de 5 (cinco) anos deve ser contado a partir da data de chegada ao TCU do processo administrativo de aposentadoria ou pensão encaminhado pelo órgão de origem para julgamento da legalidade do ato concessivo de aposentadoria ou pensão e posterior registro pela Corte de Contas. IV -Concessão parcial da segurança para anular o acórdão impugnado e determinar ao TCU que assegure ao impetrante o direito ao contraditório e à ampla defesa no processo administrativo de julgamento da legalidade e registro de sua aposentadoria, assim como para determinar a não devolução das quantias já recebidas. V -Vencidas (i) a tese que concedia integralmente a segurança (por reconhecer a decadência) e (ii) a tese que concedia parcialmente a segurança apenas para dispensar a devolução das importâncias pretéritas recebidas, na forma do que dispõe a Súmula 106 do TCU!. (grifou-se)

6. CONCLUSÃO

Diante de tudo o que foi exposto, é possível alinhavar os liames da construção prático-teórica que se pretende, qual seja, definir que a decadência prevista pela Lei nº 9.784/99 não atinge os Tribunais de Contas em sua atribuição de órgão de controle externo, em função de sua estatura constitucional definida pelo próprio constituinte originário, não alcançável, portanto, pela norma hierárquica inferior.

Entrementes, tal premissa não pode sobreviver incólume à força constrangedora do fator tempo nas relações jurídicas. Assim, deve-se reconhecer que, embora inaplicável a decadência, o servidor público tem a seu favor, em determinadas ocasiões, a materialização cogente do princípio da segurança jurídica como forma de proteger direitos vindicados pelo decurso do tempo.

Assim, está o aplicador do Direito diante de duas possibilidades.

Uma, que diz respeito à concessão inicial da aposentadoria, infensa à aplicação do princípio da segurança jurídica em favor do servidor público, porquanto, nesse caso, o ato de inativação ainda não ganhou definitividade. 

Outra, diante da revisão da aposentadoria em função de ilegalidade posteriormente verificada, ocasião em que se está diante de um ato jurídico perfeito e acabado e, portanto, afeito à aplicação do princípio da segurança jurídica em favor do servidor público.

Entre uma e outra possibilidade, ganha corpo a utilização do princípio da proporcionalidade, enraizado no subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito, que vai determinar a direção em que o pêndulo interpretativo deve seguir. De fato, a utilização dos princípios como integração das normas torna-se fundamental para evitar-se que o legislador, nas palavras de Wladimir Novaes Martinez22, pense fazer uma coisa (mens legislatoris), diga outra (mens legis) e acabe produzindo uma terceira.

 

Notas:
1. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil.  19 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000, p.433.
2. Op. cit , p. 441.
3. CASTRO, Carlos Alberto Pereira de e LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. 14 ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2012, p. 772.
4. TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 2 ed. São Paulo: Editora Método, 2012, p. 277.
5. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça – AgRg no REsp 1198317/SC; AgRg no REsp 1145613/RS; AgRg no AgRg no REsp 1156093/SC; AgRg no REsp 1168805/RS; REsp 1109455/PR; AgRg no AgRg no REsp 1059164/PR. Disponíveis em www.stj.jus.br. Acesso em 30 abr. 2013.
6. BRASIL. Tribunal de Contas da União. TCU – Processo nº TC 010.215/2001-6. Disponível em www.tcu.gov.br. Acesso em 30 abr. 2013.
7. Apud FERRAZ, Luciano. Controle da Administração Pública: elementos para a compreensão dos Tribunais de Contas. Belo Horizonte: Mandamentos, 1999, p. 156.
8. MAGALHÃES FILHO, Inácio. Lições de Direito Previdenciário e Administrativo no Serviço Público. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2010, p. 93.
9. BRASIL. Supremo Tribunal Federal – Súmula Vinculante nº 3: “nos processos perante o Tribunal de Contas da União asseguram-se o contraditório e a ampla defesa quando da decisão puder resultar anulação ou revogação de ato administrativo que beneficie o interessado, excetuada a apreciação da legalidade do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma e pensão”. Disponível em www.stf.jus.br. Acesso em 30 abr. 2013.
10. BRASIL. Lei nº 9.784, de 20 de janeiro de 1999. Art. 54: “O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé.” Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9784.htm. Acesso em 30 abr. 2013.
11. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. [tradução João Baptista Machado]. 6 ed.São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 155.
12. BRASIL. Supremo Tribunal Federal – ADI 4418 MC / TO. Relator: Min. DIAS TOFFOLI. Julgamento: 06/10/2010. Órgão Julgador: Tribunal Pleno.Disponível em www.stf.jus.br. Acesso em 30 abr. 2013.
13. BRASIL. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais – Edição nº 3 de 2004 – Ano XXII.
14. GUERRA, Evandro Martins. Os Controles Externo e Interno da Administração Pública. 2 ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2005, p. 170-171.
15. FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Tribunais de Contas do Brasil – Jurisdição e Competência. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2003, p. 270.
16. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6 ed. Coimbra: Almedina, 1994, p. 166.
17. ARAÚJO, Valter Shuenquener de. O Princípio da Proteção da Confiança. Niterói: Editora Impetus, 2009, p. 208.
18. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MS 25.963 DF. Relator: CEZAR PELUSO. Julgamento: 23/10/2008. Disponível em www.stf.jus.br. Acesso em 30 abr. 2013.
19. DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.155.
20. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 18 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2000, p. 6.
21. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MS 24.781 DF.  Relatora: Min. ELLEN GRACIE. Julgamento: 02/03/2011. Disponível em www.stf.jus.br. Acesso em 30 abr. 2013.
22. MARTINEZ, Wladimir Novaes. Curso de Direito Previdenciário. 3 ed. São Paulo: Ltr,  2010, p. 1188.

Informações Sobre o Autor

Carlos Henrique Vieira Barbosa

Auditor de Controle Externo do Tribunal de Contas do DF. Bacharel em Comunicação pela Universidade de Brasília. Especialista em Direito Público e Finanças Públicas pelo Centro Universitário de Brasília. Especialista em Direito Previdenciário pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Advogado


Equipe Âmbito Jurídico

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