Resumo: O estudo sob exame visa através da revisão literária, numa análise qualitativa, em propor a formulação de uma política pública para o amparo da família que cuida de portadores de sofrimento psíquico e que acabam adoecendo, ao sofrerem com o caregiver burden, sobrecarga no cuidar. Ao abalizar o sofrimento humano e o sofrimento mental especificamente e como a família é um relevante ator social no processo terapêutico biopsicossocial de que necessita o portador de distúrbio mental, se esta adoece, o cuidado desse indivíduo fragilizado e em sofrimento emocional fica comprometido. A construção de uma rede de solidariedade entre os atores sociais envolvidos que são a família, as instituições, os profissionais de saúde mental, a comunidade e o próprio indivíduo com transtorno psíquico pode concretizar o direito fundamental e o direito social à saúde e preservar a dignidade humana na luta antimanicomial.[1]
Palavras-Chave: Família, Sofrimento Mental, Caregiver Burden, Luta Antimanicomial.
Abstract: The study under examination aims through a literary review, in a qualitative analysis, to propose the formulation of a public policy for the protection of the family that cares for people suffering from psychic illness and who end up falling ill, suffering from caregiver burden, overloading on care. By emphasizing human suffering and mental suffering specifically, and as the family is a relevant social actor in the biopsychosocial therapeutic process that the mental disorderer needs, if he or she becomes ill, the care of this debilitated and emotionally suffering individual is compromised. The construction of a network of solidarity between the social actors involved that are the family, the institutions, the professionals of mental health, the community and the individual with psychic disorder can concretize the fundamental right and the social right to health and preserve the dignity in the anti-asylum fight.
Key words: Family, Mental Ilness, Caregiver Burden, Anti-asylum Fight.
Resumen: El estudio bajo examen busca a través de la revisión literaria, en un análisis cualitativo, en proponer la formulación de una política pública para el amparo de la familia que cuida de portadores de sufrimiento psíquico y que acaban enfermando, al sufrir con el caregiver carga, sobrecarga en el cuidar. Al abiar el sufrimiento humano y el sufrimiento mental específicamente y cómo la familia es un relevante actor social en el proceso terapéutico biopsicosocial de que necesita el portador de disturbio mental, si ésta se enferma, el cuidado de ese individuo fragilizado y en sufrimiento emocional queda comprometido. La construcción de una red de solidaridad entre los actores sociales involucrados que son la familia, las instituciones, los profesionales de la salud mental, la comunidad y el propio individuo con trastorno psíquico puede concretar el derecho fundamental y el derecho social a la salud y preservar la dignidad humana en la lucha anti asilo.
Palabras Clave: la Familia, El Sufrimiento Mental, La Sobrecarga en El Cuidado, Luta Anti Asilo.
INTRODUÇÃO
Inverter a racionalidade, transcende-la, desafia-la, é ser louco? Acomodar-se à racionalidade, submeter-se, adequar-se, é ser normal? Quando se tem uma condição biológica que é mais sensível às vicissitudes humanas, às intempéries do sentir, agir, comunicar, à desigualdade e ao domínio de uns sobre os outros, quando o sofrimento humano extrapola.
Adoecer é um processo biopsicossocial, é um processo dinâmico que desencadeia vários efeitos, sendo que adoecer com sofrimento mental, traz responsabilidade à família que é um stakeholder primordial nesse trilhar do distúrbio psíquico, sendo que muitas vezes essa responsabilidade é tão vultosa, pois além de ser social, é afetiva, o que ocorre é que esses familiares cuidadores acabam adoecendo, sendo acometidos pelo caregiver burden ou sobrecarga, precisando também de cuidados,
É cediço que o processo de tratamento psi é oneroso e que há grande preconceito em torno do transtorno mental que tem uma interface de segregação e de solidão. Ocorre que com a luta antimanicomial a tendência é de que o indivíduo que é portador de doença mental seja incluído socialmente e a família é um componente de máximo valor nesse elã.
A família é parte fundamental desse processo terapêutico de equilibrar e amenizar o sofrimento daquele que padece do transtorno mental, nesse jaez, é mister que a família esteja consciente do seu papel, do conteúdo da patologia mental, do ato de cuidar e de como cuidar e como auto proteger-se para também não adoecer nesse processo, mormente no caso de cuidar de pessoas em surto psicótico.
Exsurge do relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS, 2017) que o panorama mundial de aumento de transtornos psíquicos na população é progressivo, sendo que de 2005 a 2015, aumentou o número de portadores de depressão em 18%, e no Brasil especificamente a depressão atinge 11,5 milhões de pessoas, atingindo 5,8% da população, conquanto os distúrbios de ansiedade alcançam mais de 18,6 milhões de brasileiros, o que perfaz 9,8% da população.
O movimento da luta antimanicomial ou a reforma psiquiátrica no Brasil, baseada na Não-Psiquiatria do médico psiquiatra italiano Basaglia (1964), que congrega elementos como solidariedade, não segregação, inclusão social do portador de sofrimento psíquico, desinstitucionalização da Psiquiatria, não é um movimento definitivo nesse percurso histórico de tratar-se do sujeito com transtorno mental, como preconiza Dalmolin (1996, p. 194), no seu livro Esperança Equilibrista. Cartografia de Sujeitos em Sofrimento Psíquico:
“[…] o contexto da cidade como um pano de fundo homogêneo para um poderoso recurso articulado ao mundo subjetivo é expresso em ricos itinerários urbanos de outro lado as instituições de saúde que se constituem em ‘tortuosas’ tramas ao serem apreendidas nas microrrelações cotidianas de quem vive, sofre e precisa lançar mão desse recurso em diferentes fases de vida.”
As políticas públicas de saúde mental no Brasil, o que tange à Reforma Psiquiátrica são um processo em construção em face do indivíduo com transtorno psíquico e não há uma política específica de amparo para os familiares cuidadores desse indivíduo que não tem condições de arcar com os custos sócio financeiros do processo de cuidar e da estigmatização que é deferida pela sociedade aos que se rotulam de “loucos”.
2. SOFRIMENTO HUMANO
O sofrimento humano ele existe, à medida que o indivíduo existe, e não é uma coisa, não é uma rocha, existe no mundo, consoante Heidegger (2004, p. 54) o qual chancela: “Na angústia, experimentamos a finitude em seu sentido forte.”
A ansiedade no existir traz sofrimento humano conquanto Caetano Veloso poetiza: “Existimos, a que será que se destina?”, a ansiedade diante do incerto e diante da morte que é o certo. Essa anguish, angústia, na alteridade, na relação com outro, traz “pre ocupação”, no sentido negativo, nos antevemos ao próximo, nos preocupamos com o outro, com o seu olhar, com o seu discurso, com o que pensa de nós, com “o modo de ser da cotidianidade” (HEIDEGGER, 2005, p. 179).
O sofrimento humano diante da morte ou do adoecimento de um familiar , pode ser tão somente psicológico, emocional, mas algumas vezes se torna físico e patológico, quaisquer formas que seja, é relevante, como tão sublime desenha Shakespeare (1999, ACT I) o sofrimento tão humano de Hamlet no advento da morte do pai, rei da Dinamarca, e o casamento prematuro de sua mãe com o seu tio Claudius que se torna rei, nessa senda o sofrimento de Hamlet grita:
“O, that this too solid flesh would melt Thaw and resolve itself into a dew! Or that the Everlasting had not fix’d His canon ‘gainst self-slaughter! O God! God! How weary, stale, flat and unprofitable, Seem to me all the uses of this world! Fie on’t! ah fie! ’tis an unweeded garden, That grows to seed; things rank and gross in nature Possess it merely. That it should come to this! But two months dead: nay, not so much, not two: So excellent a king; that was, to this, Hyperion to a satyr; so loving to my mother That he might not beteem the winds of heaven Visit her face too roughly. Heaven and earth! Must I remember? why, she would hang on him […].”
E nessa tragédia, Hamlet, príncipe da Dinamarca, resta louco ao ouvir o espectro do seu pai dizendo que seu tio o matou, expõe sua perplexidade, in verbis: “Thrift, thrift, Horatio! the funeral baked meats Did coldly furnish forth the marriage tables. Would I had met my dearest for in heaven Or ever I had seen that day, Horatio! My father! methinks I see my father.” (SHAKESPEARE, 1999, ACT II).
Traçar uma linha de solidariedade para amenizar o sofrimento humano e trazer-lhe a dignidade, a concretude dos seus direitos, é válido.
3. HISTÓRICO DO SOFRIMENTO AFETIVO E DA RUPTURA DO SILÊNCIO DOS QUEM NÃO TÊM VOZ
A instigante linha histórica do tratamento dado aos portadores de sofrimento mental no mundo e no Brasil é bem delineada por Michel Foucault que a disseca com bisturi de filósofo, a esmiuçando com o que a loucura tem de visceral e oponente à razão instrumental a ser rechaçada, Foucault (1976, p. 42) desenha a loucura e a colore anárquica:
“É que agora a verdade da loucura faz uma só uma coisa e mesma coisa com a vitória da razão e seu definitivo domínio, pois a verdade da loucura é ser anterior à razão, ser uma das suas figuras, uma força e como uma necessidade momentânea em si mesma a fim de melhor certificar-se de si mesma. “
O olhar hierárquico, verticalizado e unívoco que não aceita o plural e tem a tendência de expurga-lo da sociedade, esse viés era tomado no tratamento das pessoas com sofrimento psíquico e muitas vezes, malgrado todo o movimento para a humanização no tratamento dos transtornos mentais, o estigma, ainda é enfrentado não só por aqueles que são portadores de sofrimentos mentais, mas também pelos familiares cuidadores. (GOFFMAN, 1963).
Com olhos e mãos cruéis na Idade Média os loucos eram tratados através do confinamento, no início como se utilizavam dos leprosários para os leprosos, depois como as doenças sexualmente transmissíveis como um “espaço moral de exclusão” (FOUCAULT, 1976, p.12)
A fragilidade humana diante do mundo dos Hércules, dos Sansões com grandes cabeleiras, dos lutadores de MMA nas covas de leões da atualidade, dos bem-sucedidos no mercado de consumo; esta fragilidade não é aceita, é execrada, sendo algo negativo, no que partindo de outro viés mais dinâmico e positivo assevera sobre o adoecer Menezes (2016, p.107):
“Nesse sentido, se pode responder afirmativamente quando se indaga se é possível formular um olhar positivo sobre a doença. O que se constata é que a patologia instala uma série de recursos visíveis no monólogo, na ambiguidade vocabular, no caos dos instantes desconexos e sucessivos vividos pelo sujeito, que podem e devem ser apresentados do seguinte modo: eles são simples, estáveis, sólidos e involuntários. Eles são, por assim dizer, as ferramentas fundantes e fundamentais dos fenômenos psíquicos.”
Ao demonstrar a fragilidade que nos é negada e nos é intrínseca, o sujeito quiçá retorne ao que tem de mais fidedigno na sua psique. O adoecer da mente na Grécia era tido como excêntrico e o louco não era isolado, na Idade Média em que todas as observações eram feitas com o viés religioso da Igreja Católica, o adoecer psíquico era é tido como diabólico e poderia ser expiado por milagres, mas os loucos eram segregados se violentos e dignos da piedade religiosa.
Já na Reforma Protestante, os loucos como não “capazes” de produzir, na visão weberiana acerca do espírito do capitalismo, destarte os alienados mentais assim tidos não teriam condições de introjetar esse espírito e acumularem riquezas, no que passaram a ser internados em asilos e estigmatizados como o ápice da desrazão, desvirtuamento o que chancelavam os Iluministas.
Os embriões da Psiquiatria com Philipe Pinel (1745-1826) na França, a seus seguidores como Jean-Etienne Esquirol (1770-1842), foram trilhando passos, a chegarem a Psiquiatria Analítica, até a Biossocial, de Morel, Farelte Bayler, nominaram a maioria das patologias a Kraff-Ebiling e Schulle que estabeleceram conteúdos sistêmicos, transitando para a idade moderna em que Freud, Jaspers e Basaglia, os quais passaram a visualizar o sujeito e a sua singularidade psíquica.
Indignado com a ideia da confinação do ser “louco”, Foucault (1976) solta um brado libertador a respeito da Narrenschiff, da barca itinerante dos loucos, da nave pintada por Bosch, da barca errante que leva os “loucos” para os seus patrícios, pois havia alguma comiseração pelos loucos da família para os loucos próximos:
“[…] confiar o louco aos marinheiros é com certeza evitar que ele ficasse vagando indefinidamente entre os muros da cidade, é ter a certeza de que ele irá para longe, é torná-lo prisioneiro de sua própria partida. Mas a isso a água acrescenta a massa obscura de seus próprios valores: ela leva embora, mas faz mais que isso, ela purifica. Além do mais, a navegação entrega o homem à incerteza da sorte: nela, cada um é confiado a seu próprio destino, todo embarque é, potencialmente, o último. É para o outro mundo que parte o louco em sua barca louca […].” (FOUCAULT.1976, p.16)
Poder-se-á elucubrar-se que muitos desses “loucos” dessas barcas à deriva seriam àqueles que a família não quis ou não puderam pelas condições socioafetivas da época darem o amparo necessário e que o Estado não laico não pôde confiar em seus muros altos dos asilos.
O reducionismo patológico do adoecer psíquico na Psicanálise é encarado com olhos que investigam as profundezas da psique por Menezes (2016, p. 111), quando esse aduz que “a personalidade não desaparece nas patologias. Mesmo nas formas mais severas, a personalidade está lá como estrutura de sustentação”.
Com supedâneo nesse pressuposto que a estrutura da personalidade está ali, mesmo no sujeito com acentuado sofrimento mental, é imperioso respeitar-se sua singularidade e sua natureza humana, o que não ocorre como paradigma na humanidade, como Arendt (1975, p. 85) na sua análise historiográfica colima no que tange à igualdade de condições, não obstante seja o requisito básico da justiça, é uma das mais incertas especulações da humanidade moderna, à medida que mais tendem as condições para a igualdade, mais difícil se torna explicar a diferença que existem entre os sujeitos, estabelecendo-se uma dicotomia entre o indivíduo “normal” e o “anormal”.
Com esse olhar ensimesmado, que transcende e visualiza o singular do indivíduo e sua subjetividade, Franco Basaglia em conjunto a várias demandas input da sociedade civil. Bobbio (1985, p. 36) encampa o movimento pela reforma psiquiátrica, lastreado nas ideias de Foucault, já havendo Freud rompido com as vozes do silêncio, pois o sofredor psíquico não tinha voz, passou a ser escutado e daí analisado, almejando rechaçar a forma cruel de confinar-se os ditos como “insanos”.
Nesse viés, Lacan dá voz e singularidade ao portador de neurose ou psicose como a priori sujeito numa operação em que o homem assume significações e significantes, sendo porquanto a linguagem, meio hábil de chegar-se a sua psique ou ao seu inconsciente, como assinalam Bruder e Brauer (2007) ao dissertarem sobre a constituição do sujeito na psicanálise lacaniana.
Com um grito que partiu das entranhas como é proclamado no seu prefacio do livro, quebrando o silêncio de muitos sofrimentos emocionais enclausurados, Basaglia fala sobre os direitos dos alienados mentais e na negação do confinamento psiquiátrico no Hospital de Trieste: “Noi neghiamo dialeticamente il nostro mandato sociale che ci richiderebbe de considerare il malato come um non-uomo, e negandolo neghiamo il malato come um non-uomo[…] partendo de quaesto fatto reale:il malato é un’uomo senza diritto” [..]. (BASAGLIA, 1969, p.17).
Com essa guinada de 360º que começou com um não, um não à instituição psiquiátrica e ao label approach na catalogação das patologias psíquicas, com o anseio de tirar o portador de sofrimento mental da estigmatização do asilo.
Nesse jaez, a família passou a ter papel fundamental no processo terapêutico do indivíduo. Destaque-se que o Sus foi criado a partir da década de 70 com a eclosão de discussões sobre os direitos humanos dos alienados mentais.
É certo que essa reforma psiquiátrica teve processos heterogêneos no mundo, dependendo das condições históricas, econômicas, políticas e culturais de cada ethos, questionando a instituição asilo e a prática médica nesse sentido, fomentando uma nova dinâmica na relação da sociedade civil com os portadores de transtorno psíquico.
Com base num olhar multifocal, com mãos multidisciplinares que se unem para realizarem junto o trabalho terapêutico, a razão deixa de ser absoluta e deter poder, e a família foi chamada para o apoio necessário, observando-se que a desinstitucionalização não pode ser reduzida tão- somente a desospitalização , é todo um iter dinâmico de tratamento pois na escorreita lição de Boarini (2008, p. 379): “através do resgaste histórico das reformulações no sistema de saúde, fica claro que toda a mobilização da sociedade vem sendo definida pela necessidade político/econômico/social de implantar um novo atendimento ao doente mental”.
4. DIREITO CONSTITUCIONAL À SÁUDE E Á DIGNIDADE HUMANA NO TRATAMENTO PARA O INDIVÍDUO COM SOFRIMENTO PSÍQUICO E PARA A FAMÍLIA QUE O AMPARA NO BRASIL DIANTE DOS MOVIMENTOS GLOBAIS DE DOMÍNIO DOS MERCADOS
Como mensurar essa angústia que avassala o indivíduo e se desenvolve no biopsicossocial em doença? Como tipificar a dor da família em ver um ente querido em surto psicótico? Como a lei consegue abarcar essa realidade em países de viés periférico como o Brasil diante da globalização e do projeto do neoliberalismo com a expansão expansiva do código econômico (NEVES; TÊMIS; LEVIATÃ, 2016, p. 272).
Como enquadrar sofrimento emocional em artigos e o tratamento multifocal em parágrafos de lei? Será mais uma constitucionalização álibi, simbólica? (NEVES, 2007. p.7).
Constitucionalização simbólica é entendida como aquela em que não há efetividade da força normativa da constituição, sendo que muitas vezes a legislação é criada para arrefecer os ânimos de desobediência civil do povo, havendo lacunas que impossibilitam a sua aplicação concreta, atrelando o direito às decisões políticas ou ao código econômico dominante.
No pensamento habermasiano, na atualidade, esse enlace entre o direito e o mundo da vida e suas problemáticas se agudiza, in verbis:
“O mundo da vida, as instituições que nascem naturalmente e o direito têm que amortizar as instabilidades de um tipo de socialização que se realiza através das tomadas de posição, em termos de sim/não, com relação a pretensões de validade criticáveis. […]. Nas modernas sociedades econômicas esse problema geral se agudiza, principalmente no envoltório normativo das interações estratégicas não englobadas pela eticidade tradicional”. (HABERMAS, 1997. p. 33-34).
Com a força dos movimentos sociais input/output da sociedade civil, a luta antimanicomial foi engendrada no Brasil a partir da década de 70 e resultou em leis favoráveis a desinstitucionalização e não estigmatização do “cliente” portador de sofrimento emocional, sendo que em julho de 1987, no Rio de Janeiro, foi efetivado a I Conferência Nacional de Saúde Mental em que os trabalhadores de Saúde Mental passaram a conclamar práticas mais humanas no tratamento dos transtornos mentais em prol da dignidade humana, mutatis mutandis, no II Congresso dos Trabalhadores de Saúde Mental em Bauru, São Paulo, no mesmo ano, foi lançado o lema “ Por uma sociedade sem manicômios”, pontuando o dia 18 de maio como Dia Nacional de Luta Antimanicomial. (SOUZA, 2003, p.144-153)
Foi criado o SUS (Sistema Único de Saúde) com o advento da Constituição Federal de 1988, com a proposta de democratização da saúde, e tendo o direito à saúde como corolário à cidadania, com o desiderato de otimizar-se um sistema público, universal e descentralizado de saúde dentro de um contexto histórico de pobreza e baixa condição sanitária, instalando a reforma sanitária necessária. Este evento não foi gratuito, foi fruto da mobilização social e de uma ação contra hegemônica de trabalhadores da saúde com ideias progressistas que se organizaram e se movimentaram socialmente para consecução dessas ações.
Muitas vezes atores sociais invisíveis, que expressam indignação pela condição desumana no tratamento dos doentes, em especial os doentes mentais, e que se articulam em no agir comunicativo habermasiano, através da linguagem, da expressão, da manifestação e conseguem nessa ação multifocal, heterocêntrica, fazer com que as instituições criem leis e modifiquem seus códigos simbólicos, como explicitam Luchmann e Soares (2007, p. 401):
“Além do que os movimentos sociais nas sociedades complexas, são redes de ações que desenham uma estrutura submersa, um mosaico formado por indivíduos e grupos, que em estado de latência, gestionam no cotidiano as lutas, reflexões e os questionamentos acerca da realidade social […] o que está em jogo ,portanto, é a reapropriação do sujeito , do sentido e da motivação humana, reapropriação de forjar a sua própria identidade, capacidade esta historicamente amputada pelos processos de manipulação e controle dos aparatos de gestão dos sistemas complexos. Esse controle se dramatiza no que diz respeito aos códigos e sentidos dominantes acerca do “louco” e da “loucura” e da sua “administração” institucional.”
Exsurge da doutrina de Dantas e Junior (2017, p.4) no que atine à utopia necessária referente aos direitos fundamentais, esse programa utópico que vem das emoções, formando redes de indignação e esperança na contemporaneidade, construindo um percurso de contra hegemonia e mobilização, até na ágora virtual.
O movimento da luta antimanicomial com o slogan “Fim dos Manicômios” soa utópico em face da nossa realidade de um Brasil periférico que com a crise da democracia representativa e a imposição top down de um modelo econômico excludente a nível global, conquanto a solidariedade cosmopolita ainda não é consolidada nas questões relativas aos direitos humanos, nessa utopia e no que resulta dela de palpável nos agarramos como Ulisses ao mastro das legislações existentes para salvaguardar os direitos dos portadores de transtornos psíquicos e dos familiares que têm a tarefa do cuidar, a fim de que não estejamos soltos e caíamos nas tentações das leviandades, do pensar que o medicamento advindo da empresa farmacológica é o único tratamento e o de colocar a responsabilidade social e o ônus do tratar-se do “louco” nas costas dos profissionais de saúde sobrecarregados nos serviços públicos, ou jogarmos nossos “loucos” nas empresas privadas que fazem convênios com os serviços públicos e que querem lucros e que são diferenciadas para quem pode pagar , na família como salvadora do indivíduo com sofrimento mental que não precisa de um salvador, precisa de amparo.
Destarte, sem um liame multicêntrico e solidário de forças que atuem em conjunto para a reinserção social e a tomada de responsabilidade também do usuário do serviço pela sua vida, pelo seu tratamento e pela sua volta a casa, não há de falar em novel paradigma do tratamento do transtorno mental.
Com a pressão internacional, o Brasil assinou a Declaração de Caracas em 1990, em que o governo se comprometia a garantir os direitos humanos das pessoas com transtornos psiquiátricos e sistematizar os serviços comunitários de saúde mental.
Em 1992 foi criado o Programa de Apoio a Desospitalização (PAD) para aqueles que tinham longas internações, com a perspectiva de fornecer à família que acolhesse o indivíduo a quantia de um salário mínimo e meio. O custeio desse benefício viria da desinstalação dos manicômios. Ocorre que essa proposta não foi concretizada até os dias de hoje.
A Lei Paulo Delgado, Lei 10.216 de 2001, fez uma modificação na política pública corolário ao usuário, ao trabalhador em saúde mental e ao familiar nesse processo de construção da reforma psiquiátrica, ocorre que não conseguiu auferir fidedigna mudança no trilhar, criando o atendimento comunitário, multidisciplinar ao usuário na rede pública e a regulamentação das internações compulsórias, que agora são fiscalizadas pelo Ministério Público Estadual. O CAPS foi intitulado a unidade comunitária de tratamento psiquiátrico através da portaria 336 GM.
Entrementes a rede de tratamento tenha sido colocada no ethos em que vive o usuário, nessa transição, o familiar e a comunidade não foram preparados para a volta do portador de distúrbio psíquico para casa. Foi criado o programa em 2003, “De volta para a casa”, mas a família não foi estruturada e amparada nesse desiderato para acolher e não adoecer com o sofrimento emocional do parente, e a comunidade não foi instruída para encarar o “louco” não como um criminoso e um marginal, daí a pessoa com sofrimento afetivo ao retornar para casa pode se encontrar em risco social ou pode colocar os outros atores em risco, se não tratada, não que todos os portadores de transtorno psíquico sejam agressivos.
Dos atores sociais que participam desse complexo processo de identificação ou diagnose do transtorno mental, do acolhimento, do tratamento, da inclusão social é a família e a família de baixa renda é a que mais fragilizada nesse processo e que depende da estrutura pública e todas as suas vicissitudes advindas do Estado Mínimo e das carências de cunho econômico.
Pensar-se na família do portador de transtorno mental como um titular de direito fundamental, é pensar que nessa complexidade que é o adoecer psíquico e no pranto que tem que ser sufocado para que esta família continue trabalhando e produzindo dentro de um sistema de imperativo capitalista e que concomitante precisa dar apoio e se responsabilizar socialmente pelo tratamento do seu familiar acometido muitas vezes por surto psicótico e que não tem condições de cuidar-se por si próprio, é inferir que o processo terapêutico é multicêntrico e que a família tem papel fundamental nesse caminhar e que se ela está adoecida , como poder andar num terreno favorável para a humanização do tratamento do seu ente querido e consequente inclusão social?
No risco de suicídio que pode se evidenciar em alguns transtornos mentais, como os familiares de baixo estrato social vão faltar trabalho e ou pagar um cuidador para o portador de sofrimento psíquico que precisa ser monitorado tanto de dia como à noite, se não têm condições de arcar com o básico que garante uma vida digna, num país desigual como o Brasil? Cabe aí o Estado suprir s essa carência e a sociedade civil movimentar-se para demandar as instituições nesse desidério, não sendo tão-somente uma expectadora passiva dessa dinâmica.
Na busca de entender essa seara da família ser parte integrante na prática terapêutica humanizada e titular da expectativa do fornecimento de amparo afetivo para o acometido de transtorno mental, e no que tange ao internamento compulsório, um estudo perfunctório feito Carneiro e Rocha (2004) assinala como é imputada a responsabilidade à família:
“[…]. Observa-se, também, em alguns depoimentos, a tendência da equipe em atribuir ao paciente ou a sua família a responsabilidade pelo asilamento, não evocando outras causas, tais como as condições de vida geradas na instituição, a não-vinculação dos familiares ao tratamento ou a ausência de outros serviços comunitários e alternativos ao internamento compulsório. Sobre a família, recai a culpa e a responsabilidade pelo internamento. Cabe ressaltar que os efeitos danosos do internamento, que podem ser em maior ou menor intensidade, estão em relação direta com sua duração, com o número de reincidências e, principalmente, com a rede social que o sujeito mantém com o seu grupo. A situação de crise provocada pela doença mental pode produzir, na unidade familiar, tanto uma completa desintegração quanto a reafirmação desses laços familiares”.
A família para tirar o peso do mundo das costas, e não incorporar o papel do arquétipo Atlas, tem que assumir ações propositivas em busca de solidariedade, in casu, nas famílias de baixa renda, que não tem tanto acesso à educação formal, diante desse corte epistêmico, cabe ao Estado ajuda-la nessa dinâmica, no que Carneiro e Rocha (2004) continuam destacando o papel da família nesse processo de reinserção social do sujeito adoecido:
“Famílias que possuem rede social de malha estreita – significando fortes laços sociais com um grupo religioso, parental ou mesmo comunitário – tendem a lidar com situações de crise na sua própria rede de relações (network), caracterizada por vínculos fortes e próximos. Nesses casos, não só o internamento é evitado ou limitado a curto espaço de tempo, como o processo de reintegração do sujeito é facilitado. Já as famílias que possuem relações de malha frouxa – com poucos e frágeis vínculos com outros grupos – tendem a realizar um movimento contraído em relação à network, escondem o que está acontecendo e, consequentemente, isolam-se.”
Nessa vivência da família e da comunidade em relação ao indivíduo em sofrimento psíquico, a família no plano microssocial é o vetor diretivo para desospitalização e inclusão social do indivíduo, conquanto a comunidade no plano macrossocial é ativa no processo de não segregação do indivíduo acometido pela doença mental.
Com toda a responsabilidade social que a família tem nesse processo, para evitar a cronificação do quadro, para o tratamento, para a inclusão na sociedade, há tão somente um dispositivo que se refere à família do portador de sofrimento emocional, a Portaria/SNAS 224, de 29 de janeiro de 1992, a qual ao elencar as missões do Núcleo de Atendimento Psicossocial, ou Centro de Atendimento Psicossocial, inclui a atividade de atendimento à família, todavia na realidade é mais um dispositivo simbólico, sem efetividade no Brasil. Direito à saúde é direito constitucional que não pode retroagir (BRASIL. C.F. ART.196, 200), corolário do direito à vida (LEX LEGUM, ART. 5º), tout court, do direito à vida digna, que está no patamar de direitos que são intangíveis e que podem ser providos com sustentabilidade.
4.1 QUANDO A FAMÍLIA ADOECE E NESSE PROCESSO DE ADOECER, QUEM VAI AMPARAR A TODOS?
A família na sua transformação dinâmica ao longo da história, sendo a instituição onde repousam as expectativas de que venha a atender o liame de afetividade do sujeito e de que lhe forneça o amparo necessário, contudo esta assertiva está no mundo das expectativas, já que no contexto da sociedade acelerada e atomizada pós-moderna, esse ditame é volátil, não sendo garantia. (SILVA; DINIZ; SANTOS, 2010, p. 8).
Não existe mais uma barca errante, mas ainda existe a situação da família atordoada jogar para o Estado a responsabilidade de cuidar do “louco” e o Estado atendendo a ingerências das empresas privadas com que tem parcerias, fomentar ainda o internamento, existe uma roleta errante e nesse jogo de azar a sorte não é propícia para os que estão adoecidos.
Não é há de se cogitar deontologicamente que essa família que adoece é uma família desatrelada de sentimentos positivos, pois como chancela Siqueira (2017);
“O transtorno mental produz medo e apreensão na família. Ele produz uma ruptura na trajetória existencial do sujeito e consequentemente do grupo familiar, desestrutura as formas de corriqueira de lidar com as situações cotidianas. Os familiares passam a não saber como agir.”
Até o diagnóstico de um transtorno mental do sujeito, a família pode passar de uma ação policial, caso seja encarado o comportamento do portador de sofrimento psíquico como algo criminoso até a situação de considerar que há a influência de forças ocultas, até aceitarem o adoecimento do seu ente familiar, nesse processo de adaptação, nas noites de sono sem dormir, nas faltas ao trabalho, nas agressões verbais e até físicas que sofrem, nessa caravana errante, a família adoece, senão vejamos o que aduzem Bessa e Waidman (2013): […] “após o diagnóstico do transtorno mental a família passa por um período de adaptação, que exige mudanças na rotina domiciliar e no relacionamento entre os seus membros para ter um melhor convívio […]”.
Essa dinâmica de cuidar do portador de transtorno mental estremece as balizas da família no sentido econômico, pois o tratamento biopsicossocial é custoso e até para as famílias que vão ao CAPS da comunidade, muitas vezes, para essas famílias de baixa renda o deslocamento com o transporte é oneroso.
A falta de orientação no que se trata à doença e o tratamento farmacológico que deve ser conhecido pela entidade familiar para facilitar a aderência do usuário, bem como a orientação para saber-se o período de crise e que se necessita de intervenção do profissional de saúde mental, e até da internação em último caso, dificultam esse processo do cuidar (BESSA; WAIDMANN, 2013).
A família é tida como vetor importante para reinserção social do jovem acometido do primeiro episódio psicótico, vez que segundo estudo realizado pela faculdade de Enfermagem de Ribeirão Preto (USP), pela pesquisadora Luíza Elena Casaburi, o engajamento da família no tratamento do portador de transtorno mental na aderência ao uso do medicamento, nas trocas afetivas, no deslocamento às visitas aos profissionais de saúde, observação dos comportamentos dos sujeitos “adoecidos” é também “remédio” para a doença mental.
Há estudos que comprovam que a família algumas vezes adoece nesse ato de cuidar do portador de transtorno mental, havendo uma sobrecarga do familiar cuidador que pode agravar a situação do adoecido mentalmente, como explicitam Cardoso; Galera; Vieira (2012):
“A internação psiquiátrica é um recurso criterioso, de curta duração, atualmente, é indicada para casos graves, quando foram esgotados os recursos extra hospitalares para o tratamento, sendo proibida a internação de pessoas em instituições com características asilares. A manutenção do cuidado em saúde mental deslocou-se das instituições de saúde para o lar desses pacientes e, consequentemente, para suas famílias evidenciando, cada vez mais o papel dos familiares como cuidadores.(…) Em razão do processo de desinstitucionalização psiquiátrica e da natureza grave e crônica da doença mental, a família e, em especial, o familiar/cuidador é submetido a constantes eventos estressores no curso dessas doenças, que pode afetar, além das relações familiares, a saúde do próprio familiar/cuidador sempre trazendo algum grau de sobrecarga e provocando a constante necessidade de adaptações.”
Estudos realizados pelo Royal College of Psichyatrics in UK, Ireland por Ranieri et al. (2017), confirma que há uma sobrecarga e angústia para os familiares que seguem cuidando de pessoas que saem da internação psiquiátrica, caregiver burden, entendido como sobrecarga do cuidador, nesse esteio:
“Results This study found that the overall level of burden and psychological distress experienced by caregivers did not differ according to the patient’s legal status. However, the caregivers of those who were voluntarily admitted supervised the person to a significantly greater extent than the caregivers of those who were involuntarily admitted. Approximately 15% of caregivers revealed high levels of psychological distress.”
É que o cuidar e o ser cuidado e o cuidar-se são processos holísticos que demandam responsabilidade do sujeito e responsabilidade social, portanto, o tratamento e a inclusão social do portador de transtorno psíquico é da família, dos profissionais de saúde, do Estado e do próprio portador que tem que se responsabilizar e aderir ao tratamento humanizado.
Numa visão macroscópica, a responsabilidade para a reinserção do acometido de sofrimento mental na sua casa que é o mundo, que é a comunidade, que é o ethos é de toda a sociedade civil, que não pode reinventar naus errantes, que tem que aprender a incluir a pluralidade nas suas vivências e construir laços de pertença social para aqueles que outrora estigmatizava.
4.2 A NECESSIDADE DA CRIAÇÃO DE UMA POLÍTICA PÚBLICA DE APOIO À FAMILIA CUIDADORA DO PORTADOR DE SOFRIMENTO PSÍQUICO E DA SUA VIABILIDADE
Emerge da lacuna legal o mister de formular-se uma política pública de apoio ao familiar cuidador da pessoa com transtorno mental, tanto no viés econômico, como no de orientação, assistência psicossocial comunitária, na construção de uma linha terapêutica humanista e multifocal.
No processo de mundialização, situações de desigualdade social se agravaram, e a relação do direito com a economia estreita-se como explicitam Mattei e Nader (2013, p. 167), nesse jaez:
“[…]. Criaram-se estruturas governamentais poderosas geradoras de uma vastíssima literatura profissional que transfere para a Europa, para a América Latina, e para outras partes do mundo a ideia de que o direito deve ter por base a eficiência econômica e não a Justiça Social.[…].”
Nesse veredito da eficiência econômica, prepondera a alegação que alguns direitos são inviáveis de serem implementados porque envolvem custos, in casu, os custos de uma hospitalização e da cronicidade do transtorno mental são mais vultosos do que os custos que podem ser direcionados para o amparo ao familiar cuidador, no estabelecimento de um programa polissêmico, de orientação, custeio e apoio terapêutico, para que esse cuidador também seja cuidado e que o processo do tratamento seja fomentado numa relação saudável. Investir no amparo da família é investir na Medicina Preventiva, a qual é menos onerosa.
A experiência da eficiência econômica dos Estados Unidos da América traz críticas ao resultado da desinstitucionalização e da reforma psiquiátrica para os seus cidadãos com a estatística de que 17% da sua população carcerária tem serious mental illness, pois com o fechamento dos hospitais psiquiátricos, as zonas rurais, devido à distância e com menos acesso a serviços comunitários na área de saúde mental, outrossim, pelo fato da cultura ainda enraizada na comunidade é a do estigma e por poucos prestadores culturalmente competentes e linguisticamente capazes, por exemplo no atendimento a latinos, o atendimento comunitário em saúde mental não foi bem sucedido para todos, tanto que alguns dos portadores de sofrimento mental ou acabam como moradores de rua ou nos cárceres estadunidenses e cogita-se na pressão nas empresas farmacológicas (GHOOSE, HAMID, 2011, p.759-763).
No Canadá que adota um serviço de saúde mais social e humanizado, demandando por várias non profit organizations ligadas à saúde mental e seus profissionais, respeitando o mosaico de culturas que se fazem presentes com o incentivo de imigração devido a sua baixa densidade demográfica, procuram fazer programas preventivos de controle do stress e até na televisão são veiculados programas para prevenção de doenças mentais que atingem as populações mais pobres, e muito embora, o tratamento biopsicossocial seja custoso, já estudam formas alternativas de pagamento das sessões terapêuticas[2]
Um país bem-sucedido na desinstitucionalização é a Jamaica cujo programa de non -asylum foi promovido pela Universidade (University of West Indies) foi desenvolvido a partir de um trabalho comunitário de supervisão dos pacientes que não aderiram à medicação, um serviço móvel, monitorando as famílias e os pacientes, essa modalidade terapêutica é única em todo o mundo. O bem-sucedido e revolucionário modelo jamaicano é indicado para países de baixo e médio income, pois baseado na educação da população, que passou a não mais estigmatizar o portador de sofrimento mental, a abominar o manicômio como locus de tratamento e esse serviço móvel que dá suporte aos usuários e as famílias em suas casas e na comunidade a baixo custo, evitando os altos custos da internação e da evolução do quadro de doença mental para o estado crônico.[3]
Na realidade da América Latina, o vizinho Chile, sendo que o setor público é que provém 70% do tratamento de saúde mental, tem uma experiência de se observar na Reforma Psiquiátrica, sendo que em 2001 foram criados trinta e um Hospitais Dia, que colocam o portador de transtorno psíquico em tratamento e durante o dia, retornando à família á noite e serviço de monitoramento das famílias que cuidam dos usuários, o que assegura que não haja a sobrecarga do familiar cuidador.[4]
Em julho de 2017, a França promulgou um decreto atinente à lei de modernização do sistema de saúde pública, para instalação de um projeto de saúde mental territorial, visando a não estigmatização, o atendimento comunitário, visando a aplicação de uma política de saúde mental preventiva no que tange a evitar-se a cronicidade dos transtornos mentais e incluindo visitas dos psiquiatras aos domicílios quando do advento de crises dos portadores de sofrimento mental para evitar-se o internamento compulsório:
“Les établissements volontaires adressent à l’ARS un PTSM avec le territoire concerné et les acteurs, avec la participation des communautés psychiatriques de territoire (CPT) et en cohérence avec un diagnostic partagé du GHT et les plates-formes territoriale d’appui (PTA)
Il a 3 missions: favoriser la prise en charge sanitaire et l’accompagnement médico-social; structurer l’offre de prise en charge sanitaire; coordonner le second niveau et organiser la mission de psychiatrie de secteur.
Les finalités sont les suivantes: promotion de la santé mentale, amélioration continue et promotion des capacité des personnes
Le PTSM organise:
*le repérage précoce des troubles psychiques (pour les enfants, adolescents, précaires et addicts) avec l’accès à un avis spécialisé par des généralistes, un accès aux soins, un accès aux dispositifs
*le parcours de santé et vie de qualité sans rupture avec accès sur la survenue ou l’aggravation du handicap, l’accès aux soins de réhabilitation, le développement de services adaptés
*l’accès à des soins somatiques adaptés
*les conditions de prévention et de prise en charge de situation de crise et d’urgence par l’intermédiaire de professionnels au domicile, de permanence des soins et de psychiatres aux urgences
*les conditions du respect et de promotion des droits avec des espaces de concertation (CLSM), l’information des personnes et de leur entourage, la lutte contre la stigmatisation, la réponse aux personnes sans consentement
*les conditions d’action sur les déterminants sociaux en renforçant les compétences psycho-sociales”. (FRANÇA. LE DÉCRET 2017-1200 DU 27 JUILLET)[5].
Após esse sucinto comparativo mundial centrado nas perspectivas em saúde mental desses países, vemos que o caminho para amenizar ou cuidar do sofrimento dos acometidos com transtorno mental e seus familiares é de uma longa estrada e que repercute socioeconomicamente e às vezes tragicamente em algumas situações como vemos notícias de pessoas em surto psicótico que matam pessoas indiscriminadamente, nesse viés, o problema não é só da família que tem esse ente, mas de a sociedade em rede.
Em referência ao Brasil, uma política pública de amparo ao familiar cuidador, é medida viável e de excelência na prevenção do agravamento do transtorno psíquico, sendo que no nível da eficiência econômica conjugando essa equação com a justiça social, o custo de uma internação no Brasil, pois as despesas com internação psiquiátrica são quatro vezes mais custosas do que as outros tipos gerais de internação, e há denúncias de violações a direitos humanos, (GHOOSE HAMID, 2011, p.767-768) mormente no passado, dessarte, investir em programas comunitários efetivos de assistência à família e ao usuário, de monitoramento domiciliar quanto a não aderência à medicação, de amparo biopsicossocial ao familiar na criação de hospitais dia e de acesso a serviços de orientação, atendimento e suporte é alternativa mais eficaz para a prevenção e custa menos do que deixar a o transtorno psíquico se agravar e o portador não possa mais reinserir-se no meio social, havendo custos para a previdência, haja vista que não retornará ao trabalho e custos sociais e afetivos, como o risco ao suicídio, e a ser exposto à violência urbana com mais fragilidade do que outras pessoas, pois sem autodeterminação quando em crise psicótica.
Com estudo metaetnográfico abalizado no que referencia a volta ao trabalho do portador de transtorno psíquico, Neves (2016, p.15) entende os sofrimentos mentais “[…] como um produto e expressão, no indivíduo, de relações de poder, dilemas existenciais, conflitos culturais”. Neves (2016, p.17) continua na sua avaliação sobre o papel da família e dos amigos para o retorno do trabalho, in verbis:
“Relação com família e amigos: as ações e reações no RT nesse caso parecem ser mediadas pelo grau de amizade, companheirismo, cooperação, harmonia e solidariedade que a relação com a família ou com os amigos possuía. Nos casos onde esses pressupostos já estão presentes, as narrativas mostram que há um suporte considerável, caracterizado por: diálogo, sobretudo nos momentos difíceis, preocupação com recaídas, ação de assumir as tarefas práticas da vida diária, ação de assumir o cuidado com os filhos e com o trabalhador que retorna, disponibilidade para acompanhar o trabalhador nas consultas, perícias, terapias após o retorno e, por fim, no fornecimento de conselhos práticos que ajudem no dia-a-dia do RT”.
Soa desse estudo com riqueza metodológica que a família dá o suporte para o retorno ao trabalho do portador de sofrimento psíquico, o que desonera o Estado e a previdência e viabiliza a inclusão social, deste modo, investir na educação e amparo da família é condição de viabilidade na reinserção do indivíduo com sua subjetividade singular na comunidade a que pertence, dando o sentimento de pertença social e reduz custos financeiros para o Estado, nessa equação entram eficiência econômica com o plus da justiça social, que resultam numa progressão geométrica que maximiza o direito fundamental à saúde na sua possibilidade de existência em contrapartida ao mínimo vital e à reserva do possível , pois há custos humanos que são intangíveis e imensuráveis, no que devemos promover a desmercantilização das relações. (CALMON; DANTAS, 2011, p. 502-534).
Não há de encarcerar-se os direitos fundamentais e os direitos sociais relativos à saúde mental dentro do paradigma da cláusula de reserva do possível (Vorbehalt des Möglichen), vez que o direito à saúde é uma extensão ao direito à vida e tem uma configuração pétrea na Constituição Pátria, no escólio de Canotilho (2004, p.12) direitos sociais não podem ser engessados pelo que se tem na “reserva dos cofres financeiros” e oscilar conforme os “camaleões normativos”.
No novel standard do Direito Internacional, em que encampa que existem direitos humanos fundamentais
Na vertente do BioDireito e da Bioética, o direito à saúde mental é um direito humano fundamental, atrelado à dignidade humana no seu conceito binário : de expressão da autodeterminação humana, e da sua necessidade de assistência por parte do Estado e da comunidade, como pontua Sarlet (2010); deveras quando a pessoa está fragilizada ou quando não capaz de autodeterminação, e para aqueles que não podem construir a dignidade por suas próprias forças, portanto, o direito à dignidade humana se consubstancia em direito à prestação.
Construir-se um programa em saúde pública comunitário, focado na reinserção social do indivíduo com sofrimento mental e no tratamento da família como base da formação da subjetividade do indivíduo, é econômico e faz justiça social e traz a heurística da fraternidade social.
Nos propalados tempos atuais de austeridade, em que pretendem reduzir direitos sociais alcançados por lutas e sangue de muitas pessoas, e regados de sofrimento humano, sofrimento biopsicossocial, quantas pessoas “enlouqueceram” por conta das desigualdades, do estigma, da guerra, do racismo, da competição da sociedade de consumo? Entrementes, a crise fiscal atrelada à crise econômica seja realidade, retroagir em direitos sociais e não avançar na sua caminhada, além de ser inconstitucional e lesar o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e culturais (DANTAS, 2017, p. 11), é desumano e fere direito transgeracional (JONAS 2006)
Nesse diapasão, seria de preponderante relevância a inserção na Lei 10216/01 de artigo que propicie esse amparo ao familiar cuidador do portador de transtorno psíquico, para aqueles de baixa renda e ou usuários de outros programas sociais equalizadores, que fomente um custeio das suas necessidades enquanto cuidador, no plano econômico, psicossocial, mormente nos casos de acompanhamento de familiar em surto psicótico, evitando-se, portanto, a hospitalização compulsória.
Uma alteração legislativa que beneficie o amparo do familiar cuidador com critérios precisos e não paternalistas, mas de fomento da policy making que usa de isonomia e ao mesmo de pluralidade de condições, o é por demais imperiosa, vez que se dependermos do perigoso ativismo judicial, estamos fadados a darmos privilégios para uns e não exercício de direito para outros, dependendo da condição do autor da demanda de articular os meios processuais, do entendimento axiológico do juiz e das ingerências da economia e da política no direito, bem como arrefece o espírito de solidariedade social , já que estimula ações individuais, como salienta Streck (2003, p.263-264), in verbis:
“A invasão da esfera de competência dos tribunais, mediante concretizações materiais de valores, desestimula o agir orientado para fins cívicos, tornando-se o juiz e a lei as derradeiras referências de esperança para indivíduos isolados.”
Agir com isonomia tratando-se de direito fundamental e social é auferir-se um paradigma legal que beneficie de modo equânime os familiares dos portadores de distúrbio mental, os usuários do sistema e a comunidade, conseguir-se através do ativismo judicial que algumas famílias consigam o apoio do Estado em detrimento de outras, no Brasil em que o acesso à Justiça ainda é oneroso para os menos favorecidos, é uma temeridade.
O exercício de uma cidadania responsável em prol da maximização do possível existencial em direito fundamental advém de uma ação conjunta de todas as forças input/output, até de organismos internacionais de direito humanos, vez que há um novel caráter do Direito Internacional que visualiza os direitos humanos universais. E falam até num International Poverty Law, (WILLIAMS, 2006, p.11-12).
Um Direito Internacional para os pobres, estudado pela CROP, the Comparative Research Programme on Poverty que é uma comunidade acadêmica responsável pelo estudo dos problemas da pobreza, cujo programa foi iniciado em 1992, oficialmente aberto em 1993 pelo então diretor da UNESCO, Dr Federico Mayor. diante da globalização e da retórica do Direito Internacional formal, senão vejamos, in ipsis litteris:
“[…] While urging IPL (International Poverty Law) to embrace a ‘universally recognized human rights framework’ for poverty reduction […] Human rights discourse itself without reference to moral and political arguments external to rights discourse – provides no method or decision process to resolve such conflicts or precisely define the legal implications of a human rights principle.[…] it is common knowledge that legal rights on the books, whether or not enforceable by action, do not automatically translate into acquired rights on the ground. Therefore, IPL must go beyond the question of enforcement mechanisms and devise practical strategies to implement rights in people’s lived experience. Legal rights such as a ‘right to food’ or a ‘right to housing’ acquire meaning through legal interpretation in the context of political practice. Thus, Saini documents the ‘bureaucratic inertia and indifference and façades of only symbolic legal measures”’. (WILLIAMS, 2006, p.11-12)
É necessário por demais uma política pública que institua um programa multidisciplinar de educação no que tange a não estigmatização do transtorno mental na comunidade, como a grande família que é, e a formação de NGOS, organizações não governamentais de usuários, familiares e de profissionais na área da saúde mental, podendo haver a parceria com empresas privadas com incentivo de redução de impostos, na reinserção dos portadores de sofrimento mental no mercado de trabalho, para que a família não tenha tão acirrado caregiver burden , ou seja, a sobrecarga do cuidador, e que o isolamento não tome conta das relações, para aqueles que têm o seu choro em silêncio , tenham voz, o que estabelece “uma teia de relações e as histórias humanas” que interligam e humanizam o indivíduo, a família, as instituições e a sociedade, consoante o pensamento escorreito de Arendt (2007, p. 196) sobre a construção em teia da história da humanidade:
“A rigor, a esfera dos negócios humanos consiste na teia dos relacionamentos humanos que existem onde quer que os homens vivam juntos. A revelação da identidade através do discurso e o estabelecimento de um novo início através da ação incidem sempre sobre uma teia já existente, e nela imprimem suas consequências imediatas. Juntos, iniciam novo processo, que mais tarde emerge como a história singular da vida do recém-chegado, que afeta de modo singular a história da vida de todos aqueles com quem ele entra em contato”.
É cediço que se faz mister que as instituições de Saúde Pública, os familiares, o terceiro setor sejam estimulados a formarem grupos de apoio e de ação conjunta, todos se responsabilizando numa rede de fraternidade social pelo tratamento dos portadores de transtorno mental, inclusive os usuários do sistema de saúde que deverão ter voz ativa sobre os seus sentimentos e subjetividade, consubstanciando a maximização do direito fundamental à saúde mental para o indivíduo, para a família e para a grande família comunitária, nessa rede de histórias humanas e esperança de superação de sofrimentos.
5. CONCLUSÃO
A doença mental, não é compreendida socialmente como qualquer outra doença. Ela traz como paradigma maior uma dimensão de discriminação e invisibilidade social que dá uma amplitude maior a todo o sofrimento tanto do portador desta condição social, quanto daqueles que são obrigados a um convívio diário.
Neste sentido, entender a situação de vulnerabilidade das famílias que cuidam de portadores de doenças mentais, é estar atento a uma realidade pouco discutida no seio de uma sociedade que teima em considerar invisíveis, indivíduos que fogem ao padrão paradigmático de normalidade de conduta.
A doença mental, impacta sobremaneira as relações familiares, e neste contexto é imperioso compreender que este impacto muitas vezes requer uma estrutura material e principalmente psicológica familiar capaz de tornar menos pesaroso toda a complexidade que envolve as relações travadas com indivíduos portadores de transtornos mentais e que, de alguma forma, acabam mudando toda a forma de relação entre estes entes num convívio diário.
Compreender a situação complexa que envolve a família de um portador de uma doença mental, também requer um olhar mais pragmático e sobretudo quando se fala de famílias menos abastadas e que não dispõem de recursos materiais que possibilitem uma melhor qualidade de vida para o indivíduo doente que requer uma atenção especial e que invariavelmente é dispendioso.
O papel do Estado, é essencial para atender a estes grupos familiares hipossuficientes, que necessitam de um aparato de apoio com relevantes custos e que só se tornam possível quando da interveniência do ente público.
O Estado prestacional precisa se fazer presente principalmente por ações inclusivas e de atendimento, não só aos indivíduos com transtornos mentais, mas também aos familiares e conviventes que são socialmente estigmatizados e que a cada dia se confrontam com novos e complexos desafios.
Construir uma teia de esperança, não é à toa, depende de movimento, de luta, de solidariedade, não se almeja ganhos casuísticos no que concerne ao amparo ao familiar com sobrecarga no cuidado de pessoa com transtorno mental, construir-se “a metafísica da existência” é cotidiano e necessário para que não deixemos que discursos de austeridade banem direitos sociais conquistados e o sonho de outros a conquistar. (FOUCAULT, 1976, p. 46)
Substituir o sofrimento humano por esperança e luta social é trazer à baila a efetividade de direitos fundamentais, conquanto a formulação de uma política pública que assista ao caregiver burden é medida de equalização social.
Mesmo que esse problema do sofrimento psíquico não seja nosso, seja do vizinho distante, de outro país longínquo, ele pode nos afetar, pois existimos e nos movimentamos nessa aldeia global.
Mestranda em Direito, Governança e Políticas Públicas (UNIFACS). Especialista em Direito Penal e Processo Penal (UNIFACS). Atualmente delegada de Polícia Civil no Estado da Bahia
Mestrando em Direito, Governança e Políticas Públicas (UNIFACS). Especialização em: Direito Constitucional Aplicado (Faculdade Damásio/DeVry), Direito Civil (Faculdade Baiana de Direito). Graduação em Direito (Faculdade 2 de Julho, 2010) e graduação em Ciências Econômica (UCSAL, 2001). Atualmente é advogado – Saldanha Neto Gabinete de Advocacia; professor da Faculdade 2 de Julho e professor da Associação Educacional Unyhana. Possui, ainda, experiência na área de consultoria, Economia. Membro da Associação Brasileira de Ensino do Direito. Pesquisador do Observatório de Segurança Pública da Bahia
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