Resumo: aborda o sigilo e o segredo sob o prisma da reflexão filosófica, essencialmente a partir de um caminho de leitura perpassando preceitos constitucionais e legais e extraindo sentidos destes bens jurídicos na valoração do direito positivo.
Palavras-chave: sigilo; segredo; direitos.
O amadurecimento dos ordenamentos jurídicos hodiernos deixa patente que o plexo de valores e princípios emanados pelos direitos fundamentais agrega e direciona os preceitos legais em torno de estruturas principiológicas, criando mecanismos de defesa e de prestação jurídicas, formando sólidos blocos de compreensão. A criação normativa abarca categorias múltiplas que demandam argumentações percucientes, formal e materialmente. O debate sobre o sigilo e o segredo corrobora estas hipóteses.
O “sigilo”, seja pela sinonímia com o “segredo”, seja pela etimologia de “pequena marca, estatueta” ou “signo, sinal, selo” indica uma peculiaridade de trato da informação, realmente distinguida e distinta de um fluxo naturalmente em curso. O “sigilo” traz ínsito um dever de cuidado, precaução e retenção da difusão de dados — as cláusulas contratuais de sigilo são exemplo claro disso.
Assim, o detrimento da larga divulgação, a discrição e o caráter confidencial devem representar um limite que, contudo, antes de violar as ideias de transparência e publicidade, necessita se justificar por meio de juízos de ponderação e razoabilidade; basta-se rememorar o sigilo sacramental e o profissional para se verificar o dever de guarda e inviolabilidade decorrentes.
O sigilo, pois, imanta um contexto, tutelando-no a partir de certos riscos e visando proteger outros bens, sendo tensão entre estes parênteses, e é esta a medida de sua restrição.
Como uma malha móvel, o movimento da rede muda os pontos de posição, ressignificando-lhes e produzindo um contexto próprio em que o deslocamento não afeta a essência das formas.
O “segredo”, igualmente, veda a ampla revelação, aumentando a gravidade do feixe de conhecimento sobre determinada situação, conferindo recesso e apartamento, tanto que a etimologia remete ao discernimento, à distinção, à escolha, guarda e destinação, ao que se pode agregar a proteção de interesses e direitos de modo legítimo, sem o que haveria violações. Segredo de Estado, de justiça e militar são expressões clássicas neste sentido.
Se as informações ordinárias, pelo princípio da liberdade, podem se esvair pelos mais variados e possíveis caminhos, desmarcadas, as informações sigilosas, em contrapartida, tem um destino certo e predeterminado: são seladas.
Assim, segredo e sigilo são marcas da proteção de interesses e direitos, constituindo-se em exceções de divulgação e de conhecimento. Estipulam, assim, âmbitos de difusão ao compasso de delimitarem os sujeitos cognoscentes autorizados para o manejo do conteúdo sigiloso ou secreto. O sigilo remete ao silêncio.
A legislação pátria é abundante em dispositivos que asseguram o sigilo e o segredo, principalmente em sua dimensão processualística, evidenciando que ao poder público são impostos sinais distintivos em situações peculiares sobre as quais se considera cautela. Antes disso, porém, o nascedouro jurídico-constitucional estipula vigas mestras ao tema.
Basta se rememorar dispositivos do artigo 5º que expressamente insculpem o sigilo: inciso XII, com o “sigilo de correspondência e comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas” (salvo, nestas, ordem judicial para fins penais, conforme regulamento da Lei n. 9.296/1996). Também, o inciso XIV, com o resguardo do “sigilo de fonte” (no âmbito do exercício profissional) como limite ao acesso à informação.
Também no artigo 5º o inciso XXXIII, em que, novamente, o sigilo cria a restrição ao acesso do cidadão às informações armazenadas em órgãos públicos, na medida da proteção da “segurança da sociedade e do Estado”. Ainda, no inciso XXXVIII, “b”, tem-se no júri assegurado o “sigilo das votações”.
A garantia constitucional, por sua vez, que expressamente se implica pela opção do processo sigiloso é o “habeas-data”, que permite a retificação de dados, desde que para tanto não se tenha optado por processo administrativo ou judicial sigiloso.
Ainda na Constituição Federal de 1988, foi inserto por meio da Emenda Constitucional n. 42/2004, o dispositivo que talvez traga o maior emblema das questões implicadas pelo sigilo quando do trato processual: o inciso IX, artigo 93, que prescreve a publicidade e a fundamentação das decisões judiciais, sob pena de nulidade, criando-se, contudo, a autorização para limitação legal de presença restrita, em determinados atos, das partes e dos advogados, ou mesmo apenas destes. A baliza apontada pelo dispositivo é a “preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo”, desde que esta não “prejudique o interesse público à informação”.
O estado de defesa e o estado de sítio, por outro lado, são hipóteses em que, excepcionalmente, tem-se a autorização de restrições ao sigilo, de modo que se cria uma exceção da exceção na medida em que se tem uma abertura daquilo que, em regra, permaneceria na normalidade fechado (e que, por sua vez, é uma exceção à regra da abertura).
No caso do estado de defesa, tem-se diminuição da amplitude do sigilo de correspondência, de comunicação telegráfica e telefônica (artigo 136, §1º, “b” e “c”), visando-se a preservação da ordem pública e da paz social. Já no estado de sítio, nos casos de “comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia da medida tomada durante o estado de defesa” (artigo 137, I), são permitidas “restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei”.
Por fim, o artigo 14, §11, assegura o trâmite em segredo de justiça da ação de impugnação de mandato (tutelando-se a idoneidade eletiva).
Como se pode antever dos exemplos constitucionais, o sigilo e o segredo enquanto proteções impõem movimentos de abertura e fechamento, criando-se exceções e defesas modulados sempre pela remissão a um valor mais ou menos delimitado (segurança, ordem, paz, intimidade etc.), revestindo um interesse ou direito mais ou menos remotamente visado, o que transforma toda apreciação sobre estas proteções em um exercício hermenêutico de verificação dos sentidos e de calibração destas variáveis. A identificação precisa para se conferir o rótulo do sigilo engloba sabedoria.
Como exemplos infraconstitucionais pode-se considerar que quase toda legislação, direta ou indiretamente, se vê implica pela criação da exceção do sigilo, ou, ainda, que a quase toda sorte de direito ou interesse se poderia coadunar uma cobertura de sigilo. Os casos processuais merecem destaque.
O Código de Processo Civil, por exemplo, traz importantes dispositivos que autorizam o segredo de justiça, tal como no artigo 155, em que se tem por regra a publicidade dos atos processuais, salvo o segredo de justiça concedido aos processos nos quais se entenda devido em respeito ao interesse público, bem como aos que digam respeito a questões de família (a casamento, filiação, separação dos cônjuges, conversão desta em divórcio, alimentos e guarda de menores, afim ao parágrafo único do 1.705 do Código Civil), sujeitando-se, assim, eventuais terceiros interessados no conhecimento do teor do dispositivo da sentença ao pedido de certidão.
Igualmente, tem-se exceção criada no inciso IV do 347, CPC, quanto à exibição de documentos, o que há de ser visto no contexto do artigo, que tutela a honra, a intimidade e a vedação de auto-incriminação, com ênfase no âmbito familiar, bem como na proteção do segredo profissional — o qual também se contempla no artigo 347, ao desonerar a parte do depoimento de fatos abrangidos pelo sigilo, valendo o mesmo para a testemunha (artigo 406,II) e reiterada no artigo 229, I, do Código Civil. Por fim, no CPC, pode-se rememorar também o artigo 815 traz a realização da justificação prévia em cautelar de arresto (e, na busca e apreensão, 841), sendo visível a proteção do interesse do credor e da regularidade da execução, nos casos em que o juiz, no exercício do poder geral de cautela, entender indispensável à medida.
Tais exemplos legais, novamente, fortalecem a percepção da estrutura vinculada do segredo e do sigilo na dimensão jurídica, em uma dupla via de proteção de interesses da parte e da regularidade processual, coligando-se dimensões materiais e formais, remetendo a pontos de sustentação axiológicos.
Na mesma esteira, o Código de Processo Penal Brasileiro guarnece o inquérito policial com o selo do sigilo, valendo-se também de expressão aberta ao referir, no artigo, 20, que “a autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade”. Repete-se, ademais, o sigilo da votação no Tribunal do júri, por meio do artigo 487. Por fim, traz a atitude ativa do juiz na conferência do sigilo a procedimento, quando lhe impõe, em sede de reabilitação, cercar do “sigilo possível” as diligências necessárias para a apreciação do pedido (tema também tratado no artigo 93 do Código Penal).
Em termos de segredo, o CPP traz proibição de depoimento de pessoas envolvidas em segredo profissional (em função de ministério, ofício ou profissão), conferindo, porém, disponibilidade, ao permitir a opção ao interessado pela fala do depoente, revelando assim concessão face à possibilidade de informações benéficas ao acusado. Outra face constante do CPP é a do sigilo protetor da intimidade, vida privada e honra do ofendido, seguindo-se o poder de cautela do magistrado, que poderá, tal como incluído pela Lei n. 11.690/2008, “determinar o segredo de justiça em relação aos dados, depoimentos e outras informações constantes dos autos a seu respeito para evitar sua exposição aos meios de comunicação.”
Importante rememorar que o Código Penal também tutela o sigilo e o segredo, erigidos a bem jurídico na seção “dos crimes contra a inviolabilidade dos segredos” (artigos 153 e 154), enquadrada na parte dos crimes contra a liberdade individual. Os tipos de “divulgação de segredo” (de documento particular ou de correspondência confidencial de que se é destinatário ou detentor) e “violação de segredo profissional” estruturam as condutas de divulgar ou revelar segredo, sem justa causa, e de que decorra potencial dano a outrem (sendo qualificas as lesões à Administração Pública).
Estes exemplos clássicos do processo judicial e de indicativos do direito material — sem prejuízo das problematizações igualmente viáveis em processos eleitorais, militares, do trabalho, administrativos, fiscais etc. — revelam, assim, o potencial do sigilo na tutela dos direitos fundamentais e, igualmente, dos direitos de personalidade. Não se olvide que, conforme o Código Civil Brasileiro, “a vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma” e que, igualmente, conforme artigo 52, “aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade”.
Outrossim, os direitos humanos são vislumbráveis, tal como, apenas para citar dois exemplos, dicção do artigo XII da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948): “ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques”. Assim também o artigo V da Declaração americana dos direitos e deveres do homem (1948): “Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra os ataques abusivos a sua honra, a sua reputação e a sua vida particular e familiar”.
Com isso, tem-se que o largo escopo de direito material que tutela o segredo e o sigilo, por meio dos microssistemas e legislação esparsa, à luz dos sistemas maiores aqui brevemente tangenciados, tem a força jurídica de incitar o poder geral de cautela do magistrado em sua máxima amplitude. O sigilo e o segredo trazem em si o problema da tutela dos direitos e interesses, de modo que o seu manejo hermenêutico pode render ampliações dos efeitos dos dispositivos legais, conforme possibilidades construtivas da casuística.
A coadunação dos dispositivos com seus fundamentos mais caros podem levar a soluções jurídicas variáveis, compatibilizando a fusão normativa com as situações-problema postas ao julgador. A dimensão crítica também pode se valer das vedações (e ações) possibilitadas e impostas pelo sigilo e segredo para redimensionar práticas e preceitos.
Com isso, ganham os indivíduos em efetividade de seus direitos, ao compasso de que também a coletividade, que encontra no poder público um cuidadoso interventor (e garante) da esfera público-privada, prestando a tutela administrativa e jurisdicional em conformidade ao teor dos direitos implicados.
O raro selo do sigilo e do segredo, pois, demandam densidade analítica.
advogado em Curitiba, especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná e mestrando em Direitos Humanos e Democracia pela UFPR
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