Resumo: neste artigo são discutidas algumas reflexões e possibilidades acerca da importância hermenêutica do ato de “ouvir” enquanto apreensão mental e disposição de alteridade, que reflete um outro lado do aspecto da argumentação, integrando a cadeia de processos cognitivos e de julgamento envolvidos no ato de interpretar, este entendido de modo amplo. Com isso, sob tal visão holística, destacam-se alguns entendimentos interdisciplinares como mote para se pensar o problema.
Palavras-chave: alteridade; ouvir; ética do cuidado.
É consabido que o humanismo possui uma maleabilidade conceitual e um amplo gama de incidência, o que o faz, além de manifestar-se como uma, conjugar-se com as mais diferentes ideologias, trazendo elementos informativos de entendimentos e práticas de mundo, mais especificamente no âmbito da convivência social, embora também se possa referir a ações humanas sobre a natureza.
A partir deste caráter informativo, o humanismo pode ser visto como essencialmente vinculado a processos de conhecimento da realidade e, sobretudo, de sua avaliação valorativa. A partir deste ponto específico que se lhe pode fornecer, é possível depreender sua validade e utilidade.
Como já demonstrado em artigo anterior[1], e sem prejuízo de demais exemplos[2], no campo da medicina, posto sua permanente operabilidade limítrofe vida-morte, tem-se desenvolvido profundas reflexões sobre a humanização das práticas profissionais, de um modo muito similar ao que se realiza no campo da enfermagem[3], com as preocupações de definições e métodos acerca de um “cuidado humanizado” dos pacientes.
Tais estudos, pois, têm revelado uma carga axiológica intensa, e a utilização das mais variadas possibilidades da hermenêutica e da filosofia em geral para solucionar problemas de interpessoalidade, minimização do sofrimento e cura, em um claro objetivo de consecução material dos mais altos princípios e regras de direito constitucional e internacional dos direitos humanos, o que só reforça a maturidade da vinculação dos profissionais a sua normatividade e àquela que a todos orienta.
Um breve, mas potencial, experiente e inspirador artigo, do Doutor Auro Del Giglio, oncologista, hematologista e atual Presidente da Associação Brasileira de Cuidados Paleativos, traz algumas reflexões sobre as interfaces entre humanismo e medicina, tendo por tônica o problema da comunicação humana.
É a partir dessas interfaces que se podem apontar alguns dos entendimentos do professor para se pensar, também, as relações jurídicas, eis que muito da compreensão passa pelo tema da relação entre ciências e dos vínculos entre agentes sociais em trocas no contexto de trabalho, de sorte que, a despeito de algumas distinções de objeto e dinâmica, a compreensão de mundo pode ser transportada sem prejuízos.
Assim, para o médico, a interface pode ser verificada em dois aspectos que, destaca, não são visões excludentes entre si: o primeiro limite dessa interface pode ser visto no contexto de contato das ciências humanas ou humanidades com o campo específico da medicina, o que no direito se manifestaria por meio dos saberes oriundos do contato com os problemas da sociologia, psicologia, filosofia abordados em sua confluência jurídica. O outro limite seria o de uma “relação da Medicina científica com o ser humano através de uma abordagem mais voltada para o seu lado emocional, social e cultural, isto é, de forma mais humanizada ou para alguns de maneira mais holística” (GIGLIO, 2007).
Enfocando a segunda área de interface, o Doutor Giglio pergunta-se acerca do que seria o “médico humanizado”, e a via de acesso para esse conteúdo escolhida por ele é justamente o da negação, ou seja, o que seria um médico “não-humanizado” – ao que, no direito, se faria uma pergunta sobre um profissional determinado, um “advogado humanizado”, um “professor humanizado” ou um “juiz humanizado”, por exemplo.
Interessante sobrelevar a terminologia utilizada: não se trata de um profissional “humanista”, mas “humanizado”, o que possui uma diferença semântica interessante, eis que o “humanizado” é aquele que se humanizou, ou seja, que adentrou à consciência da condição humana e da sociabilidade, enquanto o “humanista” é um adepto a uma filosofia humanista ou, ainda, um estudioso e erudito. Reforça-se, mais uma vez, um consenso: uma dimensão não exclui, nem deve excluir, a outra.
Dessa distinção pode-se concluir que o termo “humanizado” reflita uma sensibilidade e uma capacidade de empatia que independem propriamente de uma mais profunda especialização gnoseológica, e se coliga mais ao cotidiano, ao tempo da ação, ao momento das decisões que geram efeitos na vida direta das pessoas, ao compasso de outro estágio, de aprendizagem e preparação vocacionados para alimentar essa prática. Em suma: o humanista mais estuda, o humanizado põe em prática os valores apreendidos e internalizados ao se alimentar de saberes múltiplos e de sua relação com os problemas da vida em curso.
Para Giglio, o médico não-humanizado seria “o profissional que recebe o paciente portador de uma dada enfermidade de forma rápida e eficiente, concentrando-se tão somente em detalhes da história e do exame clínico que concernem ao órgão doente para, a seguir, indicar um tratamento específico” (GIGLIO, 2007).
Neste caso, pontua o autor em sua análise do padrão de conduta profissional, não ocorreu qualquer preocupação, por parte do clínico, quanto às demais dimensões da vida do paciente, quais sejam pontos da história de vida, personalidade, interesses, condição econômica do momento, ou seja, elementos que estão no contexto da patologia, mas que não competem diretamente ao seu diagnóstico. Seria uma leitura rasa e superficial da realidade e da pessoa. Assim, o contraponto que o autor realiza é o de que o atendimento seria eminentemente técnico, porém não-humanizado.
Essa questão – a qual, inclusive, a hermenêutica filosófica construiu múltiplas respostas – tem afligido os profissionais, tanto no aspecto da aplicação de técnicas simbólicas e de conduta em um relação entre pessoas quanto, igualmente, na intervenção tecnológica intermediando materialmente as relações (GALINDO, 2010). Conforme o Doutor Adolfo Saadia (2007), ao refletir sobre os limites do automatismo tecnológico, “é preciso evitar o júbilo ou a influência de fatores estranhos ao nosso trabalho, que segue sendo artesanal e fundamentalmente dirigido a outro semelhante”. Para ele, o desenvolvimento profissional deve envolver uma educação integral que vincule filosofia, antropologia e bioética, de modo que a especialização visualize também o mundo social, desenvolvendo-se com espírito renovador e sentido humanista. Seria a partir dessa conjugação que se poderia vislumbrar um equilíbrio da tecnociência.
A pergunta persistente, então, seria como humanizar a prestação técnica, inseparável do exercício da profissão, ou seja, como tornar a consulta mais pessoal e personalizada, e a resposta já estaria contida na análise do que faltou no padrão de conduta analisada por Giglio, ou seja, estaria contida na capacidade de o profissional “enxergar a dimensão pessoal do outro”. Para motivar essa postura, o professor sugere que se veja nesta conduta um estímulo para majorar a eficácia do tratamento, na medida em que se teria uma adesão do paciente às prescrições: “se o paciente não adere ao que prescrevemos, nossa consulta será inútil para ele” (GIGLIO, 2007).
Além disso, como motivos para a mudança a uma postura humanizada, o autor destaca que o próprio prazer advindo da sociabilidade, do contato com outras realidades e experiências, intensifica o crescimento pessoal, de modo que a personalidade do profissional vai se lapidando pelo sucessivo contato com as manifestações de vida. No mesmo sentido, uma prática humanizada daria um senso de finalidade ao trabalho, uma vez que os resultados frutíferos da cura e do desenvolvimento da vida do paciente aproveitariam também ao sentimento íntimo do médico que obteve o bom resultado, contudo, “só poderemos compartilhar deste tipo de alegria com nossos pacientes se conseguirmos compreender a sua história de vida, seus valores e suas metas” (GIGLIO, 2007).
Assentadas essas premissas, o Doutor Giglio destaca que não obstante as motivações, seria necessária também uma formação do médico para que atenda sob a forma personalizada sugerida. Neste contexto, enfoca que, mais do que uma formação específica e exaustiva em humanidades, imprescindível seria desenvolver a habilidade de ouvir o paciente, capacidade que muitos médicos desenvolveriam de modo autodidata, no curso de suas práticas, muito mais do que no exercício pedagógico-didático próprio para tanto.
Nesse sentido, o autor não renega a validade do estudo das humanidades, muito pelo contrário, demonstra como conhecimentos adquiridos de psicologia, história, antropologia e outras ciências humanas podem levar a percepções qualificadas do discurso do paciente, contextualização de problemas e produção de “insights” criativos, afinal, a cultura e o conhecimento ingressam no auxílio de soluções para problemas de comunicação. Mas não deixa de afirmar que o principal é “o ouvir”, o “interesse genuíno do médico no conteúdo que vai lhe ser contado pelo paciente”, pois é a partir dessa habilidade de ouvir que se faria o interlocutor eficaz de um diálogo. Neste diálogo, estabelecer-se-ia o espaço do “outro”, do qual se percebe as necessidades e história pessoal, contextualizando-se o problema trazido, o sintoma e a doença, e, assim, ter-se-ia o “eu” que escuta e, ao ouvir, se conhece, igualmente. “Este ato de ouvir, de se interessar pelo outro e de aprender dele é, a meu ver, o que humaniza o médico” (GIGLIO, 2007).
Assim, da análise e compreensão do autor em apreço, constata-se que a habilidade a ser cultivada, de ouvir, mais do que qualquer erudição e diletantismo, mais do que um excesso de conhecimento das variedades culturais e das produções do espírito humano ao longo e ao largo do tempo e do espaço, essa capacidade de apreensão individual e de contextualização, seria a ponte entre o profissional e a pessoa que lhe busca para resolver uma situação, estabelecendo-se um influxo dialético que aproxima a condição humana compartilhada, com suas belezas e horrores, potenciais criativos de vida e de morte, criação e destruição.
O direito é, por excelência, o campo da enunciação, da fala, da escrita, da argumentação. Também é, em via concorrente, da leitura, decodificação, interpretação e hermenêutica. Nestes trânsitos, talvez se pudesse agregar a dimensão do olhar e do ouvir, enquanto posturas mais sensíveis e contextualizadoras. Um ouvir genuíno que transcenda a polidez, a urbanidade e uma tolerância de obrigação do cargo. Muito das mudanças do direito advém de alterações estruturais, mas talvez o verdadeiro potencial de sua concreção dependa, inalcançável, mas sempre visada, virtude, em cujo longo caminho muito se pode fazer “até lá”.
advogado em Curitiba, especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná e mestrando em Direitos Humanos e Democracia pela UFPR
As biografias não autorizadas geram intensos debates jurídicos e sociais, especialmente no que tange aos…
O segredo industrial é um dos ativos mais valiosos de uma empresa. Ele consiste em…
A propriedade intelectual é um dos ativos mais valiosos de uma empresa. Ela inclui invenções,…
Segredo industrial e comercial, também conhecidos como segredos empresariais, são informações confidenciais utilizadas por empresas…
A proteção de criações artísticas é assegurada por meio dos direitos autorais, previstos na Constituição…
A proteção de indicações geográficas (IG) é um mecanismo de propriedade intelectual que identifica a…