Resumo: aborda algumas dimensões do conceito de “humanismo”, destacando a sua relevância a partir do teor assumido pelo termo no posicionamento de diferentes pensadores da filosofia. Contrapõe sinteticamente os principais posicionamentos em torno do tema, indicando aquele juridicamente compatível.
O debate sobre o “humanismo” em suas múltiplas formas, categorias e qualificações possíveis anima o pensamento e raciocínio dos espíritos inquietos com os sentidos e substâncias das formas éticas e jurídicas de uma sociedade, que é para onde o debate filosófico converge. A polissemia do termo contribui com o contraponto de visões e a argumentação, propugnando-se por uns ou outros rumos.
A crítica marxista ao entendimento proudhoniano sobre a organização econômica, por exemplo, indica que no uso de mesmas expressões, pela estrutura do raciocínio empregado, pode-se chegar à imputação teorética de um “humanismo anti-humano” (NOGUEIRA, 1989, p. 160). Este tipo de crítica é recorrente.
O critério de avaliação da realidade disposto pelo filósofo, pois, é decisivo neste sentido. É se dizer: a estrutura ética que lhe fundamenta as crenças para explicar os fenômenos balizará uma escolha ou outra.
Por isso mesmo, no exemplo acima, o ponto de crítica marxista recai sobre a apreciação do resultado advindo da estrutura dita “humanista”: quando se verificar que uma minoria se sobrepuser a uma maioria submissa e conformada ter-se-á um anti-humanismo, porque elidido o potencial de emancipação do homem; eis o ponto de corte, a despeito da argumentação elaborada para se justificar tal dominação que se fez denunciada no confronto da linguagem com o real.
Desta forma, mais do que um vício interno ou ínsito ao termo “humanismo”, a variável da discussão que permite distinguir e interpretar a mensagem se insere em toda a estrutura de enunciação e mesmo de pensamento de quem utiliza o termo, assim como no contexto de proferimento do conceito, precisando-no ou não ao se discorrer e, principalmente, ao se alicerçar o discurso no termo.
Heidegger e Foucault, outro exemplo, embora confiram teores diferentes ao humanismo — o primeiro visualizando uma autoreferencialidade e convergência do homem a si mesmo com bases cartesianas e o segundo pensando relações epistêmicas de sujeito e objeto nas ciências empíricas e humanas (veja-se DUARTE, 2006) — posicionaram-se severamente adversos ao “humanismo”, vendo-lhe utilização deturpada justamente ao fundamentar justificativas para eventos tidos por distorções políticas intoleráveis e efeitos do implemento tecnológico. A ação prescrita pelos pensadores seria a de se extirpar o tão aclamado, mas pouco cumprido, “humanismo”, forma retórica vazia em vistas da prática, ou, mais perversamente: destruição real e cotidianas dos bens e valores em nome deles mesmos, apenas postos formalmente, poder-se-ia dizer, em programas.
Evidente que esta utilização do termo configura-se juridicamente indefensável, eis que o ordenamento jurídico se caracteriza justamente, dentre outros elementos, pela pretensão de efetividade e previsão de mecanismos assecuratórios da adstrição do mundo normativo ao mundo da vida; quer-se ver na realidade o que a norma impõe e tutela.
Este tipo de preocupação serve de mote para reflexões profundas tais como as de Edward Said, que aproveita, inclusive, a análise crítica de Foucault como um dos motes do seu entendimento sobre o tema.
Para o autor palestino, a discussão sobre o significado atual do humanismo é necessária tanto pela sua remissão direta às idéias de humano, de humanista e de humanitário — indispensáveis em direito internacional — quanto se tendo em vistas o enfraquecimento do termo, eis que fragilizado por seu esvaziamento e pela imagem de conservadorismo e elitismo que teve recaído sobre si.
A idéia básica de Said sobre o humanismo consiste em uma cultura humanista enfocada na coexistência e na partilha, além do que representa um parâmetro para intelectuais e acadêmicos pensarem sua ação, seus compromissos e a conexão de todo o trabalho com a atuação cidadã.
A absorção da compreensão foucaultiana por Said, levando-na adiante, representa a crença em uma “crítica do humanismo em nome do humanismo”, consoante perspicaz entendimento de Lima (2008). Para este, parafraseando Said, ao humanismo “escolado nos seus abusos pela experiência do eurocentrismo e do império, se poderia dar forma a um tipo diferente de Humanismo que fosse cosmopolita, capaz de apreender as grandes lições do passado. Isso, na medida em que esse Humanismo seja uma prática contra as idéias prontas e os clichês, que seja um meio de resistência à linguagem sem reflexão. Tomando o exemplo recente da luta sul-africana contra o apartheid, nos diz que ‘as pessoas em todo o mundo podem ser, e o são, movidas por ideais de justiça e igualdade’”.
As idéias de Said referem-se em peso ao cenário internacional, mas, igualmente, seu ponto de vista pode também auxiliar na reflexão sobre contornos do humanismo e sua discussão em âmbito interno.
O humanismo juridicamente defensável se avulta, assim, justamente como esta face legítima e íntegra do debate, de caráter cosmopolita, vinculada à crítica e avaliação dos processos sociais, confrontando discursos humanistas e sua adstrição aos resultados, que necessariamente devem refletir os valores alegados. É por meio desse controle e confronto que se poderá transcender o uso retórico do termo, moldando a realidade ao teor humanista, dirigindo-se a ação política e institucional, mobilizando-se políticas públicas e medidas advindas da sociedade civil.
É no entendimento de Said, da crítica do humanismo em nome do humanismo, que se pode ver o pressuposto necessário para reavaliar constantemente quando se está desenvolvendo um processo hermenêutico afim ao humanismo indefensável ou rumo ao juridicamente desejável.
advogado em Curitiba, especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná e mestrando em Direitos Humanos e Democracia pela UFPR
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