Resumo: A participação popular no exercício da cidadania é idealimpar para a compreensão do funcionamento dos Estados Democráticos de Direito. Deste modo, Perceber como funciona a democracia, suas fragilidades e incoerências é saber imprescindível para a percepção do sistema jurídico. O presente artigo se dispõe a articular conceitos como democracia, democracia participativa, ideologia, Estado Democrático e empoderamento, utilizando eventos contemporâneos da história nacional como exemplos para abordagem sobre o papel das massas na efetivação dos direitos políticos, com vistas a elucidar como a democracia pode apresentar-se como mecanismo apto à prover a sustentabilidade Estados. O aporte teórico contará com as construções de teóricos jurídicos e filósofos, das mais variadas épocas, que se dedicaram a apreciar o fenômeno, como Bobbio, Weber e Warat, reunindo seus pensamentos e construções teóricas para iluminar o questionamento que avulta em torno da eficácia dos sistemas democráticos, além de um breve enfrentamento das questões que relacionam democracia e ideologia.
Palavras-chave: Democracia. Empoderamento. Ideologia.
Abstract: Popular involvement in the exercise of citizenship odd is ideal for understanding the operation of the law of Democratic States. Thus perceive how democracy, its weaknesses and inconsistencies is essential to know the perception of the legal system. This article sets out to articulate concepts such as democracy, participatory democracy, ideology, democratic rule and empowerment, using contemporary events of national history as examples to approach the role of the masses in the execution of political rights, in order to elucidate how democracy can It presents itself as a mechanism able to provide the United sustainability. The theoretical framework will include the legal theoretical constructs and philosophers of various ages, who have dedicated themselves to appreciate the phenomenon, as Bobbio, Weber and Warat, gathering his thoughts and theoretical constructs to light the question that looms around the effectiveness of democratic systems, as well as a brief confrontation of the issues that relate democracy and ideology.
Keywords: Democracy. Empowerment. Ideology.
Sumário:1 Introdução; 2 Democracia representativa e obscuridades; 3 Os sistemas democráticos; 4 Mediação pedagogia revolucionária e reconstrução de vínculos em Warat; 5 Empoderamentojurídico democracia representativa e o paradigma da complexidade; 6 Considerações finais; Referencial.
1Introdução
Compreender a democracia é um dos grande desafios da contemporaneidade, seus desdobramentos, promessas não realizadas e falácias.
A história recente do Brasil, mais especificamente os eventos que marcaram o período eleitoral de 2014, demonstraram uma participação mais profusa da população o que leva alguns pensadores a questionar se fenômeno social que põe na pauta da população uma discussão mais acirrada sobre os rumos da política, ser considerado como um alavancar democrático ou seseria apenas um breve momento histórico sem efeitos definitivos na manifestação democrática.
O presente artigo se dispõe a articular conceitos como democracia, democracia participativa, ideologia, Estado Democrático e empoderamento, utilizando o aludido fenômeno como exemplo para abordagem sobre o papel das massas na efetivação dos direitos políticos, com vistas a elucidar como tem a democracia pode apresentar-se como mecanismo apto à prover a participação das populações nos sistemas políticos e apropria manutenção dos Estados.
2Democracia representativa e obscuridades
Uma das palavras mais evocadas nos últimos anos, sem dúvida alguma, é “democracia”. Registrou-se como nunca antes na história do Brasil salutar interesse, das massas, no tocante à aspectos políticos e sociais, sendo, muito provavelmente, os movimentos circundantes das eleições presidenciais, que ocorreram no ano de 2014, um divisor de águas na história contemporânea que marca a participação popular nos regimes representativos.
A razão originária do envolvimento da população divide opiniões entre cientistas políticos. Enquanto alguns creditam o fenômeno apenas ao momento eleitoreiro, como acontecimento sazonal, outros acreditam que o perfil do eleitor, de fato, tem sofrido alteração nas últimas décadas. Todavia, independe de quais tenham sido as efetivas razões para mudança da pauta popular, a política passa a fazer parte do cotidiano dos cidadãos brasileiros.
Há que se admitir que tal fenômeno goza, até certo ponto, de ineditismo. Isso é notório pela forma com a qual essa parcela, até então alheia ao discurso político, passa a interagir com as informações, de modo ativo, determinante, o que não era percebido em outros pleitos. Tinha-se a população, predominantemente, apenas recebendo conteúdos, pelos então dominantes veículos de comunicação de massa, em sua esmagadora maioria, televisivos ou radiofônicos, que são marcados pela unilateralidade do discurso, não havendo, por certo, abertura para a discordância ou construção de uma via alternativa de diálogo. Aquilo que é dito pelo âncora do jornal noturno de maior audiência passa a ser a verdade absoluta para a maioria da população, ou pelo menos, era.
Existe, portanto, uma nova realidade, na qual os indivíduos, agora dotados de recursos de pesquisa e veículos próprios de propagação de ideias, passam a questionar certos conteúdos, antes admitidos como a verdade final, lapidada e encerrada, que agora é passível de interação, cuja propagação se dá em várias frentes, não apenas unilateralmente, como outrora.
Os populares agora, em suas respectivas esferas de influência, passam a discutir sobre o que pensam a partir de suas seleções de conteúdos, expressando publicamente o que defendem, não havendo uma relação necessária com o que é determinado pelos veículos midiáticos de massa. Esses indivíduos dotados de alguns poucos recursos de busca, como microcomputadores, smartphones ou tablets[1] passam a formular suas próprias percepções e por meio de suas contas particulares em redes sociais de grande alcance[2] assumem a posição antes reservada exclusivamente aos formadores profissionais de opinião dos grandes conglomerados midiáticos.
Para alguns autores, as entranhas da democracia, seus entraves, possibilidades e impedimentos, guardam mais agruras do que o mero distanciamento participativo das massas. Warat (2010, p.15-16), por exemplo, provoca seus leitores ao questionar os fins para os quais se prestam os Estados Democráticos e seus métodos não discutidos, dissimulados. Para ele a exclusão social, em todos os sentidos (e aqui, perfeitamente se encaixam os direitos políticos) é parte das engrenagens, projetadas, para mover “as fantasias do consumo”, num cenário complexo em que “todos (estão) envolvidos em vez de serem desenvolvidos”.Logo, a atuação democrática participativa, a pouco comentada, se vazia de uma perspectiva maior,mais ampla e complexa, seria tão somente um bater de asas desprovido de direcionamento. Um agir, tão inapto à produção de resultados quanto a própria inercia.
3Os sistemas democráticos
Platão foi um dos primeiros autores a enfrentar, tecnicamente, o tema democrático, sendo a política assunto recorrente em sua obra. Pode-se dizer que a perspectiva platônica, sobre o fenômeno político e democrático, era contundente e radical. O que ocasiona até os dias de hoje certo desconforto acadêmico quando mencionada as ideias do autor sobre a questão[3].
Pode-se destacar, de modo um tanto rasteiro, que Platão era contrário à participação da população nos destinos da sociedade. Para o filósofo, a democracia não seria um sistema apto a atingir o bem comum. Seu pensamento na verdade era fundado mais no aspecto técnico que no ideológico[4]. Para ele, a política haveria de ser tratada como outra profissão qualquer, de modo que sua operacionalização não poderia ser destinada senão àqueles preparados para tanto.
Isso se justifica, também, na raiz etimológica do termo democracia. Do grego, a palavra demokratíaera composta por dois outros termos, demos e kratos. Usualmente passou-se a dizer que demos significa povo, enquanto Kratos seria equivalente a poder, governança, o que resultaria de um raciocínio apressado em; “poder que emana do povo”. Contudo, o termo demos não possuía, à época de Platão, um único teor semântico, sendo por certo, ambígua sua utilização, podendo “designar tanto ‘o povo como um todo’, i.e., a totalidade dos cidadãos, o corpo cívico, quanto ‘as pessoas comuns’, i.e., as classes mais baixas ou populares.” (FINLEY apud OLIVEIRA, p.3)
É exatamente nesse diapasão semântico que se localizava o argumento platônico de aversão à participação popular, não àquele dirigido à totalidade do povo, não que ele fosse inteiramente favorável a isso, diga-se, en passant. No entanto, muito mais contrário à participação das decisões da vida política por aqueles integrantes das camadas mais intelectualmente desprovidas dos ideais mais nobres da sociedade, e, por conseguinte, inaptos a garantir um justo governo. Celebre é, com efeito, a alegoria platônica do navio, cuja tripulação, desprovida de conhecimentos técnicos, digladiam-se entre si para apoderar-se do controle da embarcação, sendo, segundo o autor da metáfora, desastroso para o destino deles mesmos, e da própria embarcação[5], o desejo pela tomada do poder.
Não se deve, portanto, rejeitar de pronto, e, totalmente, o desprezo platônico pela democracia grega, haja vista restar em seus argumentos o mínimo de racionalidade.
Pensamento aproximado ao platônico fora desenvolvido por Weber (1999) e Schumpeter (1984). Uma vez que, para o primeiro a democracia deveria ser compreendida como mecanismo institucional, no qual certamente toda a população estaria envolvida, porém adstrita, tão somente, à seleção de políticos, não sendo possível sua participação em esferas que envolvessem decisões, sutil despreparo pelo desprezo das massas. Embora este concordasse com aquele, asseverava pensamento um tanto quanto mais radical, para Schumpeter (1984) a coletividade e sua intenção de participação era, de fato, uma constante ameaça a estrutura do Estado.
Ratificando o pensando de Schumpeter (1984), David Held, sociólogo britânico, especialista em teoria política, aponta a democracia como “mecanismo que permite o registro de desejos mais amplos das pessoas comuns, o que deixa a verdadeira política pública nas mãos dos poucos suficientemente experientes e qualificados para fazê-la" (HELD, 1987, p. 151).
Certamente, muitos pensadores se opuseram aos últimos mencionados, assim como o fizeram em relação às ideias de Platão. Todavia, a questão que resiste é, propriamente, a fragilidade do modelo participativo que se propõe ser a democracia, em razão da ignorância da população acerca dos seus próprios problemas[6]e[7]e dos mecanismos para solucioná-los.
Norberto Bobbio (1986, p.18-19), notório filósofo e historiador do pensamento político italiano, em sua obra “O futuro da democracia”, ao ensaiar, logo no primeiro momento, um conceito para democracia, esboça certa empatia com esse necessário distanciamento popular, proposto pelos supracitados autores. Pontua assim o autor:
“Quando se fala de democracia, entendida como contraposta a todas as formas de governo autocrático, é o de considerá-la caracterizada por um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos. Todo grupo social está obrigado a tomar decisões vinculatórias para todos os seus membros com o objetivo de prover a própria sobrevivência, tanto interna como externamente. Mas até mesmo as decisões de grupo são tomadas por indivíduos (o grupo como tal não decide). Por isto, para que uma decisão tomada por indivíduos (um, poucos, muitos, todos) possa ser aceita como decisão coletiva é preciso que seja tomada com base em regras (não importa se escritas ou consuetudinárias) que estabeleçam quais são os indivíduos autorizados a tomar as decisões vinculatórias para todos os membros do grupo” (grifos nossos)
Percebe-se, mesmo que indiretamente, nesse fragmento, o destaque que Bobbio (1986) dedica a legitimidade, que deve estar presente nas decisões tomadas por certos indivíduos, em face da impossibilidade, lógica, de todo o grupo decidir em uníssono sobre qualquer questão, sendo esta mesma impossibilidade aquela apontada por Platão e acentuada por Weber, Schumpeter e Held.
Para o pensando de Bobbio, a legitimidade da representação, exercida por meio da escolha popular é um dos pontosbasilares do sistema e conceito democráticos.
Essa legitimidade seria, portanto, um correspondente mínimo entre os anseios da massa e as ações dos escolhidos para dirigir os destinos do povo, em função da impossibilidade de decisão coletiva e continuada. A autorização para agir, outorgada por meio dos processos de seleção, deveria manter o mínimo de correlação com as necessidades dos que não poderia decidir o que resultaria ao fim, na promoção do bem comum.
Ainda em sua obra, Bobbio propõe uma ríspida reflexão sobre as promessas históricas que, visando avanço social e maturação existencial do ser humano, coletivamente admitido, jamais lograram êxito e, tragicamente, tornaram outra coisa, distinta e distante do ideal incialmente almejado. Assim, o autor, com nítida decepção, comenta:
“[…] A Grécia tornou-se Roma, assim o iluminismo russo tornou-se a revolução russa’. Assim, acrescento eu, o pensamento liberal e democrático de um Locke, de um Rousseau, de um Tocqueville, de um Bentham e de um John Stuart Mill tornou-se a ação de … (coloquem vocês o nome que preferirem; tenho certeza de que não terão dificuldade para encontrar mais de um). É exatamente desta "matéria bruta" e não do que foi concebido como "nobre e elevado" que devemos falar; em outras palavras, devemos examinar o contraste entre o que foi prometido e o que foi efetivamente realizado”. (1986, p.22)
Bobbio chama de “matéria bruta” o resultado distorcido implementado pelas sociedades nas respectivas tentativas fracassadas de realização de grandes e nobres ideais. Nessa senda, inclui o autor a democracia e trata o atual sistema praticado como uma matéria bruta, igualmente, distante do que fora outrora prometido.
Dentre um breve rol de falhas, que conceitua como promessas não cumpridas, Bobbio (1986) aponta a ilegitimidade do mandato dos dirigentes, que uma vez investidos do poder, decidem para si mesmos e não para a coletividade, o que para o autor configuraria o que consignou chamar de “mandato imperativo”:
“Jamais uma norma constitucional foi mais violada que a da proibição de mandato imperativo. Jamais um princípio foi mais desconsiderado que o da representação política. Mas numa sociedade composta de grupos relativamente autônomos que lutam pela sua supremacia, para fazer valer os próprios interesses contra outros grupos, uma tal norma, um tal princípio, podem de fato encontrar realização? Além do fato de que cada grupo tende a identificar o interesse nacional com o interesse do próprio grupo, será que existe algum critério geral capaz de permitir a distinção entre o interesse geral e o interesse particular deste ou daquele grupo, ou entre o interesse geral e a combinação de interesses particulares que se acordam entre si em detrimento de outros? Quem representa interesses particulares tem sempre um mandato imperativo. E onde podemos encontrar um representante que não represente interesses particulares?” (BOBBIO, 1986, p.25) (grifos nossos)
Evidencia o autor, cristalina e precisamente, o conflito de interesses que existe quando certo grupo, tendo o poder de decisão em suas mãos, o maneja, exclusivamente, em prol de seus próprios interesses, desconsiderando a vontade da coletividade, daquela parcela direta que o escolheu e da outra, que mesmo não o tendo escolhido, tendo em vistaimpossibilidade de concordância plena do povo no processo de seleção eleitoral, também se localiza como destinatária das ações dos escolhidos para o exercício da governança.
Desse modo, ainda tangenciando a ilegitimidade que eiva os mandatos imperativos, discorre o filósofo sobre o pensamento de Rousseau acerca do fracasso da democracia, extraído da obra Contrattosociale:
“Rousseau entretanto também estava convencido de que "uma verdadeira democracia jamais existiu nem existirá", pois requer muitas condições difíceis de serem reunidas. Em primeiro lugar um estado muito pequeno, "no qual ao povo seja fácil reunir-se e cada cidadão possa facilmente conhecer todos os demais"; em segundo lugar, "uma grande simplicidade de costumes que impeça a multiplicação dos problemas e as discussões espinhosas"; além do mais, "uma grande igualdade de condições e fortunas"; por fim, "pouco ou nada de luxo" (donde se poderia deduzir que Rousseau, e não Marx, é o inspirador da política de "austeridade"). Lembremo-nos da conclusão: "Se existisse um povo de deuses, governar-se-ia democraticamente. Mas um governo assim perfeito não é feito para os homens” (BOBBIO, 1986, p.42) (grifos nossos)
Para solução da controvérsia sobre o fracasso democrático, propõe Bobbio (1986) a substituição da democracia representativa por outra, a democracia direta, que seria marcada por uma participação mais incisiva da população, que, por sua vez, deveria compreender os processos e assumir uma posição de maior consciência sobre os rumos necessários a serem escolhidos. Todavia, o próprio autor pontua a dificuldade de implementação de tal ideia numa perspectiva prática; “Que todos decidam sobre tudo em sociedades sempre mais complexas como são as modernas sociedades industriais é algo materialmente impossível.” (BOBBIO, 1986, p.43).
Bobbio (1986, p.88) comenta que, reiteradamente, entre os autores políticos emerge o conceito de democracia, atrelado a ideia de “o governo do poder público em público”. Isso de modo a apresentar uma prática de decisões, realizadas pelos dirigentes, de modo aberto, claro e notório ou como assentou-se na mais atual doutrina jurídica, pautada no princípio da publicidade. Bobbio, nessa esteira, chama esse traço democrático de “poder visível”.
Porém, o autor localiza essa caracterização no rol dos insucessos democráticos. E o faz porque, para ele, há bem pouco ou nada, de visível no exercício do poder nos ditos regimes democráticos. Existe sim, segundo Bobbio (1986), um sistema engendrado de segredos que possibilitam a manutenção do poder, segredos que de forma enublada são apresentados aos populares, para neles ocasionar um senso de ordem e afastá-los da realidade fática que preocupa o governo, qual seja, um constante confronto entre a real democracia, ineficaz e suplantada pelo poder invisível, e outra, falsamente demonstrada, num latente processo de dominação:
“O confronto entre o modelo ideal do poder visível e a realidade das coisas deve ser conduzido tendo presente a tendência que toda forma de dominação, sobre as quais já me detive nas páginas precedentes, tem de se subtrair ao olhar dos dominados escondendo-se e escondendo, através do segredo e do disfarce”. (BOBBIO, 1986, p.106)
Esse processo de dominação, norteado pelo poder invisível, como sustenta Bobbio, também é comentado por Marilena Chauí (1980) em sua obra “O que é Ideologia”. Para a autora, existe um complexo sistema de contradições oriundo das ideias expostas e ocultas que orientam a sociedade, contradições percebidas ao avaliar o que se propõe e o que efetivamente se concretiza nos sistemas democráticos.
Para Chauí (1980), um sistema ordenado de ideias ou representações é desenvolvido para possibilitar o controle, exercido por parcela da população, sobre todos os demais. Logo, para que exista a aceitação, pacífica, desses outros tantos que não se beneficiam com o resultado dos governos é que se utiliza desse sistema de ideias ordenado, cuja finalidade é ocultar os reais interesses dos dirigentes, apresentando outros em seu lugar.
“As contradições reais permanecem ocultas (são as contradições entre as relações de produção ou as forças produtivas e as relações sociais), parece que a contradição real é aquela entre as idéias(sic) e o mundo. Assim, por exemplo, faz parte da ideologia burguesa afirmar que a educação é um direito de todos os homens. Ora, na realidade sabemos que isto não ocorre”. (CHAUÍ, 1980, p.26)
Aquilo que Chauí (1980) chamou de ideologia (sistema ordenado de ideias ou representações), (e,) tratado como poder invisível por Bobbio (1986), são em verdade os mecanismos utilizados para ocultar a realidade social, de modo a aquietar a população enquanto ficam livres para decidir, sem qualquer espécie de consulta, os detentores do poder. Partindo desse raciocínio, entende Chauí, ser o próprio Estado, uma grande ilustração:
“Estado aparece como a realização do interesse geral (por isso Hegel dizia que o Estado era a universalidade da vida social), mas, na realidade, ele é a forma pela qual os interesses da parte mais forte e poderosa da sociedade (a classe dos proprietários) ganham a aparência de interesses de toda a sociedade”. (1980, p.27) (grifo nosso)
Nesse sentindo, coadunam os autores, ao tentar elucidar que o fenômeno de participação social, anunciado como democracia, na verdade é tão somente uma forma pela qual participa a sociedade em uma camada acima da realidade fática, numa espécie de zona de ficção, elaborada para que seja legitimada a transferência de poder. Tendo, por fim, o Estado meramente “função apaziguadora e reguladora da sociedade”, como pondera a filósofa, não muito distante do pensamento de Bobbio (1986):
“O confronto entre o modelo ideal do poder visível e a realidade das coisas deve ser conduzido tendo presente a tendência que toda forma de dominação, sobre as quais já me detive nas páginas precedentes, tem de se subtrair ao olhar dos dominados escondendo-se e escondendo, através do segredo e do disfarce. (p.106).” (grifo nosso)
Desse modo, poder-se-ia, apressadamente, concluir pela inviabilidade da democracia, numa enviesada concordância com o pensamento platônico, ou aceitação final dessa democracia enublada, vez que a única via possível para concretizá-la seria a lucidez intelectual, de toda a população, que resultaria na compreensão dos mecanismos e assuntos necessários ao manejo da política. O que para grande parte dos teóricos determinaria como inconcebível.
4Mediação, pedagogia revolucionária e reconstrução de vínculos em warat
O quadro de alienação e distanciamento, segundo Warat (2010) seria contornável apenas com uma abordagem mais complexa, haja vista não estar descolado de outros tantos sistemas ideologizantes.
Para o Ilustre Professor, as vitimas do engendrado processo de distanciamento semiótico no qual se localiza o direito são, primeiramente, os seus operadores qualificados, e num segundo plano, o povo[8]. A própria dogmática jurídica seria um imenso ambiente de falácias disposto de modo à criar ficções com finalidades bastante rígidas.
“O caso da linguagem jurídica é muito curioso, antes das primeiras aproximações da filosofia do Direito à linguagem, os juristas construíram uma linguística muito particular, que mais que de suporte reflexivo lhes serviu de ideologia encobridora, ou suporte ao seu sistema de ilusões. A linguística sem linguística dos juristas os levou a aceitar ,quase pacificamente, algumas ideias bastante absurdas ,quase insustentáveis fora das autoilusões referenciais dos operadores do Direito, sobre as características ,estrutura, funcionamento e efeitos do sentido das linguagens com que operavam” (WARAT, 2010, p.76).
O processo de ignorância, linguística, não afetaria apenas as massas mais distantes das minúcias do sistema jurídico, os próprios operadores qualificados seriam igualmente alienados, em graus distintos, obviamente, segundo Warat (2010, p.17), haja vista ser o direito “somente um holograma”.
Nesse diapasão, o fenômeno político, o exercício da cidadania, seria apenas uma das manifestações desta falsa percepção.
Como alternativa, dentro de sua teoria, para a mudança do paradigma geral de ideologização, propõe Warat (2010, p.18) a “mediação como pedagogia revolucionária de reconstrução dos vínculos esmagados”.
A mediação seria o fenômeno que suplantaria o próprio direito, um novo formato, demasiadamente complexo, por sinal, e assustadoramente simples: paradoxal.Neste sistema, o individuo não delegaria os saberes, deveria ater-se em dominá-los. O autor evidencia que hoje, a efetivação dos direitos sempre demanda a intervenção de terceiros e outros terceiros e mais terceiros, sendo o sistema jurídico um complexo de outros, em que o individuo nunca sabe o todo sobre sua esfera de direitos.
A posta de Warat (2010, p.24), com alternativa para este sistema fracassado seria a alteridade:
“É necessário apostar na cultura, na alteridade, no desejo. A resistência cultural. A cultura da paz, da mediação, da alteridade, do amor. A resistência da paz. A mediação dos excluídos.”
No entendimento de Warat (2010) a mediação seria manifestação simples, porem eficaz. Quando o individuo interage com o grupo, sendo parte ativa do grupo e empática.
A própria ideia de alteridade proposta pelo iluminado pensador, inserida no contexto desta mediação, traz a tona a sua sugestão sistemática. A saber: o individuo somente poderá se perceber plenamente (o eu-individual) quando perceber o outro, o grupo, os demais, enxergando-se no todo (eu-coletivo). A mediação seria então um sinônimo de empoderamento jurídico.
Carece então os conglomerados de uma cultura de resistência, a mediação dos excluídos:
“A sabedoria dos contágios. Uma cultura que não alimente a soberba que vira estátua; uma cultura onde as estátuas, como diz Marcos, só sirvam para que os pássaros se caguem nelas. Uma cultura de um pluralismo de resistências. Resistir em todas as frentes, nos mínimos detalhes, como o emprego de expressões que para os valores do já estabelecido resultem grosserias (…) acredito que a resistência pode começar a ser exitosa quando as pessoas começarem a tomar conta de seus próprios conflitos, e de seus próprios desejos” (WARAT, 2010. p.24-25).
Assim, a que se deve resistir? À inercia, à ignorância delegada e fomentada, àdogmática jurídica que perpetua sistemas e regimes fadados ao fracasso e a manutenção das distancias.
Quando o individuo decidir olhar a sociedade como ele é, e não como deve ser, segundo Warat (2010) estará olhando para si mesmo de modo construtivo, de modo à reconstruir vínculos esmagados pelos sistemas alienantes. Sendo este movimento, unicamente praticável, se, todos os que integram o grupo, num movimento gradativo, passem a perceberem-se como sujeitos do processo e não como meros expectadores.
Eis o grande impedimento anunciado por Platão.
Eis o âmago da promessa reticente em Bobbio.
Todavia, Warat (2010, p.25-26) anuncia um método embrionário sobre o qual se sustentaria este empoderamento jurídico:
“A diferença que prioritariamente se tem que introduzir passa pelo esforço de elaborar uma teoria desconstrutiva, contradogmática do direito e da sociedade. Essa teoria desconstrutiva se constitui num espaço de intersecção entre a educação, a política e o Direito (a encruzilhada dos Direitos Humanos). A partir desta articulação abrem-se várias trilhas de produção de diferenças. Para começar as três instancias que se articulam transdisciplinariamente teriam que conjugar seus objetivos contando cada uma delas com concepções apoiadas e derivadas de uma alteridade sustentável”.
O autor, deste modo, propõe o paradoxo método que ao tempo em que se mostra simples, torna-se altamente complexo, em sua eventual execução; descontruir toda a noção de sociedade hoje vigente, apoiada numa ideia de Direito que serve tão somente como instrumento legitimador e de manutenção, para em seu lugar instaurar uma ordem em que se educa o sujeito para o autoconhecimento, de si mesmo, enquanto elemento de um todo maior, a alteridade, seguindo da difusão da consciência de sua atuação (política) na gestão de seus desejos, interesses e necessidades em equilíbrio com o grupo, em relações horizontais e não verticais, em ciclos cada vez maiores, como ondas, continuas, interdependentes e sustentáveis.
5 Empoderamento jurídico,democracia representativa e o paradigma da complexidade
Na contramão do pensamento que nega a possibilidade de uma efetiva democracia e – aindadistante do pensamento de Warat (2010) –, despontam alternativas, originárias propriamente dos movimentos sociais, inicialmente discretas, mas que podem resultar numa possibilidade concreta de participação. Uma delas é o fenômeno que vem sendo chamado, em Língua Portuguesa, de empoderamento.
Diferentemente do ocorrido em outros períodos históricos, tem-se registrado um interesse peculiar da sociedade civil pelo campo político. O que outrora era admitido como conteúdo exclusivo para grupos intelectualizados passa a preencher conversas corriqueiras em qualquer ambiente, com ou sem rigor técnico, percebe-se que na pauta nacional, fora acrescido o assunto “política”.
Tal fenômeno, quando isoladamente considerado, certamente não será considerado como algo novo, por ser sempre recorrente em períodos isolados e pontuais, geralmente nas proximidades do período de eleição, quando a temática invade os telejornais. A diferença (que se é) percebida, nos últimos anos, é o interesse duradouro e resistente pelo assunto e o teor de envolvimento que manifesta a população. Quando se verifica a continuidade da discussão do tema, mesmo quando a mídia decide “mudar as pautas da sociedade”, em um movimento popular que sinaliza um inédito poder de escolha popular dos assuntos que devem ser tratados como relevantes.
Embora não exista um consenso entre os teóricos acerca do conceito de empoderamento, Horochovski (2006,p. 4-5) converge com propriedade vários pontos de vista de modo a traçar um mínimo conceitual que pode oferecer uma compreensão básica sobre o que seria o fenômeno:
“Empoderamento é um processo intencional e contínuo, centrado na comunidade local […] envolvendo o respeito mútuo, a reflexão crítica, a atenção e a participação, por meio do qual as pessoas a que falta um acesso a uma fatia igual dos recursos obtêm maior acesso e controle sobre tais recursos […] trata-se, aqui, da constituição de comunidades responsáveis, mediante um processo no qual os indivíduos que as compõem obtêm controle sobre suas vidas, participam democraticamente no cotidiano de diferentes arranjos coletivos e compreendem criticamente seu ambiente”.
E ainda:
“Empoderamento implica muitas vezes ultrapassar os instrumentos clássicos da democracia representativa, tendo por base um aumento da cultura política e do capital social. Criam-se novas institucionalidades […] dilata-se o componente participativo das políticas públicas, mediante a publicização dos conflitos e dos procedimentos de participação” (HOROCHOVSKI, 2006, P.5).
Alguns pontos, das considerações de Horochovski (2006) merecem relevo. Aponta o autor que é possível perceber o empoderamento quando o modelo clássico de representatividade começa a ser quebrado, a saber, quando a população vai além da mera escolha e passa a policiar a atitude dos selecionados. Aumenta-se também a cultura política(,) quando o interesse pelos assuntos passa a crescer sem que necessariamente estímulos externos sejam percebidos[9], dilatando-se o espectro político da população pelo próprio interesse popular, o que necessariamente ocasiona uma propagação maior de conflitos, inerentes a discussão e confronto de interesses.
O quadro traçado pelo autor reflete aqueles acontecimentos que marcaram o período eleitoral de 2014 no Brasil.
Como nunca antes visto no país, o diálogo, por vezes politizado, por vezes agressivo, marcou todos os ambientes e praticamente toda a sociedade civil foi tragada pela discussão e, não findou o fenômeno quando concluído o pleito eleitoral. Sendo dilatada esta experiência para além do intervalo necessário ao sufrágio universal, como de costume ocorria.
Todavia, não é a discussão política em si que configura o empoderamento que se intenta elucidar neste breve ensaio, e sim o controle sobre a pauta que passa a exercer parte da sociedade.
Novos veículos surgem e os antigos conglomerados passam a perder o controle da opinião publica. Os ditames, outrora eficazes, perdem sua força diante dos novos contornos da sociedade civil, que agora brada com maior volume suas demandas que, por vezes, não ecoam naqueles veículos. Vislumbra-se uma ruptura.
Horochovski (2006, p.9) assevera que empoderar-se é ampliar recursos aptos a dotar os indivíduos de voz. Voz esta que reverbera influencia e possibilita a ação, a decisão nos processos, uma efetiva participação, notadamente, nos temas que afetam a vida desses agentes.
E quando a voz que precisa reverberar é aquela que articula os saberes jurídicos, dotando o individuo do conhecimento sobre si mesmo e sobre o coletivo, num ambiente de articulação jurídica, poder-se-ia considerar tratar-se do empoderamento jurídico.
Poderia, então, esse empoderamento, jurídico, gradualmente percebido na sociedade civil manifesta uma cada vez mais crescente onda de exigências, construções e demandas. Em que os sujeitos evocam a representatividade para si mesmo e para sua esfera deatuação, criando relações, jurídicas, cada vez mais complexas.
Esta complexidade, cada vez mais notória tem alterado os contornos epistemológicosdo conhecimento jurídico, revelando as fragilidades de um sistema que não foi pensado para que as vozes se empoderassem, construído para quietudes e silêncios, agora em ruídas. O paradigma da complexidade, hoje uma realidade discutida nos círculos jurídicos é percebido, por alguns, como problema, como desafio a ser sanado, dada a eminente incapacidade do direito em coexistir com o fenômeno. No entanto, para alguns jusfilósofos seria o limiar de um novo período: de mediação, de empoderamento dos excluídos.
6Considerações finais
Está eivada a democracia de um vício fatal: a ignorância.
Se, num futuro obscuro, superada a ignorância, ainda sim, em risco caminharia o governo do povo, se reiterado, mesmo que sutilmente, o desprezo pelo ideal coletivo.
Quando o conhecimento sobre os processos não é recurso disponível ao ‘povo’ e este, alheio ao que de fato ocorre, passa a interagir com ficções criadas especialmente para prover a falsa percepção da realidade, tem-se a dominação em lugar da democracia. Por isso mesmo, entendeu Platão pela impossibilidade de participação do povo no processo democrático, pois entendeu que a grande falha, não está na dominação, como auferiu Chauí, mas sim, no desinteresse que o próprio povo nutre, na ausência de força suficiente dedicada a compreensão das entranhas do poder.
Seria essa inércia, esse descaso, que fomenta a dominação e fortalece o poder invisível que coordena a sociedade, como aduz Bobbio (1986), haja vista ser indiscutível a necessidade de condução da sociedade, por decisões, de alguma forma por ela emanada.
Democracia e empoderamento são, portanto, conceitos distintos, vez que esse movimento é bem menos complexo que aquele. Todavia, é possível vislumbrar na tomada do conhecimento, uma possibilidade de frustrar a constatação platônica e prover um certo otimismo teórico à Bobbio, no tocante ao débito que a democracia sustenta, com suas promessas não cumpridas. Poderia, numa perspectiva otimista, o empoderamento ser recuso apto a iluminar a participação da sociedade civil e dotá-la de condições para a quebra do nefasto ciclo ideologizante, muito bem exposto por Chauí e Warat.
Sendo assim, não seria prudente afirmar que os eventos recentes da história política nacional[10] sejam a materialização de uma nova democracia, ou a efetivação da existente, pois enquanto perdurar a ignorância não há que se falar em efetiva democracia. Isso porque, apenas o conhecimento, o direito à alteridade, é elemento capaz de prover a visão necessária ao povo para desvencilhamento do dito poder invisível que o controla.
Logo, somente haverá que se falar em democracia, em sua concretude, quando o indivíduopuder articular os conceitos políticos, ou o mínimo necessário à sua compreensão, com a mesma propriedade com que trata as trivialidades do cotidiano. Nesta senda, a despeito do que defendia Platão, não são os conteúdos políticos impossíveis de serem apreendidos pelo homem comum, bastando-lhe que sejam oferecidos os recursos mínimos para tanto, numa ruptura dos processos ideologizantes. Uma alegórica abertura de olhos e consequente percepção da existência do poder invisível por aqueles que outrora dominados desconheciam tal realidade.
Advogado, Professor universitário, Bacharel em Direito. Especializando em Gestão de Cidades pela Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina (FACAPE), Especialista em Direito Constitucional Aplicado pela Damásio Educacional, Mestrando em Psicologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF).
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