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Joseph Beuys, escultura social e o direito

Resumo: poderiam concepções artísticas indicar sistemas jurídicos? O artigo busca responder a esta pergunta por meio de investigação da proposta artística de “escultura social” do artista alemão Joseph Beuys.


Palavras-chave: escultura social; Joseph Beuys; filosofia jurídica.


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“1. Conceptual artists are mystics rather than rationalists. They leap to conclusions that logic cannot reach.”


SOL LEWITT, Sentences on conceptual art. Art-Language, England , May 1969.


Poderiam concepções artísticas indicar sistemas jurídicos? A pergunta aparentemente se sugere um tanto confusa, mas a sua resposta pode render algumas ideias pertinentes.


Situar a questão em um plano epistemológico facilitaria a abordagem. Uma separação entre aspectos teóricos e práticos também serviria, ao menos, para se refletir livremente sobre o problema. Com isso, o impacto sobre o olhar mais pragmático seria menos incidente.


Ademais, “concepções artísticas” e “sistemas jurídicos” são expressões amplas, de modo que alguma precisão é necessária, ao menos para o contexto deste breve artigo.


De um modo geral, tomar-se-á “concepções artísticas” por modos de entender o mundo a partir de uma forma particular de se produzir conhecimento, qual seja, a expressão artística, ao compasso de “sistemas jurídicos” serem compreendidos como complexos hermenêuticos que enfoquem concepções humanas sobre conduta e convivência — a sanção não será considerada como preponderante, a despeito de toda a teoria jurídica existente e consolidada neste sentido.


A recorrência ao plano epistemológico, como dito, facilita o trabalho sobre a questão porque se coloca o problema em plano de maior maleabilidade dos conceitos, posto que se está pensando em sistemas sem a necessária adstrição a um modelo vigente, o que demandaria uma busca de maiores ajustes e adequações para a ordem das coisas tais como são.


A filosofia do direito, como campo criativo e especulativo por excelência, permite alguns pensamentos e mesmos devaneios sobre as possibilidades e limites de um saber jurídico menos vinculado aos parâmetros positivos e aberto aos átrios das visões de múltiplas disciplinas (não que se restrinja a isso, sendo uma de suas possibilidades).


No campo das percepções artísticas, interessante observar que os artistas condensam visões e compreensões de mundo, de modo que seus trabalhos apresentam um excerto de práticas e produções que revelam preceitos gerais sobre as relações entre os homens, e destes entre as coisas, fixando dinâmicas, ordens, hierarquias e liberdades.


Muitas vezes, as concepções artísticas transcendem os limites da preocupação estética e formal de construção de suas mensagens, atingindo âmbitos de entendimento social, político, econômico, e mesmo jurídico, ainda que estas formas se apresentem de modo mais ou menos polarizado.


O certo é que as obras de arte, por suas peculiaridades enunciativas e suas qualidades perceptivas, permitem o acesso dos espectadores a dimensões do conhecimento que não se pode vislumbrar por meio de outras formas do conhecer. Com isso, a arte ganha em especialidade e em peculiar rumo de sentidos que pode emanar, atingindo visões que por outros meios não se alcançariam.


Com a abertura deste feixe de conhecimentos artísticos, é de se perguntar se, de algum modo (ou, quem sabe, se de modo algum), tais linhas podem se cruzar com elementos de preocupação do direito, sua filosofia ou mesmo sua ciência. No fundo, a pergunta busca visualizar em que medida os vasos podem ser comunicantes e de que modo se dá a mudança e intercâmbio de possibilidades cognoscitivas.


Partindo do pressuposto de que o real seja essencialmente complexo, e a inteligência se propõe a enfrentar esta amplitude de movimentos — ainda que probabilisticamente fadada ao insucesso de apreensão total — os cruzamentos de saberes permitem, se não esgotar a diversidade de modalidades, ao menos qualificar algumas leituras, compatibilizando-nas com os contornos dos objetos com que se interage e que, de alguma maneira, se quer dominar perceptiva e linguisticamente.


Um exemplo interessante de como os feixes arte e direito podem se comunicar é o trabalho do artista contemporâneo alemão Joseph Beuys (1921-1986).


O primeiro dado inusitado é que nos anos 1970 o artista se candidatara a deputado do Parlamento Europeu, tendo por base política a defesa do meio ambiente e da democracia direta em um consolidado programa artístico.


Sua concepção de mundo, todavia, parece ser o foco mais interessante para a discussão aqui posta, tanto que seu mote de ação se fez por uma inquietação ante o estado do conhecimento de sua vivência.  


“Beuys recorda sempre que, antes de dedicar-se à arte, se interessou pelo estudo da ciência. Em ambos os casos, adverte, a compreensão geral de ambas era igualmente convencional, sem futuro, e que era indispensável trabalhar-se uma nova visão de ambas práticas humanas, saindo-se do encarceramento reducionista resultante de dezenas de anos de falta de imaginação e isolamento”. (GLUSBERG, 2007, p. 131).


Pois bem, o ponto de inflexão a ser visto é que suas percepções políticas seriam então, de modo genial em sapiência de arte, transformadas em “escultura social”, grupos de pessoas pensantes postas a discutir extensões de definição e as práticas de arte e de ciência, tendo por fundamentos o debate e a pesquisa de alternativas para os sistemas de que então se tinha conhecimento. A vida, a sociedade, o espaço da convivência tornados obra de arte.


Outra característica que merece destaque é a pretensão de “[…] fusão de todas as atividades por uma sociedade mais humana” (GLUSBERG, 2007, p. 131), de modo que na “escultura social” se encontrariam pessoas dedicadas a cederem o melhor de si, eliminando-se as negativas discrepâncias e ressaltando-se as coincidências, segundo o juízo da “unidade na pluralidade”.


A “escultura social”, assim, condensaria um tipo de ação artística, baseada em uma visão ampla do que poderia ser a arte. Como destaca Glusberg (2007, p.131), Beuys partira de um entendimento segundo o qual a arte seria fenômeno antropológico destinado ao preenchimento de “duas formas de solidão”, quais sejam: da arte, isolada da sociedade e recantada em nichos próprios; e do indivíduo, encarcerado em seu trabalho e ocupações cotidianas.


Além disso, se baseara Beuys em pressupostos revolucionários franceses (liberdade, igualdade, fraternidade ou solidariedade), compreendendo-lhes como de obrigatório funcionamento simultâneo e distinto em suas formas. Ainda, dever-se-ia pensar tais postulados em um contexto cujo ponto de partida e método de desenvolvimento seria o seguinte.


“O ponto de partida é a arte ou a criatividade e não há forma de atividade humana que não possa ser incorporada no que Beuys chama de ‘cooperação verde’. O primeiro ato artístico, criativo, é o pensar: a geração de novas ideias e de novas soluções é a base do método, o que também inclui o falar, o conversar. Beuys entende que não se pensa a fundo em meio ao silêncio e sim através da fala e da discussão.” (GLUSBERG, 2007, p. 132).


Desta sorte, ao revalorizar o pensamento e a fala, o artista, com muita filosofia, busca uma verdadeira revitalização do ser humano e do ambiente em uma cadeia incessante de comunicação interdisciplinar e intergrupal. A transformação da sociedade, ou, pode-se compreender, a construção da “escultura social” pensada pelo artista-filósofo, se realizaria por meio de um processo não violento.


O repúdio ao apelo à força física se assenta em dois pressupostos: “a dignidade do homem se resume no princípio da inviolabilidade e intangibilidade de sua pessoa” e “o emprego da violência não serve senão para identificar-se com as sociedades a que se deseja modificar” (GLUSBERG, 2007, p. 132).


Ora, tais proposições de Beuys permitem visualizar um interessante sistema de pensamento que, por seus intensos vínculos políticos, faz pensar em um sistema jurídico criado por meio de uma expressão artística.


Além dos pressupostos acima delimitados, Glusberg (2007, p. 133) destaca mais algumas propostas de Beuys, tais como o estabelecimento dos “corpos intermediários” (sociedades de fomento e cooperativas), de entidades e movimentos conservacionistas e partidos que se prestem ao diálogo e à consulta, em uma união de forças e coalizão para a democracia.


É de se destacar que tal noção de “escultura social”, enquanto projeto artístico, só pode ter moção se os integrantes do projeto forem artistas. Neste ponto entra a noção de que “cada homem é um artista” (ROCCA, 2007-2008; VON BRÜGGE, 1984), na continuidade da arte e vida.


Como se pôde ver das noções artísticas de Beuys, uma criação artística pode coordenar um sistema jurídico na medida em que se percebem princípios gerais de organização social ínsitos ao modelo de “escultura social”.


O projeto estético se orienta por finalidades (tornar a sociedade mais humana, as pessoas mais próximas, a operacionalidade conjunta dos ideais de igualdade, solidariedade e liberdade), prevê organização de grupos de pessoas com orientação teleológica e fixa critérios invioláveis de convivência (supremacia da pessoa e sua inviolabilidade e não-violência nas intervenções, baseadas no diálogo crescente).


Assim, ao fim (provisório) volta-se ao começo (provisório): poderiam concepções artísticas indicar sistemas jurídicos? Parece que o exemplo de Beuys e sua “escultura social” são um forte indício de resposta afirmativo-positiva ao problema — sem que, com isso, se queira exaurir a questão — desde que a noção de sistema jurídico não se restrinja a um sistema de fontes do direito positivo, apenas, compatibilizando-se, sim, com formas distintas de organização e interação social, no qual a escultura avulta como criativo e instigante modelo proposto.


 


Referências bibliográficas:

GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. Tradução de Renato Cohe. São Paulo: Perspectiva, 2007.

ROCCA, Adolfo Vásquez. Joseph Beuys. «cada hombre, un artista». Los Documenta de Kassel o el Arte abandona la galería. Revista Almiar, n. 37, dez. 2007, jan. 2008.  Disponível em: <http://www.margencero.com/articulos/new/joseph_beuys.html>. Acesso em: 06 ago. 2011.

VON BRÜGGE, Peter. Die Mysterien finden im Hauptbahnhof statt. Der Spiegel, n. 23, 04 jun. 1984. Disponível em: <http://www.spiegel.de/spiegel/print/d-13508033.html>. Acesso em: 06 ago. 2011.

Informações Sobre o Autor

Eliseu Raphael Venturi

advogado em Curitiba, especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná e mestrando em Direitos Humanos e Democracia pela UFPR


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Equipe Âmbito Jurídico

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