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O direito e a body art

Resumo: no artigo se abordam algumas interseções entre direito e artes visuais, no contexto da expressão de arte contemporânea da body art, para se tracejar alguns problemas de contato dos campos de conhecimento, em especial, no tocante às perspectivas de acesso ao problema do homem, insculpido no ordenamento jurídico quando da inserção da centralidade do metaprincípio da dignidade da pessoa humana, de modo que se recorre às possibilidades da filosofia jurídica para contribuir com a visualização de modos de enfrentamento dos temas jurídicos pelo recurso a outras formas e conhecimento, no caso, a artística.


Palavras-chave: body art; arte contemporânea; filosofia jurídica.


O corpo de problemas tratados pelos artistas vinculados à discussão da body art[1] permite depreender algumas problemáticas caras aos juristas, igualmente, ainda que sob trato e perspectivas um tanto distintas.


Ambas categorias de agentes sociais e produtores de conhecimento abordam problemas similares, só que por meio de instrumentos e finalidades distintos. Sendo assim, recorrer uns à interpretação dos outros pode ser o modo de alcançar percepções mais qualificadas e diversificadas de problemas compartilhados[2].


Conforme Guinsburg e Cohen, no livro de Glusberg (2007), referindo-se à arte da performance, nela se poderia visualizar um gênero de arte que atribui alta relevância aos aspectos simbólicos e ritualísticos, ao compasso de impacto emocional e alcance antropológico, assim como envolvimento interdisciplinar e extensões semiológicas na produção de seus eventos-ação.


Esta interdisciplinaridade, visível no espectro dos trabalhos produzidos neste contexto, permite-nos ver uma aproximação com o direito, em orbe de reflexão filosófico-jurídica.


Ao dizer de Battcock (2007, p. 145), “à medida que os artistas se aproximarem dos fatos humanos básicos, atrás da cultura, dos nacionalismos e do individualismo, eles vão penetrar num lugar que até hoje ainda não foi descoberto”.


A frase do pensador é provocativa. Em tempos de saturação de conhecimentos científicos e de disponibilidade de informações sobre até aquilo que se aparece inimaginável, a perspectiva de descoberta e acesso humano a lugares inóspitos parece improvável, mas, mesmo assim, as práticas artísticas, inclusive as de um passado remoto no tempo e no espaço, têm permitido revisões e renovações de conceitos.


Ou seja, a perspectiva construída pelo conhecimento artístico expande horizontes, mesmo que se fruam produções pretéritas, redescobrindo-se tanto elementos do passado cultural quanto se vislumbrando as possibilidades do novo, do útil, do inusitado e do criativo, com o tempo ressignificando o tempo.


Evidentemente, a referência supra transcrita da afirmação feita a Battcock se insere em um contexto de reflexão. O autor estivera debatendo a arte corporal. O foco deste artigo, por sua vez, é delimitar, em alguma medida e mais problematicamente do que em trabalho de construção informativa exaustivo, as vias de interseção direito e body art. Por isso mesmo, o foco apresentado é curto, restrito e bem limitado.


Battcock (2007, p. 139) indica a perspectiva histórica como modo de conhecimento da arte corporal. Para o autor, a aparição de expressões deste gênero de arte, embora de nominação no século XX, decorre de práticas reiteradas em largo tempo. Assim, “dizer que body art é a arte que envolve o corpo do artista e sua temática é claramente insuficiente” (2007, p. 139). Identificando a dificuldade de definição desta arte, o autor prefere indicar que se deve ter em mente a relação travada pelo artista com o seu corpo; o tema, a referência, o foco é o corpo do artista. Isto aproximaria a arte da performance, do vídeo e manifestações da dança à body art.


Pois bem: neste primeiro momento de fixação conceitual, em que apresenta o autor tal premissa, parece que ao direito nada se faria referência. Imagine-se a afirmação de um ramo do direito em que a definição reside na identificação de manifestações em que o jurista problematiza o seu corpo. Soa não apenas ilógico como muito cômico. Neste ponto procedimental, realmente, a body art pouco ou nada diria ao direito, pois além de não lhe apontar quaisquer técnicas que possam ser aproveitadas, traz temática completamente estranha ao objeto científico. Diferentemente, por exemplo, de uma manifestação literária que, pela via da escrita, qualificaria o jurista ao menos com a habilidade de dominar diferentes vocabulários ou ordens enunciativas lingüístico-verbais.


Contudo, a body art não se resume a esta dimensão apontada. Ainda no dizer de Battcock (2007, p. 140), há de se visualizar que a body art vale-se do corpo em uma dimensão especulativa e experimental: “portanto, sua verdadeira natureza é de ser atrativa para artistas interessados no novo, artistas dispostos a ter chances e cometer erros” (BATTCOCK, 2007, p. 140). Acresceu, pois, uma dimensão da criatividade, dos riscos e da busca por novas ideias, o que se aproveita em termos epistemológicos, de produção de conhecimento.


Sendo assim, junte-se a primeira possibilidade, neste artigo descartada, qual seja a da autoproblematização do próprio corpo (que, em verdade, é uma dimensão rasteira e quase superficial da arte corporal), com esta segunda dimensão, de campo propício à experimentação.


Aí, evidentemente, o jurista não procurará emular estratégias do artista, sob pena de se desvincular de seus objetos e se imiscuir em um nada, nem jurídico nem artístico; em termos de procedimento ele nada tem a aprender com os artistas, a não ser que o ser humano é capaz de formular as mais diversas soluções criativo-expressivas e enunciativas. Porém, mesmo assim, poderá lançar seus olhares à produção destes artistas e apreender algumas dimensões de seus trabalhos que enriquecem o conhecimento do ser humano. E então a juridicidade (pela via epistemológica) da discussão começa a se aproximar: é interessante ao direito melhor e mais conhecer o ser humano? Diz o trabalho do direito respeito às pessoas, ou é um emaranhado de linguagem sem vínculo com o real da vida?


Pode ser que sim, pode ser que não. Vai do quanto de realidade cada um pode agüentar, e do tanto que cada jurista pode se iludir ou não pelas formas e segurança jurídicas que tiram as coisas do tempo e espaço lançando-nas nas tramas da argumentação, da linguagem e da interpretação. O enfrentamento filosófico e a capacidade de manter-se são (e salvo?) ante todas as violações jurídicas pecpetíveis vai ao estômago de cada um — não à toa que a alienação é sala lotada e a filosofia jurídica tão evitada e minorada.


Enfim, Battcock (2007, p. 141) indica que as produções da arte da performance e da body art “vão engajar a imaginação de mais artistas, por um tempo maior para a arte do futuro, do que qualquer outra forma de arte de nosso tempo”. A afirmação é forte, e pode-se acrescer que não apenas será fomentada a imaginação dos artistas como a de seus espectadores, principalmente no que disser com a temática das produções. Aqui, mais uma vez, parece, fortalece-se o interesse jurídico da body art: pela temática veiculada nas produções deste gênero artístico peculiar em relação às formas tradicionais do desenho, pintura, fotografia, cinema etc.


Ademais, o autor parte para explorar uma inflexão produzida pela performance e pela arte corporal: a superação de um paradigma moderno de arte (aquele segundo o qual a obra de arte é o que ela é, por exemplo, uma pintura é uma pintura e nada mais que esteja comportado em seu potencial metafórico).


Reconhece Battcock, assim, a presença do corpo, contudo, não identifica este elemento único como especificidade da body art, o que redunda na dissociação da natureza do trabalho de arte de sua mídia. Ou seja: uma body art pode se manifestar não apenas na intervenção sobre o corpo pura e simples, podendo se expressar em fotografia, em pintura, em desenho, em escultura, e permanecer sendo body art, e não fotografia. Percebe-se, pois, que está em jogo o artista produzindo conhecimentos, procedimentos, refletindo e interagindo sobre problemas por meio da linguagem artística.


A superação desta premissa leva o autor a afirmar que “uma mídia pode, de fato, ser interessante e desafiadora quando tenta algo QUE ELA NÃO É” (BATTCOCK, 2007, p. 142) [grifos em maiúsculas do autor]. Esta superação de fundamento teórico permite visualizar, novamente, o préstimo epistemológico advindo de apreciação e olhar atento às manifestações históricas do gênero artístico.


Aliás, permite questionar se a grande mídia do direito, qual seja, o processo, também não comportaria uma dissonância cognitiva e certos pontos de aberração ante o direito material e os caracteres teleológicos e axiológicos ínsitos à arquitetura jurídica.


O ponto posto no início do texto de Battcock, qual seja o da perspectiva histórica, é retomado pelo autor ao entender que desde sua origem (reconhecendo a intangibilidade e a reinventividade deste começo) a arte carregou a característica de trazer consigo, em suas expressões, a relação do produto com o produtor de arte.


O encontro deste “começo” é problema levantado pelo autor. Para ele, “os artistas independentes devem buscar um princípio para sua arte. Para cada artista existe um começo diferente e cada um busca um caminho que seja inédito e pouco trilhado pela arte, pela estética e pelas complicações da sofisticação” (BATTCOCK, 2007, p. 143). Esta busca se coadunaria com as funções e objetivos da arte e, ainda, remeteria o artista ao campo fértil de possibilidades do momento em que, de ancestralidade e primordialidade, por não haver cultura, haveria fertilidade. “Antes do homem tomar consciência da arte, ele tomou consciência de si mesmo. A autoconsciência é, então, a primeira arte. Esta é a arte original, senão o pecado original. É uma arte entre a respiração e a consciência” (BATTCOCK, 2007, p. 143).


Em certa medida, pois, Battcock lança o problema a ser resolvido criativamente pelo artista para um campo de meditação filosófico de busca da identidade de seu próprio problema advindo da autoconsciência, ao compasso de um enfrentamento material, uma vez que “o corpo foi o objeto para a arte e também seu material o material mais natural que existe” (BATTCOCK, 2007, p. 144). A respiração emerge como grande questão fundamental nesta busca de princípios humanos. Interessante notar que, como destaca o autor, “na arte corporal e de performance, a figura do artista é ferramenta para a arte. É a própria arte.” (BATTCOCK, 2007, p. 145).


A decorrência lógica destes raciocínios, conforme pontua Battcock (2007, p. 145) seria concluir por uma prática egomaníaca do artista, em que se teria uma exaltação ou glorificação do ego artístico do artista. Como se afirmou dantes, o enfoque deve recair sobre os “fatos humanos básicos”, o que leva o artista a outro plano de discussão que, em alguma medida, transcende a sua figura.


Não se olvidou do direito neste cenário. Como se pôde observar, a ideia de regresso do homem é ínsita à prática da body art, ao menos em sua forma vanguardista e histórica, enquanto gênero artístico assim nominado e pontuado na história da arte.


Partindo-se deste pressuposto, indicado por Battcock, bem como os avanços perceptivos que este autor permite visualizar (indicando um modo de se ver e apreciar tais manifestações), pode-se concluir que a body art permite ao jurista conhecer e conscientizar-se da complexidade humana por meio de construções enunciativas que não apenas aquelas construídas pelos seus pares — porque, afinal, toda teoria jurídica desenha um homem por debaixo de suas palavras.


Isto leva a noção de intersubjetividade ao campo próprio do enfrentamento do problema humano: um campo de diversidade e de muitas vozes. Com isso, se a body art não pode oferecer métodos ao direito, nem tampouco parte do mesmo ponto enunciativo que o direito, ela concorre com a busca pelos sentidos e significados da vida humana.


Assim, o caráter informativo de seus resultados é incontestável. A prática dos artistas permite visualizar elementos das naturezas e condições humanas, do drama e da tragicidade, da continuidade da vida e da variação, multiplicidade, diversidade das questões. A corporalidade, a materialidade, a força e a fragilidade humanas, em suas íntimas manifestações, fazem com que a arte corporal e as questões trabalhadas na performance representem um importantíssimo conjunto de representações e simbolizações que formam um embasamento cultural.


O reflexo disto se opera, sobretudo, na visão de mundo do intérprete. Sendo o direito uma prática e manifestação essencialmente hermenêuticos e relativamente abertos, porque dependentes do referencial normativo, mas imersos no contexto dinâmico e intercambiante das categorias de direitos e dos princípios jurídicos, tem-se na subjetividade uma variável a ser alimentada com uma sensibilidade.


E esta sensibilidade se nutre, também, em referenciais artísticos, de modo que a body art, embora neste artigo pouco exemplificada em casos específicos, mas já indicado um caminho para sua abordagem pelo jurista, permite qualificar esta interpretação, o que se reflete na qualidade filosófica da construção normativa (que necessariamente envolverá direitos da personalidade, direitos fundamentais e direitos humanos como matéria de sua construção textual e semântica).


Se o jurista — e até aqui a palavra foi utilizada indiscriminadamente — acreditar que o seu trabalho envolve algum tipo de construção específica, alguma criatividade peculiar, e se pensar que seu trabalho demanda algum acesso aos problemas humanos, uma certa preocupação e maturação existenciais e mesmo uma pretensão filosófica de sabedoria, ainda que mínima e entremeada nos instrumentos jurídicos próprios, tal investigação pode ser valiosa.


 


Referências bibliográficas:

BATTCOCK, Gregory. A arte corporal. In: GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. Tradução de Renato Cohe. São Paulo: Perspectiva, 2007. p. 139-145.

CARNEIRO, Maria Francisca. Estética do direito e do conhecimento. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002.

______. Direito, estética e arte de julgar. Porto Alegre: Núria Fabris, 2008.

______. Pesquisa jurídica na Complexidade e Transdisciplinaridade. Temas Transversais, Interface, Glossário. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2009.

GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. Tradução de Renato Cohe. São Paulo: Perspectiva, 2007.

ITAU CULTURAL. Enciclopédia Itaú Cultural de Artes Visuais. Verbete: body art. Atualizado em 20 jul. 2010. Disponível em: <http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=termos_texto&cd_verbete=3177>. Acesso em: 06 ago. 2011.


Notas:

[1] Segundo a Enciclopédia Itaú Cultural de Artes Visuais (2010), a body art, ou arte do corpo, é uma vertente da arte contemporânea em que o corpo é meio de expressão do artista ou, ainda, a própria matéria-prima do trabalho. Frequentemente se associa a outras modalidades de arte contemporânea, tais como happening e performance. O foco desta produção não recai sobre as representações do corpo humano em formas clássicas como desenho, pintura e escultura, que seriam recorrentes ao longo da história da arte, mas dantes incidentes sobre práticas e intervenções corporais relacionadas a dor, esforço físico e mesmo violência. A Enciclopédia destaca trabalhos de Vito Acconci (1940), em que o artista se fere pela fricção do braço até surgir ferida (Rubbing Piece). Fluídos corporais (sangue, suor, esperma, saliva) também foram utilizados como meio de afirmação da corporalidade humana e sua materialidade, ao compasso de práticas de rituais e sacrifícios, bem como tatuagens, ferimentos, atos autômatos e repetidos, escarificações, travestimentos, deformações etc. Esta arte seria em muito teatral. Destaca-se também frase paradigmática do artista Bruce Nauman (1941): “quero usar meu corpo como material e manipulá-lo”. O momento histórico de afirmação da body art seria marcado por um profundo questionamento do mercado de arte então existente bem como os padrões correntes na arte moderna, de modo que se manifestam em profusão novas orientações artísticas com espírito de direção ao mundo, à natureza, à tecnologia e à realidade cotidiana das cidades. Dança, música, teatro, pintura, escultura, literatura e demais formas de expressão artística são reunidas e exploradas conjuntamente, pondo em desafio constante as formas tradicionais de produção artística, aproximando arte da vida. Deve-se pensar, segundo a Enciclopédia, nesta expressão artística conjuntamente a outras manifestações contemporâneas tais como arte ambiental, pública, processual e da paisagem. A ênfase no artista seria relevante (personalidade, biografia e ato criador), e o legado da body art seria marcado pelas práticas dadaístas e surrealistas, bem como heranças de sociedades tidas por primitivas, pelo Teatro Nô japonês, o Teatro da Crueldade de Antonin Artaud, o Living Theatre de Julian Beck e Judith Malina, o Teatro Pobre de Grotowsky, o movimento Fluxus e a obra de Joseph Beuys. Mereceriam destaque, exemplificativamente, na classificação da Enciclopédia, os seguintes artistas internacionais e brasileiros: Eva Hesse (1936-1970), Denis Oppenheim (1938), Chris Burden (1946), Rebecca Horn (1944), Gina Pane (1939-1990), bem como o Grupo de Viena (Arnulf Rainer (1929), Hermann Nitsch (1938), Günter Brus (1938) e Rudolf Schwarzkogler (1940-1969)). No Brasil: Lygia Clark (1920-1988), Antonio Manuel (1947) e Hudinilson Jr. (1957).

[2] Os estudos de Carneiro (2002; 2008; 2009) têm permitido, a partir de sua clareza, diligência e impecável rigor acadêmico na abordagem das dimensões científicas e artísticas do direito, realizar reflexões sobre intercâmbios filosóficos entre arte e direito, sobretudo no tocante à problemática do humanismo atual.

Informações Sobre o Autor

Eliseu Raphael Venturi

advogado em Curitiba, especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná e mestrando em Direitos Humanos e Democracia pela UFPR


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