Resumo: Cansados da espera de o Estado resolver os problemas sociais, os subcidadãos, movidos por um sentimento misto de indignidade e justiça causado justamente pela falta de seu acesso a esta, desenvolvem normas capazes, consoante crêem, de solver os conflitos de interesses que porventura se insurjam. O fulcro de todas essas formas espúrias de exercer a justiça encontra suas fontes de produção na exclusão sócio-jurídica de um povo e na alopoiese do correspondente ordenamento jurídico de que ele faz parte. A democracia e o respeito às diferenças individuais são os melhores meios de garantir que as decisões das autoridades possam servir ao bem-estar da sociedade. Antes de se criar um novo sistema em resposta ao sistema estatal alopoiético melhor é se lutar para possibilitar o acesso das massas populares à ordem jurídica, propugnando por novos esquemas e paradigmas legislativos e de controle externo das instituições, transformando-se assim, o sistema de alopoiético para autopoiético, na medida em que descende de um sistema democrático – o Estado Democrático de Direito.
Palavras-chave: autopoiese, alopoiese, subcidadão, Estado, problema.
Abstract: Tired of wait for State resolves social problems, subcitizens moved by a mixed outrageous and injustice feeling caused by restraint to justice, develops laws able, according they believe, to solve interest conflicts that happen by. The substance of all this spurious mode to make justice founds its source production in social and law exclusion that citizen belong to. Democracy and respect to individual differences are the best way to guarantee that authority decisions can serve to welfare society. Before to create a new system in reply to alopoiethic state system, it’s better to fight for make possible the access by popular masses to law order, proposing new schemes and legal paradigms and external control of the institutions, developing this way the system alopoiethic to autopoiethic, in so far as origin by a democratic system – the Law Democratic State.
Keywords: autopoiesis, alopoiesis, subcitizen, State, problem.
Sumário: 1. Introdução. 2. Autopoiese e Alopoiese: breves considerações. 3. O Estado alopoiético. 4. A cidadania no contexto autopoiético-alopoiético do sistema. 5. Da reação subcidadã à alopoiese estatal. 6. Do sistema subcidadão alopoiético. 7. Conclusão.
1. Introdução
O presente estudo objetiva considerações sobre o fenômeno da alopoiese de um sistema autocrático e exclusivista, bem como apontar suas causas e conseqüências mais marcantes no contexto social de um povo. Comentar-se-á sobre como a rigidez legalista e a impunidade redundarão na figura dos subcidadãos, cujo acesso à justiça é negado por bloqueios elitistas, e que desenvolverão seus próprios princípios de regulamentação normativa dentro do(s) seu(s) próprio(s) subsistema(s).
Ver-se-á que tais normas não conseguem manter sua efetividade heteromizante para todos os seus membros, justamente pela falta de identidade/autonomia (alopoiese) dos órgãos judicantes. Assim, legítima em princípio, a desobediência civil recairá em um novo sistema alopoiético, se não direcionado para a construção de uma sociedade democrática nos moldes de um sistema autopoiético.
2. Autopoiese e Alopoiese: breves considerações
A palavra autopoiese deriva do grego autós (“por si próprio”, “de si mesmo”) e poiesis (“criação”, “produção”). Fora criada a partir da teoria biológica de Maturana e Varela (1980), os quais propunham a criação de um sistema a partir de outro sendo ambos distintos, mas com íntimos e numerosos pontos de contato – ou, melhor dizendo, interdependentes.
O fenômeno da vida se dá através da autonomia e relações entre os diversos elementos de um sistema – biológico, no caso. O corpo sistêmico em que essas relações são desenvolvidas é dotado de uma organização formada da estrutura de seus elementos; esse sistema é clausuramente fechado, realizado em um meio próprio (espécie de ambiente), donde se realiza o processo de reprodução de seus elementos mantendo-se toda a organização, mesmo que a estrutura não seja a mesma (Guerra Filho, 1991, p. 185).
Mencionada teoria fora adaptada às ciências jurídicas por Luhmann (In Neves, 1992, p. 15), segundo o qual,
“(…) um sistema é dito autopoiético quando este se reproduz primariamente com base nos seus próprios códigos e critérios, assimilando os fatores do seu meio-ambiente circundante (expectativas sociais), mantendo, assim, a sua autonomia e identidade perante os demais sistemas sociais”.
Encarando-se o Direito enquanto sistema, Luhmann atesta que, sendo autopoiético, tem-se por premissa o paradigma lícito/ilícito como condição de sua autorreferência sistêmica (In Neves, 1992, p. 15); os valores e razões motivadores da norma, ainda que captados de diferentes fontes, da política legislativa e da atividade jurisdicional buscam suas fontes nos próprios princípios norteadores da e para a criação, interpretação e aplicação jurídicas.
Bem elucida Guerra Filho (1991, p. 196):
“A teoria sistêmica, como se vê, é dotada de uma universalidade (…). A essa universalidade se associa uma outra característica sua, que ao mesmo tempo é um dos conceitos básicos por ela empregados: a reflexividade. Por pretender uma universalidade, de tudo poder explicar, a teoria de sistemas há de, por si mesma, explicar a si própria. Isso a confere uma terceira característica, que é também atribuída aos sistemas por ela estudados: a auto-referência”.
Contrária é a definição de alopoiese. Derivada do grego alo (“um outro”, “diferente”) e poiesis (“criação”, “produção”), designa a reprodução do sistema por critérios e códigos do seu meio-ambiente, diferindo-se do sistema autopoiético, contudo, pelo fato de o novo sistema perder em significado a diferença entre sistema e meio-ambiente, sendo incompatível com a própria noção de referência ao meio-ambiente (Neves, 1995, p. 287). Ou seja: um sistema alopoiético constitui-se da confusão de códigos jurídicos construídos e aplicados difusamente, como também do intrincamento destes com os códigos do poder, da economia, familiar, da amizade, como também daquilo que os alemães chamam de “boas relações” (Neves, 1995, p. 287).
Dessume-se disto que a alopoiese resulta não numa simbiose, mas num emaranhado de normas jurídicas e sociais, misturando-se de tal forma que o processo de construção da identidade e reprodução da autonomia do novo sistema estaria seriamente comprometido, diluindo-se paulatinamente.
A interferência direta – e prejudicial – de fatores sociais individualistas e obstaculizantes (poder, dinheiro, etc.) atuaria como um mal que, expandindo-se destrutivamente pelo interior do sistema jurídico e por isso mesmo reduzindo sua resistência, ocasionaria a destruição da identidade e autonomia deste. Em decorrência disso, cria-se uma constante insegurança na solução de conflitos ou administração do sistema: ao invés de se somar forças, o sistema advindo rivaliza com o sistema instituído, provocando extremo desgaste dos mais variados modos para seus membros.
Outrossim, conclui-se que os paradigmas alopoiéticos têm conotação dejuridicizante, limitando a identidade sistêmica do Direito, porquanto seus pilares (adoção dos seus próprios critérios e independência autônoma) são contraditos e de certa forma neutralizados pela “norma alternativa”, dando margem à autorreferência e, através da assimilação de interesses, a heterorreferência1 sistêmicas do código binário luhmanniano “lícito/ilícito” por conta da sobrepujança de outras esferas sociais (o ter — economia, o poder — política, etc.) em detrimento de esferas tópicas de juridicidade.
3. O Estado alopoiético
A premissa básica e essencial de um Estado autopoiético reside na igualdade em partilhar direitos e deveres através de normas jurídicas – o que implica em legalidade, fator fundamental ausente na alopoiese, onde não se observa caráter legal em tal situação -, regulando problemas sociais, de forma a indicarem ao cidadão o modo pelo qual se deve proceder na situação ali prevista.
Contudo, há que se dar uma conotação humanística ao fato, encarando a lei do ponto de vista sociológico e não do estritamente jurídico. Ilustrando-se a idéia, ressalta-se o panorama social atual, em que se observa uma relação direta entre acesso aos direitos constitucionais e poderio econômico: quanto maior este, mais fácil aquele; evidenciando-se assim a escassez de recursos pecuniários e culturais do cidadão, igualmente se nota a dificuldade deste em poder se valer da tutela jurisdicional. Surge, então, a figura do subcidadão, cujo acesso à justiça e ao exercício dos direitos é negado por bloqueios elitistas, em face justamente da inadequação ao habitat social vigente no sistema, sob o mando de uma minoria.
É verdade inconteste o fato de que, cedo ou tarde, um problema social – atendo-se tal termo à idéia de grupo de pessoas – reclamará a concernente norma que o regule e discipline. Desta forma, não tendo o excluído acesso aos direitos que teoricamente seriam de todo cidadão, a decorrência lógica de tal impedimento é a criação de próprias normas, as quais terão eficácia dentro do grupo de excluídos pelo sistema, desenvolvendo-se assim seus próprios princípios de regulamentação normativa dentro do próprio subsistema.
Contudo, nem tais dispositivos normativos terão força cogente e “heteromizante” para todos os seus membros, justamente pelo fato de não haver ali o principal elo de ligação entre os mesmos: a identidade e autonomia (alopoiese) dos órgãos judicantes estatais. No Estado alopoiético, observando-se a necessidade de se adequar os procedimentos decisórios às lides e situações que assim reclamam, criam-se procedimentos jurídicos espontâneos, ou seja, os sistemas que constituem a sociedade criam de per si os procedimentos necessários para suprirem essa dificuldade.
Dessa forma, os reclames sociais legitimadores de um Direito autopoiético são veementemente rechaçados por interesses mesquinhos e supérfluos dos “donos do poder”, ridicularizando e desrespeitando claramente a Carta Política, principalmente no que se refere aos direitos e garantias fundamentais do homem e do cidadão.
4. A cidadania no contexto autopoiético-alopoiético do sistema
Entende-se por cidadania a qualidade da pessoa que, estando na posse de plena capacidade civil, também se encontra investida no uso e gozo de seus direitos políticos, que se indicam, pois, o gozo dessa cidadania (Silva, 1980, p. 335). Aí se destaca, portanto, a estreita correlação entre noção e fundamentos de cidadania e titularidade de direitos. Por isso, para se tratar de cidadania, mister se faz ter por premissa a concreta verificação das normas constitucionais referentes aos direitos e garantias fundamentais, elegendo a igualdade como o requisito maior e o sustentáculo ético do conceito em debate.
A interpretação das normas constitucionais implica a utilização de métodos que se diferenciam do método de interpretação das demais normas de direito público e privado. A Constituição, por sua própria natureza, especialmente quando trata da declaração dos direitos fundamentais, supõe uma leitura que a distingue daquela realizada no quadro da dogmática tradicional. A interpretação da norma constitucional torna-se ainda mais específica, quando ocorre no quadro do estado democrático de direito, pois pressupõe o emprego de conceitos e valores caracterizadores dessa forma de regime político-constitucional.
Entretanto, a realidade demonstra a distância entre a teoria e a prática: na atual conjuntura do país, encontram-se grupos sociais privados do exercício das garantias fundamentais, e por isso mesmo marginalizados econômica, política e socialmente – e por conseqüência juridicamente, eis que não dispõem do esclarecimento e conhecimento da ordem jurídica, e muito menos auxílio da sociedade para tanto.
Constata-se outrossim que a democracia, no âmbito do sistema em questão, ainda está longe de ser amplamente verificada, vez que os ditos “cidadãos” não auxiliam os “não-cidadãos” a sê-lo, permanecendo assim no status de “subcidadãos”, os quais também são obrigados a respeitar as normas impostas pelo Direito, mas sem a proteção deste para o exercício dos direitos fundamentais elencados na Magna Carta.
Observa-se, então, o intrigante paradoxo subcidadania/democracia: prega-se o “poder do povo”, mas não se proporcionam os meios e condições de integração e participação sócio-política necessários ao exercício desse poder pelo povo, ficando este à margem da sociedade. Resultado: haverá subcidadãos, os quais não terão participação e integração no contexto social, justamente por não terem condições de exercerem os direitos e garantias constitucionais; e haverá supercidadãos, os quais, por deterem os já mencionados fatores sociais individualistas e obstaculizantes (poder, dinheiro, etc.), gozarão de privilégios e favores mútuos da própria sociedade.
Isso redunda em legalismo, o qual, ao contrário do princípio da legalidade (generalização igualitária da lei), asfixia a autonomia operacional do sistema, pois impõe aos subcidadãos os deveres a serem cumpridos, mas, em contrapartida, nega-lhes o acesso aos direitos garantidos constitucional e legalmente. A insensibilidade discriminatória legalista funciona, assim, como intolerância jurídica mantenedora da “exclusão” social dos subcidadãos, haja vista a evidência de tal alogia dejuridicizante. A Constituição Federal, então, parece ser pragmatizada apenas quando e porque interesses de grupos privilegiados não são comprometidos.
Lado outro, há a impunidade: freqüentemente se observa que certos ilícitos não são seguidos das sanções pré-estabelecidas juridicamente. Poder-se-ia até pensar que se trata de “tolerância excessiva”, mas, ao contrário, significa, isso sim, tolerância ausente. Faz-se prementemente imperioso enfocar o fato de que os privilégios da impunidade implicam a própria quebra da autonomia/identidade da esfera jurídica por bloqueios políticos particularistas, econômicos e relacionais.
Como bem se vê, a rigidez legalista está para os subcidadãos assim como a impunidade e a permissividade jurídica para os sobrecidadãos, complementando-se reciprocamente. Daí resulta o fato de, em regra, as vítimas dos atos impunes serem os socialmente mais frágeis (subcidadãos), sendo os agentes ou responsáveis indivíduos e grupos privilegiados, ou aqueles vinculados direta ou indiretamente aos seus interesses. Quando, porém, o agente é um subcidadão, este não recebe o devido tratamento declarado constitucional e legalmente, em vista de sua condição de inferioridade dentro do ordenamento jurídico.
Tal situação chega a ridicularizar o Estado Democrático de Direito: mesmo tendo a obrigação de garantir a igualdade entre os cidadãos, não direciona a proteção e auxílio aos que pretendem exercer seus direitos. Vislumbra-se aí uma verdadeira violência, a omissão ou indiferença na prestação de serviços – o que acarreta, além de prejuízos, uma sensação de impotência desesperadora por parte da população, que se sente sem ação para protestar (Nogueira, 1995, p. 150).
Para que a cidadania possa ser efetivamente exercida, é imprescindível que o sistema jurídico tenha e ofereça autonomia ao cidadão. Isto se justifica pelo anseio em relação à norma, no tocante à solução e prevenção dos problemas sociais, a partir da assimilação de interesses filtrados cognitivamente, tais quais a liberdade e a garantia de um processo justo e regular, em caso de este bem ser ameaçado, ou violado.
Exercer e ampliar a cidadania são ao mesmo tempo, conseqüência e causa da autonomia funcional do sistema jurídico; é desvincular a norma do interesse particular que vicia o Direito e prejudica a sociedade. É esta evolução construtiva e ampla da cidadania, portanto, o pressuposto da semântica dos direitos humanos.
Em contrapartida, se os interesses mesquinhos e egoístas sufocam a interpretação social da norma – por conseqüência, o exercício da cidadania -, fatidicamente haverá uma dissociação geradora de outro sistema, em face de duas hipóteses: ou o cidadão lutará para exercer seus direitos pela força, ou, de igual modo, os que sufocam o Direito usarão da força para assim continuarem agindo. Desta forma, o sistema jurídico, em decorrência da sua alopoiese, vai perdendo faticamente forças para as influências diretas dos critérios econômicos e políticos, porquanto o texto constitucional perde o seu significado normativo generalizado, incapacitado de deter o avanço daqueles critérios, faltando-lhe a corroboração pragmática dos seus dispositivos.
Saliente-se a isso as relações entre subcidadãos e sobrecidadãos, onde, ao contrário do sistema autopoiético, o mais forte se vale de sua supremacia para esmagar o mais fraco, e em conseqüência disso dominá-lo. Em outras palavras: pela força, e para manter seus interesses, o sobrecidadão nega ao subcidadão a cidadania e sua concernente integração igualitária na sociedade.
A conclusão lógica é a de que os subcidadãos são jogados à margem do ordenamento jurídico pelos sobrecidadãos, os quais nele se incluem exclusivamente. Aqui também se observa um paradoxo: estar incluso ao ordenamento é submeter-se aos seus ditames, ora em pleno gozo dos direitos conferidos, ora cumprindo com os deveres. Aos subcidadãos, contudo, cabem-lhes apenas estes últimos, por conta da alopoiese, que lhes ignora o exercício pleno dos direitos e garantias conferidos ao cidadão.
Vê-se outrossim ser inegável, para a correta aplicação da igualdade entre os cidadãos, minimizar a importância dos elementos “dinheiro” e “poder” no contexto da concretização da normatização constitucional. A subordinação jurídica, em franca contradição com a identidade e conceitos do ordenamento jurídico, ocasiona na elaboração de leis em que está inserida, a defesa dos privilégios dos sobrecidadãos ou no mínimo o abrandamento da configuração ou punição dos atos criminosos destes.
Em suma: o Estado alopoiético é frágil, uma vez que, sendo as normas egoisticamente elaboradas e interpretadas para o fim de se privilegiar a poucos – os sobrecidadãos -, deixa-se de normatizar no sentido de se resolver e prevenir problemas sociais relevantes. Ou seja: a prevalência da alopoiese do sistema jurídico em detrimento de sua autopoiese acarreta uma produção jurídica fechada às demandas das expectativas sociais – em certos aspectos, até mesmo de forma hermética -, dando vazão a metacódigos oriundos da ideologia sobrecidadã agindo e reagindo paralelamente aos critérios pré-estabelecidos pelos sócio-juridicamente marginalizados.
A subcidadania então, cansada de ter seu acesso à “justiça” do Estado alopoiético limitado e desvirtuado por fatores extrajurídicos, desenvolverá outras formas jurídicas em reação à inadequação, improcedência e inoperância do ordenamento jurídico positivo – o que será objeto de discussão a seguir.
5. Da reação subcidadã à alopoiese estatal: a desobediência civil enquanto instrumento legitimador do poder
Quando a aplicação de uma lei não encontra justificativa, as considerações da racionalidade processual perdem seus valores perante a sociedade – ou seja, o que se espera dos procedimentos legais não é efetivamente alcançado pelo ordenamento -; denota-se, então, pobreza política, não se oferecendo assim direito ao povo. E, sendo privilegiada somente uma minoria, é inevitável a desorganização da sociedade, em face da centralização do poder nas mãos dos governantes e do desmantelamento das identidades culturais.
É sob esta aparente não-violência que se vinculam acumulações fantásticas de vantagens sociais em poucas mãos, como as disparidades salariais, a sonegação da educação básica, os altos índices de mortalidade infantil, a invasão de campo por monopólios e assim por diante (Ramos, 1998, p. 43). Verificando-se que o sistema não promove os valores fundamentais e não sacrifica a eficiência legal a fim de garantir o respeito aos direitos pessoais, aí se observam circunstâncias que justificam a desobediência à lei. Ou, nos dizeres de Lyons (1990, p. 201),
“(…) não existe obrigação automática de obedecer à lei e certamente nenhuma que pudesse ser absoluta. Uma vez que a lei é moralmente falível, devem existir razões especiais para apoiar a exigência moral de que se deve obedecer à lei”.
Ou seja: sendo a desobediência civil um processo derivado da maioria, nada mais natural que aplicá-la num sistema onde o direito encontra-se nas mãos da minoria.
6. O sistema subcidadão alopoiético
Afastado o autoritarismo estatal, mister se faz elaborar uma teoria compreensiva das condições sob as quais as pessoas sejam moralmente obrigadas a obedecer à lei; em outras palavras, um sistema que reflita alguns objetivos comuns, mas que também respeite as diferenças que persistem entre os membros da comunidade. Essas considerações sugerem o desejo de um sistema que estabeleça limites na intervenção legal e promova efetiva e ampla participação geral (Lyons, 1990, p. 198).
O que se observa no entanto é que, em reação, a subcidadania criará todo um complexo de normas a serem seguidas dentro de cada grupo social, bem como também os procedimentos no caso de transgressões e desrespeitos normativos, pertencendo ou não o violador da norma ao grupo social legiferante. Assim, grupos sociais subintegrados transfiguram a titularidade exclusivamente estatal do jus legem e do jus puniendi, que, se não repassada totalmente às suas mãos – como uma espécie de “usurpação” do jus imperii do Estado -, ao menos com ela concorrem.
Exemplo disso é o que se observa nas favelas cariocas: ali se institui verdadeiro sistema jurídico à parte, composto de normas inspiradas no ordenamento jurídico estatal, porém modificadas devidamente para os propósitos particulares dos favelados – no que se revela tal sistema nada mais do que formas instáveis e difusas de reação à falta de acesso aos benefícios e vantagens do sistema jurídico estatal.
Em outras palavras: desamparados pelo Direito Positivo, os favelados procurarão estabelecer um conjunto de regras que, substitutivamente ao Estado, proteger-lhe-ão através da resolução dos litígios e problemas sociais – desta vez, no entanto, segundo seu próprio código binário lícito/ilícito, cujos princípios repousam no arcabouço de uma ética peculiar e igualmente alopoiética. Neste contexto, a subcidadania, outrora insatisfeita com ingerências e interferências metajurídicas ensejadoras da impunidade dos “donos do poder” e do legalismo frente aos menos favorecidos sócio-economicamente, em dadas circunstâncias, também incorre nos mesmos vícios de todo ordenamento alopoiético: acolhe fatores e valores extranormativos para beneficiar uns poucos subcidadãos, mantendo porém os demais sob a mão de ferro do normativismo “alternativo”.
Como igualmente ocorre com o Direito estatal, a reação difusa à ausência do princípio da legalidade também não vai conseguir manter sua “autonomia/identidade”, pois em toda forma jurídica decorrente de um processo de alopoiese, é inerente toda espécie de sobreposições de interesses particularistas.
Dessume-se, por tais razões, que um sistema estatal alopoiético enseja, quando o clamor público por justiça é uníssono e a insatisfação social é geral – e no entanto, ignorada pelo Estado -, subsistemas jurídicos que, inexoravelmente, restam condenados em suas próprias fundações. Melhor dizendo: o que se combate no Estado – o autoritarismo e a força – acaba sendo justamente o que sustentará o novo sistema criado pelo povo; tornam-se, pois, também alopoiéticos.
A conseqüência mais agravante é a disfuncionalidade operacional da autodependência dos critérios jurídicos, contornando destrutivamente os pilares do ordenamento jurídico, implicando a aniquilação de sua identidade e a ruína da sua autonomia. O legalismo e a impunidade desenfreados, mascarados por uma pseudo-democracia, sufocam gradativamente as aptidões democratizantes das expectativas sociais no tocante à realização includente e igualitária da legalidade, respeitando as crescentes demandas sociais.
Outrossim, transparece a ação dejuridicizante dos sobrecidadãos que, aliados à conivência da minoria dominante, desnorteiam a atividade jurídica sob todos os seus aspectos. Dessa forma, as premências sociais legitimadoras de um Direito autorreferente, autopoiético, são combalidas cruelmente por interesses mesquinhos e supérfluos dos “donos do poder”, repetindo os mesmos desmandos do antigo sistema, principalmente no que se refere aos tão aclamados, desde a Revolução Francesa, droits de l’homme et du citoyen.
O novo sistema deverá ser democrático e respeitar as diferenças individuais dos cidadãos, através da garantia de que as decisões das autoridades sejam úteis ao bem-estar da sociedade, sob pena de também se tornar um sistema alopoiético. Ou seja: os outrora subcidadãos, no novo sistema, serão os sobrecidadãos, sujeitos a novas reações de outros subcidadãos.
7. Conclusão
Cansados da espera de o Estado resolver os problemas sociais mais significativos e perplexos ante os entraves que ilidem a concretização normativa, os subcidadãos, movidos por um sentimento misto de indignidade e justiça causado justamente pela falta de seu acesso a esta, desenvolvem normas capazes, consoante crêem, de solver os conflitos de interesses que porventura se insurjam.
O fulcro de todas essas formas espúrias de exercer a justiça – até mesmo a do Estado, somente no qual está legitimado o jus legis – encontra suas fontes de produção lógica e cronológica, respectivamente, na exclusão sócio-jurídica de um povo e na alopoiese do correspondente ordenamento jurídico de que ele faz parte. Porém, talvez ainda não hajam percebido os subcidadãos que os tão discutidos “critérios particularistas e bloqueantes” da identidade das esferas de juridicidade também se consubstanciam empiricamente em tais esferas “alternativas” ou “extralegais”.
Destarte, o ponto central a ser discutido antes de se falar em um novo sistema ou um “sistema ideal” é justamente a questão da não-efetividade ou não-funcionalidade generalizada de quaisquer procedimentos legais ou extralegais. Ou seja: a resposta para a falta de aquisição e de ampliação da cidadania reside na ausência de legalidade correlacionada com a falta de autorreferência independente do Direito.
A democracia e o respeito às diferenças individuais são os melhores meios de garantir que as decisões das autoridades possam servir ao bem-estar da sociedade. Por tais razões, antes de se criar um novo sistema em resposta ao sistema estatal alopoiético melhor é se lutar para possibilitar o acesso das massas populares à ordem jurídica, propugnando por novos esquemas e paradigmas legislativos e de controle externo das instituições, transformando-se assim, o sistema de alopoiético para autopoiético, na medida em que descende de um sistema democrático – o Estado Democrático de Direito.
Professor da Faculdade de Ciências Integradas do Pontal da Universidade Federal de Uberlândia (FACIP/UFU). Mestre em Direito Civil pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Doutorando em Direito Privado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG).
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