Nome do autor: Matheus de Quadros – Pós-graduando em Direito Processual Penal e Prática Forense Penal pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), pós-graduando em Direito Constitucional pela Ibmec – São Paulo, assessor de promotoria no Ministério Público do Paraná (e-mail: matheusmdq@hotmail.com)
Resumo: O presente artigo objetiva analisar a constitucionalidade do fenômeno da privatização dos presídios. Utilizando-se do método dialético, observam-se argumentos utilizados pelos defensores da inconstitucionalidade da privatização dos presídios (tese) e argumentos apresentados pelos defensores da constitucionalidade da prática (antítese) para verificar uma síntese, baseada na melhor interpretação das bases constitucionais. Nesse sentido, o presente artigo conterá natureza qualitativa exploratória, utilizando-se para tal de documentação bibliográfica para consecução de seus fins, buscando-se a análise reflexiva da doutrina brasileira sobre o tema e seus resultados. Estruturalmente, será feita breve análise das formas de privatização dos presídios ao redor do mundo para possibilitar uma compreensão inicial da temática. Após, trata-se dos argumentos de inconstitucionalidade da prática diante da indelegabilidade das atividades jurisdicionais e também da alegada afronta à dignidade da pessoa humana. Por fim, conclui-se que é constitucional a privatização dos presídios, desde que utilizado o modelo francês, correspondente a delegação das atividades de cunho administrativo da execução penal. Da mesma forma, conclui-se ser necessário um estudo aprofundado das atividades da execução, de modo a delinear definitivamente as atividades que constituem exercício do poder de polícia dentro da execução penal como próximo passo da aferição da legalidade da medida.
Palavras-chave: Direito constitucional. Privatização. Presídios. Execução penal.
Abstract: This article aims to analyze the constitutionality of the prison privatization phenomenon. Using the dialectical method, the article observe arguments used by defenders of the unconstitutionality of prison privatization (thesis) and arguments presented by defenders of constitutionality of practice (antithesis) to verify a synthesis, based on the best interpretation of constitutional bases. In this sense, the present article will contain an exploratory qualitative nature, using bibliographic documentation to achieve its purposes, seeking the reflexive analysis of the brazilian doctrine on the subject and its results. Structurally, a brief analysis of prison privatization forms around the world will be made to allow an initial understanding of the theme. Secondly, the article deals with the arguments of the unconstitutionality of the practice thanks to the indelegability of the judicial activities and also the alleged affront to the dignity of the human person. Finally, the article concludes that the privatization of prisons is constitutional, if the French model is adopted, corresponding to the delegation of administrative activities of the penal execution. Likewise, it is concluded that an in-depth study of enforcement activities is necessary in order to definitively delineate the activities that constitute the exercise of police power within Penal execution as the next step in gauging the legality of the measure.
Keywords: Constitutional law. Privatization. Prisons. Penal execution.
Sumário: Introdução. 1. O caos penitenciário em números. 2. As espécies de privatização dos presídios. 2.1 O modelo americano. 2.2 O modelo francês. 3. A suposta inconstitucionalidade diante da indelegabilidade das atividades jurisdicionais. 4. A suposta inconstitucionalidade diante de ofensa à dignidade humana. Conclusão. Referências.
Introdução
Recentemente, a temática da privatização dos presídios retornou ao noticiário político brasileiro:
Conforme noticiado pelo Estadão, o Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, defendeu recentemente as parcerias público-privadas no sistema penitenciário durante a abertura do segundo dia do Fórum de Investimentos Brasil 2019 (BONATELLI; DUARTE; ROCHA, 2019).
Da mesma forma, atualmente o Governador de São Paulo, João Dória (PSDB/SP), luta na Justiça pela licitação de presídios privados no estado. A mencionada licitação foi inicialmente suspensa pela 13ª Vara da Fazenda Pública do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, mas teve a suspensão revogada pelo presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, o desembargador Manoel de Queiroz Pereira Calças (ESTADÃO CONTEÚDO, 2019). Concomitantemente a isso, grupos como a OAB/SP, o IBCCRIM e a Pastoral Carcerária Nacional, dentre outra entidades vêm se manifestando contrariamente à medida (VALENTE, 2019).
Ademais, nos últimos anos outras notícias sobre a intenção de privatização de presídios também surgiram. Nesse sentido foi a criação de programa desenvolvido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para fomentar a utilização de parcerias público-privadas para a construção de presídios no Brasil durante o governo do ex-presidente Michel Temer (MDB) (ESTADÃO CONTEÚDO, 2018).
A prática, discutida no país desde os anos 90, sempre se demonstrou polêmica sob o ponto de vista técnico e ideológico, não havendo consenso sobre sua utilização, apesar da primeira abordagem do tema no país ter ocorrido há mais de vinte anos.
Por propor a participação da iniciativa privada na esfera pública em tema particularmente sensível, o tema quando abordado suscita acaloradas discussões em uma polarização política que virou a praxe da sociedade brasileira. Sociólogos, economistas, juristas e políticos há décadas debatem a viabilidade do tema, mundo afora e no Brasil, porém com pouco avançar e longe de uma conclusão.
Além disso, devido à centralidade ideológica e econômica dessas discussões, pouco é tratado quanto à técnica jurídica em si da temática.
Parece óbvio que antes de qualquer discussão sobre a eficiência ou mesmo sobre a viabilidade prática da concessão da execução da pena à iniciativa privada, dever-se-ia realizar uma análise da constitucionalidade da prática, eis que a constitucionalidade se mostra o filtro primário de toda a discussão e o requisito mínimo da adoção da prática na realidade jurídica nacional.
Contudo, a doutrina pátria historicamente despendeu pouca atenção à temática da constitucionalidade da privatização dos presídios, ignorando as problemáticas de grande interesse que o tema carrega, como o sopesamento de bens jurídicos relevantes e a necessária delimitação entre jurisdição e atos administrativos na atividade da execução da pena.
Logo, tem-se como intenção do presente artigo justamente uma breve análise limitada à constitucionalidade da privatização dos presídios, dissociando-se a problemática de fatores alheios à ciência jurídica, o que se mostra especialmente relevante no contexto atual, diante do retorno da discussão e de sua provável concretização como política pública.
Com a adoção do método dialético, o presente trabalho utilizar-se-á dos argumentos utilizados pelos defensores da inconstitucionalidade da privatização dos presídios (tese) e dos argumentos apresentados pelos defensores da constitucionalidade da prática (antítese) para que seja possibilitada a verificação de uma síntese, baseada na melhor interpretação das bases constitucionais.
Nesse sentido, a presente pesquisa tem natureza qualitativa exploratória, utilizando-se para tal de documentação bibliográfica para consecução dos fins deste artigo, buscando-se a análise reflexiva da doutrina brasileira sobre o tema e seus resultados.
Quanto à estruturação do presente trabalho, iniciar-se-á com uma breve análise estatística que resume o caos penitenciário brasileiro, um dos fundamentos justificadores da privatização dos presídios para os defensores da medida.
Após, observar-se-á as características dos modelos francês e americano de privatização dos presídios, correspondentes às duas formas de privatização construídas doutrinariamente da análise da experiência internacional.
Partindo para a problemática principal deste trabalho, inicialmente será verificada a argumentação da inconstitucionalidade da privatização dos presídios diante da alegada indelegabilidade das atividades da execução penal, as quais seriam típicas atividades jurisdicionais. Dentro desse tópico, serão observadas as teses favoráveis e desfavoráveis à medida.
Em seguida, abordar-se-á o argumento de inconstitucionalidade da privatização dos presídios diante da alegada violação à dignidade da pessoa humana, novamente sendo realizada a análise das teses favoráveis e desfavoráveis.
Por fim, a conclusão trará a síntese de ambas as problemáticas observadas no trabalho, tratando sobre a constitucionalidade da prática dentro dos parâmetros vislumbrados.
Inicialmente, deve-se realizar uma primeira abordagem sobre a situação carcerária pátria, a qual é utilizada como justificativa para interferência privada na gestão prisional. Assim, observam-se alguns dados para melhor entender a tão falada falência da pena de prisão, tema recorrente na doutrina penal crítica brasileira:
De acordo com censo realizado pelo Infopen em junho de 2016, o Brasil chegou ao número de 726.712 pessoas encarceradas, um crescimento de mais de 104 mil pessoas em relação ao ano de 2014 (BRASIL, 2016). Esse número, de acordo com o mesmo estudo, contrasta com o número de 368.049 vagas, correspondendo a um resultado de dois presos para cada vaga (BRASIL, 2016).
Além disso, desse montante total de pessoas encarceradas, de acordo com estudo realizado pelo G1 junto ao Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, constatou-se que existiam no Brasil em janeiro de 2018, dentre o número anterior, 236,1 mil presos provisórios (CAESAR; VELASCO, 2018).
E o que parece ainda pior, conforme estudo anterior do Infopen, datado de 2014, apesar do número de vagas no sistema prisional compreendidas entre 2000 e 2014 ter quase triplicado, o déficit de vagas mais que dobrou, o que demonstra a plena incapacidade do poder público de cumprir a demanda de presos, levando a uma deterioração progressiva de um sistema que já é sabidamente falho, conforme demonstra o gráfico abaixo apresentado no supramencionado estudo:
GRÁFICO 1 – Evolução histórica da população prisional, das vagas e do déficit de vagas
Fonte: Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen, junho/2014 (BRASIL, 2014).
Ainda conforme esse estudo, observa-se que analisados os tipos de gestão, apenas 18 presídios à época utilizavam a modalidade de parceria público-privada; que 34 estabelecimentos funcionavam sob cogestão, modelo no qual o administrador privado é responsável pela gestão de determinados serviços da unidade, cabendo tanto ao Poder Público como à iniciativa privada o gerenciamento e que 43 eram geridos por organizações sem fins lucrativos, em contraposição aos 1154 presídios de gestão completamente pública, o equivalente a 92%, conforme se afere no gráfico abaixo:
GRÁFICO 2 – Gestão dos estabelecimentos
Fonte: Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen, junho/2014 (BRASIL, 2014).
Outrossim, apesar do déficit prisional observado, vislumbra-se também que aqueles que se encontram dentro do sistema prisional não encontram acesso às devidas garantias, como consta do relatório do Infopen no ano de 2016, o qual relata que “apenas 12% da população prisional no Brasil está envolvida em algum tipo de atividade educacional, entre aquelas de ensino escolar e atividades complementares” (BRASIL, 2016).
O disposto vai de encontro ao previsto na Lei de Execução Penal, a qual, em tese, garante o direito à educação dos presos, dentre outras deficiências posteriormente abordadas.
Dessa forma, presente um vácuo da atuação eficiente por parte do poder público no atendimento prestacional de uma necessidade básica da sociedade, correspondente ao devido enclausuramento dos detentos, cumprindo-se as funções básicas da pena e garantindo-se os direitos fundamentais desses.
Consequentemente, diante da falibilidade do Estado em prestar resposta eficiente à garantia constitucional, surge a necessidade de uma detida análise da possibilidade da maior participação da iniciativa privada nesse contexto. O que é coerente com a evolução histórica da relação entre o público e o privado no contexto do Direito Administrativo[1].
A partir de semelhantes justificativas, abordando-se a superlotação dos presídios e ausência de condições decentes dos estabelecimentos penais, outros países adotaram métodos de privatização dos presídios como possível solução a esses problemas.
Contudo, a prática da concessão dos presídios à iniciativa privada não se deu de forma uniforme no mundo, levando a dois modelos principais, substancialmente diversos, de privatização de presídios, os quais são analisados a seguir:
Inicialmente, deve-se observar que a privatização é um fenômeno complexo, o qual necessita de um tratamento conceitual.
Sobre a privatização como termo, inicialmente há de se salientar que esse pode ser empregado tanto em um sentido amplo, como é o caso desse estudo como também de modo estrito, devido às diversas formas de transferir algo da esfera pública para a privada, a exemplo de práticas como: a despublicização, descentralização, desestatização, desregulação, terceirização, associação e estruturação integrada.
Entretanto, pela impossibilidade de se tratar de forma detalhada cada um desses termos, mostra-se ineficaz o termo em sua forma restrita aos fins do presente trabalho, empregando-se o amplíssimo sentido de privatização.
Ademais, o emprego conceitual da privatização em seu sentido amplo se mostra suficientemente eficiente, pois todas essas técnicas visam um mesmo fim, correspondente a transferência de atividades públicas para a iniciativa privada, de modo que é adequada a acepção da privatização em sua forma ampla para este presente artigo.
Assim, diferenciam-se os conceitos amplo e restrito da privatização da seguinte forma, de acordo com o entendimento de Fernando Borges Mânica e Fernando Menegat (2017, p. 102):
Visto que a privatização é um fenômeno complexo, que pode ser realizado de diversas maneiras e sendo também a execução penal, uma atividade complexa que engloba diversas espécies prestacionais, obviamente há de se delinear diferentes modelos para isso, buscando uma estrutura que venha a ser ideal para a realidade brasileira.
Observando-se a experiência internacional, pode-se dividir a privatização dos presídios em dois modelos conceituais, quais sejam os modelos americano e francês, analisados a seguir.
2.1. O modelo americano
Pioneiros na onda dos presídios privados, os Estados Unidos iniciaram o modelo contemporâneo em 1984 com a criação do empreendimento pela Corrections Corporation of America no Condado de Hamilton, no estado do Tenesse (MATTERA et al., 2001, p. 2).
Não por acaso os Estados Unidos trouxeram à baila essa ideia no contexto contemporâneo, visto haver um encontro de circunstâncias ideológicas que dominavam o país, correspondentes a uma excessiva sanha punitivista e uma tendência de diminuição do campo de atuação do Estado.
À época, o país era governado por Ronald Reagan, o qual simbolizou junto com a primeira ministra inglesa Margaret Tatcher a ascensão do chamado neoliberalismo no mundo.
Enquanto visão política, o neoliberalismo trouxe a redefinição do modelo administrativo de Estado com uma onda de privatizações, as quais diminuíram o peso da máquina pública após a crise econômica decorrente do Estado de Bem Estar Social ocorrida entre a década de 70 e 80.
Somando-se a isso, estava a ascensão em popularidade da escola neoclássica na criminologia, fruto do fracasso das tentativas de ressocialização dos detentos (CORDEIRO, 2014, p. 76).
O modelo neoclássico, em voga naquele momento, pregava uma melhoria da infraestrutura como melhor forma de combate ao crime, mais e melhores policias, mais e melhores juízes, mais e melhores prisões (GOMES; MOLINA, 2008, p. 370). Nesse sentido, privilegia-se o combate à impunidade como forma de aumento da aversão ao risco do criminoso comum.
Com a matriz de estudos advinda da chamada escola de Chicago de criminologia, aplicaram-se políticas públicas nesse exato sentido supramencionado, de tolerância zero, como a war on drugs e a three strikes,you’re out (OSTERMANN, 2010).
Consequentemente ao enrijecimento da atividade policial e judiciária, surge o também o aprisionamento em massa, o qual levou ao surgimento de um déficit de vagas e à superlotação dos presídios, diante da impossibilidade do Estado acompanhar a “demanda” criada com essa nova visão de política criminal.
Como forma de resolução dessa problemática, em linha com os valores ideológicos adotados pela administração Reagan, nasce um filão de investimento para as empresas de segurança com essas apresentando modelos de presídios privados para sanar a falta de vagas.
Assim, oficializava-se a aplicação da doutrina do hands-off, a qual consiste na prática dos juízes e tribunais delegarem a execução penal ao talante da administração da penitenciária, que decidia pelos métodos e forma da execução do apenado.
Salienta-se que a mencionada doutrina contou com o aval da Suprema Corte, a qual decidiu através da súmula 1981 que não havia dentro da legislação americana nenhum óbice para a privatização completa da fase da execução penal pela iniciativa privada.
Nesse modelo, Grecianny Cordeiro, citando Charles Logan, aponta que são atentados como benefícios o fator de ser uma alternativa mais célere pelo fato de dispensar a aprovação do eleitorado em relação à construção das prisões e o fato de evitar greves (2014, p. 83-84). Nesse sentido, de acordo com estudo utilizado por Jorge Amaral dos Santos, destaca-se o modelo americano de privatização como benéfico para a celeridade da construção dos estabelecimentos:
“Entretanto, o principal ponto positivo do exemplo americano é de que, quando a gestão é privada, a implantação de novas unidades custa menos e é mais rápida. Uma unidade privada de 350 vagas é entregue em cinco meses a um custo de US$ 14 mil por vaga. Pela mesma obra, o governo gasta quase o dobro, US$ 26 mil, e o prazo de entrega é de dois anos. Trata-se de uma preciosa lição para países com déficit de vagas” (SANTOS, 2009).
Desde sua instalação, embora os números de prisões privadas ainda sejam pequenos perto da quantia de prisões públicas, a criação de prisões privadas apresentaram exponencial crescimento, instalando-se tanto nas esferas estaduais, como também federais.
O modelo francês, ao contrário do americano, apresenta um nascimento mais difícil de ser definido, visto que em uma linha histórica pode se apontar diversos pontos que foram aos poucos implantando o modelo dentro da realidade do país.
Nesse sentido, remonta-se ao ano de 1850, quando aprovada lei autorizando a criação de Colônias Penitenciárias Correcionais Públicas ou Privadas destinadas aos menores e jovens infratores.
Aponta-se também o ano de 1988, quando ocorreu a aprovação do projeto Programme 13.000, que dispunha sobre a construção de 13.000 celas distribuídas entre 25 penitenciárias (OLIVEIRA apud CORDEIRO, 2014, p. 92).
Esse sistema, em oposição ao americano, caracteriza-se por um modelo de cogestão entre o privado e o público.
Dentro do modelo francês, ambos os entes dividem a responsabilidade de gestão do estabelecimento em um contrato de ampla concorrência, no qual cabe ao Estado assegurar a segurança do local e indiciar gerência do estabelecimento, enquanto que para a concessionária cabe a organização do trabalho, da educação, do lazer, da alimentação, fornecimentos das vestimentas, assistência social e jurídica, dentre outros aspectos que se enquadram no que a doutrina chama de serviço de hotelaria (ALVES; BORGES; SANTOS, 1995, p. 81).
Destaca-se também no modelo francês justamente a intervenção do Estado apenas de forma subsidiária, no que concerne à segurança e ao que diz respeito à execução penal em si, enquanto que um dos principais aspectos ressocializadores, o trabalho do apenado, é colocado nas mãos da iniciativa privada.
Utilizando atualmente também do sistema de Parcerias Público Privadas, de forma semelhante ao disposto na legislação pátria através da Lei n° 11.079/2004, o Estado nesse sistema de parceria impõe condições contratuais que devem ser rigidamente observadas pela concessionária.
Exemplo da atuação desse modelo na experiência internacional é encontrado no ano de 2010, quando a GEPSA, empresa concessionária responsável por um dos estabelecimentos prisionais sob esse modelo, foi multada na quantia de € 400.000,00 (quatrocentos mil euros) por não oferecer satisfatoriamente trabalho para os detentos em uma prisão localizada na região de Béziers, na França (CONTRÔLEUR GÉNÉRAL DES LIEUX DE PRIVATION DE LIBERTÉ, 2011, p. 7).
Nesse sentido, conforme relatório datado de 2014 pelo Senado francês, realizado pela Comissão de Direito Constitucional, Legislação, Sufrágio Universal, Regulamento Interno e Administração Geral, a experiência privatizante prisional tem se mostrado positiva na questão de custos, vez que as despesas de manutenção e investimento se mostrariam muito mais altos, mesmo com o custo significativo das PPPs no orçamento do país, conforme se verifica em trecho do documento:
“As prisões em parceria público-privada, como vimos durante os trabalhos de nossa comissão de inquérito de 2000, tem vantagens, mas é verdade que, a longo prazo, elas aumentarão consideravelmente o orçamento da administração penitenciária. Isto dito, se elas tivessem sido concebidas de outra forma, ela teria despesas de investimento e de manutenção, que muitas vezes falham, daí o benefício o benefício da parceria público-privada.” (SENADO DA REPÚBLICA FRANCESA, 2014, p. 56)[2].
Em apertada síntese, é possível definir a lógica do sistema francês de privatização dos presídios com a utilização da análise do economista Milton Friedman sobre a atuação dos entes privados dentro da lógica do governo ao dizer que: “a existência do mercado livre não elimina a necessidade do governo. Ao contrário, o governo é essencial não só como fórum para determinar as ‘regras do jogo’, mas também como árbitro para interpretar e aplicar as regras aprovadas” (2014, p. 17).
Portanto, na lógica da privatização francesa, ao contrário da americana, não há a aplicação da doutrina do hands off. Diversamente, o Estado age de forma a fiscalizar a atuação do ente privado realizador da forma que venha a cumprir todas as determinações previstas.
Nesse diapasão, pode-se encontrar uma relação de complementariedade no modelo francês, em oposição a uma relação de substituição no modelo americano.
Além do modelo francês e do americano, poderia também se falar do modelo inglês, o qual não será, todavia, tratado nesse artigo, devido as suas enormes semelhanças com o modelo americano, sendo um modelo mais moderado desse, intermediário entre os modelos supracitados, adaptado para a forma de configuração do Estado inglês e criado sob a mesma perspectiva histórica, levando em conta às semelhanças ideológicas entre o presidente dos Estados Unidos à época, Ronald Reagan e a primeira ministra Margaret Thatcher.
Tratados os aspectos gerais de cada modelo, assim como dada uma introdução breve, resta questionar: algum desses modelos se encaixa na legislação brasileira? O que será visto a seguir.
Questionando-se qual ou mesmo se algum dos modelos de privatização se mostra adequado para a realidade jurídica brasileira, há que se observar preliminarmente a tímida experiência histórica do Brasil com a privatização dos presídios em uma linha cronológica.
A primeira experiência relevante é datada de 07/01/1992, quando o jurista Edmundo Oliveira apresentou ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) proposta de gestão mista, na qual caberia à iniciativa privada a prestação dos serviços de hotelaria (quais sejam, alimentação, trabalho, educação, dentre outros) e ao poder público seria incumbida a função da direção do estabelecimento, sendo esse competente para admitir o pessoal necessário para vigilância, segurança, controle, registro de ocorrências e assistência jurídica.
Entretanto, à época, a Ordem dos Advogados do Brasil entendeu se tratar o projeto de um retrocesso e que esse era também inconstitucional, elaborando um documento de repúdio que contou também com assinaturas por parte de membros da magistratura e do Ministério Público.
Nesse sentido, o presidente da OAB-PR à época, Edgard Luiz Cavalcante de Albuquerque se posicionou contra, dizendo sobre a participação privada na gestão dos presídios que: “isso é função exclusiva do Estado. Se o governo terceirizar ou privatizar presídio, estradas e ensino, onde é que ele vai atuar?” (AGÊNCIA FOLHA, 1999).
O supramencionado foi o argumento majoritário em um primeiro momento, entendendo que a privatização dos presídios pressuporia uma tentativa de delegação de funções tipicamente jurisdicionais, o que seria inconstitucional.
Após, menciona-se também a tentativa legislativa através do Projeto de Lei nº 2146/99, por parte do à época deputado federal Luís Barbosa (PPB/RR), propondo a autorização e alguns passos da regulamentação da privatização dos presídios. Contudo, tal proposta foi rechaçada pelo Congresso.
No parecer que fundamentou a rejeição do projeto, elaborada pelo jurista Mauricio Kuehne em 24 de abril de 2000, enuncia-se que o projeto de lei seria inconstitucional, não havendo condição de êxito à propositura efetivada por carecer de sustentação à luz do ordenamento jurídico, ou seja, por omissão de referências à Constituição Federal, à Lei de Execução Penal e a aspectos jurisdicionais que suscitassem à execução.
Entretanto, Kuehne trouxe em seu parecer adendo essencial:
“Consoante atrás alinhado, a questão atinente à eventual terceirização de serviços pode ser viabilizada. Para tanto há lei e dispensável, neste aspecto, qualquer reforma legislativa. Neste particular, através de experiência recente, o Estado do Paraná, em ação pioneira, a nosso ver, firmou contrato com empresa, através do qual vários serviços foram terceirizados, dentre os quais aqueles que dizem de perto com as atividades de execução material propriamente ditas (alimentação, vestuário, assistência médica, jurídica, odontológica, vigilância, etc.), permanecendo o Estado com a tutela do Estabelecimento (Penitenciária Industrial de Guarapuava), nos aspectos relacionados à Direção, segurança e controle da disciplina. Em nenhum momento as atividades jurisdicionais ou as de cunho administrativo judiciário, adotando a classificação proposta por Mirabete, foi afetada. De igual forma, criaram-se canteiros de trabalho junto à Penitenciária referida, possibilitando a atividade laborativa dos internos, mediante remuneração, viabilizados os instrumentos de locação de serviços dos internos, com o Fundo Penitenciário do Estado.” (KUEHNE, 2002, grifo nosso).
O parecer exposto por Kuehne é de suma importância, pois embora aponte a inconstitucionalidade do projeto analisado naquele momento, adianta-se em expor a possibilidade de privatização dos presídios caso seja observada a separação de atividades administrativas e jurisdicionais.
A observação dessa nuance na variação da natureza das atividades da execução penal parece a melhor posição da doutrina, pois restringe à indelegabilidade apenas o que é de fato inerente ao Juízo.
Nessa mesma esteira, posiciona-se o ilustre penalista Júlio Fabbrini Mirabete, ao pontuar em conclusões de artigo sobre a privatização dos estabelecimentos penais que:
“III. Como mínimo dessa participação da sociedade no processo de execução, prevê a lei como órgãos da execução o Conselho da Comunidade e o Patronato particular, bem como a participação de particulares e entidades privadas em atividades da execução penal (assistência, trabalho, etc.).
VII. Os estabelecimentos penais podem ser edifícios privados ou públicos, geridos e operados por particulares ou entidades privadas para a execução material da pena privativa de liberdade, conforme disponha a lei estadual.
VIII. Essa gerência e operação por empresa privada não afasta a atividade jurisdicional do juiz da execução e as atividades administrativo-judiciárias do magistrado e dos demais órgãos da execução.
Ademais, essa visão pertinente à separação das atividades administrativas e jurisdicionais, permitindo a privatização parcial da execução da pena também foi o entendimento do jurista Luiz Flávio D’Urso, conselheiro federal da OAB, que em artigo destinado ao tema coloca que:
“Quanto à constitucionalidade da proposta, partimos da premissa de que a Lei Maior foi clara e que ela não proibiu, permitiu.
E mais, na verdade não se está transferindo a função jurisdicional do Estado para o empreendedor privado, que cuidará exclusivamente da função material da execução penal, vale dizer, o administrador particular será responsável pela comida, pela limpeza, pelas roupas, pela chamada hotelaria, enfim, por serviços que são indispensáveis num presídio.
Já a função jurisdicional, indelegável, permanece nas mãos do Estado que por meio de seu órgão juiz, determinará quando um homem poderá ser preso, quanto tempo assim ficará, quando e como ocorrerá punição e quando o homem poderá sair da cadeia, numa preservação do poder de império do Estado que é o único titular legitimado para o uso da força, dentro da observância da lei” (D’URSO, 1999).
Cabe salientar ainda que, partindo-se para as raízes da teoria geral do processo, é possível aferir da clássica obra de Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco sobre a teoria geral do processo, argumentação favorável à privatização dos presídios, eis que os autores pontuam a realização da Execução Penal em dois âmbitos, com a execução propriamente dita, correspondente à imposição da pena, que é realizada pela administração e através dos denominados incidentes da execução, os quais seriam indiscutivelmente jurisdicionais (CINTRA; DINAMARCO, GRINOVER, 2015, p. 361). Lição que corrobora com o entendimento dos doutrinadores citados anteriormente.
Noutro giro, a posição acima mencionada não foi instantaneamente pacificada, podendo-se encontrar posições divergentes na doutrina, as quais também devem ser vislumbradas.
Remetendo-se à Constituição Federal, Erivan Santiago França Filho, um dos defensores da medida ser inconstitucional, defende que o Estado não estaria legitimado a “transferir a uma pessoa física ou jurídica, o poder de coação de que está investido e que é exclusivamente seu, por ser, tal poder, violador do direito de liberdade” (FRANÇA FILHO, 1995, p. 36-38).
Nesse sentido, o autor menciona que a privatização seria amplamente contrária ao art. 5º, LII, Constituição Federal, acumulado com o princípio da jurisdição única, o qual reza que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente (FRANÇA FILHO, 1995, p. 36-38).
No mesmo sentido, Maria Juliana Moraes de Araujo alega que: “Sendo a atividade executiva penal uma função pública e não um serviço público e sobretudo a continuação da atividade jurisdicional cuja característica principal é ser monopólio estatal, não poderia jamais ser objeto de contrato com particulares através de procedimentos de licitação e muito menos de privatização” (1995, p. 50).
Todavia, como já citado pela ampla gama de doutrinadores defensores da privatização de modo parcial, a declaração de inconstitucionalidade baseada no entendimento da inafastabilidade da jurisdição seria uma ampliação do conceito de jurisdição e das tarefas da execução penal, que em grande parte são matérias englobadas na esfera administrativa. Nesse sentido, essas últimas, são os pontos passíveis à privatização.
Por isso, Edmundo de Oliveira em sua obra Política criminal e alternativas à prisão, dispôs de forma explícita a divisão das tarefas realizadas na Execução Penal, dividindo as que poderiam ser delegáveis ou não como:
“a) atividade jurisdicional, que compete ao juiz da execução penal, na qualidade de comandante da execução para garantir o cumprimento das disposições legais fixadas pelo Direito Penal, pelo Direito Processual Penal e pela Constituição Federal (art. 66 da LEP);
Logo, ainda cabível mencionar, que no entendimento do autor ao concluir o trecho mencionado, que ressalvadas as atividades classificadas como atividades jurisdicionais e atividades administrativo-judiciárias, não haveria nenhum impedimento para a atuação da iniciativa privada no âmbito da execução penal (OLIVEIRA, 1997, p. 205).
Ressalta-se também que, como bem observado por Mirabete, Oliveira e Kuehne nos trechos expostos dos autores, esses mencionam a desnecessidade de qualquer reforma legislativa, visto que a própria Lei nº 7210/84 possibilita a delegação de algumas de suas atividades para privados, a exemplos dos arts. 13, 20 e 36 da Lei n°7.210/1984 .
Logo, mister observar que a legislação citada goza de presunção de constitucionalidade por se tratar de Lei, decorrente do princípio da separação de poderes. Da mesma forma, necessário mencionar que oportuna a aplicação do chamado princípio da interpretação conforme a Constituição nesse sentido.
O supramencionado princípio é aplicado, nas palavras de Luís Roberto Barroso, quando “existir interpretação alternativa possível, que permita afirmar a compatibilidade da norma com a Constituição” (2013, p. 324).
Nas palavras do autor, esse princípio enseja na melhor preservação das normas suspeitas de inconstitucionalidade, designando a interpretação que melhor se coadune com os fins constitucionais quando possível, o que é visivelmente o caso em tela (2013, p. 325).
Por fim, em conclusão da discussão quanto à constitucionalidade por inafastabilidade da jurisdição, importante ainda salientar observação de Célia Regina Nilander Maurício em sua tese de mestrado, a qual relata que com a Lei nº 17.079/2004, disciplinando as parcerias público-privadas (PPP), criou-se lastro jurídico adequado, definindo de forma regular essa divisão de tarefas, o que se coaduna com a visão de criação de um ambiente normativo pátrio adequado à implementação da prática (2011, p. 136).
Assim, diante de todo o exposto, conclui-se que abalizado na ampla doutrina ao analisar o tema, ressalvada a divisão de tarefas no âmbito da Execução Penal, parece não restar dúvidas sobre a constitucionalidade da privatização dos presídios quanto aos serviços considerados atividade administrativa, nas palavras de Edmundo de Oliveira e Júlio Fabbrini Mirabete ou da execução propriamente dita, conforme termo cunhado por Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco.
Da mesma forma, também se torna claro que diante dos limites impostos pela Constituição Federal brasileira, impensável a privatização no modelo americano, visto ser pacífica a indelegabilidade da jurisdição, mesmo que no âmbito da execução penal. Com a doutrina do hands off, a qual prega a autonomia administrativa dos estabelecimentos penitenciários para os incidentes da execução da pena, entra-se em um impasse insuperável, limitado pela letra da carta magna brasileira, que obsta a adoção do modelo americano.
Porém quanto ao sistema francês de privatização de presídios, esse se mostra adequado a ponto de tornar desnecessárias mudanças legislativas, como mencionado por Kuehne anteriormente. O modelo francês se encaixa na realidade brasileira, na qual há divisão bem definida do que é jurisdicional e o que é administrativo, delegando o último ao privado e mantendo incólume o primeiro ao Estado, seu legítimo detentor.
Fortalecendo ainda mais esse entendimento a favor da constitucionalidade da privatização dos presídios, a Lei nº 13.190/2015, veio a disciplinar a delegação de determinadas atividades constitutivas da execução penal para a iniciativa privada, fortalecendo a ideia de um ambiente jurídico favorável à implementação da medida, enquanto que a Lei nº 17.079/2004 regulamentou uma sistemática legal apta a essa divisão de tarefas.
Do pressuposto da possibilidade de privatização dos presídios através do chamado modelo francês outros problemas surgem instantaneamente, a exemplo do questionamento de quais atividades da execução da pena constituem exercício do poder de polícia, cuja delegação é vedada pelo o art. 83-B da Lei de Execução Penal. Contudo, a resolução dessa forma de problemática cabe ao Direito Administrativo e ao Direito da Execução Penal, já perpassado o filtro primário da constitucionalidade.
Além disso, cabe apontar de modo breve que parte da doutrina aponta a inconstitucionalidade da privatização dos presídios por esse fenômeno violar o supraprincípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, inciso III, Constituição Federal).
Nesse sentido é a posição de Juarez Cirino dos Santos, conforme se extrai de trecho de sua obra sobre a parte geral de Direito Penal:
“Além disso, a própria privatização do trabalho carcerário por convênio com empresas privadas parece infringir o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1 °, CR), por uma razão elementar: a força de trabalho encarcerada não tem o direito de rescindir o contrato de trabalho, ou seja, não possui a única liberdade real do trabalhador na relação de emprego e, por isso, a compulsória subordinação de seres humanos encarcerados a empresários privados não representa, apenas, simples dominação do homem pelo homem, mas a própria institucionalização do trabalho escravo na prisão, como a história da ascensão, queda e ressurreição da privatização de presídios demonstra. Se o programa de retribuição e de prevenção do crime é definido pelo Estado na aplicação da pena criminal pelo Poder Judiciário (art. 59, CP), então a realização desse programa político-criminal constitui dever indelegável do Poder Executivo, vinculado ao objetivo de harmônica integração social do condenado (art. 1 °, LEP) , com exclusão de toda e qualquer forma de privatização da execução penal” (2014, p. 480).
Da mesma forma é a posição de Grecianny Carvalho Cordeiro, ao alegar que: “Transformar o preso em mero instrumento de obtenção de lucro, indiscutivelmente, fere a sua dignidade, deixando-o completamente à mercê de sua própria sorte, distanciado de qualquer controle estatal” (2014, p. 67).
Contudo, as mencionadas argumentações são problemáticas, pois partem de um princípio com conceito tipicamente indeterminado.
Nesse sentido aponta Luís Roberto Barroso sobre a abstratividade do conceito de dignidade da pessoa humana: “[…] em termos práticos, a dignidade, como conceito jurídico, frequentemente funciona como um mero espelho, no qual cada um projeta os seus próprios valores. Não é por acaso, assim, que a dignidade, pelo mundo afora, tem sido invocada pelos dois lados em disputa, em matérias como aborto, eutanásia, suicídio assistido, uniões homoafetivas, hate speech (manifestações de ódio a grupos determinados, em razão de raça, religião, orientação sexual ou qualquer outro fator), clonagem, engenharia genética, cirurgias de mudança de sexo, prostituição, descriminalização das drogas, abate de aviões sequestrados, proteção contra a autoincriminação, pena de morte, prisão perpétua, uso de detector de mentiras, greve de fome e exigibilidade de direitos sociais. A lista é longa” (2012, p. 129/130). É o caso das críticas à privatização apontadas nesse sentido.
A invocação do argumento de ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana contra a privatização dos presídios e suas consequentes práticas, baseando-se em princípios morais não universais e inobservando parâmetros jurídicos concretos, trata-se de tentativa inapropriada de jurisdicionalizar questões iminentemente políticas.
Dessa forma, a mera alegação de inconstitucionalidade lastreada em ofensa a preceito moral é questão que embora formalmente constitucional, eis que invocada ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana, não é de fato constitucional ou sequer legal, pois esbarra na separação entre direito e moral, abarcada pelas visões mais relevantes de distinção entre ambas, como a teoria dos círculos secantes, a visão kelseniana e mesmo a teoria do mínimo ético (NADER, 2014, p. 42-43).
Outrossim, como bem mencionado acima por Barroso, os defensores da ideia da privatização dos presídios também invocam o princípio da dignidade da pessoa humana, porém de forma positiva. Nesse diapasão, diversos autores como Luiz Flávio Gomes [3] e Luiz Flávio Borges D’Urso [4] argumentam que a privatização elevaria a dignidade do preso ao proporcionar melhores condições materiais ao detento.
Logo, alongar-se na discussão da temática tanto favoravelmente como contrariamente, sob a ótica da dignidade da pessoa humana, implica na utilização de temas morais, políticos e econômicos, os quais contaminam uma necessária discussão tecnicamente jurídica.
Assim, inoportuno sequer apreciar o mérito dos argumentos expostos pelos críticos, pois esses tratam de matéria de mérito da medida, que escapa o escopo de análise da constitucionalidade.
Ademais, a mencionada argumentação também se contrapõe à presunção de constitucionalidade de que gozam os dispositivos da Lei de Execução Penal que permitem a terceirização de determinadas atividades administrativas da execução, o que se coaduna com argumento exposto no capítulo anterior de mesmo sentido.
Conclusão
Diante de todo o exposto, algumas considerações são necessárias:
Observa-se que a privatização dos presídios passa pelo filtro primário de constitucionalidade. Contudo, a possível privatização se limita à delegação de atividades de cunho administrativo da execução da pena, correspondente ao denominado modelo francês de privatização dos presídios.
A alternativa, chamada de modelo americano de privatização dos presídios se mostra flagrante inconstitucional, pois esbarra na delegação de atividades jurisdicionais, cuja titularidade e monopólio pertence ao Estado.
Contudo, insta salientar que mesmo no que se refere ao modelo de privatização francês há problemas, pois deve haver maior aprofundamento da doutrina no que diz respeito a definir as atividades que constituem exercício do poder de polícia dentro da execução penal. Todavia, tal objeto escapa do escopo do trabalho.
Da mesma forma, a privatização dos presídios também é constitucional sob o ponto de vista da dignidade da pessoa humana, pois os argumentos apresentados pelos críticos da medida nesse sentido incorrem em tentativa de jurisdicionalizar questões políticas.
Nesse diapasão, a mera alegação de inconstitucionalidade lastreada em ofensa a preceito moral é questão que embora formalmente constitucional, eis que invocada ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana, não é de fato constitucional ou sequer legal, pois esbarra na separação entre direito e moral, abarcada pelas visões mais relevantes de distinção entre ambas, como a teoria dos círculos secantes, a visão kelseniana e mesmo a teoria do mínimo ético (NADER, 2014, p. 42-43).
Nota-se que a prática, por ser constitucional diante de toda a argumentação exposta, não encontra óbices em sua aplicabilidade na realidade brasileira, havendo inclusive inovações legislativas nos últimos anos que permitem a implementação do modelo francês de privatização dos presídios, a exemplo da Lei nº 13.190/2015, que alterou a Lei de Execução Penal, ampliando a possibilidade de participação da iniciativa privada na execução da pena e a Lei nº 17.079/2004, que regulamentou em âmbito nacional o modelo de parcerias público-privadas.
Por fim, consigna-se que a concepção da privatização dos presídios necessita de maior aprofundamento da doutrina, partindo-se para uma análise técnica que observe os mais diversos campos do conhecimento, vez que a discussão até o momento veio a ser largamente contaminada por discursos ideológicos acientíficos, sendo necessária a contínua pesquisa sobre tema tão polêmico.
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[1] Nesse sentido, recomenda-se o estudo da passagem do modelo de Administração Pública Burocrática para o modelo de Administração Pública Gerencial, o qual a análise se mostra incabível no presente trabalho diante das limitações de sua extensão.
[2] No original: “Les prisons en partenariat public-privé, on l’a vu lors des travaux de notre commission d’enquête en 2000, ont des avantages, mais il est vrai qu’elles grèvent considérablement, à terme, le budget de l’administration pénitentiaire. Cela dit, si elles avaient été conçues autrement, il aurait bien fallu engager les dépenses d’investissement et d’entretien – lesquelles manquent souvent à l’être, d’où l’avantage du partenariat public-privé.”
[3] “Temos duas experiências no país de terceirização, terceirizou-se apenas alguns setores, algumas tarefas. […] Essas experiências foram no Paraná e no Ceará, experiências muito positivas. O preso está se sentindo mais humano, está fazendo pecúlio, mandando para a família e então está se sentindo útil, humano. Óbvio que este é o caminho. Sou favorável à terceirização dos presídios” (GOMES apud OSTERMANN, 2010).
[4] “O homem segregado deve somente perder sua liberdade e nada mais. O Estado é o responsável por aquele que se acha preso, de modo que tudo o mais, todas as atrocidades sofridas pelo preso enquanto segregado são de responsabilidade direta do Estado. Cremos que as unidades prisionais privadas poderão preservar a dignidade do preso, de modo especial se estivermos tratando do preso provisório, aquele que ainda não foi julgado e que poderá ainda ser absolvido. Quem lhe restituirá o que perdeu na cadeia, quem lhe devolverá a dignidade que lhe foi aniquilada? Ninguém” (D’URSO, 1999).
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