Como positivação dos ideiais iluministas, surgem as primeiras constituições modernas nos Estados Unidos da América (1787) e na França (1791), com a pretensão de regerem as relações político-jurídicas daquelas sociedades. Um especial reforço a esta pretensão ocorreu em 1803, no famoso caso Marbury vs. Madison[1], quando o Chief Justice John Marshall afirmou, pela primeira vez, de forma clara a possibilidade de controle de constitucionalidade das leis[2].
Com o controle de constitucionalidade judicial cria-se, conforme Niklas Luhmann[3], uma distinção entre um direito superior (“o direito constitucional”) e o demais direito (“o direito infraconstitucional”) que deve estar conformado e informado pelo primeiro.
No entanto, a aplicação efetiva daquela distinção (traduzida na Supremacia da Constituição) não se verificou de forma imediata, sendo fruto de um longo processo histórico cujo impulso maior ocorreu apenas após a segunda guerra mundial. Reforçou-se de modo enfático, a partir daquele período, a preocupação com o que Konrad Hesse denominou como “a força normativa da Constituição” [4].
Esta preocupação em garantir a efetividade dos direitos fundamentais fez surgir uma hermenêutica de concretização (Konrad Hesse[5]) baseada numa nova distinção (não mais morfológica, como Hans Kelsen[6], mas) operacional entre princípios e regras[7], capaz de fazer frente a tais desafios a partir da ponderação (Alexy)[8] dos interesses, bens e direitos em disputa[9].
No Direito Privado, estas alterações paradigmáticas[10] fizeram-se sentir, primeiramente, na dogmática alemã (em especial, Karl Larenz) e, posteriormente, espalharam-se para os outros países, com destaque para os estudos sobre a perspectiva constitucionalizante do Direito Civil do italiano Pietro Perlingieri[11] e, ainda, sobre a função social nas relações privadas de Flávio Tartuce[12].
No Brasil, a constitucionalização do direito privado[13] (e das obrigações civis) ganhou destaque com a denominada Escola do Direito Civil-Constitucional, representada dentre outros expoentes pelos professores Edson Fachin[14], Gustavo Tepedino[15], Aloísio Azevedo (livro…) e, mais recentemente, por Christiano Chaves de Faria e Nelson Rosenvald[16] e Guilherme Calmon Nogueira da Gama[17].
Resumindo estas transformações, o Prof. Caio Mário da Silva Pereira[18] afirma que a análise do Direito Civil por meio dos princípios gerais do Direito foi substituída por uma análise a partir dos princípios constitucionais, mencionando expressamente as lições do Prof. Paulo Bonavides.
Nas relações obrigacionais civis (entendidas como um processo obrigacional, já desde Karl Larenz), esta verdadeira “Revolução de Copérnico” do Direito Privado (para usar uma expressão que dá nome ao já consagrado Grupo de Pesquisa do CNPq de Gustavo Tepedino e Edson Fachin) fez sentir, em especial, pela efetiva recuperação e reconstrução daquelas a partir de princípios como o da função social e da boa-fé objetiva.
Conforme as lições do Prof. Miguel Reale[19] sobre as novas diretrizes no novo Código Civil, a boa-fé objetiva foi valorizada em diversos dispositivos, como por exemplo, na atribuição da sanção de nulidade absoluta (e não mais anulabilidade) aos negócios jurídicos simulados, mesmo nos casos da denominada “simulação inocente”.
A boa-fé objetiva (prescindindo do elemento anímico em face da complexidade da atual sociedade de riscos) confere proteção tanto “interna” (entre os sujeitos da relação obrigacional entre si) quanto “externa” (entre os sujeitos da relação obrigacional e terceiros), seja nas relações obrigacionais relativas à direitos da personalidade (extrapatrimoniais ou existenciais) seja naquelas relativas a direitos patrimoniais, irradiando seus efeitos também para os micro-sistemas (Código de Defesa do Consumidor, Estatuto da Criança e do Adolescente, Estatuto do Idoso, Legislação Ambiental, etc) e as relações obrigacionais deles decorrentes, desde que apta (a boa-fé objetiva) a melhor preservar os direitos em conflito (Cláudia Lima Marques e o Diálogo das Fontes).
Em conjunto com a proteção interna e externa das relações obrigacionais civis, destacam-se os deveres anexos ou laterais daquelas relações, em especial, o de lealdade e de cooperação e de informação que os sujeitos da relação obrigacional estão obrigados a guardar entre si e nas suas relações com terceiros (art. 422 do CC). Conforme ensina o Prof. Edson Fachin:
“Probidade e boa-fé são princípios obrigatórios nas propostas e negociações preliminares, na conclusão do contrato, assim em sua execução, e mesmo depois do término exclusivamente formal dos pactos. Desse modo, quem contrata não mais contrata tão-só o que contrata. Mais: substancialmente, quem contrata não mais contrata apenas com quem contrata”.[20]
Toda esta releitura das relações obrigacionais civis, a partir dos citados desdobramentos da boa-fé objetiva, tem tido acolhimento pelos tribunais pátrios, inclusive pelo Superior Tribunal de Justiça, de que são exemplos os casos ocorridos entre a Cica e os Produtores de Tomate do Rio Grande do Sul sobre a compra da produção deles e não importação do tomate argentino (obrigações pré-contratuais decorrentes da boa-fé) e os diversos casos quanto às obrigações civis-comerciais de não-disputar clientela após a venda de um estabelecimento comercial e de manutenção de assistência técnica e peças de reposição após a venda do produto e, ainda, de recolher componentes poluentes e altamente impactantes na natureza após seu consumo pelos clientes (obrigação civil-ambiental), a caracterizar obrigações pós-contratuais decorrentes da boa-fé objetiva.
Por fim, merece destaque a nova dimensão que princípios e teorias clássicas como o da cláusula rebus sic stantibus e o da teoria da onerosidade excessiva (art. 478 do CC) e da imprevisão (art. 477, do CC), bem como o princípio da proibição de comportamento contraditório (venire contra factum proprio) ganharam a partir da boa-fé objetiva[21].
Mestre em Direito Constitucional pela UFMG
Prof. da Faculdade de Direito da UFG – Campus Cidade de Goiás
Procurador da Fazenda Nacional
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