A criminalização da homofobia no Direito Penal brasileiro: o caso de Dandara dos Santos

Resumo: O conceito de homofobia é utilizado para caracterizar uma forma de preconceito e aversão à homossexualidade, implicando em uma série de emoções negativas como ódio, desprezo, entre outros. Segundo relatório de 2016 do Grupo Gay da Bahia (GGB), o Brasil é o campeão mundial de crimes motivados pela homofobia e/ou transfobia. Nesse ano, foram ao todo 343 mortes de gays, travestis e lésbicas no país, incluindo 26 suicídios. Ou seja, um assassinato a cada 25 horas. Estes dados serviram de motivação para a produção deste artigo, cujo objetivo é compreender como se dá a penalização de crimes homofóbicos dentro do Direito Penal brasileiro, tendo como objeto de estudo o caso da travesti cearense Dandara dos Santos, de 42 anos, assassinada a pauladas, espancamento e tiros no dia 15 de fevereiro de 2017. Dessa maneira, serão abordados artigos, livros e reportagens relevantes que tratem do tema aqui proposto. É preciso levar em conta que esses atos não atingem apenas o indivíduo, mas toda uma sociedade moldada no conservadorismo, que pressupõe a exclusão de sujeitos e grupos sociais.[1]

Palavras-chaves: Direito Penal. Homofobia. Dandara dos Santos.

Abstract: The concept of homophobia is used to characterize a form of prejudice and aversion to homosexuality, implying in a series of negative emotions such as hatred, contempt, among others. According to the 2016 report of the Bahia Gray Group (GGB), Brazil is the world champion of crimes motivated by homophobia and / or transphobia. In the same year, there were a total of 343 gays, transvestites and lesbians deaths in the country, including 26 suicides. Which means a murder every 25 hours. These data served as motivation for this article production, whose objective is to understand how the criminalization of homophobic crimes within the Brazilian Criminal Law, having as study object the case of the transvestite Dandara dos Santos, 42 years old, clubbed to death on February 15, 2017. In this way, relevant articles, books and reports dealing with the theme proposed here will be addressed. It must be taken into account that these acts don’t only affect the individual, but an entire society shaped by conservatism, which presupposes the exclusion of individuals and social groups.

Keywords: Criminal Law. Homophobia. Dandara dos Santos.

Sumário: Introdução. 1. O Conceito de crime no Direito Penal Brasileiro. 2. A homossexualidade e a violência homofóbica no Brasil. 3. Homofobia como crime: a morte de Dandara dos Santos. Conclusão.

INTRODUÇÃO

A sociedade, há algum tempo, vem sofrendo diversas modificações, principalmente em se tratando do conceito de família e daquilo que se entende como certo e errado dentro do tradicionalismo patriarcal. Entre essas transformações, a compreensão de que a homossexualidade hoje faz parte do cotidiano. Primeiramente, segundo Jesus (2012, p. 15), homossexual é “Pessoa que se atrai afetivo-sexualmente por pessoas de gênero igual àquele com o qual se identifica”. O termo pode referir-se tanto a homens, quanto a mulheres.

Tendo em vista a realidade apresentada atualmente, é preciso enfatizar a violência que atinge constantemente a população LGBTs (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Transgêneros). Quase todos os dias, é possível observar em matérias de jornais crimes homofóbicos que, para além da agressão verbal, englobam também a agressão física, tendo como resultado a morte da vítima. Para tanto, a Câmara dos Deputados propôs o Projeto de Lei da Câmara (PLC) nº 122/2006, em que o objetivo se constitui em coibir a conduta denominada homofóbica em várias das suas manifestações, tipificando a homofobia como crime de ódio e de intolerância, tendo como sentença penas de prisão.

Dessa forma, neste trabalho, procuraremos entender de que maneira o Direito Penal brasileiro se manifesta a respeito dos crimes de violência homofóbica, quais são as sanções impostas, procurando também mostrar a ineficácia da criminalização brasileira para combater esses crimes supracitados e propor sugestões alternativas para a diminuição da violência à comunidade LGBT. Com base nisso, escolheu-se o assassinato de Dandara dos Santos, travesti, moradora da cidade de Fortaleza, capital do Ceará. O crime gerou revolta na sociedade civil, principalmente em manifestações populares, mas em grandes jornais, não apenas no Brasil, como mundo afora, que noticiaram o caso (New York Times, BBC, entre outros). A ocorrência teve maior atenção por ter sido gravada em vídeo e publicada no YouTube.

É aqui que paramos para refletir a respeito dos conceitos de moral e ética dentro de uma comunidade. Para Immanuel Kant (2003), por exemplo, a moral centra-se na noção de dever, aquilo que obriga o homem a fazer o que talvez ele não goste, mas que consequentemente é o melhor para ele em determinado momento ou situação. Enquanto isso, Aristóteles (1991) traz que a ética tem como finalidade o bem pessoal, tendo como objeto a relação entre os sujeitos. Para este filósofo, o homem não nasce com a virtude moral, mas a adquire com o tempo, e é a repetição deste hábito que vai transformá-lo em um ser justo, compondo o seu caráter digno. Ou seja, é através do hábito e da prática de atos justos que o indivíduo se transforma em um ser virtuoso. Entretanto, ao contrário de Aristóteles, Kant não tem a busca da felicidade como base de suas teorias. Mas o que caracteriza os dois em comum é que, para eles, o homem é livre para agir da forma que lhe convém, porém, sabendo que haverá consequências – positivas ou negativas, e é pela ética e pela moral que o sujeito vai realizar atos que nem sempre vão ser bons, mas que visam o bem-estar social.

Destaca-se, assim, que a ética estuda os valores e as relações interpessoais, enquanto a moral refere-se aos costumes e tradições de um povo, mas ambas vão nortear a conduta dos indivíduos. É de conhecimento geral que, em grande parte, as críticas e atitudes negativas feitas à natureza homossexual partem do caráter religioso e também moralista. Ora, a própria Igreja renega o casamento homoafetivo por acreditar que é algo contrário aos propósitos de Deus.

“Além da natureza de suas relações sexuais, não há qualquer diferença entre homossexuais e heterossexuais de índole moral ou na participação da sociedade. A ideia de que os homossexuais são de alguma forma perniciosos, revela-se um mito muito semelhante à ideia de que os negros são preguiçosos ou os judeus avarentos”. (RACHELS, 2004, p. 72).

Nesse contexto, é possível compreender que não há uma explicação mais elaborada e com uma base verdadeiramente pertinente para afirmar que os homossexuais ofendem à sociedade tradicional. Onde encaixa-se, então, a ética e a moral do homem em face de seus atos discriminatórios e agressivos? Para tentar responder a esse questionamento, daremos corpo ao presente artigo em busca de compreender o conceito de crime, a homofobia e sua criminalização – neste caso, se há alguma penalização e, caso não haja, o que deve ser feito.

1. O CONCEITO DE CRIME NO DIREITO PENAL BRASILEIRO

Chama-se “teoria do delito” à parte da ciência do direito penal que se ocupa de explicar o que é crime em geral, isto é, quais são as características que deve ter qualquer crime. Seu objetivo é de cunho prático: tornar mais fácil a averiguação da presença, ou ausência, do crime.

Nesse sentido quando é necessário determinar se existe crime em um caso concreto, como por exemplo, a conduta de um sujeito que subtraiu quantia de um estabelecimento comercial, o conhecimento do conteúdo de um crime – conduta considerada como crime – deve ser contraposto, sob pena de ferir os princípios que legitimam o jus puniendi estatal.

Entre os vários raciocínios aplicáveis, é possível argumentar que é crime a conduta do sujeito em questão porque se ajusta ao preceituado no art. 155 do Código Penal, mas pode suceder que, apesar de ajustar-se a esta disposição, no caso concreto o sujeito tivesse subtraído o dinheiro porque o necessitava para a cirurgia de seu filho ou simplesmente se apoderou da quantia em dinheiro por engano. Outro raciocínio aplicável é de que é crime a conduta do sujeito pois esta afetou negativamente o corpo social, atentando contra seus valores e interesses. Este raciocínio é mais prudente, mas é perigoso na medida em que proporciona o arbitrário no posicionamento estatal.

Nestas hipóteses o conceito formal de crime (que toma por base a vazia ideia de que é crime o que está preceituado na legislação penal) assim como o conceito material (cujo substrato se concentra na ameaça dirigida aos valores ou interesses do meio social – o bem jurídico) são, deveras, insuficientes. A fim de adentrar no real conteúdo do que é caracterizado como crime faz-se bom uso das contribuições advindas das teorias que buscaram definir o conceito de crime, e, estratificadamente, no tear de uma concepção analítica, considerar três planos distintos da ação humana: a tipicidade, a antijuridicidade, e a culpabilidade.

Em primeiro lugar, é mister a correspondência entre crime e conduta humana, pois não há sentido falar de crimes que não sejam uma conduta humana. Dito que crime é a conduta do homem, sabe-se que, entre uma infinita quantidade de condutas possíveis, somente algumas são crimes. Para diferenciar as condutas consideradas como crime daquelas que não o são, recorre-se, no nosso ordenamento jurídico, a Parte Especial do Código Penal, onde dispositivos legais descrevem as condutas proibidas a que se associa uma pena como consequência.

Tecnicamente, chama-se tipos a estes elementos da lei penal que servem para individualizar a conduta que se proíbe com relevância penal. O primeiro plano se revela: a tipicidade. Quando uma conduta se ajusta aos tipos legais, trata-se de uma conduta típica.

Com efeito, a tipicidade por si só é insuficiente para a caracterização do crime, visto que, ao analisar pormenorizadamente o ordenamento jurídico, nem toda conduta típica é crime. Tal conclusão é possível devido ao caráter uno do Direito. Na hipótese das causas de justificação (estado de necessidade, legítima defesa e de estrito cumprimento do dever legal), não há crime, pois, por expressa determinação legal, está excluído o caráter delitivo de uma conduta típica.

Dito isso, quando uma conduta típica não está permitida, é contrária a ordem jurídica. Tem-se então a antijuridicidade – incompatibilidade com a ordem jurídica considerada como unidade harmônica que se comprova pela ausência de permissões. A conduta humana deve ser, além de típica, antijurídica – chamada no âmbito da doutrina penal de “injusto penal”.

Em um último plano, é necessário que ao autor seja exigível a possibilidade de atuar de maneira diversa, tornando assim a conduta humana típica e antijurídica reprovável. Por exemplo, na hipótese do sujeito incapaz mentalmente, determinada conduta não pode ser exigível devido sua incapacidade. Esta característica de reprovabilidade do injusto do autor corresponde ao plano da culpabilidade e constitui a terceira característica específica do crime.

Atualmente pouco lembrada, um quarto plano de análise é estabelecido na punibilidade. Como critério supletivo, adicionado a estrutura do crime para impedir que apenas a tipicidade e a antijuridicidade tornassem o conceito inexato, a punibilidade era compreendida como a necessidade de submissão a uma pena nas hipóteses enquadradas nos elementos anteriores.

Em que pese necessária a referência, a evolução do conceito de delito apresentou estas quatro características em seu cerne, embora existam divergências no desenvolvimento de seus alcances e significado. É melhor compreendido a estrutura que delimita a conduta criminosa a partir da observação das divergências e críticas a estas teorias.

O conceito clássico de delito, elaborado por Franz von Liszt (1884) e Ernst von Beling (1906) foi dogmática característica do positivismo científico que afastava completamente qualquer contribuição filosófica, psicológica e sociológica. O injusto era considerado objetivo e a culpabilidade considerada psicologicamente.

A ação era um conceito puramente descritivo, naturalista e causal (teoria causal-naturalista da ação). Era entendida como o movimento corporal voluntário que causa modificação no mundo exterior. A manifestação de vontade, o resultado e a relação de causalidade são os três elementos deste conceito de ação. Nesse sentido, argumenta Cezar Roberto Bitencourt:

“Dizia Mezger, citando Beling, que “para se afirmar que existe uma ação basta a certeza de que o sujeito atuou voluntariamente. O que quis (ou seja, o conteúdo de sua vontade) é por ora irrelevante: o conteúdo do ato de vontade somente tem importância no problema da culpabilidade”. (BITENCOURT, 2012, p.320 apud EDMUNDO MEZGER, 1935, p. 220-221).

Na contribuição de Beling, o injusto começou a ser entendido como objetivo através da análise da tipicidade – introduzido em sua teoria do tipo penal, em 1906. A tipicidade era definida como a proibição da causação de um resultado. Sendo o critério da tipicidade objetivo e a culpabilidade psicológica, o conceito clássico consolidou o chamado esquema “objetivo-subjetivo”.

A antijuridicidade era um juízo valorativo puramente formal em que bastava a comprovação de que a conduta é típica e de que não concorre nenhuma causa de justificação. A punibilidade apresentava-se a priori na elaboração dada por Von Liszt (1884), no entanto, com o advento da teoria do tipo penal, perdeu seu espaço. A culpabilidade, por sua vez, era concebida como aspecto subjetivo do crime, e também era essencialmente descritiva, pois se limitava a comprovar o vínculo subjetivo entre o autor e o fato. Para essa teoria, o nexo psicológico delimitava a culpa e o dolo na sede da culpabilidade.

Em seu turno, o conceito bipartido defende a ideia de crime a ação típica e antijurídica. Esta classificação é sustentada por René Ariel Dotti (1968), Damásio de Jesus (1972), Julio Fabbrini Mirabete (1980), Celso Delmanto (1980), André Estefam, Cleber Masson (2009), entre outros. A culpabilidade não integra como elemento do crime, sendo apenas pressuposto de aplicação da pena. “[…] o isolamento da culpabilidade do conceito de delito representa uma visão puramente pragmática do Direito Penal, subordinando-o de modo exclusivo à medida penal e não aos pressupostos de sua legitimidade” (NUCCI, 2014, p. 148 apud JUAREZ TAVARES, 1980, p. 109).

Observa-se, portanto, que, ausente a culpabilidade como elemento necessário ao crime, a ação típica e antijurídica praticada pelo menor de 18 anos ou por aquele sob coação moral irresistível deve ser considerada criminosa. Além disso, a adoção do conceito bipartido abre margem a uma intervenção estatal mais rigorosa na esfera da liberdade e ameaça a sustentação de um direito penal minimalista. Os defensores do conceito bipartido do delito estarão necessariamente em consonância com a teoria finalista.

Conclui-se, crime é, portanto, nos moldes práticos e adotados pelo Direito Penal brasileiro, a conduta humana típica, antijurídica e culpável. Temos, pois, uma característica de cunho genérico (conduta humana) e outras três características de cunho específico (tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade). O juízo de cognição através do qual determina-se que alguma conduta é crime deve se verificar nesta exata ordem.

2. A HOMOSSEXUALIDADE E A VIOLÊNCIA HOMOFÓBICA NO BRASIL

Antes de afirmar ou não a existência de leis específicas que criminalizem a homofobia e as práticas violentas, faz-se necessária uma abordagem sobre o que é a Justiça para o homem. O termo retrata a compreensão do que é justo e correto, como uma maneira de manter “a ordem social através da preservação dos direitos em sua forma legal”.

“[…] filósofos políticos modernos — de Immanuel Kant, no século XVIII, a John Rawls, no século XX—afirmam que os princípios de justiça que definem nossos direitos não devem basear-se em nenhuma concepção particular de virtude ou da melhor forma de vida. Ao contrário, uma sociedade justa respeita a liberdade de cada indivíduo para escolher a própria concepção do que seja uma vida boa. Pode-se então dizer que as teorias de justiça antigas partem da virtude, enquanto as modernas começam pela liberdade”. (SANDEL, 2015, p. 15).

Jeremy Bentham, filósofo e jurista, em sua doutrina utilitarista, afirmava que, conforme Sandel (2015), o objetivo da moral é a felicidade – para ele, o útil é qualquer coisa que traga felicidade e prazer e evite dor e sofrimento.

“Ao determinar as leis ou diretrizes a serem seguidas, um governo deve fazer o possível para maximizar a felicidade da comunidade em geral. O que, afinal, é uma comunidade? Segundo Bentham, é “um corpo fictício”, formado pela soma dos indivíduos que abrange. Cidadãos e legisladores devem, assim, fazer a si mesmos a seguinte pergunta: Se somarmos todos os benefícios dessa diretriz e subtrairmos todos os custos, ela produzirá mais felicidade do que uma decisão alternativa?” (SANDEL, 2015, p. 41-42).

É a partir disso que surge, então, o problema: ainda de acordo com Sandel (2015), o utilitarismo foca nos direitos coletivos e deixa de lado os direitos individuais, pois, ao considerar as satisfações gerais, ele também considera as preferências em conjunto, esquecendo que cada sujeito busca sua própria felicidade, e que a felicidade de um não é obrigatoriamente a do outro. Em contrapartida aparece a teoria libertária, que acredita na liberdade humana – “[…] temos o direito de fazer o que quisermos com aquilo que nos pertence, desde que respeitemos os direitos dos outros de fazer o mesmo. (SANDEL, 2015, p. 67)”. Uma de suas principais diretrizes é a ausência de legislação sobre a moral: para os libertários, não se justificam a existência de leis que proíbam homossexuais de escolherem livremente os seus parceiros. Claro que há críticas em se tratando das duas teorias, principalmente por possuírem alguns tópicos que são bastante extremistas, mas que não são objeto de estudo deste trabalho. Entretanto, é possível contextualizar alguns conceitos de ambas na questão da homossexualidade e da homofobia. Segundo Sandel (2015, p. 116): “Se os direitos não se baseiam na felicidade da maioria das pessoas, qual seria então sua base moral? Os libertários talvez tenham uma resposta: as pessoas não deveriam ser usadas como meros instrumentos para a obtenção do bem-estar alheio, porque isso viola o direito fundamental da propriedade de si mesmo. Minha vida, meu trabalho e minha pessoa pertencem a mim e somente a mim. Não estão à disposição da sociedade como um todo.”

Dessa maneira, é de suma relevância abordar o histórico da homofobia e suas causas, tendo em vista que a homossexualidade não é algo recente, portanto, a violência homofóbica hoje ganha destaque na mídia não por estar mais presente, já que sempre existiu, mas porque as pessoas pararam de guardar para si e iniciaram uma busca por justiça. O Grupo Gay da Bahia funciona como uma associação de defesa dos direitos humanos dos homossexuais, fundado em 1980, sendo a mais antiga no Brasil. Conforme dados divulgados em seu portal, das 343 vítimas que foram assassinadas em 2016, 173 eram gays (50%), 144 trans (42%), 10 lésbicas (3%), 4 bissexuais (1%) e 12 amantes de travestis (T-lovers) (GGB, 2016).

Conforme o Relatório de Violência Homofóbica no Brasil no ano de 2013 (2016), neste ano foram registradas pelo Disque Direitos Humanos (Disque 100) 1.695 denúncias de 3.398 violações relacionadas à população LGBT, totalizando 1.906 vítimas e 2.461 suspeitos. “As violações dos direitos humanos relacionadas à orientação sexual e identidade de gênero, que vitimizam fundamentalmente a população LGBT, constituem um padrão que envolve diferentes espécies de abusos e discriminações e costumam ser gravadas por outras formas de violências, ódio e exclusão, baseadas em aspectos como idade, religião, raça ou cor, deficiência e situação socioeconômica. Apesar de ser um evento que encerra numa escalada de violações, o homicídio é apenas uma das entre várias outras violências consideradas “menores”, como discriminações e agressões verbais e físicas dos mais variados tipos”. (SDH, 2016, p. 5-6).

Através dos resultados obtidos no Relatório, pode-se chegar ao número de 5,22 pessoas vítimas de violência homofóbica por dia. A maior parte das denúncias são sobre vítimas do sexo biológico masculino (73,0%) – incluindo indivíduos que expressam sua identidade em aspectos femininos. De acordo com as denúncias, 32,1% das vítimas conheciam os suspeitos, que possuem uma faixa etária entre 15 e 30 anos (19,6%), onde 26,8% dessas violações ocorre nas ruas. 40,1% trata de violências psicológicas, com 40,1% do total, seguidas de discriminação, com 36,4%; e violências físicas, com 14,4%. As lesões corporais são as que mais se destacaram (52,5% do total de violências físicas), seguidas por maus tratos (36,6%). As tentativas de homicídios reportadas totalizaram 4,1% (28 ocorrências); já os homicídios reportados ao poder público federal contabilizaram 3,8% do total de violências físicas denunciadas (26 ocorrências).

Torna-se complicado definir as causas da homofobia por não existirem muitos estudos que expliquem essa identidade. As teorias existentes trazem algo voltado mais para o psicológico dos agressores, que enxergam a homofobia como uma maneira de eles ameaçarem, de certa forma, seus próprios impulsos homossexuais, uma maneira de defesa que eles encontram para sua negação. Corroborar com essa ideia, entretanto, seria afirmar que todo homofóbico é homossexual, e não cabe a este trabalho ou a qualquer indivíduo essa generalização (FAZZANO; GALLO, 2015).

3. HOMOFOBIA COMO CRIME: A MORTE DE DANDARA DOS SANTOS

Dandara dos Santos tinha 42 anos quando foi morta por espancamento, pauladas e tiros no dia 15 de fevereiro de 2017, em Fortaleza, capital do Ceará. A morte de uma travesti não é novidade na sociedade atual. O que fez com que o caso de Dandara ganhasse destaque foi por ter sido filmado pelos seus agressores e publicado no YouTube (2017), sendo compartilhado em redes sociais como Facebook e Twitter, além de viralizado no WhatsApp.

No vídeo, é possível observar a vítima caída no chão enquanto sofre agressões de vários homens. Em nenhum momento Dandara revida a violência, recebendo pauladas, pedradas e chutes, derramando sangue e ouvindo ofensas como “viado” e “imundiça”. Ao ser obrigada a subir em um carrinho de mão, foi assassinada a tiros. Sete pessoas foram detidas, somente dois dias após a divulgação do vídeo – 18 dias após a morte de Dandara. Em dados divulgados pelo O Povo online (2017), a execução teve participação total de 12 pessoas, sendo sete adultos e cinco adolescentes. Segundo depoimento do irmão da vítima, Ricardo Vasconcelos, várias ligações foram feitas para o 190, mas os policiais chegaram depois que o crime já tinha ocorrido.

Dandara: …42 anos já, 42… (balbucia para alguém que não aparece no vídeo). Voz 1: … E aí, Lorin? (grita) Voz 2: Quebra ali! Voz 3: Ele (Dandara) tá perdendo sangue, ele… Voz 2: Qual foi? Voz 4: Teve foi sorte da negada não ter matado. Outras vozes: Vai… (inaudível) Dandara: … Se minha mãe soubesse e meu pai… (é interrompida por alguém está vindo em direção dela) Voz 2: O que é? (alguém grita em tom ameaçador, se aproxima e bate com uma madeira ou chute nas cotas dela). Dandara: … Não… Minha mãe e meu pai… Não, não, por favor. Não me bata mais não, por favor… ai, ai, ai… Voz 2: Você vai morrer, safado. Dandara: … ai, ai, por favor, cara… (ela dirige o olhar para alguém quem está a sua frente, mas o vídeo não mostra quem)… Deixa não, cara… Voz 5: Então, né, caí logo fora. Que a negada vai… Booora, véi… Voz 6: … A negada vai te matar se tu num sair fora daqui… (Há outras vozes ao fundo). Após a chegada do carro de mão, uma nova sessão de tortura é iniciada. Em princípio, por três homens e, depois, por mais três. Eles acertam Dandara com chutes, chineladas e pauladas na cabeça e nas costas. Eles a jogam no carro de mão e se afastam da área do vídeo. Depois, ela é morta a tiros. Voz 1: …Sobe, sobe, tem um carro ali pra socorrer… Pra levar onde tu quiser ir… (Dandara tenta se levantar, não consegue e cai sentada). Voz 1: …Vai, vai… Tu tá embaçando aqui, a favela, baitola… Voz 2: …A imundiça tá de calcinha e tudo, a pirangage… (nesse momento, o homem que está de relógio dá um chute na cara de Dandara que vai ao chão. Outros chegam e também a chutam e dão pauladas. Até a levarem no carro de mão). Fim do segundo vídeo.” (O POVO ONLINE, 2017).

O que chamou atenção para o caso de Dandara dos Santos foi a mobilização que aconteceu nas redes sociais e na própria mídia tradicional após o assassinato. Graças à democratização do acesso à internet e, consequentemente, o aumento da produção de informações, a mídia tem dado maior visibilidade aos crimes homofóbicos. Entretanto, nem tudo é divulgado e/ou compartilhado. “Em 2013, foram divulgadas nos principais canais midiáticos brasileiros 317 violações contra a população LGBT. Entre as violações noticiadas encontram‐se 251 homicídios” (SDH, 2016, p. 30). São essas apurações que demonstram que a mídia privilegia, se é que se pode utilizar essa palavra para se referir a este tema, travestis e transexuais que se encontram em situação de prostituição de rua e homens gays quando vitimizados por serem homossexuais.

Conforme Borrillo (2010), a homofobia tem apenas um objetivo: o preconceito e a segregação do outro. “Enquanto violência global caracterizada pela supervalorização de uns e pelo menosprezo de outros, a homofobia baseia-se na lógica utilizada por outras formas de inferiorização: tratando-se da ideologia racista, classista ou antissemita, o objetivo perseguido consiste sempre em desumanizar o outro, em torná-lo inexoravelmente diferente. À semelhança de qualquer outra forma de intolerância, a homofobia articula-se em torno de emoções (crenças, preconceito, convicções, fantasmas…), de condutas (atos, práticas, procedimentos, leis…) e de um dispositivo ideológico (teorias, mitos, doutrinas, argumentos de autoridades…).” (BORRILLO, 2010, p. 35).

Ou seja, a homofobia pode ser compreendida como uma maneira de hostilidade geral, seja ela psicológica ou social, contra aqueles que se relacionam com indivíduos do mesmo sexo. A homofobia cria uma espécie de hierarquização das sexualidades, em que, compreendendo-se dessa forma, o hétero está no topo e o homossexual no ponto mais inferior. Assim, é uma manifestação de violência e discriminação, porém, é preciso lembrar que, de acordo com o Princípio da Legalidade Penal previsto no artigo 1º do Código Penal e também no artigo 5º da Constituição Federal, inciso XXXIX, afirma-se que não há crime sem lei anterior que o defina.

“Na realidade, a homofobia constitui uma ameaça aos valores democráticos de compreensão e respeito por outrem, no sentido em que ela promove a desigualdade entre os indivíduos em função de seus simples desejos, incentiva a rigidez dos gêneros e favorece a hostilidade contra o outro. Enquanto problema social, a homofobia deve ser considerada como um delito suscetível de sanção jurídica; todavia, a dimensão repressora é destituída de sentido se ela não for acompanhada por uma ação preventiva. Com efeito, um número importante de pessoas continuam considerando a homossexualidade como uma disfunção psicológica, ou até mesmo uma doença. […] Na realidade, a homofobia é não só uma violência contra os homossexuais, mas igualmente uma agressão contra os valores que fundamentam a democracia. Em seu livro Espírito das leis, Montesquieu (1689-1755) escreveu o seguinte: “Eu me sentiria o mais feliz dos mortais se pudesse contribuir para que os homens conseguissem curar-se de seus preconceitos”. Menos ambiciosos, devemos tomar consciência da violência destilada pelos preconceitos; ora, é somente se essa iniciativa vier a revelar-se ineficaz que convirá fazer apelo aos instrumentos repressores do direito.” (BORRILLO, 2010, p. 106-107).

Nem a transfobia nem a homofobia são reconhecidos como crimes tipificados

pelo Código Penal Brasileiro, de modo que, nesse caso, a penalização dos acusados irá considerar os discursos de preconceito e ódio contra a orientação sexual de Dandara dos Santos que se reconhecia travesti. Assim, o crime foi de homicídio triplamente qualificado; os adultos poderão pegar pena de 12 a 30 anos de cadeia, com acréscimo de 1/3 da pena por homicídio doloso, e também de 1 a 4 anos pela corrupção de menores. Já os adolescentes que, por serem menores de idade, não cometem crimes, poderão ser responsabilizados por ato infracional correspondente à prática de homicídio e serem submetidos a um internamento de até três anos.

Não existe no Brasil lei específica que tipifique o crime de violência homofóbica. O que existe, na verdade, são projetos de leis que continuam em tramitação e parecem não chegar a um debate final e aprovação. Entre eles, podemos citar o Projeto de Lei nº 122/2006 que, conforme sua redação, definiria os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de gênero, sexo, orientação sexual e identidade de gênero, estabelecendo as tipificações e delimita as responsabilidades do ato e dos agentes, alterando a Lei do Racismo. No entanto, o projeto foi arquivado em 2015.

Entretanto, o governador do estado do Ceará, Camilo Santana, assinou, no dia 10 de março de 2017, um decreto permitindo transexuais e travestis usarem nomes sociais ao utilizarem os serviços públicos prestados pelo Governo do Ceará, além de liberar o atendimento de transexuais e travestis nas 10 Delegacias da Mulher do estado (G1 CE, 2017).

Como explicado anteriormente a respeito do conceito de crime, entender a necessidade de uma lei que criminalize a homofobia é compreender que essa violência seria submetida ao Direito Penal, permitindo ao Estado punir as condutas dessa natureza, cominando com uma pena já que, conforme supracitado, crimes são atos jurídicos ilícitos, antijurídicos e culpáveis.

É aqui que vamos inserir a Teoria Causal-Naturalista do Direito Penal, onde a ação é composta pela vontade do indivíduo, a modificação do crime exterior e o nexo de causalidade, ligando a ação ao resultado. Com relação a Dandara dos Santos, ficou explícito no vídeo a vontade dos indivíduos em realizarem o ato criminoso, já que eles aceitaram tanto a filmagem pelos cúmplices, quanto o próprio compartilhamento do material na internet. Além disso, a morte advinda do homicídio é o resultado obtido e a causa da morte, que foram as agressões físicas.

CONCLUSÃO

Por fim, diante o exposto, observa-se que a antiga discussão entre a liberdade individual e a moral social, no tocante à homossexualidade e a urgência dos direitos relativos a esta situação social, encontra-se irrelevante. O entrave, na visão contemporânea que garante constitucionalmente tantos direitos, não deve se sobrepor a completude de uma dignidade amplamente protegida pelo ordenamento jurídico e nem a homossexualidade deve ser vista como atentatória ou aberrante. Admitir que a homossexualidade possui tais características é adotar uma visão antiquada e opressora, que é incompatível com toda a base principiológica do direito, qual seja, a busca pela justiça e a igualdade material.

Além disso, as atitudes discriminatórias, que ocorrem em todo setor da sociedade, sejam estas um abuso psicológico ou a mais grave demonstração de ódio – como no caso de Dandara dos Santos -, são reflexo do pensamento conservador e, como constatado nos dados apresentados, atingem violentamente a população LGBT. Com efeito, é imprescindível uma tutela especial realizada pelo Estado, em sua prerrogativa de atenuador das desigualdades, que já está sendo implementada, faz-se nota.

O brutal assassinato de Dandara dos Santos é mais um exemplo que choca e que faz borbulhar os sentimentos de injustiça, insegurança e impunidade. Mesmo tendo sido identificados e punidos os autores, o caso traz à tona, mais uma vez, a situação de diversos indivíduos LGBT pelo país. Embora necessária a tutela penal, é insuficiente visto que sua eficácia é limitada e o reforço pela prevenção geral, por mais esforços que venha a empenhar, não alcança assuntos tão íntimos à formação da sociedade como o preconceito e o ódio voltado a população LGBT.

Portanto, conclui-se que a tipificação da homofobia como crime, para que possa então ser punido pelo Estado com maior eficácia, é imprescindível, pois a retribuição social e eliminação dos sentimentos de injustiça e impunidade são objetivos que merecem atenção. No entanto, é necessária prioritariamente a discussão, a criminalização da homofobia sem a implementação de políticas públicas que a combatam tornará inócua a busca pela igualdade e abarrotará as cadeias, suplício simbólico de desigualdade.

 

Referências
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Notas
[1] Artigo orientado pela Profa. Priscila Ribeiro Jerônimo Diniz – Orientadora. Professora do Curso de Direito da Faculdade Paraíso do Ceará (FAP).

Informações Sobre os Autores

Gabrielle Santana Arraes

Acadêmica de Direito da Faculdade Paraíso do Ceará FAP

Lidiane Leite Macêdo Almeida

Acadêmica de Direito da Faculdade Paraíso do Ceará FAP


Equipe Âmbito Jurídico

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