Resumo: A finalidade deste artigo é estudar a regra geral e quais as hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica na jurisprudência trabalhista, apresentando os motivos da criação deste instituto bem como os fundamentos que culminaram com a ampliação das possibilidades de responsabilização patrimonial dos sócios na seara trabalhista. O trabalho inicia com uma rápida conceituação da pessoa e personalidade jurídica, aspectos sobre o princípio da autonomia patrimonial e a importância destes institutos. Após, passamos a analisar as razões para a criação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica e a regra geral para responsabilização patrimonial dos sócios pelas dívidas da sociedade limitada, elencando os critérios legais de aplicação em cada caso, bem como apresentando uma visão crítica da legislação e da forma como a matéria está sendo julgada pelos Tribunais do Trabalho. Por fim, são citados os projetos de leis que estão tramitando no congresso nacional para fins de uniformizar as hipóteses e o procedimento para desconsiderar a personalidade jurídica, bem como apresentando uma proposta para que a teoria deixe de ser utilizada como uma simples forma de solução para a ausência de patrimônio e volte a ser aplicada somente naqueles casos excepcionais para os quais foi criada.
Palavras-chave: Responsabilidade patrimonial dos sócios no direito do trabalho. Sociedade limitada. Desconsideração da personalidade jurídica. Redirecionamento da execução trabalhista contra os sócios.
Abstract: The purpose of this article is to study the general rule and what hypotheses of disregard of the legal personality in the labor jurisprudence, presenting the creation motives of this institute as well as the fundamentals that culminated with the magnification of possibilities of the partners' patrimonial accountability at the laborite matters. The abstract starts with a quick conceptualization of the legal entity and its personality, aspects about the patrimonial autonomy principle and the importance of these institutes. After, we started analyzing the reasons for the creation of the institute of the legal personality disregard and the general rule for the partners' patrimonial responsibilization by the limited partnership debts, listing the legal criteria of application in each case, as well as presenting a critical view of the legislation and how the matter is being judged by the labour tribunals. Finally, it’s cited the law projects that are being processed in the national congress for the purpose of standardizing the hypotheses and the procedure to disconsider the legal personality, as well as presenting a proposal so that the theory ceases to be used as a simple form of solution to the patrimony absence and return to be applied only in those exceptional cases in which it was created.
Keywords: ‘Partners' patrimonial liability in the labor law. Limited partnership. Disregard of the legal personality. Redirection of the laborite execution against partners.
1 Introdução
A principal finalidade do presente trabalho é demonstrar a importância e os motivos da criação da pessoa jurídica, bem como fixar as hipóteses legais autorizadoras da desconsideração da personalidade jurídica e a responsabilização dos sócios de sociedades limitadas, identificando os motivos pelos quais este instituto foi criado e a forma como a teoria está sendo aplicada na justiça do trabalho, além de apresentar uma visão crítica sobre como esta teoria poderia ser utilizada para facilitar a cobrança dos créditos trabalhistas sem desrespeitar o instituto da Pessoa Jurídica, dando maior segurança jurídica àqueles que decidem formar uma sociedade.
É induvidoso que a sociedade limitada possui personalidade jurídica e autonomia patrimonial, de modo que a pessoa jurídica não se confunde com a pessoa do sócio, os quais possuem patrimônio, direitos e obrigações totalmente distintos, regra que só deveria ser quebrada pelas exceções expressamente previstas em lei.
Por outro lado, também é de conhecimento público que sempre existiram empresários mal intencionados que utilizam a sociedade para lesar seus credores e os direitos trabalhistas de seus empregados, razão pela qual foi necessária a criação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica para reprimir este tipo de conduta indesejada.
Não podemos, sempre, partir do princípio de que o empresário utilizou a sociedade para obtenção de vantagem indevida, tendo em vista que a regra é a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, sendo que os equívocos e abusos seguidamente cometidos para desconsiderar a personalidade jurídica na seara trabalhista acabam por desvirtuar o instituto da pessoa jurídica.
A desconsideração da personalidade jurídica e a consequente responsabilização patrimonial dos sócios pelo pagamento das dívidas sociais, instituto criado especialmente para combater o mau uso da personalidade jurídica, é um tema atual e que, devido a falta de indicadores precisos para a sua aplicação na justiça do trabalho, tem sido muito discutido pela doutrina e jurisprudência.
Trata-se de uma exceção criada para reprimir certos tipos de conduta que, todavia, está sendo utilizada de forma indiscriminada na justiça do trabalho, causando muita inquietação entre os sócios de empresa, que cada vez mais estão procurando assessoramento jurídico para tentar proteger o patrimônio pessoal em caso de eventual insucesso da atividade comercial. Vale dizer, a Justiça do Trabalho entende que a simples ausência de patrimônio da Pessoa Jurídica e o inadimplemento de verbas trabalhistas já são motivos suficientes para a desconsideração da personalidade jurídica, independentemente da constatação de fraude, confusão patrimonial ou desvio de finalidade.
Neste diapasão, para contextualizar o tema, demonstraremos a importância da pessoa e personalidade jurídica, sua finalidade, passando ao regramento geral para sua desconsideração, os motivos pelos quais o instituto foi criado e a forma como está sendo aplicado na esfera trabalhista, além de discorrer sobre o projeto de lei existente sobre o assunto e que representa um grande progresso na medida em que garante a segurança jurídica para os empreendedores que, em última análise, são os responsáveis pelo desenvolvimento do país.
Ressalte-se que o presente artigo não possui a pretensão de esgotar o tema da desconsideração da personalidade jurídica e a consequente responsabilidade patrimonial do sócio na esfera trabalhista, mas sim colaborar de alguma forma para a correta aplicação deste instituto que foi criado para coibir o uso indevido de sociedades e não para resolver o problema da ausência de bens da pessoa jurídica e/ou proteger empregados.
A pessoa jurídica nada mais é do que um instrumento que objetiva alcançar determinados fins práticos, dentre os quais se destacam a autonomia patrimonial e a limitação de responsabilidades.[1] Trata-se de uma técnica de separação patrimonial, visto que seus sócios não são titulares de direitos e obrigações da sociedade, a qual forma um patrimônio distinto do correspondente aos direitos e obrigações imputados a cada membro da pessoa jurídica.[2]
É como se a personalidade fosse uma armadura jurídica que possibilita a realização dos interesses dos homens de forma mais segura, distinguindo o patrimônio pessoal dos sócios do patrimônio empregado para o exercício da atividade.[3]
Com base na conceituação acima, é forçoso concluir que os direitos e obrigações da pessoa jurídica não possuem vínculo com os direitos e obrigações de seus sócios. Isso porque na sociedade limitada, os riscos do negócio são socializados por todo o universo em que a pessoa jurídica atua, tornando viável a exploração de diversos empreendimentos que, caso não existisse a limitação da responsabilidade, só seriam suportados pelas forças econômicas do Estado.[4]
Limitando os riscos empresariais, estimula-se o desenvolvimento de atividades econômicas e, consequentemente, o desenvolvimento social,[5] o que resulta do princípio e valor social da livre iniciativa expressamente previsto no artigo 1°, IV da Constituição Federal.[6]
Portanto, o desenvolvimento propiciado pela pessoa jurídica não representa unicamente um efeito desejado em si mesmo. Não se pode entender a Pessoa Jurídica como se fosse vantajosa apenas para os sócios, mas sim uma forma de realizar outros valores socialmente relevantes, como por exemplo, a redução das desigualdades, vida digna aos cidadãos, busca do pleno emprego etc. Neste sentido, a limitação da responsabilidade patrimonial dos sócios é uma espécie de sanção promocional do direito para incentivar particulares ao exercício da atividade empresarial e, consequentemente, produzirem outros resultados socialmente desejáveis.[7]
Com relação a responsabilidade patrimonial, é indiscutível que o executado responde com seus bens para a satisfação da dívida[8], de modo que sendo a pessoa jurídica diferente da pessoa dos sócios, estes, em princípio, não são responsáveis pelas dívidas da sociedade.
Por outro lado, a personalidade jurídica não constitui um direito absoluto, visto que “está sujeita e contida pela teoria da fraude contra credores e pela teoria do abuso de direito,”[9] de modo que, nos casos expressamente previstos em lei, é possível promover a desconsideração da personalidade jurídica e responsabilizar os sócios pelo cumprimento de determinadas obrigações contraídas em nome da sociedade.
Aliás, o artigo 592, II, do Código de Processo Civil dispõe que ficam sujeitos à execução os bens do sócio, nos termos da lei.
No mesmo sentido, o artigo 1023 do Código Civil dispõe que “se os bens da sociedade não lhe cobrirem as dívidas, respondem os sócios pelo saldo, na proporção em que participem das perdas sociais, salvo cláusula de responsabilidade solidária”. O artigo 1024 do mesmo diploma legal complementa: “os bens particulares dos sócios não podem ser executados por dívidas da sociedade, senão depois de executados os bens sociais”, ou seja, de acordo com a regra geral a responsabilidade do sócio será sempre subsidiária, aplicável apenas após o exaurimento dos bens da pessoa jurídica devedora originária[10] e quando cumpridos os demais requisitos legais autorizadores da desconsideração da personalidade jurídica.
Não obstante, sendo regra geral a separação patrimonial, o instituto da desconsideração da personalidade jurídica somente pode ser aplicado de forma excepcional, quando preenchidos os requisitos legais expressamente previstos em lei.
Neste diapasão, as hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica redirecionam a responsabilidade ao “sócio ou acionista, precisamente porque se veiculam situações que se distinguem do pressuposto sob o qual essa mesma regra foi formulada: a atuação da pessoa jurídica em conformidade com a lei e o disposto no contrato social/estatutos,”[11] situação que não está sendo analisada corretamente na justiça do trabalho, conforme restará demonstrado a seguir.
O direito brasileiro admite inúmeras hipóteses de responsabilização patrimonial dos sócios, todas criadas de acordo com o crédito que está sendo executado, prevendo critérios diferentes para a desconsideração da personalidade jurídica em razão das dívidas fiscais, cíveis, decorrentes de relações de consumo etc.
Ocorre que a legislação trabalhista não possui uma regra expressa sobre o assunto, causando distorções e até mesmo aplicação indiscriminada da teoria, afrontando a Lei e a própria finalidade do instituto.
Diante desta realidade, iniciaremos analisando a norma de caráter geral prevista no Código Civil, que é perfeitamente aplicável na justiça laboral, prosseguindo com uma rápida análise do regramento previsto pelo Código de Defesa do Consumidor, até adentrar no entendimento adotado pela Justiça do Trabalho.
Consoante magistério de Miguel Reale, ao discorrer sobre o projeto do Código Civil de 2002, o empresário podia, com base na autonomia da vontade, na liberdade de contratar, e no princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, obter proveito à custa alheia. Para tanto, bastava organizar uma empresa, integralizar o capital social para que a responsabilidade inexistisse na prática, passando a utilizar recursos e créditos de terceiros e, ao mesmo tempo, transferir o que fosse valioso para o seu patrimônio pessoal, de forma a lesar os interesses dos credores da sociedade.[12]
Em virtude de atitudes desta espécie, fez-se necessário dar tratamento diferente para a personalidade jurídica, evitando que ela fosse utilizada de anteparo a negócios abusivos. Desta forma, nos casos em que a pessoa jurídica é utilizada como instrumento para a prática de atos ilícitos, prejudicando os interesses de terceiros, o sócio pode ser responsabilizado pelas obrigações sociais, ainda que o contrato social diga o contrário.[13]
Assim, o artigo 50 do Código Civil de 2002, vislumbrando a necessidade de regular a matéria, dispôs o seguinte:
“Em caso de abuso de personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.[14]”
O conceito de “abuso de personalidade” está delimitado pelo “desvio de finalidade” ou “confusão patrimonial”, possibilitando que a parte interessada comprove o acontecimento da hipótese que restará autorizada a desconsideração da personalidade jurídica. Neste diapasão, a finalidade referida pelo dispositivo em comento, não se limita à finalidade constante dos estatutos sociais, mas sim a finalidade social de personalidade jurídica, a qual é garantida pelos artigos 5°, XXIII e 170, III da Constituição Federal.[15]
Assim, o desvio de finalidade, previsto no artigo 50 do Código Civil ocorre quando “desvirtuou-se o objetivo social, para se perseguirem fins não previstos contratualmente ou proibidos por lei”[16], enquanto que na confusão patrimonial “a atuação do sócio confundiu-se com o funcionamento da própria sociedade, utilizada como verdadeiro escudo, não se podendo identificar a separação patrimonial entre ambos.”[17]
O uso abusivo da personalidade jurídica pode ser identificado pelo desvio de finalidade da pessoa jurídica, e/ou pela confusão patrimonial. O abuso de direito pode se apresentar de diversas formas, como, por exemplo, o intuito de obter vantagem indevida e com prejuízo de outrem, condutas fraudulentas para, burlando a lei, elidir obrigação contratual etc. Além disso, parte da doutrina entende que o simples exercício da personalidade jurídica de forma negligente, causando danos a outra pessoa, pode configurar abuso de direito ou de poder, pois se desviam do espírito do sistema normativo.[18]
Da análise do texto legal (artigo 50 do código civil), conclui-se que, para o afastamento da autonomia patrimonial da sociedade empresária, faz-se necessário o uso ardiloso (fraude) ou abusivo do instituto, sendo, por isso, uma formulação subjetiva, que dá destaque ao propósito do sócio ou administrador voltado a enganar (frustrar) a expectativa dos credores.[19]
Portanto, a desconsideração da personalidade jurídica é a falta de observância “episódica da autonomia jurídica da pessoa moral, para o fim de estender a seus sócios os efeitos de certas obrigações em caso de abuso da personalidade jurídica quando a entidade não possuir bens”[20] capazes de garantir estas obrigações.
Nessa esteira, a teoria da desconsideração somente pode ser aplicada se a personalidade jurídica autônoma da sociedade empresária impede a imputação do ato ilícito a outra pessoa,[21] e se foi demonstrado o desvio de finalidade ou confusão patrimonial.
Não obstante, pela formulação objetiva desta teoria, o pressuposto da desconsideração é, principalmente, a confusão patrimonial, ou seja, se for verificado que a empresa paga as dívidas particulares dos sócios, ou que existem bens particulares dos sócios registrados em nome da sociedade, por exemplo, restaria autorizada a desconsideração da personalidade jurídica.[22] Além disso, é fundamental para a utilização desta teoria a existência de uma entidade personalizada.[23]
O artigo 596 do Código de Processo Civil, por sua vez, dispõe que:
“Os bens particulares dos sócios não respondem pelas dívidas da sociedade senão nos casos previstos em lei; o sócio demandado pelo pagamento da dívida, tem direito a exigir que sejam primeiro excutidos os bens da sociedade.[24]”
Nessa ótica, conclui-se que a responsabilidade do sócio/administrador pelo pagamento das dívidas da sociedade é subsidiaria, ou seja, somente nos casos em que a sociedade não tiver condições de adimplir a dívida e desde que preenchidos os demais requisitos legais.
Por outro lado, o artigo 1025 do Código Civil estipula que “o sócio, admitido em sociedade já constituída, não se exime das dívidas sociais anteriores à admissão”[25], ou seja, poderá ser responsabilizado pelas dívidas anteriores ao seu ingresso na sociedade. De outro modo, a regra insculpida nos artigos 1003 e 1032 do Código Civil[26], estabelecem a responsabilidade do sócio retirante até o período de 02 (dois) anos após a averbação da retirada no contrato social, caso a pessoa jurídica não efetue o pagamento de seus débitos.
Em que pese seja possível a decretação da desconsideração episódica da personalidade jurídica, é importante salientar que tal decisão deve ser baseada em provas concretas, e não em meras alegações, tendo em vista a regra geral da autonomia patrimonial da pessoa jurídica.
No direito civil entende-se que a desconsideração da personalidade jurídica pode ser postulada no prazo de 05 anos, na forma do artigo 206, §5°, I do Código Civil, contados da data da citação da pessoa jurídica ou, em caso de dissolução irregular da sociedade, contado do momento em que o credor teve conhecimento da dissolução.[27]
Por tais motivos, a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade criou uma espécie de regra de conduta da sociedade, de modo que os sócios administradores já sabem, de antemão, quais são as consequências em caso de abuso de personalidade da empresa ou de confusão patrimonial.
Existem duas correntes que analisam a subversão da pessoa jurídica de formas diferentes, ou seja, a forma de derrubar a personalidade jurídica, são elas: a subjetivista e a objetivista.
A corrente objetivista, como o próprio nome evidencia, relega o elemento subjetivo, concentrando toda a análise na função da sociedade para justificar a desconsideração da pessoa jurídica, que nada mais seria do que a consequência de um desvio de função ou fraude no ente personalizado. A teoria subjetivista, por sua vez, é focada na intenção do sócio administrador a frustrar o legítimo interesse do credor.[28]
A teoria subjetivista, embora pareça ser a mais adequada, possui um enorme entrave para a sua aplicação, pois é extremamente difícil provar a intenção subjetiva do sócio administrador, configurando, muitas vezes, um ônus exagerado a parte que a lei quer defender.[29] Por isso adota-se a teoria objetiva segundo a qual, preenchidos os requisitos legais, é desconsiderada a personalidade jurídica da sociedade, cabendo aos sócios atingidos comprovarem que não houve desvio de finalidade e nem tampouco confusão patrimonial.
É cediço que o objetivo primordial da política nacional de relações de consumo é o atendimento das necessidades dos consumidores, garantindo a melhoria da qualidade de vida da população, bem como assegurando o respeito à dignidade, à vida, à saúde, à segurança e coibindo os abusos praticados com garantias de efetivo ressarcimento quando houver ofensa a seus interesses econômicos.[30]
O Código de Defesa do Consumidor é um conjunto de normas cujo objetivo é proteger os direitos do consumidor, disciplinando as relações de consumo através de regras e padrões de conduta.
É que a criação da pessoa jurídica, ao mesmo tempo em que estimulou o desenvolvimento da economia, limitando os riscos do empreendedor, também estimulou a prática de abusos e de irregularidades por parte dos sócios e administradores.[31]
Após a conclusão de que muitas vezes o consumidor era prejudicado pela impossibilidade de buscar o patrimônio do “verdadeiro devedor, encoberto sob o manto de empresas as mais diversas, o Código do Consumidor optou por adotar integralmente a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, ampliando-a (art. 28, §§ 2° a 5°).”[32]
Assim dispõe o artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor:
“Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.[…]
§5°. Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.[33]”
Conforme se observa, o Código de Defesa do Consumidor possui, como pressuposto inédito para a desconsideração da personalidade jurídica, a falência, insolvência ou encerramento das atividades da pessoa jurídica decorrentes da “má administração”, ou seja, não há necessidade de configuração da fraude ou do abuso de direito.[34]
Destarte, a primeira parte do artigo 28, caput, do Código de Defesa do Consumidor é caracterizada pela ilicitude ou irregularidade da conduta do fornecedor, enquanto que a segunda parte depende de atos de má administração, os quais embora sejam extremamente complexos de serem comprovados, são de suma importância para definir os limites da responsabilidade dos sócios.[35]
Por outro lado, a segunda parte do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor inovou ao possibilitar a desconsideração da personalidade jurídica, nas relações de consumo, mesmo quando não há fraude ou abuso do direito, mas apenas “má administração que leve à pessoa jurídica à falência, ao estado de insolvência, ao encerramento ou à inatividade, que possa impedir que o consumidor seja integralmente ressarcido.”[36]
O legislador inovou ainda mais ao criar texto normativo aberto, no parágrafo 5° do artigo 28, permitindo “a desconsideração da pessoa jurídica sempre que a sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.”[37]
Da forma como foi elaborado, o referido texto (§5° do artigo 28) não é taxativo, estendendo a possibilidade de desconsideração da pessoa jurídica sempre que a personalidade representar entrave para ressarcir o consumidor por eventuais danos sofridos.[38]
Esta regra criou grandes discussões doutrinárias e jurisprudenciais, uma vez que alguns doutrinadores sustentam que deveria ser aplicado de acordo com o disposto no caput do artigo 28, ou seja, somente quando ficasse configurada a fraude, abuso do direito ou excesso de poder, enquanto o entendimento dominante afirma que o “§5° do art. 28 do CDC não guarda relação de dependência com o caput do seu artigo, o que, por si só, não gera incompatibilidade legal, constitucional ou com os postulados da ordem jurídica”. Explicam que uma simples leitura do texto seria suficiente para concluir que a intenção do legislador, ao inserir a expressão “também poderá ser desconsiderada”, era criar uma regra independente, sem vinculação com o caput do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor.[39]
Não fosse essa a intenção do legislador, o parágrafo 5° do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor seria inútil, pois é evidente que se presentes as condições previstas no caput, a personalidade jurídica já poderia ser desconsiderada, havendo ou não obstáculos para a reparação do dano.[40]
Conforme a regra do direito consumeirista, todos os integrantes da sociedade podem ser responsabilizados, de modo que os sócios de boa-fé, que não foram responsáveis pelos danos causados aos consumidores, caso se sintam prejudicados pela solidariedade, devem ajuizar a competente ação de regresso e de ressarcimento em face dos sócios culpados.[41]
Portanto, conforme entendimento dominante da doutrina e da jurisprudência, a desconsideração da personalidade jurídica no Código de Defesa do Consumidor é extremamente gravosa aos sócios, visto que, por se tratar de uma obrigação não-negociável, basta o não pagamento do débito pela sociedade para que esteja preenchido o requisito do artigo 28, §5° do referido diploma legal, para desconsiderar a personalidade jurídica, recaindo a obrigação sobre todos os sócios, independentemente de possuírem poderes gerenciais. Esta norma, em que pese todo o respeito que deve ser dispensado ao consumidor, fere o princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, tão importante para o desenvolvimento nacional e que deveria ser suprimida apenas em hipóteses mais restritas e nas quais restasse configurada a atitude maliciosa do sócio.
Isso porque, a desconsideração da personalidade jurídica não pode ser vista como a solução para todos os consumidores “em face de possíveis devedores, ou seja, ela somente deve ser empregada quando a pessoa jurídica tenha se desviado das funções pelo ordenamento jurídico, por meio do cometimento de fraude ou do abuso de direito.”[42]
Além disso, entendemos que também não é razoável responsabilizar aquele sócio que não possui poderes de gerência sobre a sociedade, não foi o responsável pelos danos causados ao consumidor e, muito menos, naqueles casos em que a desconsideração é realizada pelo simples inadimplemento de uma obrigação (art. 28, §5° do Código de Defesa do Consumidor).
Na esfera trabalhista, assim como nos demais ramos do direito, a personalidade jurídica da sociedade deve ser respeitada, de modo que os bens da sociedade, em princípio, não se confundem com os bens dos sócios.
Não se desconhece que o objeto imediato, no processo executivo, é a realização de medidas coercitivas, legalmente previstas, visando a satisfação do crédito constante no título executivo. Por outro lado, “o objeto mediato é a constrição sobre os bens que integram ou integrarão o patrimônio do devedor.”[43]
Ocorre que a Consolidação das Leis do Trabalho não traz regramento específico para a matéria, de modo que a desconsideração da personalidade jurídica deve ser aplicada com base em construção jurisprudencial. Grande parte dos doutrinadores entende que a hipótese legal de desconsideração da personalidade jurídica na esfera trabalhista está prevista no artigo 2°, §2° da Consolidação das Leis do Trabalho[44], in verbis:
“Sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, constituindo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica, serão, para os efeitos da relação de emprego, solidariamente responsáveis a empresa principal e cada uma das subordinadas.”
Entretanto o referido artigo não trata da desconsideração, apenas apresenta indícios de sua aplicação uma vez que impõe a solidariedade das empresas que compõe o conglomerado econômico pela dívida trabalhista de cada uma delas.[45]
A responsabilidade patrimonial nas relações de trabalho está prevista nos artigo 876 ao 892 da Consolidação das Leis do Trabalho, mas não há qualquer referência quanto à responsabilidade secundária, para a qual devem ser aplicados os artigos 591 ao 597 do Código de Processo Civil. Existem, ainda, diversos outros dispositivos legais, tais como os artigos 50, 927, 990, 1003, § único e 1016 do Código Civil, por exemplo, que indicam a responsabilidade do sócio.[46]
Importante referir que o direito processual comum é fonte subsidiária do direito processual do trabalho em razão da previsão contida nos artigos 769 e 889 da Consolidação das Leis do Trabalho, in verbis:
“Art. 769. Nos casos omissos, o direito processual comum será fonte subsidiária do direito processual do trabalho, exceto naquilo em que for incompatível com as normas deste título.[47]”
E ainda:
“Art. 889. Aos trâmites e incidentes do processo da execução são aplicáveis, naquilo em que não contravierem ao presente título, os preceitos que regem o processo dos executivos fiscais para a cobrança judicial da dívida ativa da Fazenda Pública Federal.[48]”
Assim, tanto o Código de Processo Civil quanto a Lei de Execução Fiscal são aplicáveis ao processo do trabalho naquilo em que não houver contradição, de modo que é admissível, em certos casos, a responsabilização do sócio pelas dívidas societárias.[49]
Muito já se discutiu sobre a possibilidade de aplicação do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor no processo do trabalho em razão de sua especificidade diante da norma de caráter geral constante no Código Civil (artigo 50), sendo que a jurisprudência trabalhista adotou o entendimento de que a regra do Código de Defesa do Consumidor é aplicável porque compatível com os princípios norteadores do direito do trabalho, preenchendo “lacuna axiológica, em prestígio ao valor social do trabalho, fundamento da República e sobre o qual se fundam as ordens social e econômica, e ao direito fundamental à razoável duração do processo”.[50]
O direito do trabalho é norteado por uma série de princípios dentre os quais se pode destacar o princípio protetor, o qual visa compensar a inferioridade do empregado com relação ao empregador. Através deste princípio, “o caráter tutelar, protecionista, tão evidenciado no direito material do trabalho, também é aplicável no âmbito do processo do trabalho, que é permeado de normas, que, em verdade, objetivam proteger o trabalhador”[51]. Este princípio é desmembrado em outros três princípios básicos: In dúbio pro operário (havendo dúvida, aplica-se a regra que for mais favorável ao trabalhador, entretanto, processualmente, deve-se verificar de quem é o ônus da prova no caso concreto, de acordo com o artigo 333 do CPC e 818 da CLT), prevalência da norma mais favorável ao trabalhador (as novas leis devem melhorar a condição social do trabalhador; existindo várias normas na mesma hierarquia deve-se escolher a mais benéfica ao trabalhador) e a preservação da condição mais benéfica para o trabalhador (é o direito adquirido, as vantagens que já foram conquistadas não podem ser alteradas para pior).[52]
As hipóteses de responsabilização do sócio-gerente foram ampliadas pela jurisprudência trabalhista para além daquelas previstas no decreto 3.708/1919 que regula a constituição de sociedades por quotas de responsabilidade limitada. Fundada no artigo 135 do CTN e recebendo da ordem jurídica proteção ainda mais acentuada que a deferida ao crédito tributário (art. 8 da CLT), cumulada com o artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor e artigo 50 do Código Civil, a jurisprudência trabalhista tem decidido que o sócio gerente responde pelas dívidas trabalhistas da sociedade sempre que esta não possua bens suficientes para garantir a execução judicial. Além disso, esta responsabilidade tem sido estendida reiteradamente, no plano justrabalhista, a todos os sócios, independentemente de terem, ou não, participação na gestão societária.[53]
O doutrinador Arion Sayão Romita[54] ensina que:
“Em obediência aos próprios fundamentos do Direito do Trabalho, e em atenção à finalidades por ele perseguidas, quando a forma da pessoa jurídica privar os empregados do recebimento de qualquer parcela dos direito trabalhistas adquiridos contra a sociedade, impõe-se que prescinda daquela estrutura jurídica, levantando-se o véu societário, para evitar que alguém se oculte sob a máscara de pessoa jurídica e assim desfrute benefícios à custa e em detrimento dos trabalhadores, somente possíveis em decorrência da adoção daquela personalidade jurídica.”
Desta forma, “independentemente de ter figurado no pólo passivo da reclamação trabalhista, os bens dos sócios podem responder pela execução, pois a responsabilidade do sócio é patrimonial (econômica e de caráter processual)”[55], e a jurisprudência admite a desconsideração da personalidade jurídica sempre que a sociedade não dispor de patrimônio suficiente para saldar os débitos trabalhistas.
Neste sentido já se manifestou o Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região:
“A inexistência de bens disponíveis da sociedade para honrar seus passivos trabalhistas justifica o redirecionamento da execução contra seus sócios (desconsideração da personalidade jurídica da reclamada) – até mesmo de ofício – em face da natureza alimentar desse crédito, da hipossuficiência do trabalhador e também porque o risco do empreendimento cabe ao empregador. Irrelevante, ainda, o fato de ser sócio minoritário ou de não ter participado de atos de gestão.” [56]
Analisando a ementa acima é possível concluir, ainda, que na justiça laboral, é irrelevante o fato de o sócio ser majoritário ou minoritário, bem como possuir, ou não, poderes de gerência. Basta a condição de sócio para que seu patrimônio, inexistindo bens da sociedade, seja penhorado para pagamento das dívidas da pessoa jurídica.
Isso ocorre porque a responsabilidade dos sócios entre si é solidária, ou seja, cada sócio responde “pela integralidade da dívida, independentemente do montante das cotas de cada um na participação societária. Aquele que pagou a dívida integralmente, pode se voltar regressivamente em face dos demais sócios.”[57]
Desta forma, a responsabilidade do sócio pelas dívidas sociais trabalhistas não é solidária e sim subsidiária, sendo imprescindível a frustração do procedimento executado contra a sociedade para que seja autorizada a desconsideração da personalidade jurídica.[58]
Não obstante, a jurisprudência trabalhista entende que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica é aplicável de forma objetiva, ou seja, sem a necessidade de comprovação de violação ao contrato ou abuso de poder, sendo suficiente a inexistência de bens da sociedade para iniciar a execução contra o patrimônio dos sócios. É que, segundo a jurisprudência trabalhista, a simples falta de pagamento das verbas trabalhistas já configura violação à lei (abuso de direito e desvio de finalidade).[59]
Na prática, a pesquisa de bens em nome da sociedade para fins de autorizar a desconsideração da personalidade jurídica muitas vezes se resume em uma tentativa de bloqueio pelo sistema Bacen-jud e uma tentativa de penhora por Oficial de Justiça frustrada cabendo ao sócio, depois de ser responsabilizado, indicar qual é e onde se encontra o patrimônio da sociedade.
Este entendimento também encontra respaldo no magistério de Mauro Schiavi, segundo o qual, tanto a jurisprudência quanto a doutrina adotaram “a chamada teoria objetiva da desconsideração da personalidade jurídica que disciplina a possibilidade de execução dos bens do sócio, independentemente dos atos destes terem violado ou não o contrato, ou de haver abuso de poder”.[60] Os defensores da aplicação da teoria objetiva asseveram que esta é a forma mais adequada por causa da hipossuficiência do trabalhador, do caráter alimentar do crédito trabalhista, da dificuldade em comprovar a má-fé do sócio,[61] e em decorrência do princípio protetivo que envolve o direito do trabalho.
Conforme este entendimento, nos casos que envolvem dívida trabalhista, o critério de justiça deve se sobrepor “ao da subserviência à literalidade insensível dos preceitos normativos, particularidade que realça, ainda mais, a zetética[62] do direito material do trabalho e da jurisprudência que o aplica e o interpreta.”[63]
A desconsideração da personalidade jurídica e o redirecionamento da execução contra os sócios pode ser realizada inclusive nos casos que envolvem “falência ou alienação de parte de empresa em recuperação judicial”.[64] Neste sentido, aliás, é o enunciado número 20 aprovado na jornada sobre execução na Justiça do Trabalho:
“FALÊNCIA E RECUPERAÇÃO JUDICIAL. PROSSEGUIMENTO DA EXECUÇÃO TRABALHISTA CONTRA COOBRIGADOS, FIADORES, REGRESSIVAMENTE OBRIGADOS E SÓCIOS. POSSIBILIDADE. A falência e a recuperação judicial, sem prejuízo do direito de habilitação de crédito no juízo universal, não impedem o prosseguimento da execução contra os coobrigados, os fiadores e os obrigados de regresso, bem como os sócios, por força da desconsideração da personalidade jurídica.”
Por outro lado, prevalece o entendimento jurisprudencial no sentido de que o redirecionamento da execução trabalhista contra os sócios de empresa falida somente é autorizado após o encerramento do processo falimentar, quando verificada a ausência de bens passíveis de arrecadação, ou com a notícia de que não há saldo suficiente para o pagamento de todos os credores.[65]
A desconsideração da personalidade jurídica na fase executória pode ser determinada de ofício pelo juiz, na forma do artigo 878 da Consolidação das Leis do Trabalho, ou seja, independentemente de provocação da parte adversa, cabendo ao sócio o direito de pleitear o benefício de ordem, no sentido de, primeiro, alienar os bens da sociedade na forma prevista pelo artigo 596, §1° do Código de Processo Civil.[66]
Em que pese o tema da desconsideração da personalidade jurídica já esteja bastante difundido em todas as especialidades do direito, na justiça do trabalho nos parece bastante discutível a questão do prazo prescricional e a responsabilidade do sócio retirante.
É que a jurisprudência do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região entende que “o sócio retirante responde solidariamente pelas obrigações que tinha como sócio, ou seja, excluído o período em que não mais era sócio”, não havendo qualquer responsabilidade por eventuais obrigações que ainda não existiam no momento da sua retirada,[67] neste aspecto, o sócio retirante será sempre responsabilizado apenas pelo débito trabalhista relativo ao período em que se beneficiou do trabalho do empregado.
Com relação ao prazo, a legislação trabalhista também não estabelece o limite temporal para responsabilizar o sócio retirante, todavia, ao contrário dos demais ramos do direito, na seara trabalhista a jurisprudência tem admitido o redirecionamento mesmo contra aqueles sócios que se retiraram da empresa executada há mais de dois anos, quando demonstrado que o vinculo de emprego do exequente/trabalhador tenha perdurado durante o período em que o sócio retirante ainda fazia parte do quadro societário, sob o fundamento de que os artigos 1003 e 1032 do Código Civil seriam inaplicáveis ao processo do trabalho porque incompatíveis com o princípio protetivo. Por outro lado, isso não significa que o sócio retirante será responsável ilimitadamente no tempo, mas apenas com relação aqueles funcionários que trabalharam na empresa durante o período em que figurava como sócio.[68]
A construção jurisprudencial pacificada na justiça laboral entende que “o artigo 1.003 do CC estipula o período de responsabilidade do ex-sócio, não limitando o prazo para buscar a reparação dos prejuízos trabalhistas que sofreu o empregado no período em que, como sócio integrou a sociedade”.[69] Em outras palavras, o transcurso de lapso temporal superior a dois anos da retirada do sócio não impede o redirecionamento da execução contra ele quando a pessoa jurídica não tiver condições financeiras de suportar a dívida.
Em que pese o entendimento dominante exposto acima, existe uma corrente doutrinária, minoritária, segundo a qual mesmo sendo reconhecida a preferência do crédito trabalhista, não pode haver confusão entre estes dois institutos. Vale dizer, ao analisar a responsabilidade dos sócios pelas dívidas trabalhistas não se pode partir do princípio de que houve o desvirtuamento da pessoa jurídica e, para que seja possível a desconsideração deveria ser imprescindível o preenchimento dos requisitos legais, pois é evidente que nem todos os casos de insolvência de empresa são resultado de comportamento ilícito dos sócios. O fato de o crédito trabalhista ser preferencial não é suficiente para permitir a desconsideração da personalidade jurídica.[70]
Este entendimento resulta de uma análise mais acurada do parágrafo único, artigo 8° da CLT, o qual permite a utilização do direito comum como fonte subsidiária do direito do trabalho, tornando inaplicável o Código de Defesa do Consumidor diante de sua especificidade em relação ao Código Civil, que possui caráter geral.[71]
Como visto, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica tem sido aplicada indiscriminadamente na justiça do trabalho, de forma muito ampla, bastando para a sua aplicação o inadimplemento e a falta de bens da sociedade para satisfazer o crédito. Este entendimento, já consolidado nos Tribunais do Trabalho, data vênia, ignora o instituto da pessoa jurídica, que foi criado justamente para limitar a responsabilidade dos sócios e viabilizar o desenvolvimento das empresas.
A utilização reiterada da desconsideração da personalidade jurídica, na justiça do trabalho, pela simples falta de bens sociais para garantir os débitos da sociedade representa um grande desestímulo à criação de novas empresas e consequentemente é responsável pela redução dos postos de trabalho, pois além da incerteza de receber lucros, o sócio ainda pode perder o patrimônio que não investiu.[72] Cumpre ressaltar que a personalidade jurídica foi criada para limitar a responsabilidade dos sócios, protegendo o patrimônio particular, o que somente poderia ser descartado naqueles casos em que a pessoa jurídica se afasta da finalidade para a qual foi criada.[73]
Ademais, só é propiciado ao sócio apresentar embargos à execução com ampla dilação probatória após a constrição de seus bens particulares, sendo uma situação mais perigosa do que para a pessoa jurídica devedora originária que pôde se defender antes que seu patrimônio fosse penhorado.
Portanto, a jurisprudência trabalhista banalizou o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, ampliando largamente as hipóteses e as pessoas que podem ser atingidas pelo instituto, desrespeitando, s.m.j., outros princípios de direito civil pré-existentes, objetivando apenas a satisfação do crédito do trabalhador. Este entendimento, embora facilite a satisfação do crédito do trabalhador e seja decorrente da aplicação do princípio protetivo, certamente interfere na economia em função do aumento dos riscos do empreendimento e, consequentemente, representa uma considerável diminuição de ofertas de trabalho, prejudicando os próprios trabalhadores[74].
3.4 O projeto de lei n. 3.401/2008
Conforme demonstrado acima, existem vários diplomas que preveem a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica, todavia ainda não existe um rito processual que assegure o exercício do contraditório de forma adequada, sendo adotado diversos posicionamentos diferentes, sendo que na justiça do trabalho é extremamente prejudicial aos sócios porque a obrigação tem sido redirecionada e, antes da citação, são realizadas as tentativas de constrição de bens.
Isso porque ainda não existe nenhum regramento que determine a citação ou intimação dos sócios responsabilizados e nem tampouco se esta intimação/citação deve ocorrer antes ou depois de o juiz decidir sobre a desconsideração da personalidade jurídica.
Por este motivo foi apresentado o Projeto de Lei 3.401/2008, pelo Deputado Bruno Araújo, visando estabelecer regras processuais claras para a aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, além de assegurar o prévio exercício do contraditório. Neste diapasão, o projeto de lei não visa estabelecer pressupostos materiais ou limitações para a aplicação do instituto, mas instituir um rito procedimental a ser aplicado em todas as situações em que seja necessário levantar o véu da pessoa jurídica, trazendo segurança e estabilidade às relações jurídicas empresariais.[75]
Os principais tópicos do referido projeto de lei, que já foi remetido ao Senado Federal, são os seguintes:
a)A parte que postular a desconsideração da pessoa jurídica ou a responsabilidade pessoal dos sócios deverá indicar objetivamente quais os atos praticados que ensejariam a responsabilização, na forma da lei específica, sob pena de indeferimento liminar do pedido;
b)Os sócios serão citados para apresentação de defesa, sendo facultada a produção de provas;
c)A desconsideração da personalidade jurídica não poderá ser decretada de ofício;
d)A mera inexistência ou insuficiência de patrimônio para o pagamento das obrigações contraídas pela pessoa jurídica não autoriza a desconsideração da personalidade jurídica quando ausentes os pressupostos legais;
e)Os sócios que não praticaram ato abusivo da personalidade em detrimento dos credores da pessoa jurídica e em proveito próprio, não serão atingidos pelos efeitos da decretação da desconsideração da personalidade jurídica.
Assim, referido projeto de Lei, se aprovado, irá “organizar” o procedimento da desconsideração da personalidade jurídica, evitando os abusos atualmente cometidos ao estipular prazos e regras básicas sobre o assunto, protegendo o instituto da personalidade jurídica e, ao mesmo tempo, propiciando que ela seja desconsiderada quando houver necessidade e estiverem preenchidos os requisitos legais.
Este projeto já foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça e remetido ao Senado Federal para votação.
3.5 O anteprojeto do novo código de processo civil – projeto de lei 8.046/2010 – artigos 77 e 78
É de conhecimento publico que o Código de Processo Civil está precisando de reformas urgentes e, dentre as prioridades, está a necessidade de regulamentar o procedimento para a superação da personalidade jurídica.
Atualmente não existem regras claras para o procedimento da desconsideração da personalidade jurídica, de modo que a sua uniformização é medida que se impõe para garantir o respeito ao princípio constitucional do devido processo legal, contraditório e, ainda, garantir maior segurança jurídica às partes envolvidas.
É comum que, para evitar o desvio dos bens particulares e a consequente frustração da execução, alguns juízes simplesmente determinem a penhora dos bens do sócio e a posterior intimação para apresentar manifestação, o que em nosso entendimento afronta o princípio do contraditório e do devido processo legal.
O Projeto do novo Código de Processo Civil, de autoria do Senador José Sarney, prevê o "incidente de desconsideração da personalidade jurídica", visando a uniformização do procedimento e garantindo, à todos, o respeito ao princípio do devido processo legal. Senão vejamos[76]:
“Art. 133. O incidente de desconsideração da Personalidade Jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo.(…)
Art. 134. O incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial.(…)
§ 3º A instauração do incidente suspenderá o processo, salvo na hipótese do § 2º.
§ 4º O requerimento deve demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais específicos para desconsideração da personalidade jurídica.
Art. 135. Instaurado o incidente, o sócio ou a pessoa jurídica será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de quinze dias.
Art. 136. Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória, contra a qual caberá agravo de instrumento.(…)
Art. 137. Acolhido o pedido de desconsideração, a alienação ou oneração de bens, havida em fraude de execução, será ineficaz em relação ao requerente.”
Assim, caso não haja nenhuma outra modificação no Projeto de Lei, o abuso da personalidade deverá ser caracterizado na forma da lei, de acordo com a espécie de obrigação, e poderá ser suscitado em qualquer fase do processo, sendo citados os sócios e a sociedade para se manifestarem e requerer as provas cabíveis no prazo comum de 15 dias, antes da constrição de seus bens.
Destarte a concessão de prazo para defesa e produção de provas, não prejudica os direitos do credor, visto que o juiz pode, nos termos do artigo 798 do Código de Processo Civil, determinar medidas acautelatórias quando houver fundado receio de que uma parte, antes do julgamento da lide, cause lesão grave e de difícil reparação ao direito da outra e, além disso, a oneração de bens em fraude a execução será considerada ineficaz, na forma do artigo 137 acima descrito.
Conclui-se, portanto, que o Projeto do novo Código de Processo Civil, no que tange a desconsideração da personalidade jurídica, irá trazer maior segurança nas relações jurídicas, principalmente com relação aos sócios que terão oportunidade de apresentar defesa antes que seus bens sejam penhorados.
4 Conclusão
Conforme demonstrado, a autonomia patrimonial da pessoa jurídica é um princípio jurídico que deve ser respeitado, todavia é plenamente possível desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade limitada quando for verificado o desvio de finalidade, abuso de personalidade, fraude etc., tendo em vista que a ideia da desconsideração é aprimorar o instituto da pessoa jurídica, impedindo ou corrigindo eventuais atos ilícitos praticados pelos sócios em detrimento de seus credores, sob a proteção da personalidade jurídica.
Na Justiça do Trabalho, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica é utilizada com base na aplicação subsidiária do direito processual comum, todavia a jurisprudência trabalhista, na tentativa de garantir o pagamento de todos os créditos trabalhistas da empresa, tem aplicado esta teoria de forma indevida, alterando as hipóteses legais, facilitando demasiadamente a produção de provas em favor do empregado e, ainda, afrontando outros princípios como o do devido processo legal e a separação patrimonial.
É induvidoso que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica foi criada para coibir o uso fraudulento da sociedade. Entretanto, ela tem sido encarada pela jurisprudência trabalhista como uma simples forma de resolver o problema da falta de patrimônio da pessoa jurídica com relação as suas obrigações trabalhistas.
Na Justiça do Trabalho, a desconsideração da personalidade jurídica perdeu o caráter de excepcionalidade e passou a ser adotado como regra geral, sempre que a sociedade não possuir patrimônio suficiente para cumprir as obrigações trabalhistas, deixando de serem observados os critérios de aplicação do instituto e até mesmo a finalidade para a qual a teoria foi criada.
Inclusive as regras que dizem respeito aos prazos para aplicação do instituto são simplesmente desconsideradas mediante fundamentos genéricos e que acabam gerando grande insegurança jurídica, posto que muitas vezes, até mesmo aquele sócio que nunca participou da administração e que já se retirou da sociedade há mais de uma década, acaba sendo responsabilizado pelo pagamento dos créditos trabalhistas de um processo do qual nem sequer participou, sendo que para defender-se precisa necessariamente garantir a execução.
Não se pode deixar de lembrar que a limitação da responsabilidade dos sócios, na sociedade limitada, somente pode ser afastada em virtude de lei e que a simples falta de capacidade financeira da pessoa jurídica para o cumprimento da obrigação não é suficiente para que seja aplicada a teoria da desconsideração da personalidade jurídica. A falta de condição financeira somente poderia ensejar a responsabilização do sócio naquelas hipóteses em que o estado falimentar ou de insolvência é resultante do uso indevido da pessoa jurídica ou do abuso de direito.
Não é correto responsabilizar os sócios em razão do eventual insucesso do empreendimento, quando estes não cometeram nenhuma irregularidade ou não tenham concorrido para a falta de condições financeiras da empresa para o pagamento das obrigações trabalhistas, mormente considerando que muitas vezes o insucesso da atividade decorre até mesmo da política econômica adotada pelo país (incentivos fiscais, valorização da moeda etc.). Não se pode vincular o insucesso do empreendimento à ruína pessoal do sócio, sob pena de desincentivar a atividade empresarial e, consequentemente, a própria geração de empregos, que geraria outro problema social.
Ademais, a atividade econômica envolve o risco do insucesso comercial, ao qual se submetem tanto o empregado quanto o empregador, não havendo nenhuma garantia absoluta, legal ou constitucional, de satisfação dos créditos trabalhistas pela simples incapacidade financeira da sociedade.
Como se não bastasse, na lógica da jurisprudência trabalhista, os sócios de empresas com administração fraudulenta e aqueles sócios cujo insucesso comercial não decorreu de qualquer ato de violação de lei, são tratados de forma idêntica, ou seja, agindo ou não de forma fraudulenta, será responsabilizado ilimitadamente pelas obrigações trabalhistas da sociedade.
Portanto, a simples falta de cumprimento das obrigações trabalhistas pela sociedade em decorrência do insucesso comercial não pode ser considerado suficiente para desconsiderar a personalidade jurídica e responsabilizar ilimitadamente todos os sócios.
Por outro lado, sendo mantido este entendimento de que a insolvência seria suficiente para a responsabilização pessoal dos sócios, a doutrina e a jurisprudência trabalhista deveriam ao menos diferenciar as causas da insolvência, refletindo a limitação da responsabilidade à culpa pelo insucesso comercial. Nos casos em que os sócios agiram de forma fraudulenta, a responsabilidade poderia ser ilimitada; mas, nos casos em que os sócios agiram de acordo com a lei e os estatutos da sociedade, deveria se adotar um entendimento equivalente ao da comunhão parcial de bens, responsabilizando os sócios somente até o limite do patrimônio adquirido com o lucro da sociedade.
Além disso, não se pode admitir a banalização do instituto da personalidade civil pela jurisprudência trabalhista, que amplia as hipóteses legais de aplicação do instituto, não analisa questões importantes referentes a prescrição e retirada de sócios e, ainda, isenta a parte interessada de comprovar a prática do ato ilícito, abuso ou fraude.
Não defendemos a irresponsabilidade patrimonial do sócio, entretanto a desconsideração da personalidade jurídica deve ser encarada como uma medida excepcional, aplicada com muita cautela, pois a autonomia patrimonial ainda é a regra geral do nosso sistema.
Assim, acreditamos que o Projeto de Lei 3.401/2008 e o Anteprojeto do Código de Processo Civil representam um grande avanço para uniformizar a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, assegurando ao menos o respeito ao exercício do contraditório e do devido processo legal.
Por fim, é importante ressaltar que o presente artigo não é um estudo conclusivo sobre o tema que, por ser extremamente instigante, por certo merece ser ampliado e incrementado.
Advogado especialista em direito do trabalho e previdenciário
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