Introdução
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 preconiza acerca dos direitos fundamentais fixando sua característica de cláusula pétrea com o objetivo de abranger e proteger os cidadãos e o Estado, sendo este um fundamento que uma vez dissociado de sua aptidão natural desconfiguraria o motivo que legitima a própria forma de governo republicana.
A doutrina é pacífica em asseverar hierarquicamente a Constituição como a lei maior do ordenamento pátrio, porém, por longo período esta foi omissa em indicar maneiras para dotá-la efetivamente de aplicabilidade. Nesse contexto, durante vasto lapso temporal, acreditava-se que haviam normas constitucionais desvestidas de aplicabilidade imediata, carecendo de norma infraconstitucional para se tornar plena.
A imposição dessa exigência constituiria uma incoerência, eis que a Carta Magna dispensa qualquer lei inferior para imprimir seus mandamentos. Adotar uma interpretação diversa a aplicabilidade imediata seria cultivar as injustiças preponderantes no país.
O § 1º do artigo 5º da Lei Maior expressamente estabelece que as garantias fundamentais são dotadas de aplicação imediata, isto é, são autoaplicáveis, não exigem lei ordinária para sua regulamentação, motivo pelo qual devem ser reconhecidas mesmo que ausente norma infraconstitucional.
Diante da afirmação de aplicação imediata dos direitos fundamentais indaga-se: O que são direitos fundamentais? Os direitos fundamentais devem ser aplicados nas relações entre o Estado e o particular? E nas relações entre particulares, esse efeito imediato se mantém? No que consiste a eficácia irradiante dos direitos fundamentais? Tais questionamentos são essenciais para a compreensão da eficácia dos direitos fundamentais perante o Estado e aos particulares, a fim de demonstrar que admitida sua eficácia imediata a unidade de sentido à Constituição revela-se insuflada.
A pesquisa é relevante no âmbito social uma vez que visa revelar aspectos de garantia efetiva dos direitos dos cidadãos evidenciando a evolução da Carta Constitucional de 1988, e sob a ótica jurídica é também de suma importância, eis que tem por escopo demonstrar a importância da eficácia da Lei Maior nas relações entre o Estado e entre particulares.
A doutrina apresenta os direitos fundamentais através de uma classificação – primeira, segunda e terceira gerações[1] -, tomando por base a ordem histórica cronológica em que passaram a ser constitucionalmente reconhecidos:
“enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) – que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas – acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade [2].”
Para alguns doutrinadores, existe a quarta geração, que na perspectiva de Norberto Bobbio, consistiria nos temas atinentes à própria existência do ser humano, [3] transcendendo o âmbito dos indivíduos considerados em sua expressão individual [4] e incidindo, exclusivamente, nos grupos primários e nas grandes formações sociais [5].
Além das supramencionadas gerações, alguns estudiosos defendem ainda a tese da quinta geração, apontando como fundamento para sua existência os avanços tecnológicos, como as questões da internet.
Tal classificação tem por escopo demonstrar que os direitos advêm da necessidade instituída pela evolução da sociedade, balizando novas situações, e sistematizando novos direitos e deveres para o Estado e o cidadão.
Na doutrina e na jurisprudência não é uníssono o conceito de direitos fundamentais. Assim, buscando uma concepção mais objetiva e restrita, Ingo Wolfgang Sarlet ensina que “direitos fundamentais, ao menos de forma geral, podem ser considerados concretizações das exigências do princípio da dignidade da pessoa humana [6]”.
José Afonso da Silva preleciona que no
“nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que o [ordenamento jurídico] concretiza em garantia de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas. No qualificativo fundamentais, acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive [7].”
Neste sentido Konrad Hesse preconiza que “direitos fundamentais são aqueles direitos que o direito vigente qualifica de direitos fundamentais [8]”.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 elenca em seus sete artigos iniciais um amplo rol de direitos caracterizados e denominados como fundamentais, porém não os exaure, eis que nas normas infraconstitucionais e nas normas decorrentes de tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário podem ser encontrados outros de forma dispersa que se incorporam à legislação pátria.
Portanto, numa análise estrita, os direitos fundamentais podem ser definidos como o conjunto de direitos da pessoa humana reconhecidos de forma expressa ou implícita por uma determinada ordem constitucional [9].
Após esta reflexão sobre o conceito de direitos fundamentais, deve-se destacar que a dificuldade grave da atualidade, com relação aos direitos do homem, não é mais o de fundamentá-lo, e sim de protegê-los. Não se trata mais de saber quantos e quais são estes direitos, mas sim qual é o modo mais seguro de garanti-los. [10] Nessa perspectiva torna-se imperioso analisar a eficácia dos direitos fundamentais em seu aspecto vertical e horizontal.
Ao referir-se a eficácia vertical e horizontal, o que se pretende é evidenciar a distinção existente entre a eficácia dos direitos fundamentais sobre o Poder Público e a eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre os particulares [11].
Ensina Luiz Guilherme Marinoni que, “as normas que estabelecem direitos fundamentais, se podem ser subjetivadas, não pertinem somente ao sujeito, mas sim a todos aqueles que fazem parte da sociedade [12]“.
Inexiste dúvida de que o direito fundamental da não discriminação deve ser aplicado nas relações entre o Estado e o particular. Assim, o Estado tem o dever de não violar os direitos fundamentais, além da incumbência de fazê-los respeitar pelos particulares, de modo impositivo.
“Outra importante função atribuída aos direitos fundamentais e desenvolvida com base na existência de um dever geral de efetivação atribuído ao Estado, por sua vez agregado à perspectiva objetiva dos direitos fundamentais, diz com o reconhecimento de deveres de proteção (Schutzpflichten) do Estado, no sentido de que a este incumbe zelar, inclusive preventivamente, pela proteção dos direitos fundamentais dos indivíduos não somente contra os poderes públicos, mas também contra agressões provindas de particulares e até mesmo de outros Estados. Esta incumbência, por sua vez, desemboca na obrigação de o Estado adotar medidas positivas da mais diversa natureza (por exemplo, por meio de proibições, autorizações, medidas legislativas de natureza penal, etc.), com o objetivo precípuo de proteger de forma efetiva o exercício dos direitos fundamentais. No âmbito da doutrina germânica, a existência de deveres de proteção encontra-se associada principalmente – mas não exclusivamente – aos direitos fundamentais à vida e à integridade física (saúde), tendo sido desenvolvidos com base no art. 2°, inc. II, da Lei Fundamental, além da previsão expressa encontrada em outros dispositivos. Se passarmos os olhos pelo catálogo dos direitos fundamentais de nossa Constituição, será possível encontrarmos também alguns exemplos que poderiam, em princípio, enquadrar-se nesta categoria [13]”.
Desta forma, atualmente não se discute acerca da aplicação de direitos fundamentais nas relações entre o Estado e o particular. Trata-se da denominada “eficácia vertical dos direitos fundamentais”, ou seja, aplicação de direitos fundamentais nas relações entre o Estado e o particular.
2.2. Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais
Da mesma forma que se impõe a clássica eficácia vertical dos direitos fundamentais, que sujeita o Poder Público ao respeito aos direitos fundamentais, insiste-se na eficácia horizontal ou privada (erga omnes), que ordena a observância dos direitos fundamentais igualmente nas relações entre particulares.
Os direitos fundamentais não se reservam somente às relações verticais, dedicam-se do mesmo modo às relações jurídicas horizontais, objetivando resguardar a liberdade e a dignidade humana. Versa-se do que a doutrina batizou de “eficácia horizontal dos direitos fundamentais”, “eficácia privada dos direitos fundamentais”, ou, “eficácia externa dos direitos fundamentais”.
O pensador Konrad Hesse alude que “os direitos fundamentais são pressupostos jurídicos elementares da existência digna de um ser humano[14].” Isto é, em caso de eventual inexistência ou supressão “a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive [15]”.
A Declaração de Virgínia de 1776 preconizava em seu art. 1º que:
“Art. 1º. Todos os homens nascem igualmente livres e independentes, têm direitos certos, essenciais e naturais dos quais não podem, por nenhum contrato, privar nem despojar sua posteridade: tais são o direito de gozar a vida e a liberdade com os meios de adquirir e possuir propriedades, de procurar obter a felicidade e a segurança[16]”.
Similar fundamento foi proclamado na Declaração Francesa de 178916, que preceituou em seu art. 2º: “O fim de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis ao homem”.
A eficácia horizontal pondera a situação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, assim como a obediência do sujeito privado aos direitos fundamentais.
Neste contexto, é patente que o efeito dos direitos fundamentais na esfera privada é distinto e, sob certa ótica, menos vigoroso que o percebido nas relações com o Poder Público.
Partindo desta premissa, uma grande divergência compreende a questão da eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Há quem entenda que os direitos fundamentais são dotados de eficácia imediata sobre as relações entre os particulares, e outros sustentam que tal eficácia é apenas mediata.
2.2.1. Teoria da Eficácia Mediata ou Indireta dos Direitos Fundamentais
A teoria da eficácia indireta ou mediata dos direitos fundamentais deriva da percepção intelectual do alemão Günther Dürig, segundo o qual a eficácia dos direitos fundamentais, associada ao direito privado, estaria condicionada a existência de normas jurídico-privadas sobre a matéria, e, em caso de inexistência, sua aplicabilidade se daria por meio da interpretação e integração das cláusulas gerais do direito privado em consonância com os direitos fundamentais.
Significa dizer que os direitos fundamentais só poderiam ser aplicados nas relações entre particulares caso houvesse uma lei, ou do contrário, seria feita uma interpretação ou integração das cláusulas gerais do direito privado, fazendo a ligação entre a Constituição e o caso. Sem lei, não seria admissível aplicar os direitos fundamentais – eficácia indireta.
Ressalte-se, contudo, que essa teoria tem duas dimensões: a proibitiva (a lei está impedida de violar direitos fundamentais) e a positiva (o legislador deve ser incentivado à proteção dos direitos fundamentais).
Segundo tal teoria, os direitos fundamentais não possuem por escopo central solucionar litígios de direito privado, sendo sua aplicação satisfeita através de instrumentos ordenados pelo próprio sistema jurídico. Compete ao legislador, principal destinatário das normas de direitos fundamentais, proceder ao emprego das normas às relações jurídico-privadas, e, a carência destas normas permitiria ao poder judiciário desenvolver e aplicar a interpretação em conformidade com os direitos fundamentais.
Na lição de Marinoni, [17]
“quando se pensa em eficácia mediata, afirma-se que a força jurídica dos preceitos constitucionais somente se afirmaria, em relação aos particulares, por meio dos princípios e normas de direito privado. Isso ocorreria através de normas de direito privado – ainda que editadas em razão do dever de proteção do Estado. Além disso, os preceitos constitucionais poderiam servir como princípios de interpretação das cláusulas gerais e conceitos indeterminados suscetíveis de concretização, porém sempre dentro das linhas básicas do direito privado”.
2.2.2. Teoria da Eficácia Imediata ou Direta dos Direitos Fundamentais
A teoria da eficácia imediata ou direta foi idealizada na Alemanha, por Hans Carl Nipperdey, agregando-se outros preclaros como Walter Leisner, que se devotou a analisá-la e aprimorá-la para a organização de uma tese.
Os defensores da teoria da eficácia imediata pregam que os direitos fundamentais são aplicáveis de forma direta em relação aos particulares. Sustentam que as normas constitucionais devem possuir um caráter primário e justificador, independente de haver ou não normas infraconstitucionais numa decisão.
Outrossim, destacam que as normas constitucionais não devem ser encaradas necessariamente como as únicas, mas como normas de condutas hábeis a incidir no teor das relações privadas. A existência de uma regra legal que ratifique de forma expressa norma ou princípio constitucional não seria impedimento à aplicação direta da norma constitucional, eis que o legislador exerce atribuição declarativa e não constitutiva.
Ademais, corroborando a tese acima, destaca Andrieta Kretz o fundamento de que o prestígio da eficácia direta nas relações entre particulares é uma espécie de cláusula geral que legitima o preceito de proteção dos direitos fundamentais, além de acudir as restrições impostas pelos instrumentos de controle do direito privado, uma vez que estes, de per si, apenas proporcionam uma proteção genérica e fragmentária, fazendo-se imperativo, portanto, em determinados casos, a aplicação direta dos direitos fundamentais. [18]
A tese da eficácia direta é considerada meramente especulativa para grande parcela das ordens constitucionais, tendo em vista que a maior parte dos Estados não goza de indicação constitucional concernente à matéria. Um dos poucos ordenamentos que se posicionou expressamente foi Portugal, Constituição de 1976[19], modelo, entretanto, que não foi adotado pelo Constituinte brasileiro.
No ordenamento constitucional brasileiro, inobstante não haja menção expressa de alguma norma concernente à vinculação e aplicabilidade dos direitos fundamentais aos particulares, tal qual ocorre na Constituição Portuguesa, não existe argumento apto a embasar a negação de uma eficácia horizontal, pelo menos no que atine aos direitos fundamentais que não possuam como únicos destinatários os poderes públicos. [20]
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem se manifestado de forma clara, e inquestionável a respeito da eficácia dos direitos fundamentais na esfera privada. [21]
Não se pretende com a aplicação da teoria imediata negar a autonomia privada. A referida autonomia caracteriza-se como um dos elementos fundamentais do direito privado, reconhecido inclusive como verdadeiro princípio constitucional, especialmente em seu art. 5º, inciso II, agregado ainda à dignidade da pessoa humana, à liberdade, à livre iniciativa, dentre outros instrumentos de legitimação da autonomia particular.
O posicionamento dominante adota o prestígio da autonomia privada como princípio constitucional, porém, não a admite em caráter absoluto, impondo-lhe limites. Conforme instrui Sarlet [22]
“Não se deve esquecer que – pelo menos no âmbito das relações negociais, os particulares não atuam, em princípio, por força de uma delegação ou autorização do Estado (Legislador), mas, sim, em virtude de uma decisão autônoma, no âmbito de sua autonomia privada e do direito geral de liberdade, que apenas é reconhecida e objeto de regulação e proteção por parte do legislador.”
Desta maneira, demonstra-se plausível na ordem jurídica pátria a eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações jurídicas entre particulares, de forma integrada o princípio da autonomia da vontade.
Inserido na ideia de dimensão objetiva dos direitos fundamentais encontra-se a eficácia irradiante dos direitos fundamentais [23].
Acerca da dimensão objetiva Daniel Sarmento ensina:
“A dimensão objetiva dos direitos fundamentais liga-se ao reconhecimento de que tais direitos, além de imporem certas prestações aos poderes estatais, consagram também os valores mais importantes em uma comunidade política, constituindo, como afirmou Konrad Hesse, ‘as bases da ordem jurídica da coletividade’. Nesta linha, quando se afirma a existência desta dimensão objetiva pretende-se, como registrou Vieira de Andrade ‘fazer ver que os direitos fundamentais não podem ser pensados apenas do ponto de vista dos indivíduos, enquanto faculdades ou poderes de que estes são titulares, antes valem juridicamente também do ponto de vista da comunidade, como valores ou fins que esta se propõe a prosseguir[24]”.
A eficácia consiste no fato dos direitos fundamentais possuírem o condão de se irradiar aos Poderes da República: ao Legislativo impondo quando da elaboração das leis que o legislador preserve os direitos fundamentais; ao Executivo, estabelecendo que ao governar os direitos fundamentais devem ser reverenciados; e ao Judiciário, que ao julgar os conflitos não pode olvidar ao preconizado pelo diploma maior.
“Uma das mais importantes consequências da dimensão objetiva dos direitos fundamentais é o reconhecimento da sua eficácia irradiante. Esta significa que os valores que dão lastro aos direitos fundamentais penetram por todo o ordenamento jurídico, condicionando a interpretação das normas legais e atuando como impulsos e diretrizes para o legislador, a administração e o Judiciário. A eficácia irradiante, nesse sentido, enseja a “humanização” da ordem jurídica, ao exigir que todas as suas normas sejam, no momento de aplicação, reexaminadas pelo operador do direito com novas lentes, que terão as cores da dignidade humana, da igualdade substantiva e da justiça social, impressas no tecido constitucional [25]”.
A despeito dos efeitos vinculantes e irradiantes dos direitos fundamentais, é imperativo enfatizar que a Carta Magna, em seu artigo 5º, parágrafo 1º aludi que: “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.
Insurge desta disposição, portanto, que todas as normas definidoras de direitos e garantias individuais, sociais e políticos têm caráter diretamente e imediatamente vinculante.
Corroborando esta inteligência Canotilho e Vital Moreira, em obra conjunta, perfilham a possibilidade de aplicação dos direitos fundamentais, nas relações entre os particulares e os poderes públicos, ou ainda nas relações privadas entre os particulares, salientando que a aplicabilidade não está condicionada a qualquer intermediação legislativa.[26] Ademais reiteram a existência de ilicitude dos atos praticados por entidades privadas lesivos de direitos fundamentais, “eis que a Constituição vincula diretamente as entidades privadas em matéria de direitos, liberdades e garantias[27]”.
A eficácia irradiante tem na interpretação conforme a Constituição uma das suas mais produtivas estruturas de aplicação. Conforme o doutrinador Luís Roberto Barroso, esta técnica satisfaz concomitantemente as funções de princípio hermenêutico e mecanismo de controle de constitucionalidade [28].
“Como princípio hermenêutico, ela impõe ao operador do direito que, diante da ambiguidade de determinada disposição legal, opte pela exegese que torne esta norma compatível com a Constituição, mesmo que não seja a resultante da exegese mais obvia do preceito. (…) e, como mecanismo do controle de constitucionalidade, a interpretação conforme a constituição – hoje expressamente prevista em lei (art. 28, parágrafo único, da Lei 9.868/99) – possibilidade que o Supremo Tribunal Federal, na fiscalização abstrata dos atos normativos, elimine, por contrariedade à Lei Maior, possibilidades exegéticas de determinada norma, sem redução do seu texto. (…) cada juiz e operador do direito, nos casos concretos com que se defrontem, têm a obrigação de interpretar as normas jurídicas do modo mais consentâneo com a Lei Fundamental.[29]
Note-se que, aderindo-se a proposição de que os direitos fundamentais caracterizam o âmago axiológico do ordenamento jurídico, a eficácia irradiante infligi uma nova percepção de todo o direito positivo.
Neste diapasão, os diplomas legislativos infraconstitucionais incompatíveis com o texto constitucional, por vezes editado em situação axiológica distinta (mais individualista ou mais totalitária), terão de ser revistos pelo operador do direito, fundados em uma nova perspectiva, na Constituição, especificamente nos direitos fundamentais.
A eficácia irradiante dos direitos fundamentais revela-se, mormente no que tange à interpretação e aplicação das cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, frequentemente empregados na legislação infraconstitucional.
Paulo Bonavides destaca que:
“Os direitos fundamentais são a bússola das Constituições. A pior das inconstitucionalidades não deriva, porém, da inconstitucionalidade formal, mas da inconstitucionalidade material, deveras contumaz nos países em desenvolvimento ou subdesenvolvimento, onde as estruturas constitucionais, habitualmente instáveis e movediças, são vulneráveis aos reflexos que os fatores econômicos, políticos e financeiros sobre elas projetam [30]”.
Em verdade, de maneira simplista, a eficácia irradiante dos direitos fundamentais consiste na utilização dos direitos fundamentais como bússola para as ações do Estado – Legislativo, Executivo e Judiciário, servindo de orientação para a interpretação e aplicação das demais normas do âmbito jurídico.
É importante registrar que a concepção material dos direitos fundamentais fixa a dignidade da pessoa humana como cerne que legitima e confere unidade de sentido à Constituição e ao sistema jurídico de direitos fundamentais.
Explana Luiz Guilherme Marinoni que:
“a norma de direito fundamental, independentemente da possibilidade de sua subjetivação, sempre contém valoração. O valor nela contido, revelado de modo objetivo, espraia-se necessariamente sobre a compreensão e atuação do ordenamento jurídico. Atribui-se aos direitos fundamentais, assim, uma eficácia irradiante [31]”.
A eficácia irradiante dos direitos fundamentais mantém sua atuação nas legislações infraconstitucionais, impondo que o operador do direito aplique a interpretação dessas normas em consonância com a Constituição, notadamente com os direitos fundamentais. Denomina-se “filtragem constitucional” a interpretação dessas legislações em conformidade com a Constituição.
Portanto, a eficácia irradiante explica a ocorrência de normas de direitos fundamentais nas relações entre particulares, eis que estas normas se sobrepõem às relações jurídicas concretas, cumprindo a função de difundir todo o ordenamento jurídico com valores advindos da Carta Maior.
CONCLUSÃO
Os direitos fundamentais têm sido tema de intensos debates acerca de sua terminologia. No âmbito doutrinário, entendimento prevalente é aquele que dissemina os direitos fundamentais como os direitos dos seres humanos reconhecidos e positivados no campo do ordenamento constitucional positivo de determinado Estado.
A Carta da República em seus artigos iniciais elenca diversos direitos tidos como fundamentais, entretanto, estes não se exaurem, sendo encontrados ainda na legislação esparsa. Desta forma, o problema atual consiste não mais em fundamentá-los, e sim em protegê-los, garantindo sua eficácia vertical e horizontal.
Partindo de tal concepção, ao referir-se à eficácia vertical e horizontal o intento principal consiste em distinguir respectivamente entre a eficácia dos direitos fundamentais sobre o Poder Público e a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas.
Assim, precisamente em razão de uma eficácia vertical dos direitos fundamentais, o Estado, além de compelido a não violar os direitos fundamentais, tem ainda a incumbência de fazê-los respeitar pelos particulares.
Na mesma direção de uma clássica eficácia vertical dos direitos fundamentais, que sujeita ao respeito pelo Estado, existe ainda a eficácia horizontal ou privada (erga omnes), que ordena a reverência aos direitos fundamentais também nas relações privadas.
Na Alemanha, propagaram-se duas teorias a respeito da eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares: a teoria da eficácia mediata ou indireta e a teoria da eficácia imediata ou direta.
Segundo a teoria da eficácia mediata, a cogência dos preceitos constitucionais estaria condicionada, em relação aos particulares, aos princípios e normas de direito privado. As normas constitucionais atuariam como princípios de interpretação das cláusulas gerais e conceitos indeterminados pendentes de efetivação, todavia, sempre coadunadas com as diretrizes do direito privado.
Já na teoria da eficácia imediata ou direta, os direitos fundamentais têm aplicabilidade direta em relação aos particulares. Independentemente da existência de normas infraconstitucionais numa decisão, as normas constitucionais devem ser sobrepostas como razões primárias e justificadoras, porém não essencialmente como as únicas, mas de forma integrada como normas de conduta hábeis a sobrevir no conteúdo das relações privadas.
No ordenamento jurídico brasileiro, distintamente da Constituição Portuguesa inexiste previsão expressa no que concerne à vinculação e aplicabilidade dos direitos fundamentais nas relações particulares. Entretanto, não existe fundamento capaz de justificar a negativa de uma eficácia horizontal, tendo sido a autonomia privada reconhecida pelo constituinte originário, especialmente em seu art. 5º, inciso II, como apropriado princípio constitucional, podendo também ser reconhecida na dignidade da pessoa humana, na liberdade e na livre iniciativa.
Logo, demonstra-se plenamente crível no ordenamento a eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações jurídicas entre particulares, de forma integrada, sem a supressão do princípio da autonomia da vontade.
Por fim, ante o exposto nesta pesquisa, pode-se concluir que o exercício dos direitos fundamentais é oponível tanto em relação ao Estado (eficácia vertical), quanto aos particulares (eficácia horizontal), prevalecendo a isonomia e legalidade do Estado Democrático de Direito.
REFERÊNCIAS
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[1] Alguns doutrinadores como Ingo Sarlet e Paulo Bonavides preferem a expressão dimensão à expressão geração sob a justificativa de que a segunda poderia dar a entender que uma geração anterior seria substituída por uma nova geração, quando não seria isso o que se propunha, uma vez que o que se verifica é uma evidenciação de direitos fundamentais, e por isso a terminologia dimensão de direitos fundamentais parece-lhes mais adequada.
[2] MELLO, Celso de, apud, Alexandre de Moraes, Direito constitucional. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 26.
[3] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 2004. p. 28.
[4] A quarta geração de direitos é assinalada por meio de pesquisa biológica e científica, através da defesa do patrimônio genético, pelo direito à democracia, à informação e ao pluralismo.
[5] LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos. São Paulo: Companhia da Letras, 1988. apud discurso de posse do Ministro Celso de Mello como Presidente do Supremo Tribunal Federal.
[6] SARLET, Ingo Wolfgang. Eficácia dos diretos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p.110.
[7] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 1992. p. 163.
[8] HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da república federal da alemanha. Traduzido por Luiz Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1998. p.225.
[9] VIEIRA, Oscar Vilhena. Direitos fundamentais – uma Leitura da Jurisprudência do STF. São Paulo: Malheiros Editores, 2006. p.36.
[10] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 2004. p. 25.
[11]Mister salientar que, parte da doutrina entende no caso de manifesta desproporção econômico social entre dois particulares, que também existe relação de natureza vertical. (SARLET, Ingo Wolfgang. A constituição concretizada: construindo pontes entre o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 155).
[12] MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p.168.
[13] SARLET, Ingo Wolfgang. Eficácia dos diretos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p.174.
[14] HESSE, Konrad. em sua obra Elementos de direito constitucional da república federal da alemanha, Trad. Luís Afonso Heck, Porto Alegre: Fabris,1998. pág. 290
[15] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 1992. p. 164.
[16] Declaração dos direitos da Virginia. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/inedex.htm>. Acesso em 20 dez. 2010.
[17] MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p.172.
[18] KRETZ, Andrietta. Autonomia da vontade e eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Florianópolis: Momento atual, 2005. p.92.
[19] art. 18/1: “Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”.
[20] Na Alemanha, berço das teorias sobre a eficácia mediata e imediata, adota-se a teoria da eficácia indireta ou mediata, realizadas algumas regulações e especificidades em razão das quais para determinados doutrinadores como Ingo Sarlet existiria um segundo formato de eficácia indireta a qual designou “teoria dos deveres de proteção”. Na mesma direção professa Robert Alexy , para quem seriam três as teorias: a de efeito imediato; a de efeito mediato e motivado através de direitos “frente ao Estado”.
Os Estados Unidos conservaram um posicionamento constante ao logo do tempo, recusando a vinculação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, tendo sua Constituição fixado limites exclusivamente com relação à atuação dos entes estatais, através de uma teoria conceituada de State Action. (SARLET, Ingo Wolfgang. A constituição concretizada: construindo pontes entre o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p.123), (ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos, 2001. p.511).
[21] SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO. I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais. III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAÇO PÚBLICO, AINDA QUE NÃO-ESTATAL. ATIVIDADE DE CARÁTER PÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. APLICAÇÃO DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIO. As associações privadas que exercem função predominante em determinado âmbito econômico e/ou social, mantendo seus associados em relações de dependência econômica e/ou social, integram o que se pode denominar de espaço público, ainda que não-estatal. A União Brasileira de Compositores – UBC, sociedade civil sem fins lucrativos, integra a estrutura do ECAD e, portanto, assume posição privilegiada para determinar a extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de seus associados. A exclusão de sócio do quadro social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do devido processo constitucional, onera consideravelmente o recorrido, o qual fica impossibilitado de perceber os direitos autorais relativos à execução de suas obras. A vedação das garantias constitucionais do devido processo legal acaba por restringir a própria liberdade de exercício profissional do sócio. O caráter público da atividade exercida pela sociedade e a dependência do vínculo associativo para o exercício profissional de seus sócios legitimam, no caso concreto, a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF/88). IV. RECURSO EXTRAORDINÁRIO DESPROVIDO. (RE 201819 / RJ – Rio de Janeiro Recurso Extraordinário – Relatora: Min. ELLEN GRACIE – Relator p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES .Julgamento:11/10/2005 – Órgão Julgador: Segunda Turma, Publicação: DJ 27/10/2006, PP 064 – Ement Vol – 02253-04 PP 00577.)
[22] SARLET, Ingo Wolfgang. A constituição concretizada: construindo pontes entre o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p.138.
[23] SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas, tese de Doutorado em Direito Público, defendida na UERJ em junho de 2003, editada pela Lumen Juris: 2004. p. 154.
[24] ibidem, p. 134.
[25] SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas, tese de Doutorado em Direito Público, defendida na UERJ em junho de 2003, editada pela Lumen Juris: 2004. p. 158.
[26] CANOTILHO, Jose Joaquim. Gomes e MOREIRA, Vital. Fundamentos da constituição, Coimbra: Coimbra Editora, 1991. p 121.
[27] ibidem, p. 145.
[28] BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da constituição, 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 174.
[29] BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da constituição, 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 174.
[30] BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 60.
[31] MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p.168.
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