Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar a teoria da pluralidade do universo normativo e da hermenêutica jurídica como narração, desenvolvida por Robert Cover, como contraponto à limitação normativista da hermenêutica jurídica de Hans Kelsen. Para tanto, apresenta-se, por primeiro, a posição do julgador antes e depois do advento do Estado moderno, demonstrando que no período anterior ao surgimento do Estado moderno, o jurista, mais especificamente o julgador, levava em consideração as particularidades culturais dos agrupamentos sociais no momento de decidir, o que acabou se perdendo com o advento da modernidade e, junto com ela, a codificação e estatização do direito. Após breve abordagem sobre as generalidades da hermenêutica jurídica, analisa-se as características gerais da teoria juspositivista de Hans Kelsen e, em seguida, passa-se à análise da limitação normativista da sua hermenêutica jurídica. Ao final, através da análise da obra Derecho, narración y violencia, passa-se à exposição da teoria da pluralidade do universo normativo e da hermenêutica jurídica como narração, desenvolvida por Robert Cover.
Palavras-chave: hermenêutica jurídica; limitação normativa; nomos; pluralidade do universo normativo; narração.
Abstract: This article aims to analyze the theory of plurality of the normative universe and legal hermeneutics as narration, developed by Robert Cover, as a counterpoint to the normativist limitation of Hans Kelsen 's legal hermeneutics. First, presents the position of the judge before and after the advent of the modern state is presented, showing that in the period before the emergence of the modern state, the jurist, more specifically the judge, took into account the cultural particularities of social groupings at the moment of deciding, what was lost with the advent of modernity and, together with it, the codification and nationalization of law. After a brief approach about the generalities of legal hermeneutics, we analyze the general characteristics of Hans Kelsen's juspositivist theory and then proceed to analyze the normativist limitation of its legal hermeneutics. At the end, through the analysis of the work Derecho, narration and violence, we turn to the exposition of the theory of plurality of the normative universe and of legal hermeneutics as narration, developed by Robert Cover.
Keywords: legal hermeneutics; normative limitation; nomos; plurality of the normative universe, Narration.
Sumário: Introdução. 1. A posição do jurista antes e depois do surgimento do Estado moderno. 2. A hermenêutica jurídica. 3. A hermenêutica jurídica de Hans Kelsen. 3.1. Características gerais do pensamento juspositivista de Kelsen 4. A limitação normativista da hermenêutica jurídica de Kelsen. 5. A hermenêutica jurídica de Robert Cover. 5.1. Pluralidade do universo normativo. 5.2. Hermenêutica jurídica como narração. Considerações finais. Referências.
Introdução
Em que pese a existência de variadas correntes de pensamento a respeito da interpretação do direito, na Idade Contemporânea o padrão da hermenêutica jurídica é indiscutivelmente juspositivista. A grande maioria dos operadores do direito – pelas estruturas institucionais do direito contemporâneo, pela limitação teórica e/ou pela prática jurídica –, considerando que o universo normativo é limitado às normas positivadas, restringem a sua atividade à interpretação e reprodução do texto normativo, deixando de lado as circunstâncias externas a ele. Esse é o posicionamento de Hans Kelsen que, em sua obra Teoria Pura do Direito, estabelece que a interpretação é uma atividade de preenchimento de uma possibilidade dentro da moldura oferecida pelo direito posto, limitando-a, assim, ao universo normativo positivado.
Há, por outro lado, em oposição à limitação normativista da hermenêutica jurídica de Hans Kelsen, a teoria desenvolvida por Robert Cover – na obra Derecho, narración y violencia –, que considera que a hermenêutica jurídica não deve corresponder a uma atividade meramente reprodutiva do corpo jurídico estatal, mas sim a uma atividade criadora do significado jurídico. Para Cover, o operador do direito deve levar em consideração as narrações histórico-culturais dos variados grupos sociais existentes na sociedade, de modo a ir além das regras postas e das instituições formais do direito.
Expondo as características principais destas duas correntes antagônicas, o presente estudo empenha-se em apontar a deficiência da hermenêutica jurídica de Hans Kelsen ao limitar a interpretação do direito às normas positivadas, tornando-a uma atividade meramente reprodutiva do direito preexistente, e a apresentar a teoria da pluralidade normativa e da hermenêutica jurídica como narração, desenvolvida por Cover, como forma de possibilitar que as comunidades que possuem uma interpretação diversa do texto normativo façam valer a sua reinterpretação radical (nos dizeres do professor Ari Marcelo Solon), criando, assim, um significado jurídico compatível com o seu nomos, em contraponto à limitação normativista da hermenêutica jurídica de Hans Kelsen.
1 – A posição do jurista frente a interpretação do direito antes e depois do Estado Moderno
Nas sociedades pré-modernas, como a hebreia, a grega, a romana e a medieval, o direito tinha características distantes das verificadas na modernidade. O texto jurídico-normativo confundia-se com a religião, bem como referenciava-se com o misticismo e as particularidades culturais de cada povo. O jurista antigo não era considerado um técnico neutro e alheio às circunstâncias externas à norma jurídica. De acordo com Alysson Leandro Mascaro, no mundo antigo, o direito
“não era considerado um fenômeno isolado, com uma operacionalização técnica específica. Mesmo a técnica interpretativa era parelha de outros sentidos e fenômenos sociais. Horizontes não-jurídicos influenciavam, de modo avassalador, a compreensão direta do que fosse o jurídico e o justo” (2015, p. 160).
“Os antigos sempre mantiveram os olhos postos no passado, enxergando as gerações precedentes como envoltas numa aura mitológica, de heroísmo, e sacralidade” (COMPARATO, 2016, p. 54).
“O reconhecimento da importância dos usos e costumes, como base da vida social, foi uma espécie de lugar-comum no pensamento clássico” (COMPARATO, 2016, p. 54).[1]
A sociedade medieval, por exemplo, segundo Norberto Bobbio, era uma sociedade pluralista “posto ser constituída por uma pluralidade de agrupamentos sociais cada um dos quais dispondo de um ordenamento jurídico próprio: o direito aí se apresentava como um fenômeno social” (2006, p. 27), produzido pela própria sociedade e não pelo Estado.
Considerando essas circunstâncias, o julgador, nas sociedades pré-modernas, ao resolver as controvérsias que lhe eram apresentadas, não estava necessariamente vinculado a escolher entre normas emanadas exclusivamente do Estado, ele tinha certa liberdade de escolha no momento de aplicar a norma; podia deduzi-la das regras de costume, das regras elaboradas pelos juristas, ou, ainda, podia resolver o caso baseando-se em critérios equitativos, extraindo a regra do próprio caso em análise segundo princípios da razão natural. “Todas estas regras estavam no mesmo nível, de todas podia o juiz obter normas a aplicar e, portanto, todas, na mesma proporção, constituíam “fontes do direito”” (COMPARATO, 2016,
p. 54), permitindo, assim, se falar na existência de duas espécies de direito (natural e positivo), possibilitando, aos juízes, a extração da norma a ser aplicada tanto das regras positivadas como dos princípios equitativos e da razão.
Com o surgimento do Estado Moderno a sociedade assumiu uma estrutura monista, na qual o Estado passou a concentrar em si todos os poderes, dentre eles o poder de criar o direito.[2]
De acordo com Alysson Mascaro, o direito, a partir da modernidade, passa a girar em torno de atos e negócios jurídicos realizados por sujeitos de direito tidos como livres e autônomos, sendo este tipo de relação o núcleo de criação da sociedade capitalista. “Em parelho à atividade capitalista, o direito que espelha tal núcleo começar a ser consolidado por meio de normas escritas, regulamentos, determinações estatais” (2015, p. 160).
“Com a formação do Estado moderno o juiz de livre órgão da sociedade, torna-se órgão do Estado, um verdadeiro e autêntico funcionário do Estado” (BOBBIO, 2006, p. 28). Em decorrência disso, as regras que não são reconhecidas como jurídicas pelo Estado passam a ser descartadas e não mais aplicadas pelos juízes. Isso porque, o direito natural e o direito positivo (emanado do Estado) não mais são considerados de mesmo nível. O direito positivo passa a ser considerado como único e verdadeiro direito com aplicação nos tribunais.
Desse modo, com o advento do Estado Moderno, foi subtraída dos juízes a faculdade de extrair das normas sociais a norma a ser aplicada na resolução das controvérsias apresentadas, e imposto a eles a obrigação de seguir e aplicar apenas as normas positivadas pelo Estado, “iniciando-se um sistema de unificação e universalização de procedimentos que alcança muitos fatos e fenômenos sociais distintos, dando-lhes uniformidade de tratamento […]” (MASCARO, 2015, p. 161), deixando de lado, no momento da resolução de uma controvérsia, as particularidades de cada grupo social.
2 – A hermenêutica jurídica
Muito embora o desenvolvimento de técnicas interpretativas do direito remonte de há muito, teorias da hermenêutica jurídica[3] passaram a ser desenvolvidas com maior força somente a partir do mundo moderno.
A partir do século XIX, quando se inicia o processo de codificação das normas jurídicas, tendo como marco representativo o Código Civil Francês de 1804, os teóricos do direito passaram a refletir sobre como esse conjunto de normas deveria ser interpretado.
A Escola Histórica foi um dos primeiros e principais movimentos de reflexão acerca da interpretação das normas jurídicas codificadas, tendo Carl von Savigny como um dos principais expoentes sobre as questões da hermenêutica. Savigny, num primeiro momento, considerava que a interpretação das normas jurídicas deveria ser realizada exatamente de acordo com o que o texto normativo positivado expunha, ou seja, uma interpretação literal das normas. Posteriormente, modificando o seu pensamento, propôs que as normas jurídicas deveriam ser interpretadas conforme o espírito do povo (Volksgeist), ou seja, a interpretação deveria estar alinhada com a cultura, o ambiente social, as necessidades e os anseios da sociedade[4].
De acordo com Tércio Sampaio Ferraz Junior, “Savigny exigia da investigação científica do direito o reconhecimento uniforme do valor e da autonomia de cada época, conforme os princípios da ciência histórica” (2010, p. 30).
Durante todo o século XIX e o início do século XX, além do pensamento de Savigny, diferentes visões acerca da interpretação das normas jurídicas foram propostas, dentre elas, a do movimento do direito livre, que sustentava que “pelas mãos do aplicador do direito, o direito deveria, hermeneuticamente, adaptar-se às necessidades sociais e aos interesses da vida prática” (MASCARO, 2015, p. 162).
De acordo com Alysson Mascaro, “o movimento do direito livre estava dentro do campo das próprias instituições jurídicas, reconhecendo as competências interpretativas do magistrado, mas liberando-o à mirada direta à realidade social” (2015, p. 162).
Nada obstante a existência de variadas escolas de pensamento a respeito da interpretação do direito, inclusive com pensamento voltado às circunstâncias externas ao direito positivado, na Idade Contemporânea o padrão da hermenêutica jurídica é indiscutivelmente juspositivista. Os operadores do direito limitam-se – pelas estruturas institucionais do direito contemporâneo, pela limitação teórica e pela prática jurídica – a observar e a trabalhar somente com texto normativo positivado pelo Estado, deixando de lado as circunstâncias externas a ele. Esse é o posicionamento de Hans Kelsen que, em sua teoria, estabelece que a interpretação é uma atividade de preenchimento de uma possibilidade dentro da moldura oferecida pelo direito posto, limitando-a, assim, ao universo normativo positivado.
Há, por outro lado, em oposição à hermenêutica juspositivista, em especial à limitação normativa da hermenêutica jurídica de Hans Kelsen, a teoria desenvolvida por Robert Cover, que considera que a hermenêutica jurídica não deve corresponder a uma atividade meramente reprodutiva do corpo jurídico estatal, mas sim criadora do significado jurídico, que deve levar em consideração as narrações histórico-culturais dos grupos sociais, indo, assim, além das regras postas e das instituições formais do direito.
3 – A hermenêutica jurídica de Hans Kelsen
3.1 – Características gerais do pensamento juspositivista de Kelsen
Neste ponto, sem a pretensão de esgotar o tema, será exposto, como forma de introduzir e dar suporte ao tema da hermenêutica jurídica que será em seguida abordado, as características gerais da corrente juspositivista de Hans Kelsen.
As raízes históricas do positivismo jurídico[5] remontam de há muito, todavia, a construção sistemática de um modelo de identificação do direito ao Estado aparece, vigorosamente, apenas no século XIX[6], quando, na Europa, teve início o movimento de positivação e codificação das normas jurídicas estatais, sendo o Código Civil Francês de 1.804 o grande representante do espírito sistematizante da época.
O pensamento positivista do século XIX ainda se aproximava das ideias jusnaturalistas, pois considerava que havia um conteúdo intrinsecamente moral, cultural e social às normas jurídicas. A forma já era juspositivista, mas considerava-se que o conteúdo das normas era anterior ao Estado. Esse pensamento juspositivista é denominado pela doutrina como eclético.
A partir do século XX, com o advento da sociedade moderna capitalista, o intervencionismo estatal ganhou corpo, iniciando-se, então, uma percepção de juspositivismo pleno, ou seja, de identificação estrita do direito à forma estatal[7].
Hans Kelsen, com a Teoria pura do direito (sua maior obra), foi o maior precursor da corrente juspositivista (estrita). Nas primeiras décadas do século XX, Kelsen levou a limites extremos os pressupostos do juspositivismo. Encontrando raízes na filosofia de Immanuel Kant, a teoria kelseniana dispõe que as grandes questões teóricas do direito são resolvidas a partir de uma perspectiva racional em face da realidade.
A Teoria pura do direito, segundo Kelsen, trata-se de uma teoria do direito positivo – “do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial. É teoria geral do Direito, não interpretação de particulares normas jurídicas, nacionais ou internacionais” (2006, p. 1).
Referindo-se à pureza da teoria do direito, Kelsen expõe que:
“Quando a si própria se designa como “pura” a teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir desse conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto se não possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental” (2006, p. 1).
Considerando que o direito se manifesta somente através das normas jurídicas estatais, ou seja, através do direito positivado pelo Estado, Kelsen sustenta que ele seja analisado sob uma perspectiva científica, a fim de se atingir a pureza. Para tanto, Kelsen propõe que o estudo do direito seja abstraído de dados concretos da sociedade, de considerações morais, culturais e ideológicas, de modo a alcançar uma ciência[8] do direito puramente normativa – uma teoria pura do direito –, na qual o direito só poderá ser considerado a partir da análise das normas jurídicas estatais[9].
De acordo com Tércio Sampaio Ferraz Junior, Kelsen propõe
“uma ciência jurídica preocupada em ver, nos diferentes conceitos, o seu aspecto normativo, reduzindo-os a normas ou relações entre normas. O princípio de sua proposta está numa radical distinção entre duas categorias básicas de todo o conhecimento humano: ser e dever ser, a partir da qual se distinguem o mundo da natureza e o mundo das normas” (2010, p. 37).
Fábio Konder Comparato, tomando por base o pensamento de Hans Kelsen, dispõe que, segundo a concepção juspositivista, compete à ciência do direito
“tão só dizer o que direito é, sem cuidar minimamente de dizer o que o direito deveria ser. Em outras palavras, os juízos próprios de uma teoria “científica” do direito não são os juízos de valor; são silogismos, ou então puros juízos de fato: tal norma é jurídica porque vem expressa numa proposição de dever-ser (gênero próximo), contendo a previsão de uma sanção coativa (diferença específica em relação à demais normas de ordem social); tal lei é válida porque foi editada pela autoridade competente, segundo o procedimento para tal fim previamente estabelecido” (2016, p. 357).
“Para Kelsen, o direito pertence ao mundo do dever-ser; logo, não se há de pensar, juridicamente, com base no que é ou acontece no mundo dos fatos, pois o dever-ser não deriva do ser nem vice-versa” (COMPARATO, 2016, p. 361).
Os dados concretos da realidade, para Kelsen, são parciais e não dão conta de explicar a estrutura formal do direito, devendo o conhecimento jurídico ser afastado de qualquer entendimento do direito como fato social, econômico, político ou moral, de modo a restar um núcleo especificamente jurídico, que será objeto da ciência do direito. “A ciência do direito, portanto, trabalha com um método normativo e há de se debruçar sobre um objeto normativo, fazendo uma redução do todo da realidade jurídica aos limites do normativo estatal, residindo aí sua pureza” (MASCARO, 2014, p. 344).
Desse modo, de acordo com o pensamento positivista estrito de Kelsen, não há direito fora do Estado. O conteúdo e o universo normativo são estritamente ligados ao que o Estado determina como sendo direito, bem como a validade e a legitimidade das normas jurídicas devem ser apreciadas somente à luz da norma fundamental e da “regularidade procedimental de sua gênese: desde que a norma foi editada pela autoridade competente e de acordo com as regras de procedimento prescritas, ela é legítima” (COMPARATO, 2016, p. 357).
3.2 – A limitação normativista da hermenêutica jurídica de Kelsen
Conforme esclarecido no tópico antecedente, para Kelsen – em sua obra Teoria pura do direito –, o direito deve ser analisado cientificamente e, para tanto, deve se desprender das questões relacionadas aos fatos sociais, econômicos, valores, interesses e particularidades do jurista e da época. “A teoria kelseniana busca se restringir aos meros dados técnicos extraídos das normas jurídicas” (MASCARO, 2015, p. 163).
Muito embora tenha elaborado uma complexa teoria do direito, no campo da hermenêutica jurídica Kelsen limitou-se ao mínimo.
Limitado à técnica formal, Kelsen propõe apenas que a interpretação normativa seja distinguida em dois tipos[10]: interpretação autêntica e interpretação doutrinária. A interpretação autêntica será utilizada como base para demonstrar a limitação normativista da hermenêutica jurídica de Kelsen, levando em consideração o momento da aplicação da norma pelo julgador.
A interpretação autêntica, segundo Kelsen, é aquela realizada pelo órgão jurídico competente para aplicar a norma jurídica, ou seja, o juiz. Desse modo, “o juiz de direito, no momento em que prolata uma sentença, está impondo uma interpretação das normas que deverá ser cumprida pelas partes” (MASCARO, 2015, p. 163).
Para Kelsen, “o Direito a aplicar forma, em todas estas hipóteses, uma moldura dentro da qual existem várias possibilidades de aplicação, pelo que é conforme ao Direito todo ato que se mantenha dentro deste quadro ou moldura, que preencha esta moldura em qualquer sentido possível” (2006, p. 390).
E continua:
“Se por “interpretação” se entende a fixação por via cognoscitiva do sentido do objeto a interpretar, o resultado de uma interpretação jurídica somente pode ser a fixação da moldura que representa o Direito a interpretar e, consequentemente, o conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldura existem” (KELSEN, 2006, p. 390).
Conforme se observa, Kelsen, quando trata da interpretação das normas jurídicas, considera que não se pode dizer que decorra um único sentido correto de uma norma, a interpretação das normas não é meramente dedutível a partir do seu texto[11], não se trata de um procedimento mecânico. A interpretação, para Kelsen, é o preenchimento de uma possibilidade dentro de uma moldura oferecida pelas normas, e não necessariamente será apresentada uma única possibilidade.
Em vista disso, Kelsen considera o juiz como “um criador de Direito e também ele é, nesta função, relativamente livre” (2006, p. 393).
Muito embora não apresente uma teoria da interpretação na qual as normas jurídicas ressaltam hermeneuticamente como dados autônomos, é certo que ao estabelecer que as normas estabelecem uma “moldura hermenêutica, dentro da qual a interpretação é possível juridicamente” (MASCARO, 2015, p. 164), Kelsen tornou a hermenêutica jurídica uma “atividade puramente declarativa ou reprodutiva de um direito preexistente, isto é, no conhecimento puramente passivo e contemplativo de um objeto já dado” (BOBBIO, 2006, p. 211), e não criativa ou produtiva.
Conforme bem observado por Noberto Bobbio, “deixando de lado suas implicações filosóficas, o positivismo jurídico concebe a atividade da jurisprudência como sendo voltada não para produzir, mas para reproduzir, o direito, isto é, para explicitar com meios puramente lógico-racionais o conteúdo de normas jurídicas já dadas” (2006, p. 212).
Em outra passagem de sua obra, Kelsen apresenta argumento aparentemente contraditório à sua afirmação de que o juiz é criador do direto, e favorável, por outro, ao entendimento de que a atividade do juiz é, em realidade, reprodutiva, limitada à interpretação do texto normativo, ao estabelecer que a sentença judicial fundada na lei “não significa, na verdade, senão que ela se contém dentro de uma moldura ou quadro que a lei representa […]” (2006, p. 391).
A teoria de kelseniana reconhece, é bem verdade, a impossibilidade de se determinar uma interpretação única do texto normativo. Todavia, ao considerar que o ordenamento jurídico é completo – inexistindo, assim, lacunas – e que a atividade interpretativa é uma atividade de preenchimento de uma possibilidade dentro da moldura oferecida pelo direito posto, limitou a atividade do operador do direito, em especial a do julgador, à mera declaração e/ou reprodução passiva de um direito preexistente. A hermenêutica jurídica fica, então, limitada à interpretação do universo normativo positivado pelo Estado.
4 – A hermenêutica jurídica de Robert Cover
4.1 – Pluralidade do universo normativo
De acordo com Robert Cover, nós habitamos um nomos, ou seja, um universo normativo, que não é unicamente constituído pelo universo normativo positivado nas leis – como estabelece Kelsen –, mas, também, pelas narrações históricas que constituem a identidade cultural de cada grupo social. Para ele o mundo do nomos é
“tão real como o universo físico de massa, força e energia. Mais ainda, nossa apreensão da estrutura do mundo normativo é tão fundamental como nossa percepção da estrutura do mundo físico. Do mesmo modo em que com o nascimento começa o desenvolvimento de respostas crescentemente complexas diante dos atributos físicos do mundo, também se inicia o desenvolvimento paralelo de respostas à existência de outras pessoas que define o mundo normativo” (COVER, 2002, p. 17) (tradução livre).
Uma grande civilização jurídica, segundo Cover, é caracterizada pela riqueza do nomos no qual se situa e que contribuiu para construir. Para ele, o diversificado e complexo “material de esse nomos establece paradigmas de consagración, resignación, contradicción y resistencia. Este material no sólo apresenta cuerpos e reglas o doctrina que requieren interpretación, sino mundos para habitar. Habitar um nomos es saber cómo vivir en él” (2002, p. 18).
Para Cover as instituições formais do direito, as regras, princípios e as convenções de ordem social são importantes, mas não podem ser consideradas como as únicas pertencentes ao universo normativo, são, em realidade, uma pequena parcela deste universo que devemos observar[12].
“Un nomos, en tanto mundo de derecho, supone la aplicación de la voluntad humana tanto a un estado de cosas existente, como a nuestras visiones de futuro alternativos. Un nomos es un mundo presente constituido por un sistema de tensión entre realidad y visión” (COVER, 2002, p. 23).
Desse modo, Cover estabelece que a tradição legal é somente parte constitutiva de um complexo mundo normativo, no qual não está incluso somente um corpo jurídico, “sino también un lenguaje y un mythos[13] – narraciones em la que sitúan al corpis juris quienes expresan su voluntad a través de él” (2002, p. 22) –, em posição contrária à teoria kelseniana que enxerga o universo normativo somente nas normas postas pelo Estado.
Retornando aos gregos, para Cover, todo nomos deve ser paidético, “na medida em que contém dentro de sí o caráter comum de significado que faz possível a atividade normativa contínua” (tradução livre) (2002, p. 30), devendo a lei ser significativa no sentido de permitir que aqueles que vivem juntos possam se expressar através da lei e com respeito a ela, oferecendo, ao mesmo tempo, elementos para um comportamento previsível, dando, inclusive, significado ao comportamento diverso do que se considera comum.
Viver num mundo jurídico, portanto, segundo Cover, exige que conheçamos as suas conexões com o estado de coisas possível e plausível, e não somente os preceitos legais, não só o ser e o dever-ser, mas, também, o poder-ser[14]. Desse modo, Cover considera o direito como um sistema de tensão ou como uma ponte “que une un concepto de la realidad con una alternativa imaginada – es decir, es una conectiva entre dos estados de cosas, que sólo pueden ser representadas em su significado normativo a través de las ferramientas de la narrativa -” (2002, p. 23).
Deve-se, então, voltar os olhos para além do texto normativo, levando-se em consideração as narrações históricas que constituem a identidade cultural de cada grupo existente na sociedade, de modo a se enxergar o significado da norma
4.2 – Hermenêutica jurídica como narração
Conforme observado no tópico antecedente, Cover considera que o universo normativo não deve simplesmente ser identificado às instituições formais do direito, às regras e princípios e às convenções de ordem social. Devemos ir além disso. Isso porque habitamos um nomos, um universo normativo plural, no qual diferentes grupos culturais buscam reconhecimento da sua interpretação do sistema jurídico estatal.
No que toca à hermenêutica jurídica, Cover critica a posição daqueles que consideram que só o Estado cria o direito – tal como a concepção juspositivista estrita de Kelsen –, argumentando que essa posição confunde a interpretação do direito com a dominação política estatal. Isso porque, segundo ele, a lei estatal, ao exercer a sua força, exclui a possibilidade de uma hermenêutica criadora de princípios conforme o nomos disseminado em diferentes comunidades.
Desse modo, considerando que o nomos “nos es más que un processo de acción humana tendido entre la visión y la realidad, una interpretación legal no puede ser válida si uno no está preparado para vivir de acuerdo con ella” (COVER, 2002, p. 75).
Para Cover, o conjunto de instituições jurídicas e de preceitos legais não existem sem um contexto narrativo que lhes deem significado. Segundo ele, toda constituição possui uma épica, e “cuando se lo entiende em el contexto de las narraciones que le dan sentido, el derecho deja de ser un mero sistema de reglas a ser observadas, y se transforma en un mundo en el que vivimos” (2002, p. 16).
A criação de um significado jurídico exige, portanto, um compromisso de compreensão da norma através da identificação do nomos apresentado, através da identificação de todos os mundos possíveis. Exige-se, portanto, uma narração. O alcance do significado jurídico que se pode atribuir a toda norma, então, se define “tanto por un texto legal que objetiva la exigência, como por una multiplicidad de compromisos implíticos y explícitos que lo acompañan” (COVER, 2002, p. 75).
Toda narração, segundo Cover, exige, necessariamente,
“un sentido prescriptivo, un mensaje moral. La historia y la literartura tampoco pueden evitar ser situadas en un universo normativo, y ni siquiera las prescripciones, aun cuando estén incorporadas a un texto legal, pueden escapar de su origen y su fin en la experiencia, en las narraciones que constituen las trayectorias tramadas a partir de la realidad material por nuestra imaginación” (2002, p. 16).
Segundo Cover, as narrações que cada grupo particular associa com a lei revela o alcance dos seus compromissos, bem como oferecem justificação para os membros lutarem para viver a sua compreensão da lei. A comunidade que cria uma interpretação própria da lei e vive de acordo com ela, “no cree pretender cometer un acto de desobediencia civil justificable sino una reinterpretación radical” (2002, p. 78).
“Conocer la ley – y ciertamente vivir la ley – significa conocer no sólo la dimensi[on objetivada de la legitimacinón, sino también los compromisos de las interpretaciones que le sirven de garantía” (COVER, 2002, p. 77).
“Esta concepción es la reformulación mítica o narrativa del concepto positivista de la regla de reconocimiento o de la norma fundamental (Grundnorm)” (COVER, 2002, p. 43).
O pensamento apresentado por Cover, inclusive por apresentar algumas posições[15] – ainda que, por vezes, de forma crítica[16] –, dialoga com o pensamento de Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer, na medida em que eles propõe “que a interpretação não é uma leitura direta e indiferente de normas e fatos, mas sim uma compreensão existencial” (MASCARO, 2015, p. 167), ou seja, “uma tomada de entendimento a partir de uma determinada situação construída socialmente” (MASCARO, 2015, p. 167).
“Neste mundo normativo, o direito e a narração estão relacionados inseparavelmente. Todo preceito legal exige ser situado dentro de um discurso – ter uma história e um destino, um começo e um fim, uma explicação e um propósito” (COVER, 2002, p. 16) (tradução livre).
Desse modo, quando a comunidade e o Estado apresentarem interpretações conflitantes, a comunidade deve elaborar “una hermenéutica de resistencia o dela retirada – la empresa justificatoria de las tomas de posición institucionales, elegidas o forzadas, de aquellos que pretenden crear un nomos distinto del estatal -” (COVER, 2002, p. 88), de modo
a forçar que os juízes se enfrentem aos compromissos próprios de sua investidura judicial, para que passem a levar a sério o nomos social.
“O significado legal representa um enriquecimento desafiante da vida social, um limite potencial para poder o arbitrário e a violência. Devemos parar de circunscrever o nomos: é preciso incentivar a criação de novos mundos” (COVER, 2002, p. 111) (tradução livre).
A hermenêutica jurídica de Robert Cover, portanto, não consiste simplesmente numa interpretação normativista de preenchimento de uma possibilidade dentro de uma moldura apresentada pelo direito positivado pelo Estado – como estabelece Kelsen –, numa mera reprodução de um direito preexistente, mas sim a criação do significado jurídico através da narrativa do nomos apresentado, através da identificação da historicidade que constitui a identidade cultural de cada grupo. Desse modo, o juiz, quando se depara, por exemplo, com uma norma que confronta um nomos social, deve fazer uma épica, verificar a narrativa desse nomos social, de modo criar um novo mundo, um significado jurídico compatível com a historicidade apresentada.
5 – Considerações finais
A teoria juspositivista estrita de Hans Kelsen, conforme observado, considera a hermenêutica jurídica como uma atividade de preenchimento de uma possibilidade dentro da moldura oferecida pelo direito posto, limitando, assim, a atividade do operador do direito, em especial a do julgador, à mera declaração e/ou reprodução passiva de um direito preexistente.
Tal concepção sobre a atividade hermenêutica, em razão da limitação normativista, não dá conta de abranger a pluralidade cultural – a pluralidade de nomos, nos dizeres de Robert Cover. Esse tipo de corrente de pensamento pode ser acusada, inclusive, como responsável por limitar a evolução do direito e da sociedade. Exemplo disso é, ainda hoje, no Brasil, o debate sobre a legalidade ou não do reconhecimento da união estável e a conversão em casamento da união entre pessoas do mesmo sexo. Para os adeptos da corrente de pensamento que considera a hermenêutica jurídica como atividade limitada à interpretação do texto normativo, a união estável e/ou casamento entre pessoas do mesmo sexo não podem ser reconhecidos, tendo em vista que o artigo 226, § 3º, da Constituição Federal Brasileira, determina que o Estado reconhece como entidade familiar somente a união estável entre homem e mulher, colocando, assim, à margem o nomos das comunidades homossexuais.
A hermenêutica jurídica de Cover, por outro lado, traz uma visão mais ampla do universo normativo ao estabelecer que ele é plural, que é constituído não somente pelas normas positivadas, mas também por uma pluralidade de nomos, devendo a hermenêutica jurídica compreender, além do corpo jurídico estatal, a pluralidade das narrações histórico-culturais existentes na sociedade. Cover não trata a hermenêutica como mera atividade reprodutiva, como simples preenchimento de uma possibilidade dentro da moldura oferecida pelo direito positivado, mas sim como de criação do significado jurídico de acordo com as narrativas que constituem a identidade cultura de cada grupo social. Desse modo, as comunidades que possuem uma interpretação própria da lei e vivem de acordo com ela, como ocorre com as comunidades homossexuais, de acordo com a teoria desenvolvida por Robert Cover, têm a possibilidade fazer valer a sua reinterpretação radical do texto normativo, criando, assim, um novo mundo, um significado jurídico compatível com o seu nomos, em evidente contraponto à limitação normativista da hermenêutica jurídica de Hans Kelsen.
Advogado; graduado e especialista em Direito pelas Faculdades Metropolitanas Unidas FMU; foi aluno especial do Mestrado em Filosofia e Teoria do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP; Presidente da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/SP 40 Subseção de São Caetano do Sul e membro do Conselho de Prerrogativas da OAB/SP 13 Regido
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