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A interpretação do direito realizada pelas decisões judiciais segundo Hans Kelsen

Resumo: O presente artigo foi desenvolvido durante o mestrado em Direito Constitucional, realizado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Nosso enfoque foi a análise do método utilizado por Kelsen em sua busca de interpretar as normas. Importantes questionamentos emergem quanto a abordagem da interpretação do Direito segundo Hans Kelsen. A relevância ocorre quando o autor busca traçar limites a atividade interpretativa, no que denominou de uma “moldura” dentro da qual há várias possibilidades de aplicação do Direito. Com isso, fixa as linhas de que a afirmação que somente há uma solução justa para o litígio levado ao judiciário é equivocada. Desse modo, o objetivo do presente trabalho é abordar justamente esse limite interpretativo, utilizando para isso, como paradigma, as interpretações judiciais.


Palavras-chave: Hans Kelsen. Interpretação do Direito. Moldura. Moral. Direito.


Sumário: 1. Introdução. 2 A Interpretação jurídica realizada pelos órgãos judiciais como decorrente de um processo escalonado cognoscitivo. 3 Da moral em Kelsen: Sua influência e relevância na criação do direito pelas decisões judiciais. 4 Conclusão. Bibliografia.


1. Introdução


Conforme o ponto a ser abordado no presente trabalho, ou seja, o estudo da interpretação do Direito pelas decisões judiciais segundo a doutrina de Hans Kelsen, imprescindível que para uma melhor abordagem, pertinente se faz referência aos predicados necessários a sua compreensão.


Isso por que, conforme apontaremos, Kelsen dedica um capitulo inteiro em sua obra, “Teoria Pura do Direito”, ao estudo da interpretação do Direito, delimitando ali, justamente os limites e critérios de uma interpretação realizada por um órgão aplicador do Direito, ou seja, um órgão jurídico. Este capítulo, porém, tem que ser visto com os olhos voltados para toda a sua doutrina, isso porque Kelsen remete em tal capítulo a abordagem de que tal exegese deve ser realizada com a exata noção da força vinculativa dos pressupostos existentes em uma “norma geral” às demais de escalão inferior, até o momento de ser exercida a um caso concreto quando levado ao judiciário para a devida apreciação.[1]


Assim, retoma a idéia de escalões, buscando desde já balizar a atividade cognoscitiva judicial, o que denominou de interpretação autêntica mantendo inegavelmente o capítulo apresentado, fiel e coerente a toda a sua doutrina.


Pertinente também fixar, que Hans Kelsen é expoente da teoria cética da interpretação, frise-se, com as devidas ponderações que apresentaremos no decorrer. Contudo, de tal constatação pode-se afirmar que para o autor, o sentido de um determinado texto normativo não é auto evidente, assim, deve o exegeta, aqui juízes, criar o Direito. Enaltece, nessas linhas, e de maneira inegável a atividade exercida pelos órgãos aplicadores do direito em detrimento do próprio texto legal e em consequencia do próprio legislativo, pois para Kelsen os juízes criam normas quando as aplicam. [2]


Por fim, traçadas as linhas iniciais de nossa pesquisa, importantes questionamentos emergem quanto a abordagem da interpretação do Direito segundo Hans Kelsen. A relevância ocorre quando o autor busca traçar limites a atividade interpretativa, no que denominou de uma “moldura” dentro da qual há várias possibilidades de aplicação do Direito; fixa aí as linhas de que a afirmação que somente há uma solução justa para o litígio levado ao judiciário é equivocada.


Nessas linhas; apontamos como relevante: Quais são esses limites interpretativos insertos na “moldura”? Qual é a razão, segundo Kelsen, de não haver somente um resultado correto para a interpretação do Direito nas decisões judiciais? Num outro ponto, é possível dentro dessa moldura, a presença de argumentos valorativos morais, que sirvam de fundamentação às decisões judiciais? E o que estiver fora dessa moldura, é ou não é Direito?


Todos esses questionamentos, além de indelével pertinência ao estudo da doutrina kelseniana, possuem importância prática, quando da análise fática jurisprudencial, ou seja, dos argumentos utilizados pelos juízes para fundamentar suas decisões. Conforme será aqui apresentado, o método interpretativo proposto por Kelsen propõe uma metodologia quanto a interpretação do Direito, no sentido de mostras que o órgão aplicador do Direito, ao interpretar da norma, mesmo reconhecendo que haja margem de subjetividade e que não haja um só método interpretativo eficaz, ou ainda, que não haja somente uma interpretação correta para o caso concreto, deve o magistrado se pautar por um método interpretativo coerente, que aqui abordaremos.


2. A interpretação jurídica realizada pelos órgãos judiciais como decorrente de um processo escalonado cognoscitivo:


Como já citado a presente introdução, Kelsen ao apresentar a interpretação das normas jurídicas realizadas pelos órgãos aplicadores do Direito como um processo cognoscitivo realizado por escalões, remete obrigatoriamente o exegeta a um sistema de justificação das decisões judiciais de maneira escalonada, indissociável assim, ao estudo do fundamento de validade da norma, ao qual nessa abordagem, dois sistemas são apresentados na doutrina kelseniana, um estático e o outro dinâmico.


Estático é aquele sistema, que reconhece que existam determinadas normas, como por exemplo, as religiosas, em que há em seus dogmas determinadas regras gerais, como devemos obedecer às ordens e os mandamentos, sendo então, todas as demais regras extraídas por derivação, como por exemplo, a regra de que devemos  amar ao próximo.


Arrebatando, nada mais elucidativo do que as palavras de Kelsen, quanto ao sistema estático, no sentido de que “esta norma, pressuposta como norma fundamental, fornece não só o fundamento de validade como o conteúdo de validade das normas dela deduzidas através de uma operação lógica”.[3]


Sistema dinâmico pode ser compreendido como aquele onde as regras não estavam contidas em nenhuma outra fonte, mas se originam de uma fonte produtora. Aqui reside a grande distinção entre o sistema estático e o sistema dinâmico. Sendo que naquele, como vimos, a norma fundamental é fonte não só de validade como de fundamento. Já no segundo, a norma fundamental se legitima no sentido de conceder a uma determinada autoridade legiferante, regras sobre como uma norma deve ser criada.


O sentido dessas “autorizações” é de concretude de um regular processo legislativo a que as normas jurídicas estão submetidas, demonstrando ainda mais o que já ficou dito acima, no que concerne ao indissociável conceito de validade de uma norma, utilizado por Kelsen, com sua vigência, ou seja, sua existência.


Assim, as normas de um ordenamento jurídico positivista devem ser acatadas porque tais normas possuem importante validação jurídica; que é a “norma fundamental”. Importante ressaltarmos que, de acordo com Kelsen, mais precisamente na “Teoria Pura do Direito” a norma fundamental não pode ser vista como norma positiva, mas sim, pressuposta e que confere validade a todo o ordenamento jurídico, na medida em que, em decorrência de sua superioridade, outorga validade à norma positiva que ocupa o topo, o ápice do ordenamento, e essa, confere validade sucessivamente as demais normas do ordenamento. [4]


Nesse ponto, ao contrário do principio estático, típico dos sistemas morais; Kelsen enaltece o princípio dinâmico normativo, pois imputa a este não só a criação do direito, com também a aplicação do direito.


A fonte produtora, nesses termos, funcional como limite a atividade cognitiva do exegeta em buscar a validade de determinada norma, tendo este, que percorrer o caminho inverso das delegações de competência e autorizações, para produção dos textos normativos, para encontrar a validade de uma norma.


Somente nesses termos é que será extraída a fundamentação do direito positivo, sob a visão kelseniana.


Indissociável assim estará o processo interpretativo levado aos juízes quando da análise do caso fático levado as raias do Judiciário para a devida prestação jurisdicional, daquele apontado por Kelsen e levado ao exegeta para buscar a validade da norma jurídica, no sistema que denominou de sistema dinâmico.


Tal relação aqui apontada é expressa em “Teoria Pura do Direito”, conforme extraímos da seguinte passagem:


 “A interpretação é, portanto, uma operação mental que acompanha o processo de aplicação do Direito no seu progredir de um escalão superior para um inferior. Na hipótese em que geralmente se pensa quando se fala de interpretação, na hipótese de interpretação da lei, deve responder-se a questão de saber qual o conteúdo que se há de dar à norma individual de uma sentença judicial ou de uma resolução administrativa, norma essa a reduzir da norma geral da lei na sua aplicação a um caso concreto.”[5]


Essa metodologia, como demonstrada, não é particular ao capítulo referente a interpretação jurídica; já que Kelsen traça as balizas de tal atividade intelectiva quando trata da dinâmica jurídica, mais precisamente quando expõe o fundamento de validade de uma norma jurídica. Ali, evidencia que uma norma jurídica possui um caráter dinâmico. Tal sistema, pode ser definido, nas linhas de Kelsen, como sendo aquele em de uma norma fundamental é vista como “um fato produtor de normas, a atribuição de poder de uma atividade legisladora  ou – o que significa o mesmo – uma regra que determina como devem ser criadas as normas gerais e individuais do ordenamento fundado sobre essa norma fundamental”.[6]


Pode-se assim, depreender que o critério que fundamenta a validade de uma norma jurídica por escalões, segundo as linhas traçadas por Kelsen, não muito se dissocia do fundamento de validade daquela constatada em uma decisão de um órgão jurídico; aqui como autêntico criador do Direito. Este “regressus” é exemplificado por Kelsen da seguinte maneira:


“Nesse sentido qualquer norma jurídica superior é fonte da norma jurídica inferior. Desse modo a constituição é fonte dos estatutos criados com base na constituição, um estatuto é fonte da decisão judicial nele baseado, a decisão judicial é a fonte o dever que ela impõe à parte e assim por diante.”[7]


Com tais considerações, e enfrentando os questionamentos apresentados a introdução, mais precisamente quanto a análise dos limites interpretativos insertos na “moldura”, podemos afirmar que tais limites, em uma perspectiva bem ampla, são aqueles mesmos encontrado no estudo da validade das normas jurídicas, ou seja, a necessária congruência entre os ditames extraídos da norma geral e a fundamentação das decisões judiciais; esse é o primeiro importante limite à interpretação do Direito pelos juízes; a devida observância a norma fundamental. Esta para Kelsen “é, então a “fonte” do Direito”.[8]


Traçadas tais considerações, podemos agora enfrentar o segundo questionamento que nos propomos a responder, ou seja, qual é a razão, segundo Kelsen, de não haver somente um resultado correto para a interpretação do Direito nas decisões judiciais?


A resposta para essa pergunta está justamente no “regressus” realizado pelo intérprete do Direito, aqui juízes, como método cognoscitivo utilizado para fundamentar – validar suas decisões. Ocorre que, nesse caminho percorrido a determinação existente entre uma norma de um escalão superior e escalão inferior. Esta, jamais será completa, ficando sempre “uma margem, ora maior, ora menor, de livre apreciação, de tal forma que a norma do escalão superior tem sempre, em relação ao ato de produção normativa ou execução que a aplica, o caráter de um quadro ou moldura a preencher por este ato”.[9]


   Tal importante ponto é apontado por Adrian Sgrabi, em Teoria do Direito – Primeiras Lições, nos seguintes termos:


Seja como for, Kelsen entende que os sucessivos atos de “determinação” nunca serão completos, pois em todos os casos nos deparamos com uma “indeterminação do direito aplicável”. Essa indeterminação encontra-se, assim, em todos os níveis da estrutura jurídica em escalões, isto é, da “pirâmide normativa”. Ou seja, o processo de produção normativa, que se dá da norma superior para a norma inferior, não implica uma determinação completa do conteúdo normativo”.[10]


Momento apropriado a esclarecermos o que ficou vago no início, mais precisamente quando afirmamos que Hans Kelsen é considerado um cético, quanto a análise da forma de interpretação do texto legal. Ponderação se fez pertinente no sentido de esclarecermos que seria um equívoco tal afirmação sem as ressalvas que se impõe. Isso porque, depois de traçados os pontos principais da metodologia interpretativa kelseniana, mais precisamente quanto ao processo cognoscitivo de interpretação por escalões, não seria razoável. A afirmamos de que Kelsen desconsidera por completo os textos normativos. O que afirmado sem as ponderações imprescindíveis, refletiria em uma concepção cética como afirmado, porém, de maneira muito radical e que não condiz com sua doutrina. Kelsen é sim um cético, no sentido de ponderar que os textos normativos são insuficientes como instrumentos completos para extração da norma jurídica, enaltecendo como já amplamente demonstrada, a importância de uma interpretação judicial sobre o texto, no que denominou como também já frisado, em uma verdadeira interpretação autêntica do Direto. Sua “moldura” interpretativa é constatada, seja quando há relativa indeterminação do ato de aplicação do Direito, seja na indeterminação intencional ou não desse ato; o que inegavelmente fortalece sua mensagem de que o órgão aplicador do Direito em seu mister, não pode excluir por completo o direito positivado, o que demonstraria uma predileção pela corrente cética radical. Nesses termos, Kelsen é um cético moderado, pois como vimos, mesmo reconhecendo os problemas dos textos normativos, mais precisamente quanta às suas indefinições, mesmo assim funcionam como inquestionável fonte interpretativa, de onde o aplicador do direito retira os significados possíveis, de acordo com a técnica interpretativa que bem entender.[11]


Nesse sentido, citamos Adrian Sgarbi:


“Sendo assim, infere-se que os órgãos de decisão, quando aplicam normas, eles não acessam por assim dizer normas já prontas, pré-constituídas. Na realidade os juízes realizam um processo de intelecção e de seleção de plausíveis significados fundamentando suas opções e razões, opções e razões estas que compõem o que se pode designar de enunciados interpretativos.”[12]


Por essas razões, que para Kelsen é equivocada a afirmação de há somente uma decisão correta para o litígio, pois segundo sua doutrina, o ato do juiz em julgar, utilizando-se do processo cognoscitivo realizado em escalões, do geral ao concreto, por meio de sua atividade jurisdicional, aqui sentença, não se resume a somente aplicar um Direito positivado pressuposto e estanque, mas sim, em uma atividade que vai além, ou seja, a própria criação do Direito pela extração e atribuição pessoal da norma de um texto legal, o que leva, nesse processo interpretativo subjetivo a encontrarmos mais de uma solução correta para o caso fático posto a apreciação judicial.


Segundo Kelsen, “a interpretação de uma lei não deve necessariamente conduzir a uma única solução com sendo a única correta, mas possivelmente a várias soluções que – na medida em que apenas sejam aferidas pela lei a aplicar – têm igual valor, se bem que apenas uma delas se torne Direito positivo no ato do órgão aplicador do Direito – no ato do Tribunal especialmente”[13]


Por fim, merece a ressalva no que concerne a esse ponto, que Kelsen com a lucidez que lhe é peculiar entende que nesse sistema interpretativo realizado pelos órgãos aplicadores do Direito; se por um lado é elogiável no sentido de tornar possível que o texto normativo acompanhe o fenômeno social, buscando o exegeta sempre a sua adaptação, no que o autor denominou de “sistema da livre descoberta do Direito”; tal sistema possui a vantagem de ser flexível, porém, possui a desvantagem de não trazer “segurança jurídica”, no sentido de que os jurisdicionados não poderem fazer qualquer previsão quanto ao julgamento, sendo as decisões judiciais uma indeterminação, contudo, tolerada e fomentada pelo Direito.[14]


3. Da moral em Kelsen: sua influência e relevância na criação do direito pelas decisões judiciais


Chamamos a atenção nessa passagem, para o corriqueiro não entendimento da doutrina de Hans Kelsen, mais precisamente quanto a “Teoria Pura do Direito”, no que concerne a confusão que permeia o tema moral.


Esse equívoco ocorre, no sentido de ser o ponto fulcral da “Teoria Pura do Direito”, no seu propósito de buscar a descrição do direito, sem qualquer carga valorativa, ou seja, sem se ater se determinada norma é justa ou injusta, moral ou imoral. Segundo Kelsen, não pode incidir sobre as normas essa carga valorativa, pois alhear o fenômeno jurídico de contaminações exteriores seria, conforme seu propósito, conferir cientificidade ao método. Desta feita, quando se trata de estudar o tema da ciência e do método kelseniano, não se trata de dizer que sua teoria é uma teoria do direito puro, mas sim, que a metodologia empregada é pura, ou seja, uma teoria pura do direito.


Disso decorre a contumaz confusão aos desavisados no estudo da “Teoria Pura do Direito”, ou seja, confundir o método empregado pelo cientista do Direito, no estudo da norma jurídica, aonde aqui deve residir o sentido da pureza, daquele utilizado no fenômeno que se sente na aplicação do Direito, aqui, visto com os olhos do interprete autêntico do Direito; como mostrado; os juízes.


Cumpre desde já ponderar que Hans Kelsen, mesmo considerando e reconhecendo que valores morais podem influenciar na decisão judicial, determina que os intérpretes autênticos do Direito somente podem se ater àqueles valores morais que esteja positivados, sendo normas metajurídicas transformadas em Direito positivo,[15] como exemplo, citamos o conceito de boa fama, respeitabilidade e honra insertos no artigo 20 do Código Civil, o princípio da boa fé, previsto no artigo 113 e 128 do mesmo ordenamento civilista, como também no artigo 14, II do Código de Processo Civil, ainda, o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo, 1º, III, da Constituição Federal de 1988), ou seja, tal posicionamento repudia uma moral individual, pelo fato de que esta seria inegavelmente antidemocrática, pois o juiz levaria suas condições pessoais em detrimento do texto. Seguindo, não há como deixarmos de registrar, nessa passagem, importante questionamento, ou seja, mesmo reconhecendo influência de valores morais positivados no processo de criação do Direito pelos juízes, merece destaque, que eventual controle da moral nas decisões judiciais, somente é aparente. Preocupante constatação ocorre porque não há uma metodologia de controle dos limites e incidência dessa moral positivada, pois no estudo da Teoria do Direito, mesmo reconhecendo os esforços nesse sentido, pode-se afirmar que não há uma teoria moral objetiva, o que pode levar no processo da busca do Direito, distorções no processo de extração da norma do texto legal.


Quanto a moral positivada, citamos Kelsen:


“Porém ao obrigar os órgãos criadores de Direito, a respeitar ou aplicar certas normas morais, princípios políticos ou opiniões de especialistas, a ordem jurídica pode transformar estas normas, princípios ou opiniões em normas jurídicas e, desse modo, em verdadeiras fontes do Direito”.[16]


 Disso decorre que a moral sempre será um “problema” no Direito, no sentido de que os valores morais se servem a todos por possuírem elevada carga de generalidade e abstração, sendo possível, mesmo em contrariamente a tudo o que foi dito até aqui, a luz de Hans Kelsen, que juízes ao proferirem suas decisões se arrimem em critérios exclusivamente morais, sem qualquer lastro do texto normativo; o que se constata com inegável comprometimento à fundamentação das decisões judiciais.


            Assim, Kelsen reconhece que “normas morais, princípios políticos, doutrinas jurídicas, as opiniões de especialistas jurídicos. etc” mesmo podendo influenciar o julgador, constata nesse contexto, que essas fontes são completamente inaptas a vincularem a atividade judicante do mesmo. [17]


Nesses termos, possuímos já elementos a respondermos o questionamento levantado a introdução, no sentido de que é sim possível dentro da moldura de resultados interpretativos apresentada por Kelsen, a presença de argumentos valorativos morais, que sirvam de fundamentação às decisões judiciais, pois lembramos que aqui estamos no campo da interpretação do Direito e consequente aplicação e criação do Direito pelos juízes e não no estudo metodológico da norma. Ainda, reconhecida a moral positivada como influenciadora das decisões do órgão aplicador do Direito, não aquela universal ou até mesmo a individual, desprovidas de qualquer obrigatoriedade de observação por parte dos juízes. 


Reconhecendo que valores morais positivados podem fazer parte dessa moldura, relevante traçarmos a resposta a seguinte indagação: Caso uma decisão judicial rompa por completo com a metodologia trazida por Kelsen, quanto a interpretação do Direito levada pelos juízes, e se afaste da moldura, poderá mesmo assim, com tal ruptura, ser essa decisão considerada Direito?


Como já mostrado no presente trabalho, os juízes segundo Kelsen, são os autênticos intérpretes do Direito e tal constatação ocorre pelo fato de que sua atividade cognoscitiva não se restringe à interpretação do Direito, mas sim, no sentido de que quando o julgador aplica o Direito a um caso concreto ele cria empiricamente o Direito. Assim, é possível que em tal processo de interpretação e aplicação do Direito, com a construção de uma determinada norma dentro das possibilidades reveladas, possa o juiz se dissociar por completo da moldura, criando uma norma, cujo critério de observação das fontes utilizadas é problemático ou equivocado.[18]


 Nessa hipótese, Kelsen enaltece justamente a atividade do magistrado como intérprete autêntico do Direito, ou seja, criador deste. Com coerência, traz que eventual decisão do órgão aplicador do Direito que extraia norma jurídica de maneira dissonante da metodologia cognoscitiva aqui apresentada, defende que a norma, resultado dessa interpretação será considerada criação do Direito, porém, “desde que o ato desse órgão já não possa ser anulado, desde que ele tenha transitado em julgado”.[19]


Enfim, para Hans Kelsen, ainda que a norma que se situe fora da moldura, por ser extraída de uma fonte não jurídica, ou seja, não positivada será também considerada como criadora de Direito, enaltecendo assim, os juízes como interpretes autênticos.


4. Conclusão


Da abordagem proposta, ou seja, o estudo da interpretação do Direito concretizada pelos juízes no seu mister de conhecer o Direito e a consequente extração da norma em sua atividade julgadora, importante conclusão podemos apontar.


Hans Kelsen, em especial na Teoria Pura do Direito, rompe no processo de produção e aplicação do Direito com o legalismo mais radical, visto este em seu aspecto fechado interpretativo com ênfase no texto em detrimento da interpretação. Além de reconhecer que não há somente um método interpretativo correto para extração da norma do texto legal, fulmina a pretensão do Direito positivo em elaborar um método científico que possa controlar a aplicação do Direito. Defende também, que esse processo cognoscitivo de busca pelo Direito pelos juízes é uma autêntica criação do Direito, processo este vai à determinação de um escalão superior a um inferior.


Evidencia assim, que a atividade do julgador é ampla, pois como mostrado, está exposto a fontes que não são jurídicas, ou seja, reconhece Kelsen, e tal constatação enaltece a grandeza de sua obra, que o Direito é um fenômeno social susceptível a reais e efetivas influências do meio.  Divide a atividade do cientista do Direito, daquela desenvolvida pelo aplicador do Direito, renuncia nesses termos, por completo a segurança jurídica, em detrimento a uma busca do Direito, este visto a luz de Kelsen, como um fenômeno social em constante transformação. Lembramos que ampla é a atividade do julgador, porém, não se pode furtar como o limite a atividade cognoscitiva levada pelos juízes, o método que os conduzem a uma moldura de possíveis interpretações válidas, de acordo com o Direito positivado, no processo de determinação por escalões.


Concluímos o presente trabalho enfatizando que há realmente a constatação da certeza na “Teoria Pura do Direito”, porém, somente quanto ao método científico empregado no estudo do Direito; em contrapartida, incerteza sim em sua aplicação, com reconhecimento de que tal fenômeno é incontrolável, esse também é importante legado da “Teoria Pura do Direito”, o reconhecimento desse paradoxo e sua explicação.


 


Referências bibliográficas:

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 7° ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

Kelsen, Hans. Teoria Geral do direito e do estado/ Tradução Luiz Carlos Borges. – 3ª Ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1998.

Sgarbi, Adrian. In: Teoria do Direito (Primeiras lições), Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.


Notas:

[1] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 7° ed. São Paulo : Martins Fontes, 2006, fl. 387.

[2] Sgarbi, Adrian. In: Teoria do Direito (Primeiras lições), Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.pág. 441, 401.

[3] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 7° ed. São Paulo : Martins Fontes, 2006, fl. 218.

[4] Ibid. p. 221.

[5] Ibid. p. 387.

[6] Ibid. p. 219.

[7] Kelsen, Hans. Teoria Geral do direito e do estado/ Tradução Luiz Carlos Borges. – 3ª Ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1998; pág.192.

[8] Kelsen, Hans. Teoria Geral do direito e do estado/ Tradução Luiz Carlos Borges. – 3ª Ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1998; pág.192.

[9] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 7° ed. São Paulo : Martins Fontes, 2006, fl. 388.

[10] Sgarbi, Adrian. In: Teoria do Direito (Primeiras lições), Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.pág. 450.

[11] Ibid. p.442.

[12] Ibid. p.401.

[13] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 7° ed. São Paulo : Martins Fontes, 2006, fl. 390, 391.

[14] Ibid. p.280.

[15] Ibid. p.394.

[16] Kelsen, Hans. Teoria Geral do direito e do estado/ Tradução Luiz Carlos Borges. – 3ª Ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1998; pág.192.

[17] Kelsen, Hans. Teoria Geral do direito e do estado/ Tradução Luiz Carlos Borges. – 3ª Ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1998; pág.192.

[18] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 7° ed. São Paulo : Martins Fontes, 2006, fl. 394.

[19] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 7° ed. São Paulo : Martins Fontes, 2006, fl. 395.                          

Informações Sobre o Autor

Matheus Bevilacqua Campelo Pereira

Advogado e Procurador de autarquia municipal. Pós-graduado em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas. Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Professor de graduação da Universidade Presidente Antônio Carlos, São João del Rei, Minas Gerais.


Equipe Âmbito Jurídico

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