Resumo: Este artigo analisa se é possível, à luz dos princípios da função social e da preservação da empresa, a aplicação do instituto norte-americano do cram down nas recuperações judiciais de empresas no Brasil, bem como os parâmetros a serem utilizados nesse sentido. O cram down consiste na possibilidade de o juiz aprovar um plano de recuperação rejeitado pela maioria dos credores. Ademais, examinar-se-á a conveniência de alteração legislativa para conferir maior segurança jurídica ao tema. Com este desiderato, inicialmente será estudada a sistemática de recuperação de empresas no Brasil. Nessa parte, haverá um desenho geral da disciplina e dos conceitos básicos introduzidos pelo novo diploma recuperacional, mormente a partir do seu núcleo axiológico. Em seguida, examinar-se-ão as noções gerais do cram down no sistema jurídico norte-americano, de maneira a extrair os critérios consagrados na legislação, na doutrina e na jurisprudência dos Estados Unidos como aptos à utilização do instituto, de forma a verificar se são úteis à realidade brasileira. Posteriormente, tratar-se-á das decisões que vem aplicando o cram down no Brasil, destacando-se, ainda, a divergência doutrinária e o descompasso de entendimento no plano jurisprudencial, bem como os critérios esboçados por aqueles que entendem viável a aprovação judicial do plano com a derrubada do veto dos credores. Por derradeiro, haverá a exposição das conclusões do trabalho.[1]
Palavras chaves:Cram down. Veto dos credores. Plano de recuperação judicial.
Sumário: 1. Introdução. 2. Juridicidade da aplicação do instituto do cram down. 2.1. Sistemática de recuperação judicial de empresas no Brasil. 2.2. Noções gerais do cram down no sistema jurídico norte-americano. 2.3. Aplicação do cram down no Brasil. 3. Parâmetros para aplicação do cram down. 3.1. Critérios na Lei nº 11.101/2005. 3.2. Balizas doutrinárias. 3.3. Requisitos esboçados nos tribunais brasileiros. 4. Conclusões. Rreferências.
1 INTRODUÇÃO
Nos últimos anos, o Brasil experimentou um importante desenvolvimento econômico-social com o condão de desencadear um processo de melhoria de qualidade de vida da população, elevando o acesso das classes mais pobres a direitos fundamentais, por meio da manutenção de níveis adequados de emprego, aumento da renda e expansão do crédito. Entrementes, o alcance de melhores níveis de pujança econômica ainda depende da superação de algumas deficiências da nossa legislação. Um desses desafios postos à apreciação dos juristas se refere à necessidade de uma política pública específica de recuperação de empresas.
Naturalmente, uma política pública de recuperação de empresas envolve uma gama de medidas de diversas ordens, como oferta de crédito por intermédio dos bancos públicos e privados, capacitação de profissionais, simplificação da questão tributária, definição de regras claras sobre trava bancária, sucessão das obrigações com relação aos ativos alienados, celeridade processual, entre outras. Tudo isso com o intuito de manter a atividade produtiva, os empregos e a arrecadação tributária, permitir o recebimento dos créditos, evitar desequilíbrios na cadeia produtiva, em síntese: conferir maior solidez à economia nacional.
A Lei nº 11.101/2005 foi editada com esse espírito, consagrando expressamente princípios como os da função social e da preservação da empresa e criando um sistema de negociação que estimula a celebração de acordo entre o devedor empresário e os credores em uma Assembleia Geral de Credores (AGC), por meio da apresentação de um plano de recuperação contendo um complexo de providências de ordem econômica, financeira, societária e administrativa capazes de superar a crise. Ademais, inspirada na legislação norte-americana, a Lei de Recuperação e Falência previu a possibilidade de uma forma alternativa de aprovação do plano rejeitado na AGC. Todavia, a Lei nº 11.101 se afastou do Bankruptcy Code de 1978 quando exigiu quóruns específicos, deixou de traçar critérios para a concessão da recuperação e retirou a prerrogativa de o juiz aprovar o plano caso tenha sido rejeitado pelos credores. Dessarte, o art. 58, § 1º, do referido diploma legal deu azo a uma acesa discussão a respeito da amplitude dos poderes jurisdicionais diante da negativa dos credores.
Deveras, a doutrina e a jurisprudência se dividiram entre aqueles que negam qualquer possibilidade de o juiz conceder a recuperação judicial, tendo havido rejeição na assembleia geral, ao passo em que outros consideram juridicamente admissível a aplicação do cram down, nos moldes do direito norte-americano. Ou seja, o magistrado, valendo-se dos critérios construídos naquele ordenamento, poderia impor a recuperação judicial, independentemente da existência de acordo por parte da maioria dos credores. O Bankruptcy Code de 1978, especialmente no Chapter 11, § 1.129(b)(1), prevê que é possível a apreciação do juiz, mesmo em face da negativa dos credores, estabelecendo para tanto, contudo, alguns requisitos. A discricionariedade jurisdicional, neste caso, possibilita uma maior amplitude do instituto da recuperação judicial, o que poderá contribuir de maneira relevante com a redução das falências no Brasil – com todos os seus prejuízos sociais e econômicos.
A título de ilustração, ressalte-se que nos últimos anos houve uma queda considerável no número de falências e, por outro lado, aumento substancial no número de recuperações judiciais. A média mensal de 165 falências em 2006 foi reduzido para 62 em 2013. No que tange às recuperações judiciais, o número saltou de uma média de 0,5 ao mês em 2006 para 20 em 2013. Ainda que todo o contexto econômico-nacional deva ser ponderado, os números apontam para uma melhora específica em matéria de recuperação de empresas. Para se ter uma noção da boa aceitação da nova lei de recuperação de empresas pelos empresários brasileiros, basta mencionar que da entrada em vigor em 2005 até o final de 2013 foram protocoladas 4.234 ações de recuperação judicial[2].
A importância social da recuperação judicial também deve ser levada em consideração. Pode-se evitar o desemprego de milhares de pessoas, bem como a redução de unidades produtivas, permitindo, outrossim, o estímulo à atividade econômica. Nesse sentido, digno de registro que no Brasil agentes econômicos com grande relevância na cadeia produtiva nacional e milhares de empregos já se valeram do portfólio de soluções da recuperação judicial[3]. Ressalte-se, entrementes, que na maior parte dos casos a recuperação não logra êxito, mormente em se tratando de microempresas e empresas de pequeno porte. Mesmo assim, alguns casos de falência com grande impacto social são facilmente lembrados desde a antiga Lei de Falências[4].
Ainda que com legislação específica de liquidação extrajudicial, também houve casos emblemáticos de instituições financeiras, seguradoras e fundos de pensão[5]. O percentual de sucesso efetivo nas recuperações judiciais no Brasil gira em torno de 1%, muito baixo, principalmente se for comparado com os 30% alcançados pelo instituto similar nos Estados Unidos[6]. Indubitavelmente, portanto, ainda há enormes desafios para a melhoria do sistema de recuperação de empresas no Brasil e, nesse sentido, é de suma importância a construção da política pública específica, extraindo-se da novel legislação todo o seu potencial de transformação social.
Assim, faz-se mister o aprofundamento do tema concernente à possibilidade de aplicação do cram down no Brasil. Com esse desiderato, o caminho a ser trilhado, inicialmente, passará pela análise da sistemática da recuperação judicial de empresas no Brasil introduzida com o advento da Lei nº 11.101/2005, mediante um panorama dos conceitos básicos, perscrutando-se seus avanços e limitações, principalmente à luz do núcleo axiológico consagrado pelo legislador. Em seguida, serão examinadas as noções gerais do instituto do cram down nos Estados Unidos. Deveras, importante examinar o contexto de utilização das normas pertinentes naquele país a fim de verificar se os parâmetros construídos pela legislação, doutrina e jurisprudência norte-americanas se adéquam à realidade brasileira. Outrossim, será estudada a divergência instaurada na doutrina brasileira com relação à possibilidade de aplicação do cram down no direito brasileiro. Esse exame enfrentará a polêmica em torno do conflito entre os princípios e regras da legislação de regência, a disputa de poder entre os papéis dos credores e do magistrado e a natureza jurídica da recuperação judicial.
Posteriormente, cuidar-se-á da matéria no plano jurisprudencial, demonstrando o descompasso de entendimento entre os Tribunais e o cotejo dos principais argumentos utilizados nas decisões que aplicaram o instituto, de maneira a encontrar critérios aptos a balizar novos casos. Por derradeiro, haverá a apresentação das principais conclusões alcançadas no trabalho, mormente com relação à juridicidade da aplicação do cram down no direito brasileiro. Ademais, em caso positivo, serão propostos critérios com o intuito de garantir segurança jurídica na temática, bem como haverá a análise acerca da conveniência ou não de alteração legislativa nesse sentido.
2 JURIDICIDADE DA APLICAÇÃO DO INSTITUTO DO CRAM DOWN
O exame da possibilidade de utilização do cram down nas recuperações judiciais de empresas no Brasil requer, ainda que em uma análise perfunctória, o conhecimento acerca do desenho traçado pelo legislador para o funcionamento do processo de reorganização empresarial. Nesse sentido, tratar-se-á na sequência da sistemática de recuperação de empresas no Brasil. Em outros termos, haverá uma abordagem panorâmica acerca do itinerário seguido pelos empresários que se lançam na tentativa de recuperar uma empresa viável.
De outra banda, faz-se mister o estudo do cram down no sistema norte-americano com o desiderato de identificar os seus benefícios e malefícios para todos os stakeholders envolvidos nas recuperações de empresas. A partir daí, será possível o cotejo com a legislação nacional de maneira a pensar nos mecanismos que se encaixam na nossa cultura jurídica, bem como aqueles que importariam em elevação de custos de transação. O objetivo, a rigor, é buscar institutos que possam aperfeiçoar o sistema de recuperação de empresas no Brasil, não sendo possível, contudo, obviamente, importar conceitos alienígenas sem a devida análise crítica.
De qualquer forma, o debate relativo à utilização do cram down no Brasil já se encontra aceso. A doutrina e os Tribunais não formaram qualquer consenso com relação à aplicação do referido instituto, contudo algumas decisões já concederam a recuperação se valendo do cram down norte-americano, recebendo o aplauso de parte dos especialistas no tema. Outros estudiosos, entretanto, criticam veementemente essa interpretação, em decorrência do tratamento concedido pela Lei nº 11.101/2005. Não seria despiciendo observar que em muitos Tribunais essa temática ainda não foi apreciada. O fato é que, aproximando-se dos seus dez anos de existência, os intérpretes do direito ainda buscam extrair o complexo normativo da lei de recuperação de empresas, mormente guiando-se pelo seu núcleo axiológico.
2.1 Sistemática de recuperação judicial de empresas no Brasil
Uma das mais relevantes alterações promovidas pelo advento da Lei nº 11.101/2005 no Direito das Empresas em Crise do Brasil consiste na criação da recuperação judicial. Com efeito, este instituto viabiliza a construção de soluções negociadas para as crises econômico-financeiras experimentadas pela sociedade empresária, permitindo a preservação da empresa, de modo a evitar os perniciosos efeitos de uma falência[7].
Imbuído deste propósito, o legislador instituiu a possibilidade de o devedor empresário em crise, desde que preenchidos os pressupostos descritos no art. 48 daquele diploma legal[8], ingressar com uma demanda, no juízo do seu principal estabelecimento, com o pedido de recuperação judicial. Trata-se de um negócio jurídico celebrado entre os credores e o devedor empresário, no bojo de um processo judicial, com o intuito de permitir a adoção de uma série de providências de ordem econômico-financeira para permitir a superação de uma crise por uma empresa viável.
Dessarte, nos termos do art. 51 da Lei de Recuperações e Falências, a petição inicial deverá ser instruída com a exposição concreta das causas que ensejaram a crise do empresário, demonstrações contábeis dos três últimos exercícios sociais, relação completa dos credores, relação completa dos empregados, certidão de regularidade na Junta Comercial, relação dos bens particulares dos sócios controladores e administradores, extratos das contas bancárias do empresário, certidões dos cartórios de protestos de títulos do domicílio e relação das demandas judiciais em que figure como parte.
Verificando a regularidade da peça vestibular, o magistrado deverá deferir o processamento da recuperação judicial, nomeando o administrador judicial, ordenando a suspensão das ações e execuções contra o devedor, determinando a apresentação de contas demonstrativas e ordenando a intimação do Parquet e da Fazenda Pública. Ademais, o juiz determinará a expedição de edital a ser publicado no órgão oficial, contendo o resumo do pedido e da decisão, a relação nominal de credores com a discriminação dos valores que lhes são devidos e a advertência acerca dos prazos para habilitação e impugnação de crédito.
No prazo de sessenta dias, contados da publicação da decisão que deferiu o processamento da recuperação judicial, o empresário deverá apresentar o plano detalhando os meios a serem utilizados para solucionar a crise[9], a demonstração de sua viabilidade econômica e o laudo econômico com a avaliação dos bens e ativos do devedor. O magistrado, então, determinará a publicação de edital informando aos credores sobre o recebimento do plano de recuperação judicial e estabelecendo prazo para objeções.
Caso não sejam apresentadas objeções, o plano é considerado tacitamente aprovado. Não obstante, na hipótese de ser apresentada alguma objeção, o juiz deverá convocar a assembleia-geral de credores para deliberar acerca do plano (art. 56, Lei 11.101/2005). Nesta assembleia, todas as classes de credores descritas no art. 41 devem aprovar o plano, a saber: credores trabalhistas; credores com garantia real; e demais credores (quirografários, com privilégio geral ou especial, ou subordinados). Para os credores trabalhistas, a lei exige a aprovação por maioria simples dos credores presentes, não importando o valor do crédito. De outro lado, para as outras classes, haverá a necessidade de aprovação por credores que titularizem mais da metade dos créditos presentes à assembleia, bem como, cumulativamente, pela maioria simples dos credores presentes (art. 45).
Caso o plano seja rejeitado na assembleia-geral de credores, haverá a decretação da falência do devedor, nos termos do § 4º do art. 56. Contudo, para evitar essa medida tão drástica e com graves prejuízos socioeconômicos, a Lei de Recuperações e Falências previu uma forma de aprovação alternativa do plano, que, malgrado não logre a aprovação da forma como prevista no art. 45, demonstra uma adesão substancial à solução proposta pelo empresário.
Esse instituto, inspirado na legislação norte-americana, foi consagrado no art. 58, § 1º, com a previsão de alguns requisitos cumulativos. Em primeiro lugar, deve o plano ser aprovado por credores representativos de mais da metade dos créditos presentes à assembleia, sem distinção de classe. Ademais, há a necessidade de aprovação por duas classes das três previstas no art. 41, ou por uma, caso apenas haja credores de duas classes. O terceiro requisito remete à imposição da aprovação mínima de 1/3 dos credores na classe que rejeitou o plano. Por derradeiro, o plano não poderá instituir tratamento diferenciado entre os credores da classe que rejeitou o plano.
Da análise desse dispositivo, percebe-se que o legislador nacional se afastou da fórmula adotada pelo Bankruptcy Code de 1978 dos Estados Unidos, que outorga amplos poderes para o magistrado decidir no caso concreto pela derrubada do veto dos credores, desde que atendidos determinados critérios subjetivos. Esta prerrogativa do magistrado de aprovar o plano, a despeito da rejeição pela maioria dos credores, é denominada pela doutrina de cram down.
Desta forma, de acordo com a Lei nº 11.101/2005, o juiz não pode conceder a recuperação judicial quando os credores rejeitam o plano apresentado pelo devedor, ainda que considere que o plano atende ao melhor interesse dos credores, não possui qualquer forma injusta de discriminação e se afina com os princípios constantes nos arts. 47 e 75[10] do referido diploma legal. Essa interpretação, contudo, enseja a falência de sociedades empresárias com plenas condições de retornar ao regular funcionamento. Acrescente-se que a recuperação de empresas no Brasil ainda não atingiu índices satisfatórios de eficiência, a demonstrar a necessidade de algumas alterações[11].
2.2 Noções gerais do cram down no sistema jurídico norte-americano
O legislador brasileiro se inspirou no Bankruptcy Code de 1978 dos Estados Unidos para elaborar a Lei nº 11.101/2005. Com efeito, no referido diploma norte-americano, o Chapter 7 cuida dos processos de liquidação (falência) ao passo que o Chapter 11 regula o processo de reorganização (ou recuperação). Assim, com base no Chapter 11, § 1.129(b)(1), o juiz, desde que preenchidos determinados requisitos, pode derrubar o veto dos credores[12]. A rigor, há uma série de requisitos para a aprovação do plano. Á guisa de ilustração, caso seja indicativa do melhor interesse dos credores, o tribunal pode convolar um processo de reorganização em uma liquidação. Nesse sentido, o § 1.1129(b)(4) aponta uma série de razões capazes de evidenciar a conveniência de submissão do caso à liquidação, tais como continuação de perdas substanciais no patrimônio do empresário e ausência de probabilidade de recuperação, má gestão, inobservância dos devedores impostos no processo de recuperação etc.
No § 1.1129(a), há a descrição do rol de requisitos que devem ser cumpridos para a aprovação do plano de recuperação judicial. Entre esses pressupostos, figura o melhor interesse dos credores, consubstanciado na exigência de que eles recebam mais no processo de reorganização do que obteriam na liquidação. Evita-se com isso que algum credor dissidente seja prejudicado. Outrossim, deve haver a convicção de que o plano não resultará em falência ou em nova recuperação. Cite-se ainda a necessidade de aprovação por todas as classes de credores. Este requisito, entrementes, pode ser excepcionado com a aplicação do cram down, instituto que exige o cumprimento de todos os demais requisitos. Ademais, imprescindível a aprovação de, pelo menos, uma classe de credores, bem como que o plano não apresente injusta discriminação (does not discriminate unfairly) e seja justo e equitativo (is fair and equitable)[13].
O critério da injusta discriminação não encontra detalhamento na legislação, razão pela qual ficou a cargo da jurisprudência e da doutrina a fixação dos seus contornos. A corrente dominante considerou que essa exigência diz respeito às relações horizontais, ou seja, impede o tratamento desigual entre credores de classes com a mesma prioridade. De outro lado, o Bankruptcy Code explicita o conteúdo da análise do que seria um plano “justo e equitativo”, fazendo referência às relações verticais e, obstaculizando, portanto, que uma classe menos privilegiada receba antes de uma de hierarquia superior.
Esse sistema não é imune à críticas. Deveras, o princípio do melhor interesse dos credores padece de alto grau de subjetividade, dependendo de conjecturas que podem não se confirmar, da mesma forma como a projeção de cenários no mundo corporativo nem sempre logra êxito. De outra banda, o “unfair discrimation”, à míngua de definição legal, desperta distintas interpretações no plano doutrinário e jurisprudencial. Ressalte-se que a distinção de tratamento não é vedada, o que se impede é distinção injusta. Compete, então, ao magistrado, à luz das peculiaridades do caso concreto formar a sua convicção.
De qualquer modo, os Estados Unidos possuem uma experiência muito mais consolidada que a brasileira em matéria de recuperação de empresas. Não seria despiciendo observar que ao passo que o percentual efetivo de recuperação de empresas no Brasil é de 1%, no direito norte-americano aproxima-se de 30%. Assim, a despeito de eventuais críticas e da necessidade permanente de aperfeiçoamento, o processo de reorganização nos Estados Unidos funciona bem outorgando mais poderes para o magistrado aprovar um plano rejeitado pelos credores.
2.3 APLICAÇÃO DO CRAM DOWN NO BRASIL
Tendo em vista a relevância da recuperação de empresas para a economia nacional, alguns doutrinadores entenderam que, à luz dos princípios da função social e da preservação da empresa[14], o comando do § 1º do art. 58 da LRF deve receber uma interpretação ampliativa. Nesse sentido, sustentam a legalidade da aplicação do instituto norte-americano do cram down nas recuperações judiciais de empresas no Brasil, mesmo que à míngua de previsão legal.
Outra parte da doutrina, contudo, diverge do entendimento e ressalta que o legislador nacional optou por caminho diverso do norte-americano, negando qualquer poder para o magistrado desconsiderar o veto dos credores. Tratar-se-ia a recuperação judicial de ato com índole negocial. Apontam, dessarte, no sentido de que a aplicação do cram down não encontra respaldo no nosso ordenamento jurídico.
Até mesmo os Tribunais já começaram a se deparar com o tema, de acordo com as indicações na revisão bibliográfica abaixo. Os Tribunais de Justiça de São Paulo e do Rio Grande do Sul aplicaram expressamente o instituto. De outra banda, a título de ilustração, ainda que não se referindo expressamente ao cram down, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios negou pleito de aprovação de plano rejeitado pelos credores, ressaltando a necessidade de atendimento dos requisitos cumulativos impostos pelo § 1º do art. 58 da Lei de Recuperações e Falências.
Percebe-se, nessa linha de raciocínio, que a vontade dos credores deve ser respeitada. Entrementes, a relevância de uma atuação mais ativa por parte do magistrado pode ser fundamental para evitar a falência de sociedades empresárias viáveis, desde que observando parâmetros que não desnaturem a recuperação judicial.
Assim, o problema central do artigo alude ao exame da legalidade da aplicação do instituto do cram down nas recuperações judiciais de empresas no Brasil. Do exame dessa questão, surgem temas que devem ser enfrentados, consistindo nos problemas específicos. Cite-se, nesse sentido, o conflito de poderes entre os credores (por meio da assembleia-geral) e o juiz na decisão final acerca da recuperação judicial. Não seria despiciendo observar que para a maior parte da doutrina a recuperação judicial possui natureza contratual. Então, verifica-se uma possível incoerência na permissão de que o magistrado possa impor aos credores a celebração de um negócio jurídico contra a sua vontade.
É bem verdade que princípios como a função social, a boa-fé objetiva e a preservação da empresa reduziram o campo da autonomia privada, todavia a autonomia da vontade consubstanciada na possibilidade de celebrar ou não negócios jurídicos permanece hígida. Assim, causa espécie a possibilidade de o magistrado impor aos credores, inclusive, uma remissão parcial dos créditos aprovando o plano de recuperação judicial.
Sob essa perspectiva, a teoria da natureza processual da recuperação judicial parece explicar de maneira mais convincente o poder do juiz e um possível direito subjetivo do empresário. Consistiria a recuperação judicial, desse modo, em pretensão de natureza contenciosa deduzida em juízo com o desiderato de obter a superação da crise econômico-financeira do empresário, por meio da implementação de um plano[15].
Não se pode olvidar, outrossim, que a sensibilidade do tema decorre do dilema enfrentado amiúde no pós-positivimo, consistente no conflito entre legislador e juiz, decorrente da aplicação dos princípios jurídicos. Questiona-se, portanto, se o fato de o art. 47 da Lei nº 11.101/2005 trazer à baila de maneira expressa princípios como a função social e a preservação da empresa seria suficiente a ensejar uma interpretação que, a todas as luzes, extrapola o conteúdo da regra inserta no art. 58, § 1º, do mesmo diploma legal. Ressalte-se que na interpretação de cada dispositivo, deve o hermeneuta levar em consideração o risco para a força normativa de um sistema jurídico a adoção de interpretações que fogem da dicção legal.
Ainda nesse âmbito, até mesmo para evitar qualquer insegurança jurídica, uma conclusão de que seria adequada a aplicação do cram down no nosso ordenamento perpassa necessariamente pela construção sólida de critérios capazes de fornecer subsídios que de antemão permitam ao intérprete a conclusão de que um caso seria ou não objeto de utilização do instituto. Para tanto, poderia a doutrina brasileira se valer da experiência norte-americana. Não se trata, evidentemente, de importar institutos alienígenas sem qualquer critério, mas buscar inspiração para a construção de mecanismos, que, adaptados à nossa realidade, permitiriam um maior êxito na recuperação de empresas.
De outro lado, essa pesquisa implica uma maior amplitude na utilização da recuperação judicial de empresas, tendo em vista que muitos pedidos rejeitados pelos credores seriam autorizados pelos juízes. Indubitavelmente, no bojo dessa ampliação, deve-se questionar qual o real sucesso da recuperação judicial de empresas no Brasil. Para tanto, faz-se mister o levantamento de estatísticas que indiquem se o instituto da recuperação judicial está ou não evitando a falência de sociedades empresárias.
Por derradeiro, propõe-se esta pesquisa a responder se é adequada a alteração da Lei nº 11.101/2005 no sentido de conferir maiores poderes ao magistrado para decidir no caso concreto pela concessão da recuperação judicial, ainda que a maioria dos credores haja rejeitado a proposta. A resposta a essa pergunta não está necessariamente atrelada aos questionamentos anteriores, ou seja, pode ser que as conclusões apontem no sentido de que é adequada a interpretação que permite, à luz dos princípios jurídicos, a aplicação do cram down, independentemente da modificação do texto legal. Não obstante, também pode-se chegar ao entendimento de que seria conveniente a outorga de maiores poderes ao magistrado, todavia, com o texto em vigor, a atuação jurisdicional deve ser limitada.
3 PARÂMETROS PARA APLICAÇÃO DO CRAM DOWN
Chegando-se à conclusão de que o instituto do cram down é útil para o sistema de recuperação de empresas no Brasil, faz-se mister a construção de critérios aptos a conferir segurança jurídica aos operadores do direito. A falta de parâmetros retira qualquer segurança jurídica nessa temática, o que prejudica seriamente o ambiente de negócios no Brasil. Assim, tão importante quanto definir se deve ou não ser aplicado esse instituto é a busca por balizas que uniformizem o tratamento da matéria.
Nesse sentido, primeiro serão examinados pormenorizadamente os critérios dispostos pelo legislador no art. 58, § 1º, da Lei nº 11.101/2005. Em seguida, passar-se-á à análise das balizas sugeridas pela doutrina nacional. Por fim, os critérios esboçados pelos Tribunais serão objeto de estudo.
3.1 CRITÉRIOS NA LEI Nº 11.101/2005
O art. 58, § 1º, da Lei nº 11.101/2005 impôs uma série de requisitos cumulativos para permitir a aprovação alternativa do plano de recuperação judicial[16]. Nos termos da dicção do parágrafo primeiro, inicialmente, percebemos a referência à possibilidade e não obrigatoriedade de o juiz aprovar o plano de recuperação judicial. Em seguida, o referido dispositivo observa que o quórum alternativo deve ser alcançado na mesma assembléia, não abrindo margem para a designação de AGC com esse propósito. O artigo, então, exige que, de forma cumulativa, sejam atendidos os seguintes pressupostos: aprovação por credores que titularizem a maior parte dos créditos presentes, sem levar em consideração a divisão por classes; aprovação de duas classes das três (trabalhistas, com garantia real, demais credores), ou por uma, na hipótese de haver apenas duas; e voto favorável de mais de um terço de credores na classe que rejeitou o plano. Por fim, o § 2º do mesmo art. 58 dispõe que a recuperação judicial alternativa apenas poderá ser concedida caso não preveja tratamento diferenciado para os credores da classe que rejeitou o plano. Esses requisitos merecem alguma atenção, se não, vejamos.
A primeira questão que se levanta remete à apreciação jurisdicional, uma vez que o dispositivo supracitado dispõe que “poderá” o juiz conceder a recuperação judicial. Esta prerrogativa, contudo, longe de outorgar um poder para valoração própria do magistrado, a rigor, quer apenas destacar o dever do magistrado de realizar um controle de legalidade. Tratar-se-ia, portanto, da necessidade de verificação do atendimento dos pressupostos estabelecidos pelo legislador para a concessão da recuperação judicial, tese corroborada nos Enunciados nº 44 (“A homologação de plano de recuperação judicial aprovado pelos credores está sujeita ao controle judicial de legalidade”) e 46 (“Não compete ao juiz deixar de conceder a recuperação judicial ou de homologar a extrajudicial com fundamento na análise econômico-financeira do plano de recuperação aprovado pelos credores”) da I Jornada de Direito Comercial do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal. Dentro desse mesmo papel, compete ao juiz desconsiderar votos emitidos com abuso de direito, conforme Enunciado nº 45 da mesma Jornada (“O magistrado pode desconsiderar o voto de credores ou a manifestação de vontade do devedor, em razão de abuso de direito”)[17].
O dispositivo sob comento alude ainda à necessidade de uma assembléia única para a deliberação da recuperação judicial. Na realidade, pode haver mais uma sessão, contudo, por força dos princípios da celeridade e da economia processuais, a AGC deve ser única para essa finalidade e apenas serão considerados presentes os credores que assinaram a lista por ocasião da instalação da assembléia. Esse entendimento foi consagrado no Enunciado nº 53 da referida Jornada de Direito Comercial (“A assembléia geral de credores para deliberar sobre o plano de recuperação judicial é una, podendo ser realizada em uma ou mais sessões, das quais participarão ou serão considerados presentes apenas os credores que firmaram a lista de presença encerrada na sessão em que instalada a assembléia geral”)[18].
Ademais, deve haver a aprovação por credores que titularizem a maior parte dos créditos presentes na assembleia, independentemente de classes. Esse critério afasta o modelo brasileiro do instituto do cram down norte-americano, uma vez que não há se falar nesse caso em derrubada do veto dos credores, uma vez que o plano precisa da aprovação dos detentores da maioria dos créditos. Esse requisito, indubitavelmente, obstaculizará uma grande quantidade de concessão de recuperações, razão pela qual sua manutenção deve ser objeto de discussão dentro de um sistema pautado pelo princípio da preservação de empresas.
Outro requisito alude à aprovação por duas classes de credores, ou por uma no caso de apenas haver duas classes. Essa prerrogativa pode dar azo a situações em que apenas um credor será capaz de impedir a recuperação. Não é raro que um determinado banco titularize boa parte dos créditos com garantia real e dos quirografários. A instituição financeira, portanto, poderá ao seu alvedrio, votar contra o plano de recuperação judicial, independentemente das condições estipuladas e essa negativa levará à rejeição da recuperação. A inflexibilidade da exigência, em determinadas situações, poderá prejudicar a manutenção da empresa, principalmente se o banco for o único credor real, o que inviabilizará o atendimento do próximo requisito.
Deveras, na classe que rejeitou o plano deve haver a aprovação por mais de 1/3 dos credores, além de não estabelecer tratamento diferenciado entre eles. Tutelam-se, desse modo, os credores que rejeitaram o plano. De todo modo, a doutrina já construiu o entendimento que impõe o tratamento igualitário para os credores com interesse homogêneo, nos termos do Enunciado nº 57 da I Jornada de Direito Comercial do CJF (“O plano de recuperação judicial deve prever tratamento igualitário para os membros da mesma classe de credores que possuam interesses homogêneos, sejam estes delineados em função da natureza do crédito, da importância do crédito ou de outro critério de similitude justificado pelo proponente do plano e homologado pelo magistrado”)[19].
Interessante observar que o direito brasileiro não impõe qualquer regra com relação à ordem de pagamento como o fair and equitable do direito norte-americano. Essa ausência de norma expõe classes privilegiadas na falência, como os trabalhadores, a injustiças. A proteção do direito brasileiro se restringe às relações horizontais, ou seja, entre credores da mesma classe. Outra questão digna de registro concerne à heterogeneidade da terceira classe de credores (credores quirografários, com privilégio especial, com privilégio geral e subordinados). A rejeição por parte dessa classe trará à baila a dificuldade de se definir se haveria ou não um tratamento diferenciado.
3.2 BALIZAS DOUTRINÁRIAS
Os requisitos inseridos pelo legislador no art. 58, § 1º, da Lei nº 11.101/2005 para aplicação do que parte da doutrina chama de cram down brasileiro, entretanto, representam limites substanciais para a recuperação de muitas empresas. Assim, a doutrina e os Tribunais mantêm aberta a celeuma em torno da possibilidade de utilização de parâmetros mais flexíveis para a concessão da recuperação judicial. Importante, então, a análise acerca dos posicionamentos que dividem os especialistas do tema no país.
André Fernandes Estevez, ainda que em uma análise concernente ao supracitado art. 58, § 1º da Lei nº 11.101/05, em relação ao qual confere interpretação que remete ao juiz a análise de mérito do plano, traz critérios interessantes para a análise jurisdicional da possibilidade de derrubada do veto dos credores à recuperação judicial. Noticia que o Ótimo de Pareto é aplicado nos Estados Unidos e na Alemanha como restrição ao crivo judicial na matéria, bem como que no Brasil instrumentalizaria a constatação do abuso de direito. Essa máxima se refere à situação em que, tomando-se um grupo de pessoas, todos melhoram sua posição, não havendo perda na situação individual. De outro lado, referido autor indica o princípio de Kaldor-Hicks como parâmetro a balizar a concessão da recuperação por parte do juiz, a despeito do veto dos credores ao plano. Por este princípio, admite-se que alguns credores sofram prejuízo, desde que haja um saldo positivo, ponderando-se os benefícios e malefícios[20].
A seu turno, Renata Weingrill Lancellotti, malgrado reconheça a necessidade de aperfeiçoamento da Lei de Recuperação e Falências, aprova a interpretação que realça os princípios da função social e da preservação da empresa. Destaca ainda a existência de decisões judiciais que, a despeito, da falta de previsão expressa, vêm aplicando a legislação de modo a evitar soluções individualistas. Ademais, critica a lei brasileira por haver incorporado o instituto norte-americano do cram down, impondo restrições à avaliação jurisdicional, que passou a depender de um quórum alternativo[21].
Eduardo Secchi Munhoz adverte para a necessidade de superação da dicotomia entre a soberania do juiz e a soberania dos credores, por meio de uma solução capaz de equilibrar todos esses interesses e viabilizando a manutenção das empresas viáveis. Outrossim, identifica que, a despeito de a Lei nº 11.101/2005 haver traçado objetivos claros nos arts. 47 e 75, deixou uma lacuna no que tange aos procedimentos necessários para persegui-los. Por fim, observa que, da forma como se encontra a Lei de Recuperação e Falências, poderá haver o privilégio de um interesse puramente individualista em detrimento do interesse público da manutenção de empresas viáveis[22].
Assim, propõe a construção doutrinária de princípios balizadores da atuação do Estado-juiz na recuperação de empresas. Nesse sentido, traz à baila o debate acerca da utilização criteriosa dos princípios do direito norte-americano do best-interest-of-creditors (caracterizado pela impossibilidade de que um credor receba menos do que receberia no processo falimentar), unfair discrimation (consubstanciado no tratamento semelhante e proporcional a ser concedido a credores da mesma classe) e fair and equitable (uma das hipóteses de aplicação é o pagamento de uma classe com créditos com prioridade inferior apenas ser autorizado após o pagamento de uma privilegiada), tudo no intuito de conciliar os interesses do devedor, dos trabalhadores e dos credores. Além disso, aponta para a necessidade urgente de um aperfeiçoamento da legislação recuperacional com o desiderato de permitir que atinja satisfatoriamente seus objetivos, enunciados no art. 47[23].
Marlon Tomazette adota o mesmo entendimento no sentido de que o cram down pode ser aplicado no Brasil, desde que não ocorra injusta discriminação de credores, o plano atenda ao melhor interesse dos credores e seja justo. Ressalta, nesse sentido, que a legislação norte-americana concede margem de discricionariedade mais ampla para o magistrado, por meio de requisitos subjetivos como boa-fé do devedor, viabilidade do plano, perspectiva de sucesso, tratamento justo e equitativo entre os credores, entre outros[24].
Carolina Soares João Batista, Paulo Fernando Campana Filho, Renata Yumi Miyazaki e Sheila Christina Neder Cerezatti, após traçarem um panorama do tema nos direitos norte-americano (Bankruptcy Code), alemão (Insolvenzordnung) e português (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), observam que a Lei nº 11.101/2005 impôs no art. 58 quóruns para aprovação da recuperação judicial (requisito inexistente em outros ordenamentos), deixando, contudo, de se utilizar de critérios consagrados na legislação alienígena. Ademais, ressaltam que o art. 58 não confere poderes ao magistrado para avaliar os vetos dos credores[25].
Dessarte, concluem a pesquisa no sentido de que a legislação nacional possui sérias deficiências que devem ser sanadas por meio de uma interpretação construtiva que aplica o cram down nos moldes americanos, isto é, permitindo-se a atuação jurisdicional para aprovar o plano rejeitado pelos credores, desde que seja aprovado por uma classe e não haja unfair discrimination entre titulares de crédito de mesma natureza, bem como que o plano seja fair and equitable, isto é, respeite a ordem de classificação dos créditos, seguindo as prioridades de pagamento[26].
Ricardo Negrão sustenta a possibilidade de o magistrado aprovar um plano rejeitado majoritariamente pelos credores, contudo adverte da necessidade de realização de ponderação de alguns fatores, como interesse de credores, função social e estímulo à atividade empresarial. Nesse sentido, aponta critérios objetivos, tais como confiança dos credores no plano (verificando as razões das objeções e o resultado da assembleia), verossimilhança dos fatos narrados pelos credores, natureza do objeto social, inserção na cadeia produtiva etc[27].
De outro lado, Frederico Augusto Monte Simionato sustenta enfaticamente que, na sistemática da Lei nº 11.101/2005, o magistrado não possui poderes para aprovar um plano reprovado pelos credores, sob pena de subverter o texto legal. Defende a tese de que a assembleia geral de credores é soberana, não restando ao juiz qualquer margem de discricionaridade para conceder a recuperação caso aquela delibere em sentido negativo. Referido autor argumenta, outrossim, que não há qualquer possibilidade de aplicação do cram down em virtude da disciplina imposta pela atual Lei de Falências e Recuperação de Empresas no Brasil. Enfatiza a natureza contratualista da recuperação no Brasil e critica a interpretação que vislumbra a possibilidade daquele instituto, já que contrária ao espírito da lei[28].
Alberto Camiña Moraes, na mesma linha, sustenta que a lei brasileira não confere qualquer poder para o magistrado derrubar o veto dos credores. Defende que o cram down brasileiro é fechado e legalista, cabendo ao juiz tão somente o papel de verificar o preenchimento dos pressupostos do art. 58 da Lei nº 11.101/2005[29].
3.3 REQUISITOS ESBOÇADOS NOS TRIBUNAIS BRASILEIROS
No que tange à perspectiva jurisprudencial brasileira, constata-se que dois Tribunais já aplicaram expressamente o instituto do cram down: o Tribunal de Justiça de São Paulo e o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. No julgamento do agravo de instrumento interposto pelo Banco Bradesco no bojo da recuperação judicial da Accentum Manutenção e Serviços Ltda., percebe-se que as peculiaridades do caso foram determinantes para a aplicação do cram down. Com efeito, consignou o relator que o seu entendimento decorreu do fato de ter havido reduzida habilitação na classe dos credores quirografários, o que dificultou o atendimento da exigência do art. 58, III, referente à aprovação por mais de 1/3 na classe que reprovou o plano, autorizando a aprovação posterior à assembleia geral de credores. Interessante notar que o relator realizou ampla referência ao parecer do Ministério Público, da lavra de Alberto Camiña Moreira, opinando, entretanto, em sentido contrário[30].
Inclusive, da análise da jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo, percebe-se a criação de alguns critérios para autorizar a concessão judicial da recuperação independentemente do atendimento de todos os requisitos impostos pelo art. 58, § 1º, da LRF. Nesse sentido, aquela Corte de Justiça vem se manifestando no sentido de que quando há credor único em uma classe, a sua rejeição não impede a recuperação da empresa, como ocorreu na recuperação judicial da sociedade empresária Cloroetil Solventes Acéticos S/A. Entende-se que haveria abuso de direito da minoria[31].
Em outra oportunidade (recuperação judicial do Grupo Agrenco), entrementes, o TJSP anulou a decisão que aplicou o cram down (no sentido restrito da lei brasileira), mesmo tendo havido o atendimento de todos os requisitos, exigindo, para tanto, novo plano de viabilidade econômico-financeira. Opinou o relator deste caso no sentido de que a aplicação do cram down seria excepcional e restrito à hipótese de favorecer à generalidade dos credores, exigindo-se, outrossim, maior rigor na análise da viabilidade econômica do plano[32].
Recentemente, algumas decisões consagraram o entendimento adotado pelo Tribunal bandeirante. Na Recuperação Judicial da IRLOFIL Produtos Alimentícios Ltda, a 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJSP decidiu pela aplicação do instituto do cram down a despeito da rejeição pela maioria dos credores presentes. Com efeito, o plano foi aprovado na assembléia por 96,13% dos credores trabalhistas presentes (por cabeça, 169 compareceram, 147 aprovaram e 9 rejeitaram), contudo na classe dos quirografários apenas 38,98% dos credores presentes votaram favoravelmente (ainda que por cabeça dos 32 credores presente, 29 aprovaram e 3 rejeitaram). Isso porque a maior parte dos créditos quirografários era titularizada por apenas três credores, isto é, Banco do Brasil, Copercana e Banco Bradesco S/A possuíam 39,11% do total dos créditos quirografários e 61,02% dos presentes à assembleia[33].
A todas as luzes, não houve o preenchimento dos requisitos impostos por força do conteúdo do art. 58, § 1º, da Lei nº 11.101/2005. Deveras, não houve aprovação por parte da maioria dos créditos presentes à assembléia, independentemente de classes. Ainda assim, o Tribunal decidiu pela concessão da recuperação judicial, levando em consideração o princípio da preservação da empresa e o fato de a recuperação ter ficado na dependência do crivo de poucos credores. Ademais, dos três credores, apenas o Banco Bradesco apresentou de forma detalhada e escrita suas razões de oposição ao plano. Outrossim, a AGC aceitou retificação do plano que atendia parcialmente às alterações propostas pelo Bradesco. Por fim, foi evocado ainda o Enunciado nº 45 da I Jornada de Direito Comercial, que autoriza o magistrado a desconsiderar o voto de credores emitido com abuso de direito[34].
A esse respeito, faz-se mister salientar que não há uniformidade jurisprudencial sobre o tema, o que gera flagrante insegurança jurídica. À guisa de ilustração, pode-se citar julgado do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios que negou o pleito de recuperação judicial da Montana Soluções Corporativas Ltda., em virtude da rejeição do único credor da classe com garantia real (no caso, o Banco Industrial e Comercial S/A). A recuperação judicial foi convolada em falência[35].
A seu turno, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul vem aplicando de maneira ampla o instituto do cram down. Deveras, nos autos da recuperação judicial movida por Brasfumo Indústria Brasileira de Fumos S/A, aquela Corte entendeu que a rejeição pelo Banco do Brasil (titular de ampla maioria dos créditos quirografários – 73,25%) não ensejaria a rejeição do plano pelo não atendimento do requisito de aprovação por 1/3 dos credores da classe que rejeitou o plano. Ademais, com o mesmo argumento, desconsiderou a falta de um segundo requisito, qual seja, a reprovação do plano pela maioria dos credores, independentemente de classe. Isso porque, a despeito da aprovação por expressiva quantidade de credores, alguns poucos se somaram ao Banco do Brasil e conseguiram a maioria (estavam presentes na Assembleia credores representando aproximadamente 100 milhões de reais e o Banco do Brasil titularizava mais de 45 milhões – quase 50%)[36].
Seguindo esse mesmo raciocínio, foi deferida pelo TJRS a recuperação judicial da AEROMOT – Indústria Mecânico Metalúrgica Ltda. e Aerospaço Serviços e Representações Ltda., malgrado o Banco do Brasil (credor com ampla maioria dos créditos com garantia real – o Banco do Brasil possuía R$ 1.024.752,64, ao passo que o outro único credor desta classe – Caixa RS Fomento Econômico S/A – possuía crédito de R$ 74.295,46) tenha rejeitado, o que impede o atendimento de um dos requisitos exigíveis cumulativamente pelo art. 58, § 1º da Lei nº 11.101/2005, qual seja, a aprovação por pelo menos 1/3 dos credores da classe que rejeitou o plano[37].
A partir da análise de algumas decisões que aplicaram o cram down, é possível a extração de alguns critérios amiúde utilizados. Em primeiro lugar, percebe-se que o voto do credor único em determinada classe vem sendo desconsiderado, mormente se levando em consideração a teoria do abuso de direito. Cite-se, nesse sentido, o Enunciado nº 45 do Conselho da Justiça Federal. Não obstante, a teoria do conflito de interesses não parece comportar interpretação tão ampla. Com efeito, não se pode considerar abusivo o comportamento do credor que age no intuito de receber os créditos que lhe são devidos. O fato de ser o credor único de determinada classe não lhe retira a prerrogativa de verificar se as condições propostas no plano atendem a seus interesses. Dessarte, malgrado seja extremamente importante, a teoria do abuso de direito não deve ser ampliada para além de situações que envolvam votação com finalidade distinta do recebimento de créditos, tais como benefício de concorrentes, vingança, entre outros[38].
4 CONCLUSÕES
Ao cabo deste artigo, algumas questões merecem consideração especial. Com efeito, longe de se conseguir chegar a alguma conclusão peremptória, a principal convicção que pode ser extraída alude à necessidade de um permanente exame das recuperações de empresas no Brasil. Em especial, o debate acerca da possibilidade de utilização do cram down no Brasil ainda demanda grande aprofundamento. Todavia, algumas peculiaridades demonstradas ao longo deste trabalho já chamam a atenção para a necessidade de aperfeiçoamentos. Os próprios critérios inseridos na legislação recuperacional brasileira para a aprovação alternativa (cram down brasileiro) precisam da correção de alguns detalhes.
Não obstante, no atual cenário de recuperação de empresas no Brasil, entendemos ser conveniente e juridicamente aceitável a aplicação do cram down nas recuperações nacionais. Nesse sentido, levando-se em consideração o núcleo axiológico da Lei nº 11.101/2005, mormente os postulados da preservação da empresa e da função social, o juiz deve aprovar o plano de recuperação judicial, mesmo que haja rejeição por parte da maioria dos credores (ou seja, poderá aplicar o instituto do cram down), desde que observe determinados princípios. Esses parâmetros devem ser adequadamente desenvolvidos de forma a evitar um ambiente de insegurança jurídica.
Com esse desiderato, incialmente, poderão ser utilizados princípios consagrados no direito norte-americano como, por exemplo, best-interest-of-creditors (caracterizado pela impossibilidade de que um credor receba menos do que receberia no processo falimentar), unfair discrimation (consubstanciado no tratamento semelhante e proporcional a ser concedido a credores da mesma classe) e fair and equitable (uma das hipóteses de aplicação é o pagamento de uma classe com créditos com prioridade inferior apenas ser autorizado após o pagamento de uma privilegiada).
Ademais, ao lado de uma sólida construção doutrinária, faz-se mister a alteração da Lei nº 11.101/2005, conferindo maiores poderes para o juiz deliberar acerca da recuperação judicial, valendo-se, especialmente, de conceitos jurídicos indeterminados. Isso porque esse tipo de cláusula permite uma atualização da norma em face do momento econômico vivenciado, autorizando ao magistrado se valer de casos anteriores para mensurar a viabilidade ou não de determinada empresa.
Essas medidas se apresentam como de grande relevância para a construção de um ambiente sadio de negócios no Brasil, com redução de custos de transação. O sistema de recuperação de empresas e de falência é fundamental na ampliação do mercado de crédito, imprescindível para o desenvolvimento nacional. Incumbe à comunidade jurídica a extração de todo o potencial normativo da nova legislação recuperacional com o desiderato de garantir a preservação de todos os interesses e valores que gravitam em torno da empresa (empresário, trabalhadores, instituições financeiras, Fisco, consumidores, cadeia produtiva, concorrência, produção, comunidade, entre outros).
Aluno Especial no Doutorado em Direito da UNB Mestre em Direito no UniCEUB Especialista em Direito na Escola da Magistratura do DF e Bacharel em Direito na Universidade Federal da Bahia. Professor de Direito no Centro Universitário Projeção Oficial de Justiça no TJDFT Coordenador da Federação Nacional dos Trabalhadores do Judiciário Federal e do Ministério Público da União FENAJUFE Presidente da Associação dos Oficiais de Justiça do DF AOJUS/DF e Membro do Conselho Deliberativo da Associação dos Servidores da Justiça do DF Assejus
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