IBIAPINO, Ana Sabrina Fontes
Área do Direito: Direito Penal
Resumo: O presente trabalho pretende explorar o crime de lavagem de capitais acerca da teoria da cegueira deliberada, suas principais características e seu contexto no cenário judiciário brasileiro. A pesquisa irá elucidar as características pouco visíveis desse panorama do crime de lavagem de capitais, visto que não é fácil identificar o dolo eventual nesse delito. Adentrando à esfera criminal, esta pesquisa tem como problema central a perspectiva proposital do crime de lavagem de dinheiro e de que forma os envolvidos aderem a teoria em questão, recusando-se a tomar as medidas cabíveis, O estudo foi realizado de maneira básica, utilizando principalmente obras doutrinárias e também por meio de informações coletadas, na sua maioria, em legislações e jurisprudências nacionais e estrangeiras, além de revistas jurídicas. A partir dessa pesquisa, ficou evidente que a ignorância proposital deve ser punida no crime em questão e que o ordenamento jurídico brasileiro, mesmo não reconhecendo de fato o uso da teoria, precisa modificar seus preceitos para a adoção dela e consequente punição dos criminosos.
Palavras-chave: Lavagem de dinheiro. Teoria da cegueira deliberada. Crime organizado. Dolo eventual.
Abstract: The present work intends to explore the crime of money laundering on the theory of deliberate blindness, its main characteristics and its context in the Brazilian judicial scenario.The research will elucidate the least visible features of this crime scene, since it is not easy to identify the possible fraud in this crime. In the criminal sphere, this research has as its central problem the intentional perspective of the crime of money laundering and how those involved adhere to the theory in question, refusing to take the appropriate measures. The study was carried out in a basic way, using mainly doctrinal works and also through information collected, for the most part, in national and foreign legislation and jurisprudence, as well as legal magazines. From this research, it was evident that deliberate ignorance should be punished in the crime here presented and that the Brazilian legal system, even though it does not recognize the use of theory, must modify its precepts for its adoption and consequent punishment of criminals.
Keywords: Money laundering. Theory of deliberate blindness. Organized crime. Eventual pledge.
Sumário: Introdução; 1. Evolução histórica do crime de Lavagem de Capitais; 1.1. Grupo de Ação Financeira de 1989; 1.2. Convenção de Viena de 1988; 1.3. Convenção de Estrasburgo de 1990; 1.4. Diretivas das Comunidades Europeias; 1.5. Convenção de Palermo de 2000; Convenção de Mérida de 2003; 2. Fases da Lavagem de Capitais; 3. Lavagem de Capitais no Brasil; 3.1. Leis da Lavagem de Capitais (Lei nº 9.613/1998 e Lei nº 12.683/2012); 4. Breve explanação sobre o Dolo; 4.1. Espécies de Dolo; 4.1.1. Dolo Eventual; 5. A Teoria da Cegueira Deliberada; 5.1. A Teoria da Cegueira Deliberada no Brasil; 6. Punibilidade do Crime de Lavagem de Dinheiro frente a Teoria da Cegueira Deliberada no Brasil; 6.1. Mensalão; 6.2. Lava Jato; Considerações Finais. Referências.
Introdução
O mundo hoje vive um dos momentos mais inseguros no que diz respeito ao índice de criminalidade, o que gera um estado emergencial onde os países acabam entrando em uma corrida para combater esse quadro. O crime organizado trouxe um nível diferente para a marginalidade, vez que suas atividades delituosas variam entre tráfico de entorpecentes, tráfico de armas, corrupção, entre outras que juntas formam o conjunto de delitos que mais geram capital e, consequentemente, que mais tendem a crescer.
Geralmente esses crimes vem acompanhados da necessidade de se cometer um outro delito para esconder o primeiro, como a lavagem de dinheiro, para mascarar os ganhos obtidos e consequentemente a violação que há por trás. A lavagem de capitais é, portanto, um crime-fim, sendo a fase do processo de aplicação do dinheiro sujo após a sua legalização, em que a grande quantidade de riquezas é um dos seus principais aspectos.
No processo de transição da lavagem pode ocorrer a inclusão indireta de alguém que não faça parte da organização criminosa. Claramente falando, é possível que um terceiro que seja essencial para o negócio em que será lavado o dinheiro chegue a desconfiar ou mesmo saber de certeza que essa transação é fruto de atividade criminosa. Esse indivíduo pode ser um vendedor ou sócio de uma empresa, por exemplo.
A lavagem de capitais tem sua previsão no Brasil na Lei nº 9.613 de 1998, com alterações significativas realizadas em 2012 pela Lei nº 12.683, e é um delito de apuração extremamente complexa. A partir das modificações feitas em 2012, a possibilidade de aplicar o dolo surgiu com força.
Sua relação com a dita teoria é ainda mais recente, tendo ficado popularmente conhecida após casos polêmicos envolvendo compras feitas com dinheiro ilegal, onde as empresas que realizaram tais transações, mesmo presumindo a ilicitude do capital aplicado, ainda sim deram seguimento ao ato. Irá abordar a definição do crime e da teoria em estudo, os requisitos propostos pelas doutrinas estrangeiras e como a jurisprudência brasileira está empregando na condenação dos agentes que praticaram o crime em questão.
A complexidade de tal assunto reside exatamente no fato de ser essa uma atividade criminal nada clara para o aplicador legal, quando observada ligeiramente a ação e o tipo penal, podendo muitas vezes passar por despercebida. Mas, se for profundamente analisada, é possível que o legislador perceba o dolo ocultado pela ignorância proposital ou mesmo pela omissão.
Nessa esfera criminal, a matriz reside na ignorância proposital sobre a lavagem de dinheiro e de que forma os envolvidos aderem a teoria em questão, recusando-se a tomar as medidas cabíveis, contribuindo para a fortificação desse crime e incentivando indiretamente a sua prática diante da falta de denúncia e consequente impunidade.
São muitos os conceitos alusivos ao crime de lavagem de capitais, também conhecido como “lavagem de dinheiro”. Esse crime ocorre quando o autor, ao adquirir riquezas a partir de práticas ilícitas, resolve transformar o que foi apurado em capital legal, disfarçando a origem do dinheiro. A lavagem de dinheiro pode ser conceituada como uma atividade de desassociação do montante da fonte ilegal, para que este seja utilizado. Mas, as etapas a serem seguidas até a lavagem completa desse dinheiro são muito mais complexas do que superficialmente aparentam.
É notório que esse crime é um método de investimento dos rendimentos ilícitos em atividades legitimas, retornando assim para o bom funcionamento desse sistema ilegal. Com o intuito de esconder os ganhos sem prejudicar os integrantes, essa transgressão é executada de modo eficiente e engenhosa, camuflando a sua procedência e tonando dificultosa a ligação direta com os envolvidos.
A globalização contribuiu para o aumento da lavagem de capitais, principalmente no que diz respeito a localidade, onde fronteiras deixam de ser barreiras para a ocultação desse ilícito, diante da rapidez que as novas tecnologias proporcionam em conjunto com a política bancária dos países, como bem diz Maria Rizzo (2013, p. 22):
“As organizações criminosas não respeitam fronteiras e expandem suas atividades para aqueles mercados que melhor se prestem a seu negócio; escolhem países com sistemas de controle e fiscalização mais brandos, maior flexibilidade das leis e menor rigidez na adoção de políticas globais de cooperação internacional. Por essa razão, o fluxo é contínuo, funciona ininterruptamente 24 horas por conta dos fusos horários, ou seja, quando um centro financeiro fecha os negócios, outro se abre para inicia-los”.
É certo que as condutas ilícitas em um determinado país podem ser totalmente legalizadas em outros e vice-versa. Do mesmo modo, é possível que não precise haver lavagem de dinheiro em alguns países diante da possibilidade de simplesmente usufruir diretamente do montante ilegal, sem a preocupação se irão rastreá-lo até a fonte. Isso nos faz perceber que não há um sistema próprio e igual de lavagem de dinheiro no mundo, variando de acordo com cada localidade.
O Instituto da Basiléia de Governança ou Basel Institute, um centro independente, sem fins lucrativos, de combate à corrupção e crimes financeiros publicou um estudo sobre o sistema político, judiciário e econômico dos países, juntamente com dados relativos a organizações criminosas e índices de crimes de lavagem de dinheiro. Dessa pesquisa, a organização listou um panorama (Tabela 1) criado pela Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE a respeito dos dez países que se tornam mais perigosos financeiramente, onde a numeração leva em conta um conjunto de fatores para a classificação.
Tabela 1 – Top 10 países de maior risco de lavagem de dinheiro | |
Países | Pontuação Geral |
Luxemburgo | 5.89 |
Japão | 5.76 |
Grécia | 5.53 |
Suíça | 5.46 |
Itália | 5.36 |
Alemanha | 5.33 |
Estados Unidos | 5.17 |
França | 5.03 |
Áustria | 5.02 |
Canadá | 5.00 |
Fonte: OCDE
O próprio Instituto Basel observou os países e notou que alguns possuem fiscalização financeira fraca, que juntamente com as vulnerabilidades estruturais e funcionais, como exemplo os altos índices de corrupção, além de “sistemas judiciais ineficazes e padrões financeiros inadequados”. Visto isso, o Basel Institute elencou os dez países (Tabela 2) mais arriscados segundo o seu padrão Anti-Lavagem de Dinheiro ou Anti-Money Laundering – AML, na qual o classificam como vulneráveis a esse crime, devido às deficiências de sua estrutura.
Tabela 2: Top 10 Países mais vulneráveis ao branqueamento de capitais | |
Países | Pontuação Geral |
Iran | 8.61 |
Afeganistão | 8.51 |
Tajiquistão | 8.19 |
Ugandar | 8.01 |
Guiné-Bissau | 7.99 |
Camboja | 7.89 |
Moçambique | 7.89 |
Mali | 7.86 |
Sudão | 7.85 |
Myanmar | 7.71 |
Fonte: Basel Institute on Governance
O crime de lavagem de dinheiro envolve ações e fatos ocultos, o que dificulta uma classificação ou medição do nível desse delito no mundo com dados confiáveis para se avaliar. Apontar uma medição do risco que os países possuem mediante esse cenário é mais fácil, o que não quer dizer que eles tenham maior taxa de criminalidade desse tipo penal, mas que são considerados mais atrativos para as organizações criminosas.
1. Evolução Histórica do Crime de Lavagem de Capitais
É notável que o crime de lavagem de capitais é relativamente novo no mundo jurídico, tendo sido os Estados Unidos e a Itália os primeiros países a tipificarem e adotarem medidas de combate. De acordo com Badaró e Bottini (2013, p. 23):
“O termo lavagem de dinheiro foi empregado inicialmente pelas autoridades norte-americanas para descrever o método usado pela máfia nos anos 30 do século XX para justificar a origem de recursos ilícitos: a exploração de maquinas de lavar roupas automáticas. A expressão foi usada pela primeira vez em um processo judicial nos EUA em 1982, e a partir de então ingressou na literatura jurídica e em textos normativos nacionais e internacionais”.
A Itália, como o primeiro país a incluir a lavagem no rol de crimes, teve essa iniciativa a partir de 1978, no que ficou conhecido como “anos de chumbo”. O grupo extremista italiano de guerrilha chamado de Brigadas Vermelhas, vinha praticando inúmeros crimes, como sequestro e homicídio, com o objetivo de fragilizar a política de seu país.
No mesmo ano, os Brigadas Vermelhas entraram em ação com uma onda de crimes, sequestrando um ex-ministro influente, Aldo Moro, com o propósito de auferir dinheiro, causando impacto no mundo inteiro. A vítima foi morta em seguida. A Itália, em decorrência do ocorrido, resolveu modificar o DC nº 59/1978, tornando crime a transformação de dinheiro ou bens ilegais provenientes de roubo e extorsão qualificados, além de extorsão mediante sequestro. Essa medida visava tornar mais segura a sociedade e o sistema financeiro, atingindo o sustentáculo das quadrilhas.
Nos Estados Unidos, posteriormente, caracterizou o delito de lavagem de dinheiro devido ao problema do mercado ilegal de bebidas alcóolicas da época, intensificando o crime organizado. Em 1920 entrou em vigor nos EUA o conjunto de normas que ficou conhecido por Lei Seca, sancionada pela 18ª Emenda, proibindo o transporte, venda ou produção de bebidas alcoólicas. Essa lei desencadeou um surto de organizações criminosas que juntas movimentaram grandes riquezas com a produção e venda ilegal dessas bebidas.
Mesmo após o fim da Lei Seca e o mercado de bebidas funcionar legalmente, as organizações criminosas que já estavam estabelecidas no país procuraram outros meios ilegais para se envolverem. Foi na década de 30 que houve um surto de tráficos de drogas, o que consequentemente gerou a necessidade de outros meios para se lavar o dinheiro sujo.
Após essa necessidade emergente desses dois países, vários organismos internacionais se viram em situação emergencial, tomando medidas através de grupos e convenções, como o Grupo de Ação Financeira – GAFI, a Convenção de Viena de 1988. A Convenção de Estrasburgo de 1990, dentre outras.
1.1 Grupo de Ação Financeira Internacional de 1989
O Grupo de Ação Financeira Internacional – GAFI (Financial Action Task Force ou FATF), é um organismo criado em 1989 pelos países do Grupo dos sete – G7, com a finalidade de elaborar políticas nacionais e internacionais contra a lavagem de dinheiro e os agentes financiadores do terrorismo.
O GAFI, segundo o Ministério da Justiça Brasileiro, foi gerado no âmbito da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), e hoje é o foro de maior relevância nas discussões internacionais referentes ao combate à lavagem de dinheiro e o financiamento do terrorismo, tendo sua importância reconhecida por diversas outras organizações internacionais, tais como o Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Cabe ao GAFI, dentre outras atribuições: a atuação em todos os países para lutar contra a lavagem de capitais e os crimes que a antecede, assegurar que os países estão a cumprir as recomendações implantadas pelo órgão, verificar regularmente as novas estratégias desse tipo penal etc. Essas funções só podem obter êxito com a cooperação fiel dos Estados e organismos internacionais envolvidos.
Em 1996 o GAFI elaborou 40 recomendações, as quais teve a adesão de mais de 120 países. Essas recomendações representam um agrupamento de medidas individuais que devem ser incorporadas ao corpo legislativo e judiciário de cada membro. Além das 40, o GAFI formulou mais 9 recomendações, nomeando-as como “especiais”, onde determina como premissa que os países aderissem às Convenção Internacional da ONU sobre o combate a subvenção ao terrorismo no mundo.
As recomendações passaram por diversas mudanças e, desde 2003, denotam poderes para os órgãos competentes nacionais afim de que descubram e apreendam capital ilegal. As medidas essenciais que os países devem exercer, segundo as recomendações, são as seguintes:
Em 2012 o GAFI atualizou suas recomendações com o objetivo de proteger mais o sistema financeiro global, fornecendo mais suporte e instrumentos para diminuir a incidência da lavagem. O grupo esclarece sobre a revisão das recomendações, aconselhando que os países optem por seguir à risca tais normas, onde:
“Elas foram expandidas para lidar com novas ameaças, como o financiamento da proliferação de armas de destruição em massa, e para serem mais claras na transparência e mais rígidas em relação à corrupção. As 9 Recomendações especiais sobre o financiamento do terrorismo foram totalmente integradas às medidas contra o branqueamento de capitais. Isso resultou em um conjunto mais forte e mais claro de padrões”.
O GAFI realiza avaliações agendadas de cada país de maneira constante a fim de fiscalizar a execução das recomendações do grupo, elaborando um relatório anual detalhado sobre a metodologia de cada membro e as mudanças que são geradas dela. Esse relatório esmiuçado serve para observar o que deve ser alterado e como cada um tem lidado com a prevenção de fraudes na sua economia, além de coletar os índices que servem de parâmetro para futuras mudanças.
1.2 Convenção de Viena de 1988
A Convenção de Viena, ocorrida na Convenção das Nações Unidas, se volta para o combate ao Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas e ocorreu na cidade de Viena em 1988. O tratado partiu da preocupação dos países participantes com o aumento do tráfico ilícito de tóxicos. O tratado também visa a abordagem da ligação desse com outros crimes organizados, que prejudicam diretamente o sistema financeiro global, atingindo diretamente a economia dos países.
O Brasil ratificou esse tratado pelo Decreto nº 154/1991, e inicialmente descreve alguns dos motivos que levaram a essa convenção:
“Profundamente preocupadas com a magnitude e a crescente tendência da produção, da demanda e do tráfico ilícitos de entorpecentes e de substâncias psicotrópicas, que representam uma grave ameaça à saúde e ao bem-estar dos seres humanos e que têm efeitos nefastos sobre as bases econômicas, culturais e políticas da sociedade.
Profundamente preocupadas também com a sustentada e crescente expansão do tráfico ilícito de entorpecentes e de substâncias psicotrópicas nos diversos grupos sociais e, em particular, pela exploração de crianças em muitas partes do mundo, tanto na qualidade de consumidores como na condição de instrumentos utilizados na produção, na distribuição e no comércio ilícitos de entorpecentes e de substâncias psicotrópicas, o que constitui um perigo de gravidade incalculável”.
Identificada como a primeira geração de regras voltadas para o crime de lavagem de capitais, essa convenção apresentou conceitos e instigou o empenho do país na luta contra o narcotráfico. Obviamente, a finalidade da convenção de Viena é a de que os Estados-membros produzam seu próprio conjunto de normas que tipifique a lavagem de capitais para, consequentemente, reduzir a preocupante ascensão dos crimes antecedentes.
1.3 Convenção de Estrasburgo de 1990
A convenção de Estrasburgo de 1990 foi aprovada apenas em 1993 devido a mudanças e tem a finalidade de alvejar o sistema criminal convencional dos Estados-membros da Convenção da Europa. Essa convenção representa a segunda geração de normas sobre esse crime, procedendo a primeira geração demonstrada pela Convenção de Viena de 1988.
A Convenção prevê medidas a serem tomadas em âmbito nacional e de cooperação entre os Estados-membros. Entre as inovações pode-se destacar a ampliação dos crimes antecedentes e a previsão de perda de instrumentos e do produto do crime (RONCATO, 2006). Na visão de Laufer (2012), a base do convênio tem como objetivos:
“(a) o confisco de bens oriundos de atividades delitivas; (b) a identificação desses bens, bem como das transferências relativas a eles; (c) habilitar os juízes e as instâncias de fiscalização para que tenham contato com informações financeiras por meio do afastamento do segredo bancário; (d) permitir a utilização de técnicas especiais de investigação, tais como a interceptação de meios de comunicação e a vigilância de contas bancárias”.
No ano de 2005 ela passou por uma mudança em seu corpo para incluir medidas mais drásticas contra o terrorismo, estimulando os membros a criarem organismos de fiscalização e controle de dados nos sistemas, chamadas de Unidades de Inteligência Financeira – UIF. Um exemplo de unidade de inteligência financeira no Brasil é Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF).
1.4 Diretiva das Comunidades Europeias
As diretivas são consideradas regulamentos que os Países-membros da União Europeia são conduzidos a pactuarem. Carla Carli (2006) afirma que no campo do Direito Comunitário a Europa formulou três Diretivas importantes sobre as diretrizes para prevenir e punir a lavagem de dinheiro, são elas: a Diretiva 91/308/CEE que foi alterada pela Diretiva 2001/97/CE e, a Diretiva 2005/60/CE.
A Diretiva 91/308/CEE se baseou na Convenção de Viena de 1988 no que concerne a definição do crime de lavagem de capitais. Mas, contrapondo a convenção, aconselhou que seus países-membros aplicassem as normas contidas na diretiva a outros tantos crimes, como o terrorismo, por exemplo. Essa norma foi editada uma década depois pela Diretiva 2001/97 do Conselho Europeu, na qual expandiu o seu poder de atuação incluindo outros crimes no seu bojo, além de outros campos de atuação, atingindo a classe advocatícia, contábil, notarial, entre outras.
Por último, a Diretiva 2005/60 do Conselho Europeu trouxe um arsenal mais detalhista para alcançar todos os envolvidos nas operações financeiras ilícitas, como relata CARLI (2006). Essa diretiva revogou as duas anteriores.
Uma importante diretiva foi aprovada em 2012 pela Corte Europeia de Direitos Humanos, onde decidiu que o sigilo entre advogado e cliente deve ser rompido quando envolver certeza ou suspeitas sobre atos que se tratam de lavagem de dinheiro. Essa decisão foi aprovada por magistrados da França onde obrigam os advogados a denunciarem seus clientes, devendo aquele estar em alerta sobre esse fato, pois poderá ser aplicado a ele um processo disciplinar.
No Brasil, tal diretiva não foi bem recepcionada pela Ordem dos Advogados, que entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, visto que a Carta Magna, em seu art. 133, que trata sobre a inviolabilidade dos atos e manifestações no exercício da profissão advocatícia. Conjuntamente, vai contra o Código de Ética e Disciplina da OAB, principalmente o seu art. 35 que trata sobre a guarda do “sigilo dos fatos de que tome conhecimento no exercício da profissão”.
1.5 Convenção de Palermo de 2000
A Convenção de Palermo foi imprescindível para se olhar o crime organizado sob um ponto de vista mais atual. O Brasil a ratificou em 12 de março de 2004, sob o Decreto Nº 5.015. A finalidade da convenção é vista logo no 1º artigo: “O objetivo da presente Convenção consiste em promover a cooperação para prevenir e combater mais eficazmente a criminalidade organizada transnacional”.
Pela convenção, a criminalização da lavagem de dinheiro deverá ser combatida por cada Estado com medidas como: não transacionar ou adquirir bens quando se sabe sobre sua origem ilícita; não ocultar ou dissimular o capital para esconder seu histórico ilegal; de maneira alguma participar de alguma prática que possa caracterizar como infração que esteja ligada ao ilícito penal, dentre outras exigências. Dessa forma, cada país deve incluir o máximo de previsão legal que cubra todos os caminhos que levam à lavagem de dinheiro.
A Convenção de Palermo serviu para modificar a lista de crimes antecedentes, destacando os delitos das organizações criminosas. Clovis Roncatto discorre que a Convenção “determina também a responsabilidade penal, civil ou administrativa das pessoas jurídicas, normas de cooperação internacional com possibilidade de extradição, entre outras ações de assistência judiciária recíproca. No entanto, a principal contribuição da Convenção de Palermo foi a definição de grupo criminoso organizado, que serve como referência a países como o Brasil que buscam uma integração legislativa com a comunidade internaciona”.
1.6 Convenção de Mérida de 2003
A Convenção de Mérida, ocorrida no México, ratificada no Brasil pelo Decreto nº 348 de 2006 e promulgada pelo Decreto nº 5.687 de 31 de janeiro de 2006, ocorreu em 2003 e tinha como escopo o combate à corrupção. Assuntos como o sigilo, cooperação internacional, facilitação da comunicação entre os países-membros e independência do Ministério Público frente ao Poder Judiciário estão entre os principais pontos mencionados na convenção.
Através do decreto, o Brasil concretizou seu compromisso acordado na convenção, onde estipulou no artigo 1º os objetivos principais do documento, assim sendo:
Dentro do conjunto de sugestões desse tratado, destaca-se a insistência de que os países lutem para combater a corrupção nos setores públicos, com ênfase ao judiciário. Para tanto, os membros devem direcionar as mudanças para a fiscalização financeira nesse setor, além de mais eficiência dos responsáveis por executar as leis.
Há aqui grande foco nas normas para controle de transações bancárias, orientando que bancos constituam regimentos internos mais rígidos e que sejam mais exigentes com as instituições financeiras correlatas. Essas recomendações também valem para as relações internacionais entre os membros.
2. Fases da Lavagem de Capitais
O GAFI, ao tratar doutrinariamente sobre a lavagem de capitais e observar o rito seguido por muitos que cometem esse crime, classificou em três os estágios dessa violação, com o intuito de dar clareza aos passos de cada caso. Seguindo a mesma linha, doutrinadores brasileiros como Baltazar, Moro e Renato Brasileiro, utilizam do mesmo fundamento acerca das fases desse crime.
Discorrendo mais detalhadamente sobre as fases, temos:
I – Placement ou Colocação: é a primeira fase e representa a introdução do dinheiro de origem ilícita no sistema financeiro do país. É aqui onde o dinheiro é distanciado do crime que o originou, dificultando a sua identificação. Muitas são as estratégias utilizadas para essa separação;
II – Layering ou Dissimulação: a segunda fase é caracterizada pelo disfarce, ou como está descrito no art. 1º da Lei nº 9.613/98, ocultação ou dissimulação. As estratégias envolvem várias transações financeiras, tornando cada vez mais distante da fonte ilegal, para impossibilitar cada vez mais o rastreamento. Alguns dos mecanismos envolvem empresas fantasmas, transferências em diversos bancos, até mesmo em países considerados paraísos fiscais, além de compras de joias e obras de arte.
III – Integration ou Integração: a terceira e última fase é a transformação desse dinheiro em lícito, completando o ciclo da lavagem. Aqui os donos do capital podem gozar do dinheiro sem levantar suspeitas.
A lei brasileira enquadra como delituosas as três fases desse crime, mas não é obrigação a ocorrência dessas três etapas para a sua caracterização, como observa Renato Brasileiro (2015, p. 292):
“A própria redação do tipo penal de lavagem de capitais autoriza a conclusão no sentido de que não é necessário expressamente o exaurimento integral das condutas do modelo trifásico para a consumação do crime. Por isso mesmo, ao conceituarmos a lavagem de capitais, foi dito que se trata do ato ou conjunto de atos praticados pelo agente, com a finalidade de conferir aparência lícita aos bens, direitos ou valores provenientes de crime ou contravenção penal antecedente”.
3. Lavagem de Capitais no Brasil
O crime de Lavagem de Capitais não deixa de ser novo no direito penal do Brasil, mesmo sendo os crimes patrimoniais desde sempre presentes na história do país. Nesta mesma ideia histórica, afirma Sergio Fernando Moro (2010):
“[…] Não se trata de um tipo penal antigo, como homicídio ou roubo, para os quais há um estudo consolidado acerca de sua configuração jurídica. Para um crime novo, as questões interpretativas encontram-se geralmente abertas, sujeitas à resolução de um modo ou outro modo, dentro dos limites cabíveis, pela doutrina e jurisprudência”.
Anos após a Convenção de Viena, em 1998, o Brasil criou a Lei nº 9.613 como instrumento para combate dessa preocupante questão, sendo um avanço legislativo mesmo com seus pontos fracos, que mais adiante seriam modificados. Em 2012, foi promulgada a Lei 12.683 com objetivo de dar uma maior segurança ao crime de lavagem de dinheiro, editando mudanças na lei anterior, principalmente no que diz respeito ao artigo 1º onde concentra o conceito do delito.
3.1 Lei da Lavagem de Capitais (9.613/1998 e 12.683/2012)
A Lei nº 9.613 de 1998 tipificou o crime de lavagem de dinheiro e o tornou um delito independente, sendo fora a parte do Código Penal Brasileiro. Oliveira (1998, p. 144) ao tratar sobre esse caráter especial da lei, afirma que o fato dessa norma vir separada do Código Penal, prejudica a sua interpretação e gera questionáveis efeitos da prevenção geral. Isso modifica o equilíbrio legislativo e punitivo, segundo o autor, desrespeitando o ideal jurídico.
Adentrando ao bojo da legislação, logo no artigo 1º o legislador se preocupou em tipificar as condutas que antecedem a lavagem de dinheiro, e a dosimetria da pena. A lista de delitos antecedentes era a seguinte: tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins; terrorismo; contrabando ou tráfico de armas, munições ou material destinado à sua produção; extorsão mediante sequestro; crimes contra a Administração pública e contra o sistema financeiro nacional; crimes praticados por organização criminosa e crimes praticados por particular contra a administração pública estrangeira.
Em 2012 este artigo, assim como muitos outros, foi modificado pela Lei nº 12.683/12, afim de tornar mais eficiente o combate a esse crime. O rol de crimes antecedentes foi revogado, acabando as restrições e abrangendo inteiramente a esfera criminal, fazendo com que a lavagem de dinheiro seja tipificada com qualquer infração penal que a anteceda e gere capital, bens ou valores ilegais. Porém, atualmente no país, os crimes que antecedem em sua maioria a lavagem continuam sendo os mesmos.
Os delitos que mais geram capital a ser lavado no Brasil são: tráfico de drogas, comércio ilegal de armas e a corrupção. O tráfico de drogas é um dos mais preocupantes, já que causam danos imensuráveis à humanidade, atingindo outros campos, sendo o sistema financeiro um deles. Já o negócio ilegal de armas, além de ter um grande impacto na sociedade em geral, é um delito que fortalece os demais. Enquanto a corrupção, no cenário atual do país, se apresenta como delito de fiscalização e punibilidade fraca.
A Lei 9.613, além de se comprometer a combater e penalizar a lavagem, também visa atacar os crimes que de alguma forma conceberam o subsequente. Para isso, o legislador cuidou por bem criar uma estrutura basilar estatal que lhe permita chegar até os transgressores e prevenir novas circunstâncias, como o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), previsto no capítulo IX da referida legislação.
O COAF é uma unidade de inteligência que faz parte do GAFI e é subordinado à Secretaria Nacional de Justiça (SNJ) do Ministério da Justiça do Brasil. Essa unidade é hoje a linha de frente no que diz respeitos às ações eficazes de combate ao capital ilegal. Para chegar a tal, o COAF criou um sistema onde guarda dados cadastrais sobre atividades estranhas e ilegais, devendo cada um dos obrigados, denunciar suas suspeitas às autoridades diante do mecanismo chamado Sistema de Controle de Atividades Financeiras (SISCOAF).
Esse sistema representa um meio de comunicação onde as pessoas obrigadas informam ao Controle os negócios, operações e transações suspeitas ou eivadas de ilegalidade. Além dessas pessoas obrigadas, qualquer cidadão pode manifestar no sistema evidências de prática da lavagem de dinheiro. O art. 9º da Lei de Lavagem de Capitais apresenta o rol dos que estão sujeitos ao mecanismo de controle.
Ressalvado o rol sobre os crimes antecedentes, a Lei nº 12.683 fez pequenas alterações no corpo legislativo da Lei de Lavagem de Capitais. O conceito inicial situado no art. 1º sobre o delito sofreu a substituição do termo “crime” para “infração penal”, o que abrange as contravenções, que nelas podemos incluir os jogos de azar em geral.
O § 2º do mesmo artigo também foi significativamente alterado, mudando as interpretações doutrinarias. O referido texto, antes da sua atualização, descrevia o seguinte:
“Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime: (…)
I – utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores que sabe serem provenientes de qualquer dos crimes antecedentes referidos neste artigo”.
Com a modificação trazida em 2012, o texto do art. 1º, § 2º, retirou de seu bojo a expressão “sabe serem provenientes”. No campo subjetivo, essa modificação muda a forma de punição, dando lugar ao dolo eventual, que acontece quando o indivíduo prevê o resultado, não quer que ele aconteça, mas assume o risco de produzi-lo.
4. Breve Explanação Sobre o Dolo
Abordando sumariamente o conceito de dolo, esse é, amplamente falando, o desejo e o empenho do indivíduo de realizar a conduta. Na doutrina brasileira prevalece o estudo de três teorias que conceitualizam o dolo, são elas: a teoria da vontade, teoria da representação e a teoria do assentimento. Capez (ano, p. 225), ao esclarecer sobre elas, afirma que a primeira teoria, a da vontade, compreende a vontade do ser humano em realizar a conduta e produzir o resultado.
Essa teoria está ligada diretamente ao querer do agente, sendo próprio do indivíduo a necessidade de realizar a ação, independentemente dela ser ilegal. A teoria da representação, segundo o autor, o dolo também é tido como a vontade do autor de realizar o ato, prevendo ele a possibilidade do resultado vir a acontecer, mas ele não o quer. Segundo essa linha de pensamento, é necessário apenas o agente prever a possibilidade daquele resultado, sem contudo desejá-lo.
A última teoria listada, a do assentimento, também conhecida como teoria do consentimento, refere-se ao caso de ocorrer a previsão do resultado com a aceitação dos riscos de gerá-lo, sem se importar com sua ocorrência. O indivíduo aqui se mostra indiferente as grandes chances de acontecer tal resultado e a sua ocorrência.
A legislação brasileira, segundo Capez, adota as teorias da vontade e do assentimento, portanto, nas palavras do autor, o conceito de dolo é “[…] a vontade de realizar o resultado ou a aceitação dos riscos de produzí-lo”. Essa previsão encontra-se no art. 18, inciso I, do Código Penal.
4.1 Espécies de Dolo
Para compreender as espécies de dolo é preciso ter em mente que este varia conforme a conduta típica, podendo o dolo de um crime não ser o mesmo de outro. Damásio de Jesus (2011. P. 330) leciona que, por exemplo, “o dolo do homicídio não é igual ao do furto, uma vez que as elementares dos tipos são diferentes e se exige que esse elemento subjetivo abranja todos os componentes da figura típica. Diante do exposto, a doutrina divide o dolo em várias espécies, mas é fundamental a abordagem de apenas dois: dolo direto e dolo indireto.
O dolo direto é o anseio de realizar o ato e obter o resultado. Esse tipo de dolo também é chamado de imediato, dada o fato do sujeito querer produzir o resultado sem haver dúvidas ou requisitos. O dolo indireto ou mediato, que pode ocorrer na forma de dolo eventual (quando o agente enxerga a possibilidade da realização daquele resultado, mas se conforma com a chance de ocorrer) ou dolo alternativo (quando o indivíduo quer qualquer dos resultados que se possa obter). Para esse estudo, atenhamos ao dolo eventual na compreensão da relação do crime de lavagem de dinheiro em alinhamento à teoria da cegueira deliberada.
O dolo eventual é caracterizado quando o sujeito não quer diretamente atingir aquele resultado danoso, mas segue na produção do ato mesmo estando consciente da provável realização dele. O resultado pode ou não ocorrer, não sendo algo próprio da situação constituída. O art. 18, I do Código Penal brasileiro resguarda o preceito de se aceitar o risco, na forma do dolo eventual, ao desejo do agente e não somente a sua consciência. Como bem afirma Carvalho (2011), no dolo eventual o indivíduo aceita a possibilidade de acontecer o resultado ilegal, sendo ele não querido, mas mentalmente idealizado.
Nesse tipo de dolo, a expectativa e as chances de acontecer o ato ilícito não são suficientes para que essa definição ocorra. É preciso que haja o elemento volitivo do caso que é a combinação de vontade aliada a consciência do indivíduo. Os tipos penais reconhecem o dolo direto e o dolo eventual, não havendo especificação dos crimes que aceitem este último, mas há alguns crimes que tornam inviável essa espécie.
A Lei da Lavagem de Capitais, após a atualização de 2012, deixou de fazer uso da expressão que vedava a admissão do dolo eventual, qual seja ela o trecho “sabe serem” contido no art. 1º, § 2º. A doutrina brasileira diverge entre haver ou não essa possibilidade de aplicação ao crime em estudo. Renato Brasileiro (2015, p.322) esclarece acerca dos artigos da lei especial:
“[…] na medida em que o caput do art 1º, bem como os tipos penais do §1º e do § 2º, inciso I da Lei nº 9.613/98, não fazem uso de expressões equivalentes, inexistindo referência à qualquer circunstância típica referida especialmente ao dolo ou tendência interna específica, conclui-se que é perfeitamente possível a imputação do delito de lavagem tanto a título de dolo direto, quanto a título de dolo eventual”.
Já que o delito de lavagem de capitais tem como base um crime anterior, fica entendido que no caso do indivíduo não tiver noção da procedência ilegal do dinheiro, não será este criminalizado. Dado essa possibilidade, é certo que quando uma determinada pessoa vem a fazer parte de uma transação comercial, por exemplo, busque por bem saber a origem do capital envolvido, afim de evitar ser penalmente responsabilizada por algo que não deu início. É nesse pensamento que reside a necessidade do estudo e aplicação da dita teoria da cegueira deliberada.
A teoria da cegueira deliberada, muito conhecida como a Teoria do Avestruz, ou Willful Blindness, é costumeira no common law, principalmente nos Estados Unidos. A teoria é usada quando o sujeito, que é agente econômico – como por exemplo um vendedor de automóveis que tem a obrigação de investigar o caráter daquele ativo financeiro – decide por se omitir, fingindo desconhecimento ou desconfiança, contribuindo para a ocultação de bens ilegais e respondendo também por lavagem de capitais.
Para entender mais, Monteiro (2009) explica que ao se comparar essa teoria com o avestruz, o que se quer relacionar é o ato do animal enterrar sua cabeça com a intenção de não ser perturbado com “más notícias”, de modo a evitar conhecer fatos ruins. Isso acontece da mesma forma com o indivíduo que evita tomar conhecimento do que lhe cabe, mesmo tendo suspeitas do ato ilícito. Esse mesmo indivíduo ignora o fato de estar ele cometendo também uma ilegalidade, “enterrando” a cabeça para se abster do acontecido.
Há divergências sobre a origem exata da teoria. Ira P. Robbin, citada por Gabriel C. Soares, relata que a willfull blindness foi utilizada pela primeira vez na Inglaterra em 1861, no caso denominado Regina v. Sleep, disseminando desde então pelos tribunais do país:
“Sleep era um ferrageiro, que embarcou em um navio contêineres com parafusos de cobre, dos quais continham a marca de propriedade do Estado inglês. O acusado foi considerado culpado pelo júri por desvio de bens públicos – infração esta que requeria conhecimento por parte do sujeito ativo. Ante a arguição da defesa do réu, de que não sabia que os bens pertenciam ao Estado, Sleep foi absolvido pelo juiz, sob a justificação de que não restou provado que o réu tinha deveras conhecimento da origem dos bens, bem como não houve prova de que Sleep se abstivera de obter tal conhecimento. Tal julgamento levou a parecer que, caso restasse provado que o acusado tivesse se abstido de obter algum conhecimento da origem de tais bens, a pena cabível poderia equiparar-se àquela aplicada aos casos de conhecimento”.
Após muito tempo do primeiro julgamento, é que se formulou concretamente uma doutrina a respeito, dando corpo a teoria que hoje conhecemos. Desde então, cada julgamento foi servindo de base para consolidar essa tese, alcançando outros países, como os Estados Unidos, que muito utiliza em sua jurisprudência.
Abramowitz & Bohrer (2007) ressaltam que a teoria admite que haja uma condenação nas situações em que o Estado falha na produção de provas do real conhecimento do réu sobre uma circunstância duvidosa. Tal teoria reitera que mesmo que o acusado não tenha conhecimento dos fatos, essa falta de ciência deve-se a prática de atos afirmativos de sua parte para evitar a descoberta de uma situação suspeita.
Pouco a pouco a teoria da cegueira deliberada começou a ser utilizada nos julgamentos e no sistema jurídico civil law. Mas, o que se observa é que as leis penais desses sistemas não trazem em seus bojos expressamente o conceito do que é dolo, diferente do Código Penal Brasileiro. Essa falta de conceituação é consequentemente complementada pela jurisprudência e pela doutrina, facilitando a aplicação de tal teoria.
O Supremo Tribunal Espanhol (STE) tem um número relevante de casos onde utilizou a teoria do avestruz, não como um exemplo de aplicabilidade do dolo eventual, mas sim como uma ampliação ou complementação do mesmo. O Juiz Sérgio Moro (2015) cita, em sua sentença sobre a investigação Lava Jato, um trecho da decisão do STE na STS 33/2005 sobre a cegueira deliberada associada ao dolo eventual:
“A prova do conhecimento do crime de referência é um fato subjetivo, o que torna o fato de que, dada sua estrutura interna, só poderia verificar, exceto uma confissão improvável, por evidências indiretas e, nesse sentido, a jurisprudência constante de Esta Câmara estimou que esse conhecimento pode ser alcançado sempre que uma conexão ou proximidade entre o autor e o que poderia ser descrito como “o mundo das drogas” é credenciada. “Essa doutrina é originária do STS 755/97 de 23 de maio e é reiterada nas de 356/98 de 15 de abril, 1637/99 de 10 de janeiro de 2000, 1842/99 de 28 de dezembro, 774/2001 de maio, 18 de dezembro de 2001, 1293/2001 de 28 de julho, 157/2003 de 5 de fevereiro, 198/2003 de 10 de fevereiro, 1070/2003 de 22 de julho, 1504/2003 de 25 de fevereiro, 1595/2003 de 29 de novembro, entre outros, especificando no citada jurisprudência, que uma intenção direta não é necessária, basta o eventual ou mesmo como referido no julgamento de instância, é necessário colocar-se na posição de ignorância deliberada. Em outras palavras, quem pode e deve conhecer a natureza do ato ou a colaboração que é solicitada, e permanece em uma situação de não querer saber, mas, no entanto, presta sua colaboração, é creditado nas consequências criminais decorrentes de seu ato ilegal. É o princípio da ignorância deliberada a que a jurisprudência deste Tribunal se referiu, entre outros no STS 1637/99 de 10 de janeiro de 2000, 946/2002, de 16 de maio de 236/2003, de 17 de fevereiro de 420/2003 de 20 de março de 628/2003, de 30 de abril ou 785/2003, de 29 de maio”.
5.1. A Teoria da Cegueira Deliberada no Brasil
A questão da cegueira deliberada começou no Brasil há pouco tempo, onde um crime bastante polêmico tornou a teoria mais visível no campo jurídico: o furto ao Banco Central de Fortaleza – CE. Em agosto de 2005, após três meses de escavação, o furto ao BC de Fortaleza rendeu R$ 164.000.000,00 (cento e sessenta e quatro milhões de reais) a uma quadrilha, o colocando como o maior delito desse tipo na história do país.
Inicialmente, um dos integrantes da quadrilha foi identificado através de digitais encontradas pela Polícia Federal, o que cooperou para a identificação dos demais participantes. Dias depois, um dos membros, José Charles Morais, se dirigiu a uma concessionária na qual adquiriu 11 automóveis no valor de R$ 950.000,00 (novecentos e cinquenta mil reais), com pagamento à vista com o dinheiro furtado.
Além do pagamento pela compra, foi entregue aos empresários R$ 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil reais) com a justificativa de ser para compras futuras. José Charles foi preso pouco tempo depois ao tentar transportar os carros, contendo parte do dinheiro dentro deles. José Charles confessou o crime e entregou os demais, dando indícios de seus paradeiros.
O juiz do caso julgou culpados os sócios da concessionária, uma vez que venderam uma elevada quantia sem averiguar a origem do montante, ignorando esse feito inusitado. Foram sentenciados à prisão com base legal na Lei de Lavagem de Capitais, art. 1º, § 2º, inciso I, cujo texto legal exprime: “§ 2º Incorre, ainda, na mesma pena quem: I – utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores provenientes de infração penal”. Os empresários foram condenados a 3 anos de reclusão em regime aberto, usando a teria da cegueira deliberada como base para a caracterização do dolo eventual do caso.
O juiz de 1º grau do caso, Danilo Fontenelle, ao condenar os acusados, explicou sua decisão:
“Atitude da espécie caracteriza indiferença quanto ao resultado do próprio agir. Desde que presentes os requisitos exigidos pela doutrina da “ignorância deliberada”, ou seja, a prova de que o agente tinha conhecimento da elevada probabilidade da natureza e origem criminosas dos bens, direitos e valores envolvidos e, quiçá, de que ele escolheu permanecer alheio ao conhecimento pleno desses fatos, não se vislumbra objeção jurídica ou moral para reputá-lo responsável pelo resultado delitivo e, portanto, para condená-lo por lavagem de dinheiro, dada a reprovabilidade de sua conduta. Portanto, muito embora não haja previsão legal expressa para o dolo eventual no crime do art. 1.º, caput, da Lei 9.613/1998 (como não há em geral para qualquer outro crime no modelo brasileiro), há a possibilidade de admiti-lo diante da previsão geral do art. 18, I, do CP e de sua pertinência e relevância para a eficácia da lei de lavagem”.
Ao recorrerem, os sócios da concessionária foram absolvidos pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região, sob o pretexto de que não é possível a condenação por dolo eventual no crime de lavagem de capitais, ou seja, a responsabilidade penal objetiva, além da falta de provas que mostrassem a má-fé dos sócios em relação a origem do dinheiro da compra. Para que fossem condenados, deveria ter existido o dolo direto, o que não foi caracterizado na conduta.
Na apelação criminal, o TRF da 5ª Região (2008, p. 07), firmou o seguinte posicionamento:
“PENAL E PROCESSUAL PENAL. FURTO QUALIFICADO À CAIXA-FORTE DO BANCO CENTRAL EM FORTALEZA. IMPUTAÇÃO DE CRIMES CONEXOS DE FORMAÇÃO DE QUADRILHA, FALSA IDENTIDADE, USO DE DOCUMENTO FALSO, LAVAGEM DE DINHEIRO E DE POSSE DE ARMA DE USO PROIBIDO OU RESTRITO (…) – No caso dos autos, o grupo que executou os fatos configura uma verdadeira organização criminosa, tendo empreendido esforços, recursos financeiros de monta, inteligências, habilidades e organização de qualidade superior, em uma empreitada criminosa altamente ousada e arriscada. O grupo dispunha de uma bem definida hierarquização com nítida separação de funções, apurado senso de organização, sofisticação nos procedimentos operacionais e nos instrumentos utilizados, acesso a fontes privilegiadas de informações com ligações atuais ou pretéritas ao aparelho do Estado (pelo menos a empregados ou ex-empregados terceirizados) e um bem definido esquema para posterior branqueamento dos capitais obtidos com a empreitada criminosa antecedente. Reunião de todas as qualificações necessárias à configuração de uma organização criminosa, ainda que incipiente. 2.4-Imputação do crime de lavagem em face da venda, por loja estabelecida em Fortaleza, de 11 veículos, mediante o pagamento em espécie: a transposição da doutrina americana da cegueira deliberada (willful blindness), nos moldes da sentença recorrida, beira, efetivamente, a responsabilidade penal objetiva; não há elementos concretos na sentença recorrida que demonstrem que esses acusados tinham ciência de que os valores por ele recebidos eram de origem ilícita, vinculada ou não a um dos delitos descritos na Lei n.º 9.613/98. O inciso II do PARÁGRAFO 2.º do art. 1.º dessa lei exige a ciência expressa e não, apenas, o dolo eventual. Ausência de indicação ou sequer referência a qualquer atividade enquadrável no inciso IIdo PARAGRAFO 2º. – Não há elementos suficientes, em face do tipo de negociação usualmente realizada com veículos usados, a indicar que houvesse dolo eventual quanto à conduta do art. 1.º, PARÁGRAFO 1º, inciso II, da mesma lei; na verdade, talvez, pudesse ser atribuída aos empresários a falta de maior diligência na negociação (culpa grave), mas não, dolo, pois usualmente os negócios nessa área são realizados de modo informal e com base em confiança construída nos contatos entre as partes”.
O relator Rogério Fialho (op cit, p. 92), em sua decisão, ainda menciona que os crimes que têm sua previsão na Lei de Lavagem de Capitais somente são puníveis se vierem a ser praticados com o dolo, onde os autores devem saber da ilegalidade da conduta antes de praticá-la. Para ele era preciso que os indivíduos tivessem ciência de antemão sobre a ilicitude do dinheiro. Já sobre o dinheiro dado posteriormente aos sócios, o relator afirma: “O recebimento antecipado de numerário (mais de duzentos mil reais), para escolha posterior dos veículos é intrigante, mas, a meu sentir, não autoriza presumir que, por essa circunstância, devessem os empresários saber que se tratava de reciclagem de dinheiro”.
Visto o caso emblemático que foi o furto ao BC de Fortaleza, os juristas brasileiros voltaram seus olhares para um fundamento que, embora não tenha sido aceito, deixaram dúvidas quanto à existência e punibilidade de dolo eventual no delito de lavagem de dinheiro. A partir daí os doutrinadores iniciaram uma busca maior por esclarecimentos acerca desse novo sentido da Lei nº 9.613/98.
Entrando na esfera doutrinária, Nakamura (2009) adverte que é de extrema importância verificar se é possível a aplicabilidade ou não do dolo eventual nos crimes de lavagem de dinheiro, tendo-se em vista que, por se tratar de crime autônomo ao seu antecedente, o agente que opera a lavagem pode não ter relação com o delito do qual originou o ativo. Mas, a dúvida crucial é de que maneira pode se saber ao certo que o agente tem ciência da ilegalidade daquela transação.
Os doutrinadores brasileiros estão em lados opostos no que se refere a aceitação do dolo eventual nesse crime. O autor Pitombo, ao examinar essa problemática, comenta:
“Entende-se que o dolo, no delito de lavagem de dinheiro, ostenta-se dolo direto, não obstante tenha sido retirado do anteprojeto da lei a expressão “sabendo serem oriundos”, a fim de, pretensamente, abrigar o dolo eventual. Parte dos autores, ao examinar o art. 1°, caput e § 1°, da Lei 9.613/1998, afirma a possibilidade de o agente assumir o risco de produzir o resultado (art. 18, I, in fine, CP). Entretanto, a intencionalidade de ocultar ou dissimular não dá abrigo à assunção de risco; ao contrário, exige ação com conhecimento prévio do crime-base, conduzida a partir da decisão de alcançar o resultado típico”.
Em contrapartida, Oliveira (2004, p.328) diz que é possível a aplicação do dolo eventual na lavagem, mas somente quando o indivíduo se encontra em uma circunstância que lhe caiba evitar o resultado ou se o ato é motivacional no processo do delito da lavagem de dinheiro. Na mesma linha de pensamento, ensinam também Renato Brasileiro, Moro e Rodolfo Tigre Maia.
6. Punibilidade do Crime de Lavagem de Dinheiro Frente a Teoria da Cegueira Deliberada no Brasil
Após o julgamento do furto do BACEN de Fortaleza-CE, a teoria somente veio a ser utilizada notoriamente por tribunais em 2005, com o memorável caso do Mensalão, mas não obteve tanto sucesso assim. Como fruto dessa ação, posteriormente, a Operação Lava Jato é que foi a precursora da inserção do estudo da referida teoria junto a lavagem no mundo jurídico e acadêmico. A partir da observação desses dois casos populares, pôde-se determinar a sistemática do judiciário em se justapor o fundamento do dolo eventual no delito de lavagem de dinheiro após a reforma da lei especial em 2012.
6.1 Mensalão
A Ação Penal 470, popularmente conhecida como Mensalão foi uma investigação que envolvia os crimes de corrupção e lavagem de dinheiro instaurada pela Polícia Federal no ano de 2005, envolvendo a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT), com participação de funcionários, políticos e empresas que financiavam o esquema para proveito próprio em forma de contratos altamente rentáveis.
O Mensalão se resumia no esquema de compra de votos de parlamentares que recebiam uma espécie de mesada para votarem de determinada forma. Roberto Jefferson, que na época era deputado federal, foi quem denunciou o conluio em uma entrevista a um jornal, por estar sendo pressionado diante de investigações sobre outros delitos cometidos por eles. Mas, os fatos surgiam separadamente muito antes disso, pela mídia.
Após investigações, em 2007 a Procuradoria-Geral da República levou a julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) várias pessoas cujos nomes surgiram no decorrer da inquirição. Dentre os crimes cometidos pelos envolvidos, estão: lavagem de dinheiro, formação de quadrilha, gestão fraudulenta e corrupção ativa. Após o julgamento, Roberto Jefferson teve seu mandato cassado, assim como outros tiveram no decorrer do processo.
Durante as investigações, vários outros esquemas foram descobertos envolvendo partidos políticos que estavam ligados diretamente ao mensalão. Ficou claro que o dinheiro utilizado para bancar o apoio parlamentar tinha origem desconhecida, tendo sido demonstrado, mais tarde, que se tratava de capital desviado dos cofres públicos e lavados através de empresas coordenadas pelo publicitário Marcos Valério. Essas empresas eram constantemente utilizadas por partidos para lavar dinheiro.
Muitos dos envolvidos deram declarações afirmando não saberem e nem ao menos suspeitarem de onde se originou tanto dinheiro usado no esquema. Visto isso, o Tribunal começou a enxergar a possibilidade dos réus terem praticado o crime por dolo eventual, além de se utilizarem de ignorância proposital, ou seja, de indiferença em relação a saber sobre os fatos reais.
O ministro do STF, Celso de Mello, reconheceu a possibilidade de utilização do dolo eventual do crime de lavagem de dinheiro no julgamento da AP 470, usando a teoria da cegueira deliberada:
“Ato contínuo, o decano da Corte, Min. Celso de Mello admitiu a possibilidade de configuração do crime de lavagem de valores mediante dolo eventual, com apoio na teoria da cegueira deliberada, em que o agente fingiria não perceber determinada situação de ilicitude para, a partir daí, alcançar a vantagem pretendida”.
A orientação do STF nesse julgamento mostra a aceitação expressa do dolo eventual na lavagem de capitais, o que ajuda na compreensão da novel modificação feita em 2012 pela Lei 12.683, já que o tribunal emitiu o informativo na mesma época. O Ministro Gilmar Mendes, no referido processo, segundo o documento já citado:
“Observou não ser necessário conhecimento exato sobre a procedência criminosa dos bens, capitais ou valores. Entendeu imperioso verificar, em concreto, o grau de conhecimento da procedência dos bens, sendo certo que não se poderia situar no campo da mera desconfiança, negligência ou falta de cautela. […] Reafirmou que o elemento subjetivo do tipo, dolo, poderia ser avaliado a partir das condições factuais objetivas e não haveria como acolher a tese da ignorância, salvo se fosse admitida como deliberada. Consignou que as transferências de recursos não encontrariam legitimidade ética e legal e que os mecanismos utilizados pelos réus, com artifícios para ocultar a origem e a destinação desses repasses denotariam a concretude da imputação”.
É certo que a decisão do STF dá lugar a teoria no ordenamento jurídico pátrio, já sendo motivo de estudo em muitas obras doutrinárias significativas no país, o que não indica a sua utilização obrigatória em outros julgamentos. O entendimento da Suprema Corte é uma orientação sobre a culpabilidade daqueles que ignoram deliberadamente a suspeita da ilicitude dos bens, direitos ou valores.
O desdobramento do caso do mensalão revelou um esquema ainda maior e que ainda está em andamento, a chamada Operação Lava Jato. Esse conjunto de investigações está sendo a protagonista da trajetória da teoria da cegueira deliberada no Brasil. A Justiça Federal vem aplicando a teoria para estabelecer uma relação penal entre os acusados e as transações ilícitas, o que faz com que ela venha ganhando força por conta da repercussão mundial da ação.
6.2 Lava Jato
É cada vez mais comum o uso da teoria da cegueira deliberada em decisões de tribunais brasileiros, principalmente agora com o caso da chamada Operação Lava Jato. Essa operação é composta por várias investigações sobre corrupção organizada, e por isso não comporta apenas uma ação penal, mas várias. O caso teve início em 2014 com o desvio de dinheiro da Petrobras, descoberto com o aprisionamento de Alberto Youssef. As investigações seguem sob a responsabilidade da polícia federal.
A operação recebeu esse nome devido ao fato de um grupo criminoso utilizar postos de combustíveis e de lava jato para mascarar a origem ilícita de ativos. O foco inicial da investigação era a atuação de algumas quadrilhas chefiadas por doleiros. Mas, no decurso da inquirição foi inesperadamente descoberto o maior esquema de desvio de dinheiro do Brasil, envolvendo várias empresas e agentes públicos da Petrobras.
A estratégia era baseada em simulação de processos licitatórios para mascarar a aliança entre empreiteiras e a estatal, fraudando a competição entre as empresas. Toda essa artimanha era de conhecimento de inúmeros funcionários públicos que colaboravam para o andamento dos negócios ilícitos. Segundo o Ministério Público Federal (MPF), o conluio contava com ajuda de operadores financeiros que lavavam o dinheiro e intermediavam o pagamento da propina, que seguia as seguintes etapas:
“Em um primeiro momento, o dinheiro ia das empreiteiras até o operador financeiro. Isso acontecia em espécie, por movimentação no exterior e por meio de contratos simulados com empresas de fachada. Num segundo momento, o dinheiro ia do operador financeiro até o beneficiário em espécie, por transferência no exterior ou mediante pagamento de bens”.
Além dos envolvidos já citados, foi descoberto a participação de vários partidos e agentes políticos que tinham alguma ligação com a administração da estatal, formando uma “associação criminosa”. A Lava Jato, em julho desse ano, contava com mais de 116 condenações e 279 envolvidos. Algumas das condenações por lavagem de dinheiro utilizaram como suporte a teoria da cegueira deliberada.
Um dos juízes responsáveis pela operação em Curitiba, Sérgio Fernando Moro, empregou a willful blindness nos julgamentos em que fora presidente. João Santana, marqueteiro das campanhas dos ex-presidentes Lula e Dilma Roussef, e sua esposa Mônica Moura, foram condenados a 8 anos e 4 meses de reclusão por dolo eventual em lavagem de capitais.
No processo, foi comprovado que parte da propina recebida por um partido político foi direcionado para os réus, para a publicidade da campanha, onde os mesmos usaram mecanismos para ocultação dos ativos, por meio de contratos fictícios e transferências para contas no exterior. Porém, segundo eles, a origem do dinheiro era desconhecida e nunca suspeitavam ser proveniente de crimes. A sentença do caso afirma o seguinte:
“363. Então os fatos narrados na denúncia contra ambos configuram, objetivamente, crimes de lavagem e não de corrupção, imputação da qual devem ser absolvidos por falta de adequação típica.
João Santana e Mônica Moura foram soltos em agosto de 2016, após contribuir com a justiça, além de pagamento de fianças milionárias. Ivan Vernon, outro réu da Lava Jato, teve sua sentença baseada no dolo eventual da teoria da cegueira deliberada. No mesmo sentido, o Ministério Público Federal denunciou vários outros envolvidos servindo-se dos mesmos argumentos. É provável que até o termino da operação outros réus sejam condenados na mesma determinação.
Muitas das bases doutrinárias dos julgamentos da Lava Jato estão relacionadas a aceitação da teoria da cegueira deliberada, como explica Renato Silveira (2016):
“Esse pensamento parece bastante oportuno ao se imaginar que boa parte das decisões condenatórias dos julgamentos derivados da Operação Lava Jato (em especial no que diz respeito a imputações de lavagem de dinheiro), baseiam-se em leituras permissivas da utilização do instituto da cegueira deliberada (willful blindness) em sede penal brasileira, como substituto ou complemento da noção de dolo eventual”.
A Lava Jato mostra os esforços que o judiciário está a fazer para tapar uma brecha, que mesmo tendo um fundamento legal, é pouco posta nas cortes. Por ser um assunto político e jurídico muito debatido atualmente, os autores se veem na necessidade de somar as suas obras uma explanação sobre o tema da cegueira deliberada e como este está sendo posto atualmente no país.
Considerações Finais
É notório que a cegueira deliberada torna mais extensa a aplicação do dolo e, por ter esse poderio, esta não pode ser aplicada sem parâmetros preestabelecidos pelo legislador e pela classe judiciária. A má aplicação da teoria pode acarretar em desrespeitos a vários princípios constitucionais. O que se vê é o processo de maturação dessa aplicação, que antes começou com o Mensalão, sem nenhuma condenação a respeito, e vem sendo prestigiada na Lava Jato, que mesmo estando em decurso, já se mostra com êxito com algumas condenações já baseadas nela. Do mesmo modo, outros julgamentos que não tiveram tanta visibilidade também utilizaram do mesmo plano.
Diante de toda essa trajetória estudada, é evidente que o conjunto de normas penais brasileiro ainda não está totalmente apto para recepcionar a audaciosa teoria da cegueira deliberada, sobretudo a lei que tipifica o crime de lavagem de capitais. Mas, antecedendo a isso, a falta de preparo vem primeiro da sociedade e da cultura criminal, que apresenta acomodação em relação a condutas que estão indiretamente ligadas a crimes. Sobre isso, Heffernan (2011, p. 7, apud VALENTE, 2017) diz:
“[…] a autocolocação a uma situação de cegueira é mais comum do que se imagina, pois, frequentemente, os indivíduos ignoram o óbvio em seu cotidiano, sobretudo nas relações sociais, empresariais e entre advogado e cliente, com a finalidade de se isentarem de certos ônus da vida em coletividade”.
Sobre isso, voltamos ao que foi dito anteriormente no caso de pessoas que permanecem inertes e ignoram as suspeitas de que tal fato e ato possa vir de uma atividade delituosa, ou mesmo aqueles que tem a obrigação de informar a órgãos de fiscalização atividades de caráteres duvidosos, mas que optam por auferir vantagens diante da situação.
Mesmo muitas mudanças terem sido feitas na Lei de Lavagem de Dinheiro no ano de 2012, percebe-se uma falta de segurança na interpretação de tribunais em seus julgamentos, o que mostra a necessidade de se haver mais clareza por parte do legislador na elaboração de textos que tratam de temas tão complexos e que podem gerar mudanças importantes na tipificação de crimes.
Permitir que o dolo eventual venha a ser aceito na lavagem de capitais tende a ser uma decisão parcialmente apropriada, visto que ao mesmo tempo em que combateria este delito de todas as formas, sejam elas diretas ou indiretas, geraria um efeito negativo que é a atribulação aos que fazem parte do campo financeiro e mercantil. Nas transações comerciais não é incomum a ocorrência de algum acordo que envolva valores de origem duvidosa, que até então tenham esse caráter ocultado dos envolvidos, seja do contratante ou contratado.
É certo que mais processos nesse sentido venham a surgir. Mas, é necessário que aconteça mais discussões sobre essa temática no campo jurídico, principalmente por se tratar de um tipo criminal novo, que gera a necessidade de discussão a respeito. Também é certo que um estudo mais aprofundado seja feito sobre o dolo eventual em questão, para que se estabeleça um conceito mais concreto, evitando o surgimento de mais dúvidas na sua aplicação jurisprudencial.
Referências
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Informações sobre a Autora:
Ana Sabrina Fontes Ibiapino – Graduada em Direito pelo Instituto de Educação Superior Raimundo Sá. Atualmente Procuradora do Município de Picos-PI.
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