Resumo: A internação compulsória de dependente químico é medida excepcional, somente admitida quando esgotados todos os recursos extra-hospitalares, além de exigir comando judicial, laudo médico circunstanciado com demonstração do risco de lesão ou morte do indivíduo ou de terceiros. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, qualitativa, que utilizou o método indutivo, pois partiu do uso de raciocínio com base em premissas para chegar a concepção geral sobre a problemática. O presente estudo representa uma abordagem acerca desta medida coercitiva, suscitando controvérsias acerca do conflito existente entre direitos fundamentais e a limitação da autonomia do indivíduo, para, ao final, averiguar o grau de eficácia. Para o alcance o desiderato utilizando-se desta medida verdadeiramente restritiva de direitos, levou-se em consideração as possibilidades de intervenção, os requisitos legais condicionantes, a capacidade técnica e operacional para determinação de medidas voltadas ao tratamento de saúde mental. Neste cenário, e com o percurso ora proposto, analisou-se a capacidade operacional e deliberativa por parte do Poder Judiciário, considerando a natureza eminentemente técnica do tratamento, e da influência da abordagem jurídica em meio a este contexto. Ao realizar a pesquisa levou-se em consideração aspectos jurídicos para analisar a decisão sobre a possibilidade ou não de aplicação da medida, houve reflexão com base nos posicionamentos teóricos e jurisprudenciais acerca de sua aplicação. Tais aspectos faz com que se torne necessário, antes de tomar a decisão de tratar-se de medida judicial válida, aferir se há aptidão para ser de fato eficaz. Por fim, constatou-se haver divergência de posicionamentos sobre a judicialização e seu alcance na tutela que envolve a internação compulsória, principalmente sobre a interpretação, atendimento aos requisitos legais e aplicação aos casos concretos pelos magistrados. [1]
Palavras-chave: Internação. Dependência química. Eficácia. Judicialização.
Abstract: The compulsory hospitalization of a chemical dependent patient is an exceptional measure, only admitted when all extrahospital resources are exhausted, besides requiring judicial order, detailed medical report demonstrating the risk of injury or death of the individual or of third parties. It is a bibliographical research, qualitative, that used the inductive method, since it started from the use of reasoning based on premises to arrive at the general conception about the problem. The present study represents an approach to this coercive measure, raising controversies about the conflict between fundamental rights and the limitation of the individual's autonomy, in order to ascertain the degree of effectiveness. In order to reach the goal, using this truly restrictive measure, the possibilities of intervention, the legal conditioning requirements, the technical and operational capacity to determine measures aimed at the treatment of mental health were taken into account. In this scenario, the operational and deliberative capacity of the Judiciary was analyzed, considering the eminently technical nature of the treatment, and the influence of the legal approach in this context. In carrying out the research, legal aspects were considered in order to analyze the decision on whether or not to apply the measure. There was reflection based on the theoretical and jurisprudential positions on its application. These aspects make it necessary, before taking the decision to be a valid legal measure, to determine whether there is an ability to be effective. Finally, there was a divergence of positions on the judicialization and its scope in the tutelage that involves the compulsory hospitalization, mainly on the interpretation, compliance with the legal requirements and application to the concrete cases by the magistrates.
Key words: Internment. Chemical dependency. Efficiency. Judiciary
INTRODUÇÃO
Inicialmente, convém ilustrar sobre os direitos fundamentais do indivíduo, consagrados pela Constituição Federal de 1988, para explicitar que a política de internações compulsórias, nos moldes que vem sendo solicitada, não só acarretam violações de direitos humanos, como são pouco eficazes para a maior parte dos casos.
Partindo dessa premissa, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88, art. 1°, III), traz em seu bojo, o princípio da dignidade da pessoa humana, como um dos elementos fundamentais da República, que permeia todo o ordenamento jurídico, reconhecido como estimulador do desenvolvimento social, seja no exercício das funções legislativa ou judiciária, visando assim à concretização dos demais direitos fundamentais, inerentes a pessoa humana. As relações humanas, também são guiadas por esse princípio, no tocante aos direitos individuais e sociais garantidos pela nossa Carta Magna.
O princípio da dignidade da pessoa humana deve ser entendido como fundamental para tutela da liberdade, da igualdade e da promoção da justiça. Ora, a dignidade é inerente a todas as pessoas pelo simples fato de existirem, independentemente da sua posição ou/e conduta social, cujo sua plenitude se dá com o gozo da vida. Esta importa a superação da intransigência, da dificuldade de aceitar o outro, da discriminação, da exclusão social em qualquer de suas formas, uma vez que, ocorrendo a sua violação, é plenamente visível.
Nesse contexto, a internação compulsória suscita uma série de controvérsias acerca do conflito existente entre direitos fundamentais, qual seja, limitar a autonomia do indivíduo e a livre locomoção, a qual exige avaliação e equilíbrio na resolução do conflito, uma vez que a aplicação de um não invalida o outro, porém, o afasta provisoriamente.
Desse modo, a relevância da presente pesquisa constitui um desenvolvimento, acrescentamento intelectual acerca do assunto ora analisado, haja vista os diversos posicionamentos teóricos e jurisprudenciais com base na aplicação do instituto da internação compulsória do dependente químico, dentre outras questões a serem levantadas no decorrer desta investigação.
Assim, o presente estudo foi dividido em cinco partes. No primeiro tópico, tem-se uma análise das políticas públicas sobre drogas voltadas ao tratamento do dependente químico, buscando examinar o desenvolvimento de políticas de redução de danos, voltadas à prevenção e reinserção social, com vistas a assegurar os direitos individuais do indivíduo; adiante, no segundo item, discorre-se sobre a internação voluntária, involuntária e compulsória à luz da Lei Federal nº 10.216/2001: nas suas hipóteses e pressupostos; no terceiro capítulo, tem-se uma análise da atuação do Poder Judiciário como instrumento complementar ao atendimento do dependente químico, em que buscou-se pesquisar alguns julgados concernentes ao pedido de internação compulsória de usuários; enquanto que no tópico seguinte, analisou-se sobre o tema reserva do possível como cláusula protetiva do Estado frente à Judicialização dos direitos sociais e por fim, uma abordagem sobre a (in)eficácia da internação jurisdicional no tratamento do dependente químico.
1 POLÍTICAS PÚBLICAS SOBRE DROGAS VOLTADAS AO TRATAMENTO DO DEPENDENTE QUÍMICO
Adiante, buscou-se demonstrar que as medidas opressivas, autoritárias, perpetradas pelo Estado são ineficientes, incapazes de resolver o problema da dependência química, de modo que faz-se necessário o desenvolvimento de políticas de redução de danos, voltadas à prevenção e reinserção social, com objetivo de assegurar os direitos individuais do usuário.
A Lei Federal nº 11.343/06 instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad, a qual prescreveu medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabeleceu normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas e definiu crimes, considerando drogas “as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União”, nos termos do seu art. 1º, parágrafo único. (BRASIL, 2006)
Quando a norma supracitada trata dos princípios e dos objetivos do sistema nacional de políticas públicas sobre drogas, no seu art. 4º, estabeleceu os princípios do SISNAD, sendo conveniente destacar: o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, especialmente quanto à sua autonomia e à sua liberdade; a promoção dos valores éticos, culturais e de cidadania do povo brasileiro, reconhecendo-os como fatores de proteção para o uso indevido de drogas e outros comportamentos correlacionados; a promoção da responsabilidade compartilhada entre Estado e sociedade, reconhecendo a importância da participação social nas atividades do Sisnad; a adoção de abordagem multidisciplinar que reconheça a interdependência e a natureza complementar das atividades de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas, repressão da produção não autorizada e do tráfico ilícito de drogas; observância do equilíbrio entre as atividades de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas e de repressão à sua produção não autorizada e ao seu tráfico ilícito, visando a garantir a estabilidade e o bem-estar social.
Portanto, fica perceptível alguns pontos fundamentais, como o respeitos aos direitos individuais, a responsabilidade entre todos os setores sociais em comunhão com o Estado, reconhecendo a importância da participação social no combate às drogas, a necessidade de uma abordagem multidisciplinar no reconhecimento da interdependência das atividades de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas, visando a garantir a estabilidade e o bem-estar social destes indivíduos em situação de vulnerabilidade.
O Conselho Nacional Antidrogas, CONAD, por meio da Resolução nº 03/2005, estabeleceu a Política Nacional sobre Drogas, disciplinando pressupostos, objetivos, tratamento, recuperação e reinserção social.
Dentre os pressupostos, convém destacar alguns atinentes ao presente estudo, tais como reconhecer as diferenças entre o usuário, a pessoa em uso indevido, o dependente e o traficante de drogas, tratando-os de forma diferenciada.
Ressalta-se, que deve haver tratamento de forma igualitária, sem discriminação, das pessoas usuárias ou dependentes de drogas lícitas ou ilícitas, garantindo ao indivíduo o direito de receber tratamento adequado com problemas decorrentes do uso indevido de drogas.
A Política Nacional sobre drogas instituiu o princípio da responsabilidade compartilhada, com a coordenação de esforços entre os diversos segmentos do governo e da sociedade, em todos os níveis, com o intuito de obter a redução da oferta e do consumo de drogas, do custo social a elas relacionado e das consequências adversas do uso e do tráfico de substâncias ilícitas.
Inserida na referida política institucional, encontra-se a implantação, efetivação e melhoria dos programas, ações e atividades de prevenção, tratamento, recuperação e reinserção social, levando em consideração os indicadores de qualidade de vida, respeitando os direitos e garantias do indivíduo, e, ainda, com reserva orçamentária permanente para o Fundo Nacional Antidrogas – FUNAD, com vistas à implementação de ações com ênfase para aquelas relacionadas aos capítulos da PNAD: prevenção, tratamento e reinserção social, redução de danos, redução da oferta, estudos e pesquisas (BRASIL, 2005).
Dentre os objetivos da política sobre drogas inclui-se a conscientização da sociedade brasileira sobre os prejuízos sociais e as implicações negativas representadas pelo uso indevido de drogas e suas consequências, além de educar, informar, capacitar e formar pessoas em todos os segmentos sociais para a ação efetiva e eficaz de redução da demanda, da oferta e de danos, fundamentada em conhecimentos científicos validados e experiências bem-sucedidas, adequadas à nossa realidade.
Por fim, ao tratar do tema prevenção ao uso de drogas ilícitas, a Resolução nº 03/2005 evidencia a desconcentração obrigacional do Estado, devendo, para ter-se uma efetiva prevenção, comprometimento, cooperação e parceria entre os diferentes segmentos da sociedade civil organizada, com responsabilidade compartilhada.
Nesse contexto, convém citar alguns programas governamentais direcionados ao combate às drogas, com foco num público em situação de vulnerabilidade (ociosos, pobreza e outras características) com ataque do mal pela raiz, antes do alastramento da dependência.
Desenvolvido pela Secretaria Nacional de Esporte Educacional do Ministério do Esporte, o programa “Segundo Tempo”, objetivou a democratização do acesso à prática e à cultura do Esporte, promoveu o desenvolvimento integral de crianças, adolescentes e jovens, como fator de formação da cidadania e melhoria da qualidade de vida, prioritariamente em áreas de vulnerabilidade social (OLIVEIRA; PERIM, 2009).
Outro programa a ser mencionado é o “Novo Mais Educação”, criado pela Portaria do MEC nº 1.144/2016, disciplinado pela Resolução FNDE nº 5/2016, como instrumento do Ministério da Educação que objetivou melhorar a aprendizagem em língua portuguesa e matemática no ensino fundamental, por meio da ampliação da jornada escolar de crianças e adolescentes no ano de 2017, tem-se a implementação através da realização de acompanhamento pedagógico (língua portuguesa, matemática artes, cultura, esporte e lazer) o que melhorou o desempenho educacional por meio da complementação da carga horária em cinco ou quinze horas semanais, e consequentemente tem contribuído com a alfabetização, reduzido o abandono escolar e ampliação do período de permanência dos alunos na escola (BRASIL, 2017).
Ressalta-se, também, que a Política Nacional sobre Drogas prevê dentre seus objetivos a implantação e implementação de rede de assistência integrada, pública e privada, intersetorial, para pessoas com transtornos decorrentes do consumo de substâncias.
Diante de tais diretrizes, têm-se os Centros de Atenção Psicossocial, CAPS, importantes mecanismos que podem evitar a internação compulsória de indivíduos, principalmente, quando são devidamente implementados, tanto com recursos humanos quanto físicos e financeiros.
As unidades acima citadas têm perfil aberto e comunitário, sendo dotadas de equipes multiprofissionais e transdisciplinares, os quais realizam atendimento a usuários com transtornos mentais graves e persistentes, a pessoas com sofrimento e/ou transtornos mentais em geral, sem excluir aqueles decorrentes do uso de crack, álcool ou outras drogas.
Assim, a Portaria nº 3.088/11, com republicação em 21 de maio de 2013, que dispôs sobre os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e os organizou em modalidades, levando-se em consideração a área de cobertura e conjunto de serviços oferecidos.
Alguns destes centros são destinados para atendimento de pessoas com sofrimento psíquico, decorrente de transtornos mentais graves, incluindo os advindos de abuso de substâncias psicoativas, e ofertando acolhimento.
2 A INTERNAÇÃO VOLUNTÁRIA, INVOLUNTÁRIA E COMPULSÓRIA À LUZ DA LEI FEDERAL Nº 10.216/2001: HIPÓTESES E PRESSUPOSTOS
Atualmente, a internação compulsória está prevista na Lei Federal nº 10.216/ 2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental.
Faz-se necessário pontuar que na supracitada norma, art. 4º, estabelece que a internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares mostrarem-se insuficientes, de modo que o tratamento tenha como finalidade permanente, a reinserção social do paciente em seu meio.
O tratamento em regime de internação deverá oferecer assistência integral à pessoa portadora internada (serviços médicos, assistência social, psicológicos, lazer etc), sendo vedada a internação em instituições com características asilares, que não assegurem aos pacientes seus direitos individuais, enumeradas na própria norma.
A Lei Federal nº 10.216/2001, art. 6º, estabelece que a internação psiquiátrica somente será realizada, mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos, sendo que são considerados nas seguintes hipóteses: internação voluntária, aquela que tem o consentimento do usuário; internação involuntária, aquela que tem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; e a internação compulsória, aquela quando determinada pelo Poder Judiciário.
Portanto, a internação compulsória somente acontecerá por meio de determinação judicial, com base na legislação vigente, que levará em conta as condições de segurança do estabelecimento, quanto à salvaguarda do paciente, dos demais internados e funcionários.
Nessa linha de raciocínio, convém ressaltar que a internação compulsória de dependentes químicos é matéria relativamente nova, surgido nas últimas décadas, não havendo sequer regulamentação própria, utilizou-se, como fundamento legal, a já mencionada Lei nº 10.216/2001 (BRASIL, 2001).
A Reforma Psiquiátrica brasileira tornou-se necessária em face da expansão da rede hospitalar psiquiátrica privada ocorrida a partir de 1970, buscou promover novos conceitos, relacionados à cidadania, desinstitucionalização e a humanização das relações sociais pertinentes ao internado.
Em vez do afastamento do indivíduo do convívio social para fins de manutenção de ordem, buscou-se um tratamento humano fundado na dignidade e liberdade, tendo a internação caráter excepcional. Assim, a reforma psiquiátrica em questão propunha o fechamento de hospitais psiquiátricos, hospício, com uma redução gradativa de leitos, visando uma municipalização dos serviços (MONTEIRO, 2016).
A internação compulsória de dependentes químicos é tema que gera inúmeros debates. O debate em relação à internação compulsória gira em torno do risco hipotético que o dependente químico oferece a si e a coletividade em geral (família, vizinhos etc); a incapacidade do indivíduo de curar-se do vício sem a segregação; e, ainda, a eficácia da medida de segregação involuntária.
Em divergência aos fundamentos que permitem a medida segregatória de forma involuntária, Winter (2017) aponta quanto ao risco hipotético, a inexistência de legitimidade no argumento oferecido em favor, posto que a internação de um indivíduo em razão de um risco hipotético é embasamento frágil, inclusive rebatido pelo próprio Direito Penal. E, principalmente ao se considerar que a privação de liberdade contra a vontade do indivíduo, compreende encarceramento fundado na repressão e prevenção.
A suposta incapacidade do indivíduo em ver-se livre da dependência química sem ajuda de terceiros, como argumento que justificaria a necessidade de internação compulsória, e ainda mais diagnosticada pelo Poder Judiciário, flagrantemente não encontra consonância na atual política de segregação, construída a partir de uma luta antimanicomial promovida pela Reforma Psiquiátrica.
A iniciativa do Poder Judiciário, também não está em consonância com o que indicam as manifestações da Organização das Nações Unidas, por meio de Declaração Conjunta: Centros de Detenção Compulsória e Reabilitação de Usuários de Drogas, de março de 2012, que fez-se o apelo aos Estados para o fechamento dos centros de internação compulsória e reabilitação de usuários de drogas e pela implementação de serviços sociais e de saúde, de caráter voluntário, com enfoque na garantia dos direitos individuais:
“Todas as intervenções de cuidados em saúde, incluindo o tratamento da dependência de drogas, devem ser realizadas com respeito ao caráter voluntário, com consentimento informado, exceto em circunstâncias excepcionais claramente definidas em conformidade com o marco jurídico internacional de direitos humanos, que garante que tais disposições não estejam sujeitas a abusos. Respostas ao consumo de drogas e dos danos associados à saúde devem incluir prevenção e tratamento para o HIV/aids, outras DST e tuberculose, para aqueles que já fazem com base em evidência” (ONU, 2012, p. 03).
Portanto, fica evidenciada que a internação compulsória é medida extrema, excepcional, somente admitida quando esgotados todos os recursos extra-hospitalares, além de estar caracterizado o risco de lesão ou morte tanto do indivíduo quanto de terceiros.
Em respeito aos direitos e garantias fundamentais do indivíduo, dependente químico e objeto de internação compulsória – como medida excepcional que, visou limitar internações desnecessárias, tem-se, inicialmente, a condição primeira como sendo o esgotamento de todos os recursos extra-hospitalares ou que estes venham a revelar-se ineficientes, tal como a hipótese de indicação de tratamento ambulatorial por meio de avaliação médica, mas que não tem êxito em razão da resistência ou abandono por parte do paciente; ademais, exige-se que a internação seja medida última na tentativa de resguardar a integridade física do internado, de sua família ou terceiros.
Nesse sentido é o entendimento jurisprudencial majoritário:
“APELAÇÃO CÍVEL. AVALIAÇÃO E INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA. Caso em que é de rigor a internação compulsória. Tratamento ambulatorial indicado na avaliação médica realizada não teve êxito, já que o paciente não aderiu. Caso em que a apelação é provida para condenar solidariamente os entes estatais a fornecer o tratamento de saúde. DERAM PROVIMENTO AO APELO. (Apelação Cível Nº 70061054599, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 11/09/2014).
Exige-se, também, a própria norma, laudo médico circunstanciado que indique e fundamente a necessidade da internação (art. 6º, Lei nº 10.216/2001).
De acordo com MONTEIRO (2016), o laudo médico circunstanciado compreende aquele que traga minuciosamente a situação mental do paciente, seus exames já realizados, elaboração de diagnóstico, prognóstico e a conclusão sobre a necessidade de internação compulsória ou não.
Entretanto, ignorando por completo o conteúdo integrativo das políticas nacionais e internacionais de organismos especializados, há decisões judiciais admitindo a internação compulsória, ainda que não haja laudo médico minucioso, mas fundamentado em gravidade e circunstâncias do caso, conforme pode notar adiante:
“HABEAS CORPUS REPRESSIVO. INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA. INTERLOCUTÓRIO DE DEFERIMENTO. – AUSÊNCIA DE LAUDO CIRCUNSTANCIADO INICIAL. EXIGÊNCIA DO ART. 6º DA LEI 10.216/01. MITIGAÇÃO DIANTE DAS PARTICULARIDADES. PRECEDENTE. NÃO ACEITAÇÃO DA DOENÇA E TRATAMENTO PELA PACIENTE. QUADRO CONFLITUOSO COM O FILHO AUTOR. PROVA INICIAL BASTANTE A RECOMENDAR A MEDIDA. HISTÓRICO DE AGRESSIVIDADE E TENTATIVAS DE SUICÍDIO. INSUFICIÊNCIA APARENTE DE MEDIDAS EXTRA-HOSPITALARES. PRODUÇÃO DO LAUDO NO DECORRER DO PROCESSO. DECISÃO ACERTADA. AUSÊNCIA DE COAÇÃO ILEGAL. –
"Como regra a internação compulsória demanda a presença concomitante de dois requisitos básicos, previstos nos arts. 4º e 6º da Lei n. 10.216/2001, a saber, o demonstrativo de que as medidas extra-hospitalares se mostraram insuficientes para melhora do adoentado, e a presença de laudo médico circunstanciado que ateste os seus motivos. Sendo extenso o histórico de violência do paciente esquizofrênico, inclusive em relação aos seus familiares, a ponto de resultar em diversas internações temporárias, é de bom alvitre determinar a segregação compulsória, apesar da ausência de laudo médico pré-constituído, que poderá ser produzido imediatamente após a segregação do paciente. Recurso provido". (TJSC, Ai n. 2013.013985-1, de Palhoça, rel. Desª. MARIA DO ROCIO LUZ SANTA RITTA, j. em 21.5.2013). – Na espécie, conquanto não juntado à inicial laudo circunstanciado a que refere o art. 6º da Lei n. 10.216/01, possível a mitigação dessa exigência quando sua confecção é extremamente difícil em razão da animosidade entre as partes e da recusa da paciente em aceitar sua relevante doença mental e o tratamento médico necessário. – Nessa linha, acertada a postergação da apresentação e a decretação da internação liminar quando a prova inicial é robusta quanto à necessidade da medida para o resguardo da integridade de terceiros e da própria vida da paciente, não havendo visível solução extra-hospitalar adequada nesse primeiro momento, devendo a manutenção da medida, entretanto, balizar-se pelo laudo a ser realizado com urgência e periodicamente no decorrer da internação.” (TJ-SC – HC: 20130861556 SC 2013.086155-6 (Acórdão), Relator: Henry Petry Junior, Data de Julgamento: 15/01/2014, Quinta Câmara de Direito Civil Julgado).
Outro requisito da internação compulsória é que esta somente será autorizada por médico, devidamente registrado no Conselho Regional de Medicina – CRM do Estado, onde se localize o estabelecimento, nos termos do art. 8º, Lei nº 10.216/2001.
Ademais, o juiz deverá observar e considerar as condições de segurança do estabelecimento, quanto à segurança do paciente, dos demais internados e funcionários, nos termos da legislação vigente (art. 9, Lei nº 10.216/2001), requisito relacionado ao ambiente terapêutico e aos meios utilizados para tal (BRASIL, 2001).
Por fim, com objetivo crucial da reinserção social do paciente em seu meio, o tratamento deve ser estruturado de forma a oferecer assistência integral ao indivíduo, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros (art. 2º, VIII e IX, Lei nº 10.216/2001).
3 ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO COMO INSTRUMENTO COMPLEMENTAR AO ATENDIMENTO DO DEPENDENTE
O direito é dinâmico, está em constante evolução, modificando-se conforme muda a sociedade. Desse modo, o estudo da jurisprudência é de fundamental importância, posto que representa investigação, mesmo que em diversas vezes sem aspecto científico, mas na melhor das hipóteses com a utilização de fontes doutrinárias, a aplicação da ampla defesa e do contraditório, examinando a fundo as particularidades de cada situação concreta.
Nessa perspectiva, a norma não é a única fonte do direito, sua intervenção vem quando as circunstâncias o exigem e quando os costumes o impõe. O costume, a jurisprudência, a equidade são as verdadeiras fontes reais do direito, por isso a necessidade de reconhecer sua importância (PAGE, 1962 apud MIRANDA, 2015).
Portanto, é inegável a relevância da interpretação e aplicação que é dada pelo Judiciário para a efetividade da norma.
A jurisprudência não poderá originar um direito em contrariedade a um expresso significado da lei. Todavia, poderá atuar nos limites do próprio exercício jurisdicional, que compreende a efetivação da norma, valendo-se das regras da hermenêutica jurídica.
Nesse sentido, foram analisados alguns julgados concernentes ao pedido de internação compulsória de dependente químico.
Em ação individual de obrigação de fazer com pedido de antecipação dos efeitos da tutela, nº 0032035-59.2014.827.2729, 3ª Vara dos Feitos da Fazenda e Registros Públicos, Comarca de Palmas-TO, a genitora pleiteou a internação compulsória em face do seu filho, que integra a lide juntamente com o Município de Palmas e o Estado do Tocantins, todos requeridos.
Apesar de haver laudo médico com indicação da necessidade de internação compulsória, assinado por psiquiatra, o magistrado encaminhou os autos para realização de perícia médica por junta oficial do Tribunal de Justiça, que concluiu pela segregação para tratamento médico, posto que o drogadito era usuário de crack há oito anos, tinha comportamento violento e praticava delitos.
Porém, juntamente com estas constatações, foi averiguado que o dependente já havia sido internado, sem sucesso, por três vezes. É válido mencionar também, que não havia seguido no tratamento no CAPS, que restou infrutífero.
Com base na avaliação médica acima, o magistrado deferiu a medida de urgência para que fosse ofertada vaga em clínica especializada em tratamento de dependentes químicos, o que foi confirmado em sede de sentença, inclusive com parecer favorável do Ministério Público.
Na ação individual de obrigação de fazer com pedido de antecipação dos efeitos da tutela, nº 0015167-35.2016.827.2729, 3ª Vara dos Feitos da Fazenda e Registros Públicos, Comarca de Palmas-TO, a genitora também pleiteou a internação compulsória em face do seu filho, que integra a lide juntamente com o Município de Palmas e o Estado do Tocantins, todos requeridos.
Entretanto, neste caso, como não havia laudo médico atestando a necessidade de internação, o magistrado encaminhou os autos para realização de perícia médica por junta oficial do Tribunal de Justiça.
Além de outros requisitos, nesta demanda o magistrado também constatou que dependente havia sido internado em outras oportunidades, inclusive, objeto de outra ação judicial (autos nº 5010112-91.2011.827.2729), de cinco anos atrás. Por esta razão, contrária à outra demanda, o médico perito opinou pela não internação compulsória, indicou acompanhamento em CAPS AD. Acampado neste posicionamento pericial, o magistrado negou o pedido antecipatório de urgência, não vislumbrou a necessidade de internação do indivíduo dependente químico:
“É que a perícia médica apresentada no evento 42 mostrou-se desfavorável à medida de internação compulsória solicitada nos autos. A Lei nº 10.216/01 alterou, em muitos aspectos, a forma de o Estado tratar os portadores de enfermidades mentais e dependentes químicos, reformulando de maneira mais digna e eficaz o modelo assistencial em saúde mental, admitindo, ainda, a internação compulsória destes enfermos. Segundo a normativa legal, as formas de internação psiquiátrica somente são admitidas após o exaurimento dos demais recursos extra-hospitalares, e mediante a apresentação de laudo médico circunstanciado caracterizando de maneira expressa os seus motivos”. (TJTO, 2011)
No caso apresentado, insurgiu-se a parte Autora da demanda e interpôs agravo de instrumento, que foi improvido, tanto em decisão monocrática, quanto em sede de julgamento do mérito:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA. PERÍCIA MÉDICA REALIZADA PERANTE ESTE TRIBUNAL DESFAVORÁVEL A MEDIDA DE INTERNAÇÃO. LIMINAR INDEFERIDA. DECISÃO MANTIDA.
AGRAVO DESPROVIDO. 1. A internação compulsória deve ser evitada, quando possível, e somente adotada como última opção, em defesa do internado e, secundariamente, da própria sociedade. É claro, portanto, o seu caráter excepcional, exigindo-se, para sua imposição, laudo médico circunstanciado que comprove a necessidade de tal medida. 2. No caso dos autos, a perícia médica realizada perante este Tribunal, mostrou-se desfavorável à medida de internação, dispondo que “o periciando já se beneficiou da internação compulsória, haja vista que efetuou o tratamento em regime de internação e apresentou melhores. O seu quadro clínico atual é de anormalidade e embora se saiba que o índice de recaídas é alto nesses casos, existe a necessidade de se analisar o momento. No momento atual o periciando está trabalhando e seria um contrassenso retirá-lo do trabalho para uma internação compulsória”. 3. Assim, incabível o deferimento da medida de internação, sendo necessário aguardar o desenvolvimento da marcha processual para verificar-se ao final se a medida de exceção Página 2 de 2 tornar-se-á necessária, de modo que por ora não se constata a plausibilidade das alegações. 4. Agravo de Instrumento conhecido e não provido.” (TJTO, 2011)
Diante o perscrutado até o momento, evidenciou-se a fragilidade dos argumentos produzidos pelo Poder Judiciário, dos quais ofereceu soluções diversas para casos que apresentaram as mesmas circunstâncias.
A dissonância de julgados é comum no cenário judicante, fruto da independência funcional do magistrado e de outras garantias institucionais. Ocorre que a liberdade de um indivíduo que não praticou crime punível com reclusão ou detenção não pode ser objeto de deliberações sujeitas à subjetividades ou outros critérios desvinculados de diagnósticos especializados na área de psiquiatria ou áreas afins, e deve ser garantida como fruto de proteção individual e humanizada.
4 DA RESERVA DO POSSÍVEL COMO CLÁUSULA PROTETIVA DO ESTADO
Um dos aspectos fundamentais dos direitos sociais tipificados no texto constitucional brasileiro é a sua efetividade. Além disso, o direito à saúde, como no presente caso, passa a ser considerado uma garantia de titularidade de qualquer ser humano no território nacional, merecedor da atuação concreta e eficiente do Poder Público, sobretudo do Poder Executivo.
Sob esta perspectiva, a Administração Pública deverá reservar significativa destinação de recursos financeiros a fim de satisfazer os interesses advindos dos mesmos direitos sociais.
Sabendo-se das incumbências estatais, já que o Estado assumiu deveres a partir do panorama constitucional de 1988, os orçamentos anuais construídos em consonância com a legislação aplicável alocam gastos financeiros com despesas relacionadas aos direitos sociais, dentre eles com a saúde.
Nesta situação, o ente estatal responsável pela respectiva despesa se responsabiliza para tal, porém o faz proporcionalmente ao que estiver previsto para arrecadação.
O planejamento orçamentário possibilita à Administração Pública a execução de suas despesas de forma responsável, já que os gastos necessários seriam proporcionais àquilo que o ente havia arrecadado previamente.
Quando uma despesa surge sem a respectiva previsão de receita, a Administração Pública terá que deslocar recursos que anteriormente estavam previstos para determinado gasto, para satisfazer esta nova demanda. Não se trata de uma prática saudável para qualquer gestão organizacional, mas, se sim, de algo extremamente necessário e excepcional, o prejuízo administrativo poderá ser eliminado a posteriori.
O problema surge quando esta prática deixa de ser exceção e passa a ser a regra. Isto acontece quando a efetivação de um direito social é utilizado como único argumento de decisões judiciais, que deixam de levar em consideração a organização administrativa baseada em princípios orçamentários de responsabilidade.
Desse modo, a complexidade para a efetividade dos direitos sociais, tem-se que:
“A concretização dos direitos de segunda dimensão deve levar em consideração circunstâncias materiais, observando, diante das conjunturas fáticas, a extensão de sua incidência. Com isso não se defende sua insegurança, variando ao sabor de uma caneta discricionária. Contudo, esses dispositivos não podem ser aferidos de forma voluntária, sem adequação com as condições sociopolítico-econômicas. Os afãs mais voluntariosos vão sendo aplainados à medida que as decisões sejam proferidas pelas instâncias superiores, até chegar ao Supremo Tribunal Federal que definirá seus contornos” (AGRA, 2012, p. 813).
A Judicialização de direitos sociais deve ser aceita como consequência de uma nova leitura do texto constitucional, com vistas a agregar regras e princípios.
A internação compulsória, como um dos exemplos de fruto da intervenção do Poder Judiciário junto às incumbências da Administração Pública, deveria ser fundamentada não só na efetivação obrigatória de um compromisso estatal, mas em princípios relacionados à responsabilidade administrativa, como a reserva do possível, o do não retrocesso social ou da proibição da evolução reacionária.
A interferência do Poder Judiciário em demandas que devem ser objetos de políticas públicas é antidemocrática e incompatível com o princípio da separação dos poderes, o que por sua vez caracteriza a usurpação de competências do Legislativo e Executivo.
Por serem escassos os recursos públicos, a escolha dos direitos devem ser priorizados pelos representantes eleitos pelo povo (SAMPAIO JÚNIOR, 2008). E, ainda, outro ponto refere-se à desorganização na Administração Pública causada pela ingerência judicial, posto que ao invés dos gestores centrarem no planejamento e execução de políticas públicas, acabariam por se dedicar às demandas individuais advindas do Judiciário.
Deveria haver um aprofundamento do diálogo institucional entre os diversos poderes (SOUZA NETO; SARMENTO, 2012).
Entretanto, a maioria da doutrina entende pela judicialização dos direitos sociais em caso de omissão do Estado. Nesse sentido, é válido citar NOVELINO (2014):
“O discurso contrário à eficácia positiva dos direitos sociais, outrora predominante em nossa doutrina e jurisprudência, foi gradativamente substituído por uma postura mais pró-ativa do Poder Judiciário no sentido de conferir a merecida efetividade a esses direitos fundamentais […]Os direitos sociais, na qualidade de direitos fundamentais, possuem uma dimensão subjetiva, conferindo ao cidadão o direito de exigir do Estado determinadas prestações materiais. As diretrizes e os programas de ação traçados por uma Constituição rígida são vinculantes e obrigatórios e não meros conselhos ou exortações morais para o legislador” (NOVELINO, 2014, p. 763).
Segundo AGRA (2012), as obrigações decorrentes da imposição dos direitos sociais são exigíveis e não dependem da discricionariedade da administração ou do legislador, e não há como negar a possibilidade de intervenção do Judiciário em casos de omissão do Estado. Até mesmo, porque, sendo também a Constituição Federal um conjunto de normas, a impossibilidade de judicialização dos direitos sociais torna-se conflitante com o princípio da inafastabilidade da função jurisdicional, nos termos do art. 5º, XXXV, C. R. F. B/1988.
Entretanto, deve ser observada a reserva do possível, no qual pontua-se sobre a garantia de proteção e efetivação dos direitos sociais previstos na Constituição Federal e normas infraconstitucionais, que acarretam gastos econômicos consideráveis, pois, em sua maioria, compreendem obrigações prestacionais para o Poder Público, tais como a construção de sistema habitacional, saúde, educação, dentre outros.
Em razão do supracitado fundamento, isto é, a efetivação dos direitos fundamentais e a situação financeira do Estado, o qual alega que os recursos são insuficientes e as necessidades sociais imensas, ocorreu a admissão de que o Poder Público, na sua função de deliberar sobre as prioridades e estabelecer suas políticas públicas de destinação das verbas existentes, poderia alegar o que se passou a denominar cláusula da reserva do possível.
Segundo MASSON (2016), a expressão reserva do possível só tornou-se conhecida a partir do leading case julgado pelo Tribunal Federal alemão, nos anos 70 do séc. XX, denominado numerus clausus, no qual a Corte alemã julgou a demanda judicial proposta pelos estudantes não admitidos em escolas de medicina do país em função da política de limitação do número de vagas em Universidades, a década de 60.
O pedido fundamentava-se no art. 12 da Constituição Alemã: é direito de todos os alemães escolher livremente sua profissão, seu local de trabalho e seu centro de formação. Ao decidir a questão o Tribunal Constitucional determinou que o direito à prestação positiva, aumento do número de vagas, estaria sujeito à reserva do possível, que seria aquilo que fosse razoável para o indivíduo exigir, de maneira racional, da sociedade.
Apesar do acima relatado, faz-se importante analisar sucintamente os autos nº 0022267- 75.2015.827.2729, ação que tramita na 4º Vara da Fazenda Pública e Registros Públicos de Palmas-TO, que trata de ação de obrigação de Fazer com pedido de antecipação de tutela proposta pela genitora em face do Estado do Tocantins e do Município de Palmas, visando a internação compulsória de sua filha dependente química.
Os entes públicos requeridos alegaram em sede de contestação e posteriormente em sede de apelação, que não se pode reconhecer uma responsabilidade absoluta e ilimitada por parte dos entes públicos na atenção à saúde da população.
Nas questões envolvendo o direito à saúde, deve o Poder Judiciário pautar a sua atuação com base em dois norteadores, quais sejam, o princípio da reserva do possível e os critérios de repartição de competências no âmbito da saúde.
Em virtude da relevância econômica do objeto dos direitos sociais prestacionais, estes se encontram sob uma reserva do possível, circunstância que enseja tomada de decisão acerca da destinação de recursos públicos, cometidas aos órgãos políticos e, para tanto, legitimados.
Entretanto, observa-se que o juízo em sede de sentença – como normalmente tem sido em decisões nas varas da Capital do Estado, apesar das alegações acima, aponta que a falta de recursos públicos, teoria da reserva do possível, não pode servir como barreira intransponível à concretização dos direitos fundamentais, pois o que está em jogo é o mínimo existencial, tanto para a saúde do indivíduo, como para uma convivência pacífica, cabendo à Administração Pública gerir seus recursos de modo atender, satisfatoriamente, tais direitos.
Entretanto, pontua-se que a reserva do possível condicionaria a realização dos direitos sociais, culturais e econômicos, em grande parte, à disposição financeira e possibilidades orçamentárias do Poder Público. Uma vez demonstrada a incapacidade econômico-financeira do Estado, não seria razoável exigir a efetividade da prestação positiva, ainda que prevista na Constituição Federal.
5 A (IN) EFICÁCIA DA INTERNAÇÃO JURISDICIONAL NO TRATAMENTO DO DEPENDENTE QUÍMICO
Como já mencionado anteriormente, a internação compulsória deve ser medida excepcional, posto que quando aplicada de forma autoritária comumente é incapaz de resolver o problema da dependência química, pois normalmente encontra-se destoada de políticas de redução de danos e de prevenção.
COELHO E OLIVEIRA (2014) advertem sobre tais medidas, apontam que se a Lei Federal nº 10.216/2001 foi elaborada a fim de garantir a proteção de doentes mentais e tendo como principal bandeira a desospitalização, não é passível a utilização dessa mesma lei para pessoas que não são portadoras de doenças mentais e, principalmente, com objetivo de tornar a internação a regra, fato que contraria todos os longos período de debates e tramitação do referido diploma legal.
Há portanto, distorção na aplicação da referida norma pelos atores jurídicos, podendo-se concluir que:
“1) dependente químico não é doente mental; 2) a internação compulsória prevista na Lei 10.216/01 deve ser aplicada tão somente para os casos de doentes mentais que cometam alguma infração criminosa, como espécie de medida de segurança; 3) a internação compulsória de dependentes químicos é ilegal por falta de previsão legal, e inconstitucional por violar o direito à saúde e à dignidade da pessoa humana; 4) as internações que vêm ocorrendo podem ser equiparadas à tortura e, assim, violam direitos humanos; 5) O Poder Judiciário é guardião de direitos humanos, não podendo, sob argumento algum, violá-los” (COELHO; OLVEIRA, 2014, p. 365).
Sobre a eficácia do tratamento, principalmente pelo fator da contrariedade do indivíduo em ver-se segregado para intervenção médica e, também, em razão da não recomendação de parcela dos profissionais da saúde ao considerarem a não adesão voluntária do paciente, o tratamento apresentará reduzidas chances de êxito.
Nesse sentido, em balanço realizado quanto ao enfrentamento ao crack e outras drogas, mostrou que dos 2 mil dependentes químicos que foram internados nos dois anos de vigência da política pública no Distrito Federal – internação compulsória, somente 217 permanecem livres das drogas, sem recaídas (CORREIO BRASILIENSE, 2012).
Segundo COELHO E OLIVEIRA (2014), a internação compulsória está sendo realizada da pior forma possível, o uso da medicação somente para “sossegar” o internado não é efetivo, posto que o paciente tenta a todo momento evadir-se.
Deve existir regras, mas isso não pode ocorrer de forma autoritária. O indivíduo não pode ser coagido a ser tratado contra a sua própria vontade, pois, para além de dificultar o tratamento e propiciar recaídas – o próprio estresse causado por uma internação acarreta mais danos ao dependente – viola os direitos de liberdade e saúde.
Em ação judicial acima analisada (0015167-35.2016.827.2729, 3ª Vara dos Feitos da Fazenda e Registros Públicos, Comarca de Palmas-TO), observa-se que o indivíduo após ficar internado e obter avaliação médica que atestava sua melhora, teve recaídas no ano seguinte, como não fora juntado aos autos laudo médico atestando a necessidade de internação, a junta médica oficial, considerando que já havia internação infrutífera em outra oportunidade (ação judicial nº 5010112-91.2011.827.2729), optou pela não internação compulsória, por isso, considerando a situação pessoal do indivíduo, indicou acompanhamento em CAPS AD.
Em outra exemplificação, tem-se o Programa de Orientação e Assistência a Dependentes da Universidade Federal de São Paulo, que em estudo realizado aponta que 98% dos pacientes que são internados compulsoriamente sofrem recaídas pouco tempo depois do fim da segregação.
Portanto, aponta que as políticas públicas devem respeitar o sujeito, seus direitos e sua saúde. A decisão pela segregação ou não de um dependente químico é uma decisão que deve ser feita por equipes de saúde, composta por profissionais treinados para tal finalidade e não com base em uma decisão judicial (TOURINHO, 2013).
Observa-se, em números, a ineficácia da internação compulsória. Desse modo, haveria o Estado de promover investimentos na implementação e ampliação de redes de atenção psicossocial especializadas em álcool e drogas, de centros de convivência, de leitos de internação psiquiátricas em hospitais, políticas de geração de renda, enfim, formas diversas de reabilitação social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante da análise das normas, teorias e casos apresentados, verificou-se que o uso de drogas é um fenômeno histórico e que necessita ser avaliado por diversos ângulos, para buscar um resultado prático ou justificável, que não seja baseado apenas no isolamento-encarceramento do dependente químico, mas que sejam ofertadas alternativas eficazes e menos agressivas aos direitos fundamentais do indivíduo.
Assim, observou-se que a internação compulsória é uma medida drástica, que pode causar dano de difícil reparação, a qual tem sido cada vez mais trivial, principalmente quando são pessoas situadas nas camadas mais vulneráveis e hipossuficientes. Tal modalidade de tratamento deve ser excepcional como diz a própria norma aplicável ao caso – Lei Federal nº 10.216/01 –, até mesmo em razão do referido dispositivo legal não ter sido criada especificamente para o tratamento de dependentes químicos.
Como pode ser evidenciado nas ações de internação compulsória examinadas, especificamente no Município de Palmas -TO, que atualmente não dispõe de clínica ou hospital do Poder Público que possa acolher esses pacientes decorrentes de ordem judicial para tratamento compulsório.
Essa realidade demonstra a falta de interesse e o desaparelhamento do Estado em aderir uma política de tratamento ambulatorial com todos os mecanismos necessários que auxiliem na cura ou na redução de danos dos dependentes químicos. Do contrário, o tratamento desses pacientes tem sido restrito, apenas a medidas meramente paliativas e sem nenhuma eficácia.
Necessário destacar, novamente, que a Lei Federal nº 10.216/01 visa à proteção de pessoas acometidas de transtornos mentais e não de dependentes químicos.
Contudo, verificou-se que na prática, os operadores do direito, ignoram o preceito fundamental do princípio da legalidade e expandem as hipóteses de cabimento, tornando-a fruto de interpretação extensiva, ou por analogia, aos adictos.
Além disso, a internação psiquiátrica, em qualquer das modalidades, somente torna-se cabível quando forem esgotados todos os recursos extra hospitalares e estas se revelarem insuficientes. É o que determinou o artigo. 4º da referida lei em comento.
Ou seja, existindo a necessidade do internamento, buscar-se-á sempre meios alternativos que primam pela reinserção e bem estar social do paciente, tendo em vista, que o tratamento em meio aberto, tem maiores chances de recuperação, pois tem um fator relevante: a vontade individual.
Dessa forma, consubstanciado na fragilidade do sistema da internação compulsória, uma vez que mostra-se pouco eficaz, principalmente quando o paciente não possui motivação para superar seu quadro de dependência, sendo que este é elemento primordial na recuperação do indivíduo.
Faz-se necessário a efetivação das políticas públicas que de fato ofereçam os parâmetros mínimos e a assistência médica especializada para que os dependentes químicos não venham ficar desassistidos de toda sorte, uma vez que é dever do Estado garantir o mínimo existencial.
Entretanto, a concessão de medidas em sede de tutela de urgência, às vezes sem ouvir a própria administração pública ou qualquer corpo de especialistas na área médica, agrava ainda mais esta já frágil situação jurídica, não obstante ser frequentemente a decisão de magistrados que optam por tomar a partir do momento que se depara com um pleito desta natureza.
Ressalta-se, por fim, que a internação compulsória da forma como vem sendo implementada por determinação judicial em face dos entes públicos, devem ser revistas e aplicadas com precaução, parcimônia, atentando-se à reserva do possível; aos critérios de repartição de competências no âmbito da saúde, de modo que o Poder Judiciário não pode privilegiar situação particular, comprometendo o orçamento destinado às demais políticas públicas destinadas à saúde da sociedade como um todo, assegurando-lhe acesso universal e igualitário.
O risco da judicialização sobre as políticas públicas em detrimento da administração financeira do Estado e a definição de estratégias e políticas para a aplicação dos recursos públicos foge da alçada do Poder Judiciário; e, por fim, principalmente é o respeito aos direitos e garantias fundamentais do indivíduo dependente químico objeto de internação compulsória.
Acadêmica de Direito pela Faculdade Católica do Tocantins
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