Resumo: O presente trabalho tem por objeto abordar os atos de litigância de má-fé tipificados em nossa legislação processual civil, bem como a apresentação de soluções às contradições existentes na legislação e na jurisprudência brasileiras sobre o tema, com o fim de contribuir com o aprimoramento da técnica processual; estimular a utilização, por nossos Tribunais, das sanções processuais que visam solucionar a debatida crise da demora na entrega da prestação jurisdicional em razão da prática da litigância de má-fé por parte de protagonistas como os sujeitos do processo, que atuam mediante a prática de expedientes processuais tendentes a procrastinar a efetiva entrega da prestação jurisdicional, tão almejada pelo Estado-juiz.
Palavras-chave: Boa-Fé; Má-Fé; Má-Fé Processual; Atos de Litigância de Má-Fé; Atos Atentatórios à Dignidade da Justiça; Sanções Processuais.
Abstract: This study's purpose is to address acts of bad-faith typified in our civil procedural law, as well as the presentation of solutions to the contradictions in the legislation and case law on the subject in Brazil, with the aim of contributing to the improvement of procedural technique; stimulate the use by our courts, the procedural sanctions aimed at resolving the crisis discussed the delay in delivery of judicial services due to the practice of litigation in bad faith by protagonists as the subjects of the process, working through practice procedural expedients tending to procrastinate the actual delivery of judicial services, as desired by the State court.
Keywords: Good Faith, Bad Faith, Bad Faith Procedure and Litigation Acts of Bad Faith, Acts which violate the dignity of Justice; Sanctions Procedure.
Sumário: Introdução. I. Considerações Gerais. II. Conceito de Boa-Fé. III. A Exteriorização da Boa-Fé (Dever de Lealdade Processual). IV. Litigância de Má-Fé (Conceito). V. Análise das condutas tipificadas nos incisos I a VII do art. 17 (V.1. Hipótese do inciso I do art. 17; V.2. Hipótese do inciso II do art. 17; V.3. Hipótese do inciso III do art. 17; V.4. Hipótese do inciso IV do art. 17; V.5. Hipótese do inciso V do art. 17; V.6. Hipótese do inciso VI do art. 17 e V.7. Hipótese do inciso VII do art. 17). VI. Das Sanções Processuais Impostas ao Litigante de Má-Fé. VI.1. Da sanção prevista no art. 14, parágrafo único, do CPC. VI.2. Das sanções previstas nos arts. 16 e 18 do CPC. VI.3. Problematizando: A discussão acerca da possibilidade de condenação do advogado nas penas decorrentes da litigância de má-fé. VI.4. Má-fé processual e reconhecimento de ofício. VI.5. Momento de Aferição da Litigância de Má-Fé. VII. Dos Atos Atentatórios à Dignidade da Justiça (contempt of court). VIII. Análise das condutas tipificadas nos incisos I a IV do art. 600 (VIII.1. Hipótese do inciso I do art. 600; VIII.2. Hipótese do inciso II do art. 600; VIII.3. Hipótese do inciso III do art. 600 e VIII.4. Hipótese do inciso IV do art. 600). IX. Da sanção prevista no art. 601 do CPC. X. Conclusão. XI. Bibliografia.
INTRODUÇÃO
Promover o acesso à justiça, compreender o caráter instrumental do processo e assegurar o direito fundamental à tutela jurisdicional são escopos que devem ser alcançados com o direito processual moderno.
Com vistas a municiar as partes e os juízes com instrumentos que sirvam à concretização dos citados escopos e, proporcionar a efetividade e a celeridade da tutela jurisdicional, há quase duas décadas nossos legisladores vêm promulgando leis e implantando reformas no Código de Processo Civil Brasileiro e até mesmo na Constituição da República, com o escopo de tornar célere a prestação da tutela jurisdicional: a constitucionalização dos princípios da celeridade processual e da razoável duração do processo como direitos fundamentais (art. 5º, inciso LXXXVIII, da Constituição Federal, a criação dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Lei nº 9.099/95), a edição do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), a inserção do instituto da tutela antecipada nos arts. 273 e ss. do Código de Processo Civil e, a adoção do processo sincrético possibilitando que as fases de execução e cognição se realizem no mesmo processo (arts. 461, 461-A e 475 e ss. do Código de Processo Civil).
Apesar das modificações introduzidas por nosso legislador, antigos obstáculos ainda embaraçam a efetividade da prestação da tutela jurisdicional: o comportamento dos sujeitos do processo.
Dentre esses obstáculos, a crise do Poder Judiciário, marcada por sua ineficácia, lentidão e de outros problemas de ordem político e administrativa, se depara ainda com a postura dos sujeitos do processo, que atuam de forma desleal e com o escopo de procrastinar a prestação da tutela jurisdicional pelo Estado-Juiz.
É perceptível que a legislação processual civil, de um lado, possui regra específica e dirigida aos sujeitos do processo, sobre o dever de lealdade que deverá ser observado na busca da prestação da tutela jurisdicional (art. 14 do Código de Processo Civil) e, de outro lado, possui mecanismos consistentes em sanções processuais, que visam combater a atuação desleal e procrastinatória dos sujeitos do processo (arts. 16 e ss. do Código de Processo Civil).
Também se mostra presente em nosso ordenamento jurídico, de um lado, a tipificação dos atos definidos como atentatórios à dignidade da justiça ou, condutas consideradas como desrespeitosas ao exercício da função jurisdicional, às suas decisões e à administração da justiça (art. 600, incisos I a IV, do Código de Processo Civil), cuja origem é atribuída ao contempt of court e, de outro lado, o mecanismo processual consistente na sanção processual, que visa combater a atuação das partes ao referido atentado à Corte (art. 601 do Código de Processo Civil).
De modo geral, a maior dificuldade enfrentada na prestação da tutela efetiva, é a perceptível resistência dos juízes e dos nossos Tribunais em aplicar os citados institutos, além da resistência das próprias partes e dos advogados em fazer uso e, de forma adequada, das sanções disciplinadas por nossa legislação processual civil.
Com o presente estudo, pretende-se colaborar para o aprimoramento da teoria processual brasileira; delimitar os conceitos dos atos tipificados como condutas contrárias ao ordenamento jurídico e, estimular os operadores do Direito (Juízes, Tribunais e Advogados) a utilizarem as sanções processuais existentes em nosso ordenamento jurídico como forma de reprimir a atuação das partes a procrastinar a entrega da prestação jurisdicional; uma vez que a atuação correta das partes e a tempestividade da tutela são requisitos indispensáveis à dignidade da jurisdição e à garantia do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva.
I. Considerações Gerais
A concepção moderna de processo não pode se limitar apenas a idéia de instrumento de eliminação de conflitos entre duas ou mais pessoas, mas principalmente a idéia de instrumento de justa composição de conflitos.
Esse ideal de processo como instrumento de justa composição de conflitos visa nada mais do que assegurar ao jurisdicionado a realização de um processo que atenda além das expectativas de razoabilidade, celeridade e justiça; as expectativas de concretização de um processo ético, probo e leal, com vistas a alcançar a almejada paz social.
Ocorre, que nada obstante o fato de estarmos muito distantes de superar dificuldades de ordem temporal ou de ordem político-administrativa, nossos julgadores têm se deparado cada vez mais com a deterioração do Poder Judiciário, ocasionada pela falta de colaboração das próprias partes (interessados), na busca da pacificação do conflito de interesses, e podemos dizer da verdade real.
Não por outra razão, comenta Ada Pellegrini Grinover[1] que (…) “Mais do que nunca, o processo deve ser informado por princípios éticos. A relação jurídica processual, estabelecida entre as partes e o juiz rege-se por normas de conduta. De há muito, o processo deixou de ser visto como instrumento ético voltado a pacificar com justiça”. (…)
Em razão dessa crescente tendência de degradação do Poder Judiciário, que nada mais é senão resultado da degradação dos valores éticos da própria sociedade; surgiu a urgente necessidade de se reprimir as condutas eivadas de má-fé praticadas quer pelas partes, quer pelos advogados, quer pelos auxiliares ou todos aqueles que de alguma forma participam do processo, com vistas a possibilitar o acesso à justiça e a prestação da tutela jurisdicional com ética, lealdade, boa-fé, e nos dizeres de João Batista Lopes[2] “com responsabilidade”.
Com isso, imprescindível se faz a análise e compreensão do instituto da litigância de má-fé, bem como dos mecanismos existentes na legislação brasileira cujo escopo é evitar que o direito processual seja um instrumento a serviço da deslealdade.
É o que se pretende fazer nos itens seguintes.
II. Conceito de Boa-Fé
Gramaticalmente, a palavra boa-fé significa “1. Certeza de agir com amparo da lei, ou sem ofensa a ela. 2. Ausência de intenção dolosa. 3. Sinceridade, lisura” [3].
Para Rui Stoco[4] a boa-fé “No plano ético e moral, significa lealdade, franqueza, honestidade, ou seja, conformidade entre o pensar, o dizer e o fazer”.
De Plácido e Silva afirma que: ”Sempre se teve boa-fé no sentido de expressar a intenção pura, isenta de dolo ou engano, com que a pessoa realiza o negócio ou executa o ato, certa de que está agindo na conformidade com o direito, consequentemente, protegida pelos preceitos legais”. [5]
Nesse contexto, segundo conclui Rui Stoco “a boa-fé constitui atributo natural do ser humano, sendo a má-fé o resultado de um desvio da personalidade”. [6]
Fundamental lembrarmos, ainda, a existência da boa-fé em suas duas formas: a subjetiva e a objetiva.
Judith Martins Costa[7] assim esclarece e traduz a boa-fé subjetiva:
“A expressão boa-fé subjetiva denota estado de consciência ou convencimento individual de obrar em conformidade ao direito aplicável, em regra, ao campo dos direitos reais, especialmente em matéria possessória. Diz-se subjetiva justamente porque para a sua aplicação, deve o intérprete considerar a intenção do sujeito do sujeito da relação jurídica, o seu estado psicológico ou íntima convicção. Antiética à boa-fé subjetiva está a má-fé, também vista subjetivamente como a intenção de lesar a outrem”.
Paulo Khouri[8] afirma que: “Pela boa-fé objetiva, tem-se um padrão objetivo de conduta, de lealdade, transparência e, ao contrário da subjetiva, o estado de ânimo, a intenção dos contratantes, não tem qualquer relevância”.
Maria Helena Diniz[9], que não poderia deixar de ser citada na abordagem do tema, aproximou-se mais da boa-fé objetiva, ao assim explicar o significado de boa-fé:
“BOA-FÉ: 1. Direito Civil. a) estado de espírito em que uma pessoa, ao praticar ato comissivo, está convicta de que age de conformidade com a lei; b) convicção errônea da existência de um direito ou da validade de um ato ou negócio jurídico. Trata-se da ignorância desculpável de um vício do negócio ou da nulidade de um ato, o que vem atenuar o rigor da lei, acomodando-a à situação e fazendo com que se deem soluções diferentes conforme a pessoa esteja ou aja de boa ou má-fé, considerando a boa-fé do sujeito, acrescida de outros elementos, como produtora de efeitos jurídicos na seara das obrigações, das coisas, no direito de família e até mesmo no direito das sucessões; c) lealdade ou honestidade no comportamento, considerando-se os interesses alheios, em na celebração e execução dos negócios jurídicos; d) propósito de não prejudicar direitos alheios”.
Em importante paralelo, Vera Regina Loureiro Winter,[10] assim diferencia a boa-fé subjetiva da objetiva “Se a boa-fé subjetiva é um estado, a objetiva ou boa-fé como regra de conduta é um dever – dever de agir de acordo com determinados padrões, socialmente recomendados, de correção, de lisura, de honestidade para não frustrar a confiança legítima da outra parte”.
III. A Exteriorização da Boa-Fé (Dever de Lealdade Processual)
Dissemos acima que o direito processual é um instrumento a serviço da justa composição de conflitos.
Quer isso significar que, a boa-fé que se almeja na busca de uma decisão justa, deve se exteriorizar através da observância de deveres previamente estabelecidos em nossa legislação processual civil, mais precisamente no art. 14, incisos I a V, do Código de Processo Civil, que possui regra específica e dirigida a todos aqueles que participam do processo, sobre o agir em Juízo, dispondo:
“Art. 14. São deveres[11] das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo:
I – expor os fatos em juízo conforme a verdade;
II – proceder com lealdade e boa-fé;
III – não formular pretensões, nem alegar defesa, cientes de que são destituídas de fundamento;
IV – não produzir provas, nem praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou defesa do direito.
V – cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final”.
Para ilustrar, alguns outros dispositivos também podem ser acrescentados como exemplos práticos que preveem o agir processual, como os arts. 339 e 340 do Código de Processo Civil, que estabelecem:
“Art. 339. Ninguém se exime do dever de colaborar com o Poder Judiciário para o descobrimento da verdade”.
“Art. 340. Além dos deveres enumerados no art. 14, compete à parte:
I – comparecer em juízo, respondendo ao que lhe for interrogado;
II – submeter-se à inspeção judicial, que for julgada necessária;
III – praticar o ato que lhe for determinado”.
Há, como dito, insculpido nos artigos retro citados, a regra do dever de lealdade, a respeito do qual Cândido Rangel Dinamarco[12] assim ilustra: “Dentre os deveres dos sujeitos processuais em geral, o de lealdade ocupa posição de destacada grandeza. A realidade do processo é a de um combate para o qual a lei as municia de certas armas legítimas e de uso legítimo, mas com a advertência de que será reprimido o uso abusivo dessas armas ou o emprego de outras menos legítimas”.
Nossa jurisprudência é atenta a tais deveres de lealdade:
“PROCESSO CIVIL. PROVA. FATOS CONSTITUTIVOS DO DIREITO. ÔNUS DO AUTOR. RESPONSABILIDADE PELA ANTECIPAÇÃO DOS HONORÁRIOS PERICIAIS. INDIFERENÇA. DEVER DE LEALDADE E BOA-FÉ. (…) Esse comportamento ofende os deveres de lealdade e boa-fé processual que, de acordo com o art. 14, II, do CPC, devem permear toda e qualquer participação em ação judicial” [13].
A respeito do examinado dever de lealdade processual sustenta Rui Stoco:[14]
“Exige-se, então, das partes em Juízo não só obediência às regras estabelecidas para essa manifestação escrita perante ele, como, ainda, que o conteúdo dessa manifestação seja lícito e, portanto, ético e impregnado de lisura”.
Cândido Rangel Dinamarco[15] não se afasta do quanto aludido acima, ao assim aduzir:
“A experiência mostra que, embora o juiz deve conhecer o direito (“jura novit curia”) e crescentes sejam os seus poderes quanto à investigação da verdade dos fatos, essa cooperação dos interessados (participação, cooperação comprometida com o interesse de casa um), é fato relevantíssimo para o aprimoramento da própria jurisdição como função pública e, consequentemente, para a obtenção do ideal de justiça”.
Resta destacar apenas a título enriquecedor, a diferenciação entre os institutos dos deveres, ônus e obrigações, deveras confundida, mas de crucial estima no estudo das condutas éticas que devem nortear a busca da pacificação social (mediante o uso do instrumento processo).
Enrico Tullio Liebman[16] define ônus como “o comportamento que alguém deve ter, se quiser conseguir um resultado favorável ao seu próprio interesse”.
Para Alfredo Buzaid[17] a obrigação e o ônus podem ser distinguidos da seguinte forma: “O ônus consiste na necessidade de realizar uma atividade, sob pena de sofrer um efeito danoso, pela ausência do ato só o litigante é atingido, podendo beneficiar-se o adversário; ocorrendo, todavia, o descumprimento da obrigação legal, nasce para a outra parte o direito de haver ressarcimento do dano que lhe foi causado”.
Em relação ao dever, assim define Helena Najjar Abdo[18]:
“O dever é, como dito, uma exigência de conduta, ou, na definição de Franco Cordero, uma situação subjetiva para a qual é necessária e suficiente a previsão abstrata de um comportamento, que o sujeito deve observar para não incorrer em uma valoração negativa (contrária ao direito).(…)
O dever tem como característica principal o fato de ser realizado no interesse alheio, ou seja, de privilegiar um interesse não necessariamente comungado pelo sujeito da situação subjetiva de dever”.
Diferenciados os institutos dos deveres, obrigações e ônus, cumpre observar que a conduta leal que se almeja de todos aqueles que de alguma forma participam do processo[19], consiste sim, em um dever: “o de lealdade que ocupa posição de destacada grandeza” [20].
Pertinente ressalvar o dever de lealdade para Pontes de Miranda[21] “é princípio implícito e pré-processual, elemento da tutela jurídica, regra de conduta e dever perante o Estado”.
Assim, de acordo com as palavras de Rui Portanova[22], exigir daqueles que de alguma forma participam do processo, o dever de lealdade: “não se trata de exigir ingenuamente que as partes ofereçam argumentos para que a outra triunfe. Trata-se de evitar que a vitória venha através de malícia, fraudes, espertezas, dolo, improbidade, embuste, artifícios, mentiras ou desonestidade”.
Vê-se, assim, que agir contrariamente às condutas tipificadas no art. 14, incisos I a V, do Código de Processo Civil, configura, pois, deslealdade processual, assim identificada nos Tribunais pátrios:
“PROCESSO CIVIL. PROVA. FATOS CONSTITUTIVOS DO DIREITO. ÔNUS DO AUTOR. RESPONSABILIDADE PELA ANTECIPAÇÃO DOS HONORÁRIOS PERICIAIS. INDIFERENÇA. DEVER DE LEALDADE E BOA-FÉ. 1. Ainda que o dever de arcar com a antecipação dos honorários periciais seja do réu – por ser o autor beneficiário da assistência judiciária gratuita -, é do autor o ônus de provar os fatos constitutivos do seu direito, de sorte que não poderia, de nenhuma forma, ainda que por omissão, contribuir com a não realização da perícia médica para, futuramente, se beneficiar de sua própria desídia. Esse comportamento ofende os deveres de lealdade e boa-fé processual que, de acordo com o art. 14, II, do CPC, devem permear toda e qualquer participação em ação judicial. 2. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, não Provido” [23].
IV. Litigância de Má-Fé (Conceito)
Assim como o legislador houve por bem especificar os atos tipificados como de lealdade processual no atual Código de Processo Civil, também tipificou os atos eivados de abuso do direito no âmbito do processo, tipificando-os como ilícitos e prevendo não apenas a possibilidade de responsabilização por tais atos, como a aplicação de multa e a excepcional condenação em perdas e danos ao então denominado: litigante de má-fé.
Em linha de princípio, ao definir má-fé De Plácido e Silva[24] assim pontua:
“a expressão derivada do baixo latim malefacius [que tem mau destino ou má sorte], empregada na terminologia jurídica para exprimir tudo que se faz com entendimento da maldade ou do mali que nele se contém. A má-fé, pois, decorre do conhecimento do mal, que se encerra no ato executado, ou do vício contido na coisa, que ser quer mostrar como perfeita, sabendo-se que não o é […] A má-fé opõe-se à boa-fé, indicativa dos atos que se praticam sem maldade ou contravenção aos preceitos legais. Ao contrário, o que se faz contra a lei, sem justa causa, sem fundamento legal, com ciência disso, é feito de má-fé”.
Para Rui Stoco a má-fé[25]: “Decorre do conhecimento do mal, que se encerra no ato executado, ou do vício contido na coisa, que se quer passar como perfeita, sabendo-se que não o é”.
Moacyr Amaral dos Santos, ao tratar do conceito de má-fé, invocando Couture, assinala que:
“A expressão má-fé se opõe à boa-fé, ambas constituindo uma avaliação ética do comportamento humano. Mas, enquanto esta se presume, aquela deve ser caracterizada, senão provada. Má-fé no processo, na definição de Couture, consiste na ‘qualificação jurídica da conduta, legalmente sancionada, daquele que atua em juízo convencido de não ter razão, com ânimo de prejudicar o adversário ou terceiro, ou criar obstáculos ao exercício do seu direito’. Na má-fé há como substrato a intenção de prejudicar alguém, o qual no processo civil, geralmente é o outro litigante” [26]
Vale dizer, que a não observância do dever de dizer ou agir de acordo com a verdade, configura litigância de má-fé, que nas palavras de Jose Olímpio de Castro Filho[27]:
“consiste no corromper dos próprios fins do processo e representa a consciência de se degenerar os elementos de fato da relação substantiva (o que vulgarmente se chama de dolo material ou substancial) ou o degenerado uso dos meios processuais (dolo instrumental), tudo com o fim de o juiz compor defeituosamente o conflito de interesses”.
Por sua vez, para Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery[28], litigante de má-fé é:
“a parte ou interveniente que, no processo, age de forma maldosa, com dolo ou culpa, causando dano processual à parte contrária. É o ‘improbus litigator’, que se utiliza de procedimentos escusos com o objetivo de vencer ou que, sabendo ser difícil ou impossível vencer, prolonga deliberadamente o andamento do processo, procrastinando o feito”.
Ao tratar do tema litigância de má-fé e abuso de direito no processo em sua obra Instituições de Direito Processual Civil, Cândido Rangel Dinamarco[29], assim pontua:
“Ao disciplinar a repressão à deslealdade das partes mediante normas referentes à litigância de má-fé (arts. 16-18) e ao contemp of court (arts. 600-601), o Código de Processo Civil arrola algumas condutas ilícitas e estabelece sanções à sua prática (arts. 16-18 e 600-601). Depreende-se de cada uma dessas figuras o dever de comportar-se de modo contrário, porque cada uma delas contém em si, pelo lado negativo, a especificação de um aspecto inerente ao dever de lealdade”.
De se registrar que as condutas tipificadas como de má-fé estão enumeradas no art. 17, incisos I a VII, do Código de Processo Civil[30], in verbis:
“Art. 17. Reputa-se litigante de má-fé aquele que:
I – deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso;
II – alterar a verdade dos fatos;
III – usar do processo para conseguir objetivo ilegal;
IV – opuser resistência injustificada ao andamento do processo;
V – proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo;
VI – provocar incidentes manifestamente infundados;
VII – interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório”.
A litigância de má-fé assim é vista por nossos Tribunais pátrios:
"Reputa-se litigante de má-fé a parte que se aproveita, maliciosamente, de deficiências processuais para opor resistência injustificada ao andamento dos processos, deixando de proceder, como de seu dever, com lealdade e boa-fé". [31]
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. (…) Preliminarmente, todos os vícios processuais apontados pela agravada em sede de contraminuta não prosperam e, pior, configuram litigância de má-fé, pois representam alteração da verdade dos fatos e resistência injustificada ao andamento do processo”. [32]
V. Análise das condutas tipificadas nos incisos I a VII do art. 17.
Como dito, a litigância de má-fé consiste no desrespeito ao dever de boa-fé, ou seja, do agir com lisura, respeito, lealdade e probidade -, que se espera seja adotado por todos aqueles que se utilizam do processo como instrumento para a pacificação de conflitos.
Deve se tratar, pois, que as condutas tipificadas como de má-fé podem ser realizadas de modo ativo ou passivo (omissivo, portanto), e consoante já aduzido, ao elaborar o atual Código de Processo Civil nosso legislador optou por numerar de forma taxativa as hipóteses de litigância de má-fé, diversamente do que ocorreu com a legislação de outros países, em que o comportamento das partes é regulado em norma de conteúdo genérico, como se observa do parágrafo 138 do Código de Processo Civil alemão e do parágrafo 88 do Código de Processo Civil italiano.
Com efeito, ao tratar da subsunção das condutas às hipóteses numerus clausus tipificadas no art. 17, incisos I a VII, do Código de Processo Civil, Arruda Alvim[33] assim pontuou: (…) “Não é fácil, obviamente, estabelecer regras fixas no direito positivo, para ser aquilatada a violação do preceito, pois cabe ao juiz, em cada caso, averiguar a influência da inverdade, da intenção da parte, para, então, aplicar a disposição adequada de cunho sancionatório ou, em nosso sistema, os arts. 16 e 18 do CPC. Mesmo assim, vários Códigos, inclusive o nosso de 1973, estabelecem regras que definem os atos de má-fé e, consequentemente, a pena correspondente”. (…)
Resta evidente, pois, não ser tarefa simples o enquadramento das condutas fáticas em dispositivos cogentes; de toda sorte, não deve o juiz se utilizar de hermenêutica restritiva e limitadora de declaração de litigância de má-fé, para aplicar as sanções processuais correspondentes.
O que se tem como claro, é a proibição aos participantes do processo de agir em desacordo com as condutas tipificadas no art. 14, incisos I a V, do Código de Processo Civil, sob pena de serem responsabilizados pelas reprováveis condutas tipificadas no art. 17, incisos I a VII, do Código de Processo Civil, que melhor serão adiante examinadas:
V.1. Hipótese do inciso I do art. 17.
O art. 17, inciso I, do Código de Processo Civil assim prevê: (…) “deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso”. (…)
A primeira conduta analisada impõe que ao litigante é defeso sustentar pretensão ou defesa sem fundamento (de fato ou de direito), contra a verdade conhecida dos fatos, contra os fatos incontroversos, contra a lei; devendo agir de acordo com a verdade subjetiva (ou seja, acreditando na verdade das alegações deduzidas em Juízo).
O inciso I é claro ainda quanto à possibilidade de que a conduta ali tipificada pode se caracterizar tanto na propositura da demanda, quanto na defesa, ou em recurso ou contrarrazões (isto é, poderá ocorrer em qualquer ato da parte ao longo do processo).
Cândido Rangel Dinamarco[34] ao comentar referido dispositivo (isto é, o inciso I), aduz que fatos incontroversos:
“são os notórios ou aqueles que resultem de conquistas científicas idôneas, ou aqueles que de algum modo a parte já tenha reconhecido ou afirmado no processo mesmo ou extraprocessualmente (incontrovérsia inter partes)”.
Exemplificando caso prático ao analisado, assim se posiciona a jurisprudência dos Tribunais pátrios:
“Cambial. Duplicatas mercantis. Ação declaratória de inexigibilidade, cumulada com cancelamento de protesto. (…) Recurso da corré interposto contra fato incontroverso. Litigância de má-fé, nos termos do art. 17, inciso I, do CPC. Recurso da corré desprovido, com imposição de multa” [35].
V.2. Hipótese do inciso II do art. 17.
O art. 17, inciso II, do Código de Processo Civil assim prevê: (…) “alterar a verdade dos fatos”.
A segunda hipótese analisada impõe ser vedado aos participantes do processo alegar fato como verdadeiro, sabendo não ser efetivamente verdade[36].
Desse dispositivo transparece que, alterar a verdade dos fatos consiste, pois, na distorção dos fatos verdadeiros (isto é, quando a parte afirma situação diversa da real), em flagrante afronta ao disposto no art. 14, inciso I, do CPC.
Para Cândido Rangel Dinamarco[37] “O inc. II do art. 17 sanciona transgressão intencional do dever de veracidade quanto aos fatos. As inveracidades só são contrárias à ética quando acompanhadas da intenção de falsear os fatos, caracterizando-se assim como mentiras”.
V.3. Hipótese do inciso III do art. 17.
O art. 17, inciso III, do Código de Processo Civil assim prevê: (…)“usar do processo para conseguir objetivo ilegal.
A terceira hipótese analisada prevê a impossibilidade dos litigantes de usar do processo (instrumento da jurisdição), para alcançar objetivo ilegal.
Referida conduta é definida como “os casos em que a propositura da demanda é em si mesma um expediente engendrado com a finalidade de obter aquilo que a lei não permite” [38].
Devemos acrescentar que, diversas formas podem caracterizar o ato de litigância de má-fé definido como ‘uso do processo para conseguir objetivo ilegal’, como por exemplo: as demandas de separação judicial destinadas a frustrar credores mediante a subtração dos bens de um dos cônjuges à responsabilidade patrimonial (previsto no art. 591 do Código de Processo Civil).
V.4. Hipótese do inciso IV do art. 17.
O art. 17, inciso IV, do Código de Processo Civil assim prevê: (…) “opor resistência injustificada ao andamento do processo”.
A quarta hipótese em análise caracteriza como litigância de má-fé opor resistência desnecessária, inútil no processo, com o escopo único de protelar o feito, e com isso “tornar mais onerosa e menos apta a realizar a utilidade a que tem direito o litigante vitorioso” [39].
A regra examinada significa trabalhar contra a celeridade processual (isto é, ofendendo o princípio da razoável duração do processo preceituado no art. 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal).
Assim, litiga de má-fé a parte que se opõe injustificadamente ao andamento do processo para criar condições de melhor negociar um acordo à custa das fragilidades do adversário ou, ainda, aquele ato da parte que simplesmente conta com as demoras do processo para evitar o desembolso do que deve.
Para a maior parte de nossos doutrinadores o dispositivo analisado está dirigido ao demandado (réu, portanto), que mais se utiliza de manobras ardilosas para retardar a prestação jurisdicional[40].
Cândido Rangel Dinamarco[41] sustenta que “a resistência injustificada é uma fórmula bastante ampla, que abrange todas as condutas consistentes em retardar maliciosamente o processo”.
A jurisprudência também exemplifica a situação tratada: “Embargos de declaração. (…) Oposição injustificada ao andamento do processo e provocação de incidente manifestamente infundado caracterizadas. (…) Condenação da embargante ao pagamento de multa e indenização por litigância de má-fé”. [42]
V.5. Hipótese do inciso V do art. 17.
O art. 17, inciso V, do Código de Processo Civil assim prevê: (…) “proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo”.
A quinta hipótese em análise caracteriza como litigância de má-fé agir de modo temerário no processo, que nos dizeres de Pontes de Miranda[43] “…é a palavra usada na terminologia jurídica luso-brasileira para designar o que se pratica com imprudência, arrojo, ousadia, audaciosidade”.
Cândido Rangel Dinamarco[44] afirma que a litigância temerária “consiste em comportar-se de modo doloso ou mediante uma imprudência ou incoerência de posições que repugne ao senso comum”.
V.6. Hipótese do inciso VI do art. 17.
O art. 17, inciso VI, do Código de Processo Civil assim prevê: (…) “provocar incidentes manifestamente infundados”.
A sexta hipótese define como litigância de má-fé suscitar incidentes (como: exceções, conflitos de competência, recursos, ações, etc.), sem qualquer motivo ou razão; representando toda a qualquer atitude da parte de provocar providências ou decisões judiciárias interlocutórias em situação de visível falta de direito. Assim age a parte que maneja exceção de incompetência territorial com o escopo de suspender o andamento do processo para, exclusivamente, evitar a perda do prazo da contestação[45].
Também exemplifica a jurisprudência de nossos Tribunais: “Citação válida. Litigância de má-fé. Conduta que a caracteriza. Inteligência do art. 17, inc. VI, do CPC. Pena aplicada. Recurso parcialmente provido. EXECUÇÃO. Penhora on line e demais diligências. Pedidos que deverão ser analisados na origem, a fim de não suprimir grau de jurisdição. Recurso não conhecido, neste particular”. [46]
V.7. Hipótese do inciso VII do art. 17.
O art. 17, inciso VII, do Código de Processo Civil assim prevê: (…) “interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório”.
A última hipótese tipificada em nossa legislação processual civil é interpretada por alguns doutrinadores como a mais gravosa, e consiste na interposição de recurso em flagrante ofensa ao princípio-garantia da razoável duração do processo assegurado no art. 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal.
Para Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery[47] “O direito de recorrer é constitucionalmente garantido (CF 5º LV). No entanto, o abuso desse direito não pode ser tolerado pelo sistema. Esta é a razão pela qual é correta e constitucional a previsão do CPC 17 VII. (…) O recurso é manifestamente infundado quando o recorrente tiver a intenção deliberada de retardar o trânsito em julgado da decisão, por espírito procrastinatório. É também manifestamente infundado quando destituído de fundamentação razoável ou apresentado sem as imprescindíveis razões do inconformismo. O recurso é, ainda, manifestamente infundado quando interposto contrário a fundamento expresso de lei ou princípio sedimentado da doutrina e jurisprudência”.
A conduta tipificada como interposição de recurso com intuito manifestamente protelatório se configura quando há interposição de recursos “em que nenhum fundamento relevante é desenvolvido, assim como aqueles que distorcem a prova, os que invocam legislação impertinente ou jurisprudência sem relação com o caso, os que desafiam, sem fundamentos mais sérios, a jurisprudência do tribunal destinatário, do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal etc”.
Cândido Rangel Dinamarco[48] ressalva que:
“A história recente das instituições judiciárias mostra a triste realidade de órgãos públicos incidindo nessa espécie de litigância de má-fé, até mesmo por orientação de sua cúpula (Advocacia-Geral da União, Caixa Econômica Federal, etc.)”.
Em resumo, tem-se que a litigância de má-fé se caracteriza quando os participantes do processo se utilizam dos meios processuais previstos em nosso ordenamento jurídico (por exemplo: interposição de recursos, provocação de incidentes, etc.), com abuso ou desvio de finalidade. Melhor dizendo, com o objetivo de alcançar outra finalidade que não uma decisão justa.
Não divergindo do entendimento adotado por Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery, no que diz respeito à taxatividade das hipóteses previstas nos incisos I a VII do art. 17 do Código de Processo Civil, Anne Joyce Angher[49] assim assevera:
“de fato, as condutas dos litigantes reputados de má-fé estão elencadas no art. 17 do CPC em ‘numerus clausus’, ou seja, as hipóteses são taxativamente previstas e não comportam ampliação”.
Evidentemente, a conclusão exposta se funda no fato de que, aplica-se às normas que impõem sanções a interpretação restritiva; sob pena de, agindo em contrário, ofender-se à segurança jurídica.
De toda sorte, para o fim almejado as hipóteses do art. 17 do Código de Processo Civil são suficientes para abranger todas as situações que desrespeitem a boa-fé e lealdade processuais, com pudemos notar acima.
VI. Das Sanções Processuais Impostas ao Litigante de Má-Fé
Pode-se dizer que, se a prática de tais condutas acarreta prejuízos não apenas ao outro litigante, mas ao próprio Poder Judiciário, seja pela demora ocasionada na prestação da tutela, seja pela maliciosa indução do juiz a erro, seja pelo gravoso desvio da finalidade almejada com o processo (a paz social) -, permitir a procrastinação de condutas como as descritas no dispositivo legal aludido[50], seria o mesmo que permitir que o processo fosse utilizado para denegrir a imagem e a atuação do Poder Judiciário, em muito já desgastadas.
Nesse sentido, para Ada Pellegrini Grinover[51] :
“As sanções por litigância de má-fé têm o objetivo de punir aquele que praticou conduta ou ato ofensivo ou desrespeitoso ao Poder Judiciário”.
Não por outra razão, a noção de sanção vem sempre atrelada à idéia de punição, decorrente do descumprimento de algum preceito ou ordem emanada do Poder Judiciário, ressalvando que não é apenas o Poder Judiciário que tem o poder de prescrever sanções[52].
Afirma Enrico Tullio Liebman[53] que
“…as medidas, cuja imposição é estabelecida pelas leis como consequência da inobservância dos imperativos jurídicos. Sua finalidade é dupla, de um lado elas procuram restabelecer o equilíbrio perturbado pelo comportamento ilícito da pessoa obrigada, mediante a consecução por outros meios do mesmo resultado prático visado pelo imperativo primário que não foi obedecido ou mediante a realização de alguma medida que represente uma compensação jurídica da transgressão; de outro lado a existência das sanções opera como meio de pressão psicológica para induzir as pessoas obrigadas a cumprir espontaneamente suas obrigações.”
Cândido Rangel Dinamarco sustenta que “a opção legislativa tem o mérito do sensato equilíbrio porque as manobras desleais podem ocorrer de maquinações do advogado e não da parte: ela paga sempre pela deslealdade do mandatário (CC, art. 679) mas não fica desfalcada em seu possível direito”. [54]
Nesse contexto, visando assegurar a isonomia (o equilíbrio) entre os participantes do processo, o respeito ao Poder Judiciário e o combate à prática dos atos ilícitos tipificados no art. 17, incisos I a VII, do Código de Processo Civil, a legislação processual comina as sanções descritas no art. 14, parágrafo único, art. 16 e art. 18, §§ 1º e 2º, todos do Código de Processo Civil, melhor adiante analisadas.
VI.1. Da sanção prevista no art. 14, parágrafo único, do CPC.
No direito brasileiro, a Lei nº. 10.358 de 28 de Dezembro de 2001 alterou o caput do anterior art. 14, nele incluindo o inciso V e o parágrafo único, que assim passaram a dispor:
“Art. 14. São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo: (…)
V – cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais e, de natureza antecipatória ou final.
Parágrafo único. Ressalvados os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB, a violação do disposto no inciso V deste artigo constitui ato atentatório ao exercício da jurisdição, podendo o juiz, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável multa em montante a ser fixado de acordo com a gravidade da conduta e não superior a vinte por cento do valor da causa; não sendo paga no prazo estabelecido, contado do trânsito em julgado da decisão final da causa, a multa será inscrita sempre como dívida ativa da União ou do Estado”. [55]
Rui Stoco,[56] ao comentar a alteração inserida pela referida Lei (nº. 10.358 de 28 de Dezembro de 2001), fez questão de assim ressalvar:
“A Exposição de Motivos, contendo a justificação do projeto, observou que este objetiva reforçar a ética no processo, os deveres de lealdade e de probidade que devem presidir ao desenvolvimento do contraditório, e isso não apenas em relação às partes e seus procuradores, mas também a quaisquer outros participantes do processo.(…)
Inspirou-se o Projeto e teve por escopo precípuo a repressão ao contempt of court, na linguagem do direito anglo-americano, de modo a dar efetividade às decisões judiciais e evitar procrastinação em seu cumprimento”.
Nessa medida, podemos afirmar que ao introduzir a multa punitiva[57] do parágrafo único do art. 14 do Código de Processo Civil, objetivou o legislador repelir obstáculos criados pelos próprios participantes do processo tendentes a retardar a entrega da prestação jurisdicional.
Mais ainda, impôs que a não observância do dever de lealdade insculpida no inciso V do art. 14, do Código de Processo Civil: caracteriza ato atentatório à dignidade da justiça (com suas raízes fincadas no contempt of court).
Dessa forma, o resultado atingido na interpretação da sanção preceituada no inciso V, do art. 14, do Código de Processo Civil, será inevitavelmente no sentido de que referida sanção:
– Diz respeito à sanção de natureza punitiva, pois representa a um castigo ao participante do processo que viola uma norma.
José de Oliveira Ascensão[58], ao dissertar sobre o tema, sustenta que, as sanções punitivas “constituem simultaneamente um sofrimento e uma reprovação ao infrator”.
– Diz respeito à sanção pecuniária, pois deverá ser fixada de acordo com a gravidade da conduta praticada pela parte, e não superior a 20% (vinte por cento).
– Diz respeito à sanção endereçada às partes e como ensina Rui Stoco[59] “…dirigindo-se também aos auxiliares do juízo e outros atores do processo judicial como, por exemplo: peritos, avaliadores, intérpretes, oficiais de justiça, serventuários, escreventes, servidores públicos lotados nos três Poderes, autoridades e representantes dos poderes, pessoas físicas e jurídicas”.
Para Luiz Rodrigues Wambier[60] a regra do art. 14, inciso V e parágrafo único, ensina que:
“Evidentemente as partes, isto é, autor, réu e litisconsortes, assim como os terceiros interessados e os terceiros intervenientes estão sujeitos ao alcance imediato da regra da responsabilidade pela frustração ou criação de embaraço à efetividade da prestação da tutela jurisdicional. Mas, além dessas, outras figuras processuais também o estarão, como os peritos judiciais e os assistentes técnicos, o síndico da falência, o comissário da concordata, o liquidante da sociedade e o leiloeiro público ou privado. Trata-se apenas de exemplos, eis que a lei generaliza de modo absoluto (todos aqueles que de alguma forma participem do processo)”.
– Diz respeito, por fim, à sanção imposta em benefício da União ou do Estado, tendo como consequência a inscrição como dívida ativa da União ou do Estado.
VI.2. Das sanções previstas nos arts. 16 e 18 do CPC:
Podemos dizer também, que nada obstante a sanção processual que objetiva o combate à litigância de má-fé caracterizada pela prática dos atos tipificados no inciso V do art. 14, do Código de Processo Civil; nossa legislação processual civil estabelece, entre tais sanções, as direcionadas aos participantes do processo, de caráter reparatório e dispostas nos arts. 16 e 18 do Código de Processo Civil, assim descritas:
“Art. 16. Responde por perdas e danos aquele que pleitear de má-fé como autor, réu e interveniente.” [61]
“Art. 18. O juiz ou tribunal, de ofício ou a requerimento, condenará o litigante de má-fé a pagar multa não excedente a um por cento sobre o valor da causa e a indenizar a parte contrária dos prejuízos que esta sofreu, mais os honorários advocatícios e todas as despesas que efetuou.
§ 1º Quando forem dois ou mais os litigantes de má-fé, o juiz condenará cada um na proporção do seu respectivo interesse na causa, ou solidariamente aqueles que se coligaram para lesar a parte contrária.
§ 2º O valor da indenização será desde logo fixado pelo juiz, em quantia não superior a 20% (vinte por cento) sobre o valor da causa, ou liquidado por arbitramento”. [62]
Como podemos observar, a própria lei, sem deixar margem a dúvida, previu que a prática das condutas descritas nos incisos I a VII do art. 17 do Código de Processo Civil (art. 16, caput e art. 18, caput e parágrafos primeiro e segundo), sujeitará os participantes do processo tanto (a) ao pagamento de multa de natureza punitiva em quantia equivalente a 1% (um por cento) sobre o valor da causa, quanto (b) a indenizar o outro litigante pelos prejuízos que venha a sofrer.
Cândido Rangel Dinamarco[63] ao dissertar sobre a responsabilidade civil preceituada no referido dispositivo legal (caput do art. 16, do Código de Processo Civil), assim nos ensina:
“A responsabilidade civil extracontratual prevista no art. 16 do Código de Processo Civil é objetiva com relação ao dano, não sendo necessário que o litigante de má-fé tenha o animus de causá-lo ou mesmo a consciência de sua dimensão. Basta a intenção de prejudicar o processo e seu andamento mediante condutas tipificadas no art. 17”.
Destarte, as sanções à deslealdade consistente na prática de quaisquer dos atos preceituados no art. 17, incisos I a VII, do Código de Processo Civil, preceituadas no art. 16, caput e 18, parágrafos primeiro e segundo do mesmo diploma legal, podem ser assim classificadas:
– Diz respeito a sanções de natureza reparatória (portanto: no caso da sanção prevista no art. 18, caput do Código de Processo Civil além da reparação do dano, há a imposição de multa com caráter punitivo, não excedente a 1% (um por cento) do valor da causa, despesas, mais os honorários advocatícios).
– Diz respeito a sanções pecuniárias (sendo que, no caso do parágrafo segundo do art. 18, do Código de Processo Civil, não poderá ultrapassar o percentual de 20% sobre o valor da causa ou ser liquidada por arbitramento);
Para Rui Stoco[64]:
“Como o prejuízo sofrido em decorrência do mau uso do procedimento em ação judicial não pode ser composto como deveria ser, ou seja, com a recomposição do status quo ante, a lei preferiu estabelecer critério de reparação pecuniária, baseada, em princípio (embora com incoerência), no efetivo prejuízo, desde que de natureza material ou patrimonial”.
Ao fazer referência ao § 2º do referido art. 18 do Código de Processo Civil, assim comenta Rui Stoco:[65]
“Significa então que o preceito, em verdade, não limitou – como não poderia fazê-lo – a indenização a 20% do valor da causa. Com essa interpretação fica claro que até o limite de 20% o valor da indenização será fixado pelo juiz nos próprios autos e apura-se o quantum de forma matemática. Caso o julgador vislumbre que esse limite não indeniza por completo, nem corresponde ao valor do prejuízo suportado, então remeterá a parte interessada ao arbitramento para que, se apurem, por completo, as perdas e danos”.
– Diz respeito a sanções processuais endereçadas às partes e impostas em benefício do litigante prejudicado.
Nesse sentido, tem a jurisprudência do Colendo Superior Tribunal de Justiça assim se posicionado:
(…) “6. Responde por litigância de má-fé (arts. 17 e 18) quem causar dano com sua conduta processual, que, nos termos do art. 16, somente podem ser as partes, assim entendidas como autor, réu ou interveniente em sentido amplo. Com efeito, todos que de qualquer forma participam do processo têm o dever de agir com lealdade e boa-fé (art. 14, do CPC). (…) Porém, em caso de má-fé, somente os litigantes, estes entendidos tal como o fez Pontes de Miranda, estarão sujeitos à multa e indenização a que se refere o art. 18, do CPC. (…) Os danos causados pela conduta do advogado deverão ser aferidos em ação própria para esta finalidade, sendo vedado ao magistrado, nos próprios autos do processo em que fora praticada a conduta de má-fé ou temerária, condenar o patrono da parte nas penas a que se refere o art. 18, do Código de Processo Civil”. [66]
VI.3. Problematizando: A discussão acerca da possibilidade de condenação do advogado nas penas decorrentes da litigância de má-fé.
Em consonância com o discutido acima, mais especificamente no item VI.1 (Da sanção prevista no art. 14, parágrafo único, do CPC), não podemos deixar de enfatizar neste estudo a discussão acerca da possibilidade de condenação do procurador do litigante (ou litigantes), em caráter solidário, quando configuradas as condutas tipificadas no art. 17, inciso I a VII, do Código de Processo Civil, diga-se, nos autos da mesma demanda em que atua na representação de seu cliente.
Rui Stoco[67], ao traçar paralelo de quem pode sofrer sanções por má-fé processual, assim ensina:
“Tanto aquele que se posta no pólo ativo, não importando o nomen iuris que se lhe dê (autor, requerente, exequente, impetrante, recorrente, apelante, agravante, embargante, paciente e outros), como aquele que se coloca no pólo passivo (réu, requerido, executado, impetrado), como, de resto, aqueles que se aderem às partes ou as substituem, como os litisconsortes, assistentes, opoentes, denunciados ou nomeados à lide, são considerados para os efeitos do art. 16 do CPC”.
Barbosa Moreira[68] ainda sustente a legitimidade dos intervenientes como destinatários de referida sanção, assim esclarecendo: “por ‘interveniente’ entende-se todo aquele que, não participando do processo desde o início, e fora da hipótese de sucessão, nele ingresse voluntariamente, para postular direito seu, ou se veja citado para integrá-lo”.
Por sua vez, ao adentrar no estudo da legitimidade do advogado para sofrer sanção por má-fé processual, assim enfatiza Rui Stoco[69]:
“O procurador das partes em juízo (defensor ou advogado) não responde pessoalmente por má-fé processual. PORTANTO, NEM O JUIZ NEM O ADVOGADO PODEM SER SANCIONADOS PELA NORMA QUE COÍBE A LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ, POIS ESTA DIRIGE-SE À PARTE, DE MODO QUE, EM ÚLTIMA ANÁLISE, ESTA PARTE RESPONDERÁ PELOS ATOS DEIMPROBIDADE DE SEU REPRESENTANTE JUDICIAL”.
Segundo pudemos observar, em que pese os árduos debates sobre o tema e a existência de divergências ainda nos tempos atuais[70], a jurisprudência do Colendo Superior Tribunal de Justiça se solidificou no sentido de que as penas decorrentes da litigância de má-fé somente devem ser imputadas às partes e não ao seu advogado, ou, melhor explicitando: eventual condenação do defensor (advogado) em litigância de má-fé deve ser apurada em ação própria, jamais nos mesmos autos em que defende se cliente:
“RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO PENAL. CONDENAÇÃO DO ADVOGADO POR LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ NOS MESMOS AUTOS EM QUE CONDENADA A PARTE POR ELE PATROCINADA. IMPOSSIBILIDADE. RECURSO PROVIDO. 1. A utilização de mandado de segurança contra ato judicial é admitida excepcionalmente, desde que o referido ato seja manifestamente ilegal ou revestido de teratologia, o que ocorre na hipótese. 2. "Os danos eventualmente causados pela conduta do advogado deverão ser aferidos em ação própria para esta finalidade, sendo vedado ao magistrado, nos próprios autos do processo em que fora praticada a alegada conduta de má-fé ou temerária, condenar o patrono da parte nas penas a que se refere o art. 18, do Código de Processo Civil" (…)[71] “PROCESSUAL CIVIL. MULTA POR LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. COMPENSAÇÃO COM HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. IMPOSSIBILIDADE. 1. A pena por litigância de má-fé deve ser aplicada à parte, e não ao seu advogado, nos termos dos arts. 14 e 16 do Código de Processo Civil. 2. O advogado não pode ser penalizado nos autos em que supostamente atua como litigante de má-fé, ainda que incorra em falta profissional. Eventual conduta desleal do advogado deve ser apurada em processo autônomo, nos termos do art. 32 do Estatuto da Advocacia (Lei 8906/94)”. (…)[72] “PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO ESPECIAL. (…) OMISSÃO QUANTO À CONDENAÇÃO SOLIDÁRIA DO ADVOGADO AO PAGAMENTO DE MULTA POR LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ. (…)3. A responsabilização solidária do advogado, nas hipóteses de lide temerária, ocorrerá somente após a verificação da existência de conluio entre o cliente e seu patrono, a ser apurada em ação própria. A condenação ao pagamento da multa por litigância de má fé deve ser limitada às partes, pois o profissional da advocacia está sujeito exclusivamente ao controle disciplinar da Ordem dos Advogados do Brasil. Precedente. 4. Embargos de declaração parcialmente acolhidos, com modificação do Julgado”. [73]No mesmo sentido julgados do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo[74].No entanto, corretamente ressalva Alcides de Mendonça Lima[75] que:“Se, contudo, o causídico, por seu comportamento, trouxer prejuízo ao seu constituinte, porque esse ficou responsável perante o contendor, o cliente poderá entrar com ação regressiva contra o seu procurador para ressarcir-se”.
VI.4. Má-fé processual e reconhecimento de ofício:
Nosso Código dispõe, com precisão, sobre a possibilidade de condenação ‘de ofício’ do litigante ao pagamento da multa (sanção processual) decorrente da prática dos atos tipificados como de má-fé, como se observa da análise do disposto no caput do art. 18 do Código de Processo Civil:
“Art. 18. O juiz ou tribunal, de ofício ou a requerimento, condenará o litigante de má-fé a pagar multa não excedente a um por cento sobre o valor da causa e a indenizar a parte contrária dos prejuízos que esta sofreu, mais os honorários advocatícios e todas as despesas que efetuou. [76]
Disso não diverge a jurisprudência dos nossos Tribunais pátrios:
“CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. QUITAÇÃO PARCIAL DA OBRIGAÇÃO PELO DEVEDOR. MÁ-FÉ RECONHECIDA DE OFÍCIO. ART. 1.531 DO CÓDIGO CIVIL DE 1916. JULGAMENTO ULTRA PETITA. INEXISTENTE. AGRAVO IMPROVIDO. I. A condenação em litigância de má-fé é dever do juízo, independe de pedido, e não configura julgamento extra ou ultra petita, em consonância com a exegese pacificada na Segunda Seção [77].
“Título de crédito. Ação declaratória de nulidade de duplicatas, cancelamento de protestos e indenizatória. Títulos sacados sem relação comercial ou de prestação de serviços subjacente. Procedência. Dano moral indenizável. Valor indenizatório.
Adequação Multa e indenização por litigância de má-fé aplicada de ofício. Possibilidade. Art. 18, caput, do CPC. Apelação provida, em parte”. [78]
Alerta, no entanto, Rui Stoco[79] que “…a novidade e a novel alteração possui virtude e defeito. Virtude de dar ao julgador instrumento eficaz para coibir os abusos, as chicanas e fraude processual, impondo, desde logo, e sem delongas a reprimenda necessária, de modo a colocar o procedimento de volta aos trilhos, na consideração de que a litigância de má-fé ofende mais ao Estado-Juiz e a dignidade da justiça do que a outra parte litigante. Contudo, constitui nódoa, que se converte em vício ou grave defeito, permitir que se aplique uma pena – seja de que natureza for – sem assegurar o direito de defesa”.
Semelhantemente ao concluído acima, também é a posição de Reginaldo Felker[80]:
“Não há dúvida de que a multa pode e deve ser aplicada de ofício, pelo Juiz, diante de conduta caracterizada como de má-fé, pois multa se estabelece ante o desrespeito da Parte, atingindo a administração da Justiça. Diferentemente da indenização. Diante do que permanece no Ordenamento Jurídico vigente, não cabe ao juiz, de ofício, promover a condenação por perdas e danos”.
Ressalva Rui Stoco[81], ainda, em tentativa de resguardar os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório (art. 5º, inciso LV, da Constituição Federal), que:
“…quando o magistrado vislumbrasse a possibilidade de aplicação de sanção por litigância de má-fé, poderia despachar nos autos esclarecendo que, havendo a possibilidade dessa imposição, que a parte se manifestasse a apresentasse os esclarecimentos ou defesa que entendesse pertinentes para, só então, após os esclarecimentos ou o decurso in albis do prazo, tomar a providência que julgasse cabível”.
VI.5. Momento de Aferição da Litigância de Má-Fé:
Em linhas gerais, reconhece-se que a constatação da configuração da conduta tipificada como litigância de má-fé, é feita no momento de prolação da sentença, pelo Magistrado.
No entanto, inequívoco que nem mesmo a própria lei estabeleceu regras sobre o momento correto em que se deva verificar a ocorrência da estudada conduta desleal, tanto que, Rui Stoco ao adentrar ao tema cita o entendimento de MILHOMENS (1961, p. 83), para o qual “o abuso de direito, o espírito de vexação pode dar-se não somente na fase cognoscitiva do processo, mas também nas dos recursos e da execução” [82].
VII. Dos Atos Atentatórios à Dignidade da Justiça (contempt of court).
Para que o presente estudo seja completo, não podemos deixar de ressalvar que nossa legislação processual civil também tipifica em seu art. 600, incisos I a IV, os atos atentatórios à dignidade da justiça, que caracterizam flagrantes hipóteses de abuso do direito, assim definidas por Cândido Rangel Dinamarco[83]:
“(…) “O abuso do direito no processo, que independe de cláusula explícita na lei, define-se como o uso de meios legítimos além dos limites da legitimidade de seu uso”.
Nesse sentido, tais condutas são assim descritas:
“Art. 600. Considera-se ato atentatório à dignidade da Justiça o ato do executado que:
I – frauda a execução;
II – se opõe maliciosamente à execução, empregando ardis e meios artificiosos;
III – resiste injustificadamente às ordens judiciais;
IV – intimado, não indica ao juiz, em 5 (cinco) dias, quais e onde se encontram os bens sujeitos à penhora e seus respectivos valores.”
Para Ada Pellegrini Grinover[84] a origem do contempt of court: “…está associada à idéia que inerente à própria existência do Poder Judiciário a utilização dos meios capazes de tornar eficazes as decisões emanadas. É inconcebível que o Poder Judiciário, destinado à resolução de litígios, não tenha o condão de fazer valer os seus julgados. Nenhuma utilidade teriam das decisões, sem cumprimento ou efetividade. Negar instrumento de força ao Judiciário é o mesmo que negar sua existência”.
Em suma, devemos identificar que o contempt of court significa uma conduta desleal e eivada de má-fé que num primeiro plano atinge (ofende) diretamente o comando do Poder Judiciário (o que não pode ser tolerado), e em segundo plano o direito do outro litigante.
De forma diferente não entende Cândido Rangel Dinamarco[85], que assim aduz:
“Essa repressão endereça-se às condutas do executado que de algum modo se mostre arredio à sua sujeição, e de seus bens, à autoridade judicial.”
Por sua vez, Humberto Theodoro Júnior[86] afirma que o abuso do direito pode ser definido como: “os atos de má-fé praticados por quem tenha uma faculdade de agir no curso do processo, mas que dela se utiliza não para seus fins normais, mas para protelar a solução do litígio ou para desviá-la da correta apreciação judicial, embaraçando, assim, o resultado justo da prestação jurisdicional”.
VII. Análise das condutas tipificadas nos incisos I a IV do art. 600.
Vemos, pois, que as figuras de atos atentatórios à dignidade da Justiça, descritas nos incisos I a IV, do art. 600, do Código de processo Civil, contêm em si, às avessas, regras éticas de comportamento a ser observado por parte do executado.
O que também se tem como claro, é que “o contempt of court se caracteriza por atos de maliciosa rebeldia à autoridade judiciária, sempre carregados de dolo processual” [87], que melhor serão adiante examinadas:
VII.1. Hipótese do inciso I do art. 600:
O art. 600, inciso I, do Código de Processo Civil dispõe que “considera-se atentatório à dignidade da justiça o ato do executado que”: (…) “frauda a execução”.
A primeira conduta analisada, para Cândido Rangel Dinamarco[88] “tem significado bastante amplo e representa agir fraudulentamente, com dolo, de modo a prejudicar o credor”.
Pormenorizando o conceito retro citado, Cândido Rangel Dinamarco[89] nos ensina que “O atentado consistente em fraudar a execução (art. 600, inc. I) significa que o devedor tem o dever negativo de não fraudá-la. A fraude de execução, aqui indicada, não se resume ao conceito desse instituto na disciplina na responsabilidade civil, onde ele se caracteriza como ato de disposição do bem, capaz de reduzir o executado à insolvência ou ato de alienação do bem especificamente devido (art. 593). Geralmente esses atos não causam prejuízo algum ao exequente porque os atos de disposição na pendência do processo são ineficazes e, apesar de alienado ou onerado, o bem continua respondendo pela obrigação do devedor-alienante” (…)
VII.2. Hipótese do inciso II do art. 600:
O art. 600, inciso II, do Código de Processo Civil dispõe que “considera-se atentatório à dignidade da justiça o ato do executado que”: (…) “se opõe maliciosamente à execução, empregando ardis e meios artificiosos”.
A segunda hipótese examinada deve ser definida como aquela conduta maliciosa do devedor (executado) que consiste no desvio de finalidade do ato. Assim age, por exemplo: o executado que esvazia suas contas bancárias com o objetivo específico de evitar a penhora de seus créditos existentes em conta-corrente.
Ao tecer comentários sobre a conduta ora em exame, Cândido Rangel Dinamarco[90] aduz que opor-se maliciosamente à execução é:
“reflexo do dever de limitar a resistência ao que for eticamente legítimo e não malicioso. Em substância, essa hipótese coincide com a do inc. I, sendo ambas bastante amplas e vagas. Um espelho que ilustra as duas hipóteses é a do executado que oculta bens penhoráveis ou penhorados, ou esvazia contas bancárias com o objetivo de evitar a penhora de seus créditos em conta-corrente”.
VII.3. Hipótese do inciso III do art. 600:
O art. 600, inciso III, do Código de Processo Civil dispõe que “considera-se atentatório à dignidade da justiça o ato do executado que”: (…) “resistir injustificadamente às ordens processuais”.
Vemos que, a terceira conduta tipificada como ato atentatório à dignidade da justiça se configura no ato do executado de “maquinar meios artificiosos destinados a retardar a tutela jurisdicional executiva”[91]. Assim age, por exemplo: o executado que mesmo intimado, impede a avaliação de imóvel penhorado para fins de avaliação (e posterior praceamento).
VII.4. Hipótese do inciso IV do art. 600:
O art. 600, inciso IV, do Código de Processo Civil dispõe que “considera-se atentatório à dignidade da justiça o ato do executado que”: (…) “intimado, não indica onde se encontram os bens passíveis de penhora”.
A quarta e última das condutas considerada por nosso legislador como ato atentatório à dignidade da justiça (prevista no inciso IV do art. 600), pode ser definida brevemente como a recusa do executado em indicar ao juiz onde se encontram os bens passíveis de penhora (ou sujeitos à execução).
Para Cândido Rangel Dinamarco referida disposição “tem como manifesto objetivo chamar o executado para colaborar com a Justiça, sabendo-se que a ocultação de bens e de sua própria existência são ardis maliciosos que comprometem a efetividade das atividades jurisdicionais e desmerecem institucionalmente o próprio Poder Judiciário”[92].
VIII. Da sanção prevista no art. 601 do CPC.
Considerando que o contempt of court se caracteriza por atos do executado (portanto devedor), de maliciosa rebeldia à autoridade judiciária, a sanção à prática de tais atos está regulada no caput, do art. 601 do Código de Processo Civil, que assim dispõe “Art. 601. Nos casos previstos no artigo anterior, o devedor incidirá em multa fixada pelo juiz, em montante não superior a vinte por cento (20%) do valor atualizado do débito em execução, sem prejuízo de outras sanções de natureza processual ou material, multa essa que reverterá em proveito do credor, exigível na própria execução”.
Em linhas gerais, o resultado atingido na interpretação da sanção preceituada no art. 601, caput, do Código de Processo Civil, será inevitavelmente no sentido de que referida sanção:
– Diz respeito à sanção de natureza repressiva (e não reparatória), pois visa castigar aquele que se comporta contrariamente ao exercício da jurisdição.
– Diz respeito à sanção pecuniária (que nos termos do caput do referido art. 601, não poderá ultrapassar o percentual de 20%, aqui sobre o valor do débito).
A respeito dessa abordagem, Cândido Rangel Dinamarco[93] assim ressalva “Em sua formulação originária o art. 601 do Código de Processo Civil cominava sanção tipicamente processual e não pecuniária, impedindo a parte de se manifestar no processo até quando lhe fosse relevada a pena”.
– Diz respeito à sanção endereçada às partes[94] e imposta em benefício da parte prejudicada, tanto que, afirma Cândido Rangel Dinamarco[95]:
“…A multa imposta pelo art. 601 do Código de Processo Civil beneficiará o adversário e não o Estado”.
A partir da análise da identidade desses elementos, cabe reforçar que a própria jurisprudência de nossos Tribunais já se encarregou de diferenciar os institutos da litigância de má-fé e do contempt of court: “Processo de execução. Distinção entre litigância de má-fé e ato atentatório à dignidade da Justiça. (…) Contudo, a litigância de má-fé viola, preponderantemente, os interesses da parte que, no processo de conhecimento, encontram-se em igualdade funcional perante o juízo. No processo de execução, em que o devedor já se encontra em posição de sujeição perante o credor a improbidade do primeiro ofende diretamente o órgão jurisdicional e constitui, por isso, ato atentatório à dignidade da Justiça. Além disso, a configuração de cada espécie dá-se por padrões distintos de conduta processual”. [96]
Por fim, acatando a existência de distinção entre os institutos da litigância de má-fé e o contempt of court, assim nos explica Anne Joyce Angher[97] “Enquanto a litigância de má-fé prejudica a parte vítima do ‘improbus litigator’, que ofende o princípio da lealdade processual, o ato atentatório ao exercício da jurisdição ou ‘contempt of court’ visa proteger o Poder Judiciário, sua autoridade e a eficácia de suas decisões”.
IX. CONCLUSÃO
Diante do estudo apresentado, podemos concluir que, com o objetivo de prevenir ou reprimir a prática por aqueles que de alguma forma participem do processo, de atos desleais ou de má-fé, o legislador previu em nosso ordenamento jurídico sanções processuais, dentre as quais podemos destacar aquelas que aqui foram pesquisadas mais a fundo, quais sejam: as sanções processuais decorrentes da litigância de má-fé e atos atentatórios à dignidade da justiça (contempt of court), tudo com o objetivo de zelar pela preservação da autoridade da jurisdição e, pelo respeito à administração da justiça; além de evitar que na busca da pacificação do conflito de interesses vença a parte mais astuta, e não aquela que sob a ótica da Justiça, tenha razão.
Para que tal ideal de justa composição do conflito (ou processo justo) seja atingido, ou que ao menos seja possível ao jurisdicionado percorrer um caminho menos árduo e mais leal na busca da solução do litígio cujo desfecho foi atribuído ao Poder Judiciário, imprescindível impor aos participantes do processo (instrumento), que o utilizem observando as regras de conduta expressamente tipificadas, que nada mais visam senão a efetivação de princípios constitucionais assegurados por nossa Constituição Federal.
Com isso, a busca pela paz social poderá ser atingida por meio de um processo judicial (instrumento) ético, técnico e justo!
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Notas:
Advogada em São Paulo. Coordenadora da Área do Contencioso Cível no Escritório de Advocacia Claudio Manoel Alves. Mestranda em Direito Processual Civil na PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Professora Assistente no Curso de Graduação em Direito da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), na área de Direito Processual Civil
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