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A nossa cultura ético-jurídica

O país infelizmente ainda não tem
cultura ético-jurídica suficiente para condenar uma autoridade pública tão
somente por infringirem princípios como da legalidade ou da  justiça,
salvo se intervirem outras razões e conveniências. E
se esse julgamento for pelos próprios pares, fica quase impossível tal
condenação, pois o raciocínio que preside tal hipótese é o de que tal
condenação afeta a imagem e conspira contra a corporação. Daí porque é tão raro
um humilde vencer efetivamente um poderoso a partir só e exclusivamente de
razões jurídico-morais. O lobby (no pior sentido) e a automática defesa
corporativista ainda são nossas reminiscências de quarto mundo. O justo e o
legal  –  expressões máximas do Estado de Direito  –  por
si só ainda perdem para o “inconveniente” da condenação de parceiros e
poderosos  flagrados  em  falhas éticas ou criminais.

Assim, a luta para se fazer justiça em
caso concreto e individual (fora das retórica), em
certas situações, ainda é uma questão de bravura e heroísmo de poucos. Veja-se
o caso do filho de um ministro que atropelou e matou um operário, em termos
proporcionais de justiça pode-se dizer que quase se condena a vítima.
Confirme-se o que ocorre se uma grande empresa for condenada a devolver
dinheiro ao mero consumidor, ao assalariado, é quase impossível que isso se
efetive antes do hipossuficiente ser obrigado a
aceitar um acordo injusto e benéfico apenas a empresa
condenada: pesquisem, p.ex., como é quase impossível o Grupo OK, o WV Tartuce, dentre outros, cumprirem sentenças/acórdãos, aqui
em Brasília, e por certos, noutros Estados…

Há um caso concreto e paradigmático
nesse tema de cultura ético-jurídica no Brasil. È o caso do menino lesado em
sua riquíssima herança, na Capital da República, no centro da razão nacional. Pode-se
bem imaginar o quão difícil é a tramitação e a boa vontade com  processos
(“processo aidético”, ouvia-se), como os desse menino. Com a CPI houve uma leve
sombra de esperança de que a justiça e lei pudessem se tornar impessoais e
deferidas a todos indistintamente, menos a menino órfão e pobre (e mais
empobrecido na e pela Justiça). Apagados os holofotes o menino e seus
defensores devem ser massacrados, senão condenados por ousarem buscar justiça
na  Justiça e onde mais fosse necessário. O menino vai terminar por ser
condenado, não a receber, mas a pagar a seus lesantes.
Nesse caso rumoroso se quiser atestar a lisura do trabalho do juiz (e de sua
equipe) basta que se apresentem os requerimentos dos credores exigindo
pagamentos das dívidas feitas pelo falecido e no montante da riqueza deixada
pelo e consumida em
juízo. Restaria, então, apenas a falha formal de não se ter
procedido, antes, como a lei e a moralidade pública impunham a todos e mais
ainda a um juiz. E a imprescindível prestação de contas dessa gestão de
patrimônio alheio?  Não seria isto uma garantia do maior interesse do
próprio juiz, curador, advogados, gestores judiciais… ??

Ora, um juiz pagar “dívidas” sem que
ninguém as exija e com dinheiro de terceiro que sob sua guarda subsiste e se
tal fato se dá em detrimento de uma criança-órfã  isso será fato que se
possa ou que se deva esconder com esfarrapadas e deturpadas tergiversações pseudojurídicas? Andou-se, por exemplo, propagando, no afã
de defender o indefensável, ou seja, a legitimidade do desaparecimento da
herança do órfão que não se tratava de bens de menor, mas do espólio (e sendo
do espólio, poderia ser pilhado?? Com efeito, maior sandice jurídica não
poderia ser proclamada; ou trata-se da maior má-fé (péssima-fé, ainda é pouco),
ou de ambos conjugados. Ora, todos os  estudante de Direito sabem que
nosso sistema jurídico se orienta pelo princípio jurídico da saissine que indica que “nenhum bem fica sem proprietário
pela morte do detentor do domínio, considerando-se imediatamente como
proprietário o herdeiro. Saissine,
é assim, o direito à posse de uma herança pela simples morte do de cujus.” Eis então o “fundamento do direito das sucessões,
no sentido de que a morte não interrompe o direito de propriedade, ou seja, o
domínio e a posse dos bens transmitem-se desde logo aos herdeiros mesmo que
estes desconheçam o falecimento e sem formalidade alguma.” (confira-se em todas
as obras, p.ex.. Leib Soibelman
Enciclopédia jurídica eletrônica, Elfez, RJ, versão
2.0, s/data., v. saissine).

Tão débil quanto o despropósito de
defender-se o mal, é a tese de que o pátrio poder da anulada e ingênua mãe
(ameaçada até de perder esse poder sobre seu filho) do menino pudesse justificar a dilapidação imoral da herança pelo
Estado-juiz, já porque tal pátrio poder, despido de todo o poder
econômico-financeiro sobre a rica herança, não seria senão apenas a guarda e a
educação somente do próprio menor-herdeiro; já porque o espírito da lei, longe
disso, visou proteger o menor e jamais o juiz, o curador, o advogado que cuidam
de bem de menor. A falta de leilão (hasta pública) foi  o que permitiu ao
lado da irregular concentração de tudo sob o poder do mesmo juiz e do mesmo rol
de pessoas interessadas não na sorte do menor, o que hoje resta bem patente (é
só ver as dívidas geradas para ele ao longo do inventário). A conveniência tranquilizadora para o juiz não indicaria a hasta pública
ainda que não obrigatória (o que não é verdadeiro)?

Não é nada normal, justo ou legal,
menos ainda moral esconder-se a sujeira para baixo do tapetão dos gabinetes.

Os que erraram (por desonestidade ou
desleixo) que se desculpem perante seus pares, à sociedade e aos prejudicados,
quiçá isso já seja reconforto suficiente para encerrar a luta do Davi contra o
Golias, como nesse caso do órfão. E isso todos, enfim, deveriam estar buscando:
a OAB (porque é sua missão estar ao lado dos advogados e dos deveres
ético-profissionais), o MP (porque fiscal da lei e do interesse judicial do menores), a magistratura (porque devem buscar a justiça
acima de tudo por dever funcional, legal e de juramento), a impressa em geral
(porque sendo um quarto poder precisa usar legitima e justamente tal força), o
Poder Legislativo (porque é a  representação final do povo no poder e, sem
o fundamento da legitimidade e da justiça é poder desnecessário e inútil) e a
sociedade em geral (porque não pode ficar silente de
diante  de tal injusta imoralidade, sob pena de se perder como fonte de
todos os poderes). O Brasil  está a exigir de seus lideres e homens públicos
exemplos edificantes, basta da ‘pedagogia’ da corrupção em que os piores
afastam os melhores no podium social.

E como aquele nefasto utilitarismo
imoral (tudo vale a pena se grana não é pequena) pode ser efetivado, na concretude da vida judicial, com ar e retórica de boa
técnica: dois homens inteligentes e razoavelmente preparados no manejo do
discurso jurídico podem debater  por cem anos e ambos encontraram “razões”
e discursos para mais cem anos de debates e, provavelmente ambos passaram a impressão
de estarem corretos. Mas no fundo, na essência da questão, um só estará
manejando verdadeiras razões de justiça e o bom Direito; o outro estará usando
apenas belos discursos pseudojurídicos, aliás muito em voga nesses tempos de farisaísmos. E aí a
decisão final, nesses casos raros e extremos, mas concretamente existentes,
ficará por conta do valor  justiça ou  por conta do “valor”
conveniência, corporativismo, do princípio “uma mão lava a outra…”.

Em conclusão, podemos responder à
pergunta que não quer se calar: a justiça (o valor ético essencial do homem) só
é viável, entre nós, se houver um lobby a seu favor, se outros interesses
intervierem na decisão? Cremos que não, do contrário não estaríamos aqui nessa
posição não tão favorável. Enfim, precisamos de uma ferrenha guerra santa
(cujas batalhas são muitas); de cruzadas pós-modernas. Faz necessário, no
entanto, o reacender das qualidade de caráter, tais
como o ser honesto, o ser heróico, o ser desprendido, que, aliás, já são
exigência acima da média dos homens. Do contrário só nos restará a justiça utilitarista : só e quando for útil ou interessante é que
ela poderá se viabilizar nos casos concretos. È preciso que se apurem mais
detidamente que o comum, os casos em se ousem denunciar autoridades de um setor
da vida nacional que ainda não padece da infeção
generalizada da corrupção, o mal é ainda tópico.(Abr/2000).

 

Notas

1. Aguiar,
Roberto A.R., A crise da advocacia no Brasil, 2ª ed. Ed.
Alfa-Omega, SP,1994, pág.159.

2. Cf  in  nosso ensaio intitulado “Trajetória
dos  Advogados  do  Brasil”, publicado em varias Revistas
técnicas  no Brasil e em Portugal (Verbo Jurídico).

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Luiz O. Amaral

 

advogado militante
ex-professor Direito na UnB e UDF

 


 

Equipe Âmbito Jurídico

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