Resumo: Apesar da sistemática constitucional advinda em 1988, na qual é vedada a pena de trabalhos forçados, o sistema de execução penal vigente no ordenamento jurídico brasileiro prevê a obrigatoriedade do trabalho do apenado à pena privativa de liberdade em caráter definitivo como forma de ressocialização da pessoa e para evitar o ócio carcerário, dentre outros fins. O regulamento que prevê a obrigatoriedade do trabalho prisional é a Lei de Execução Penal (LEP), publicada em 1984, legislação anterior à atual Constituição. Dessa forma, surge a celeuma a respeito da possível não receptividade da obrigatoriedade do trabalho prisional em razão da proibição da pena de trabalhos forçados surgida no art. 5°, inciso XLVII, alínea "c" em 1988. Em que pese tal polêmica, seguindo o método dedutivo, o entendimento majoritário é da manutenção da obrigatoriedade do trabalho prisional, visto que não poderá ser considerado como sinônimo de trabalho forçado. Além disso, com a obrigatoriedade do trabalho prisional, surge a impossibilidade do enquadramento do preso no regime trabalhista celetista, visto que o direito do trabalho preza os cuidados ao trabalho livre, aquele no qual há a concordância em trabalhar.
Palavras-chave: Trabalho prisional; Trabalho obrigatório; Trabalho forçado; Direito do Trabalho; Ressocialização.
Abstract: Despite the constitutional systematic arising in 1988, which is fenced worth of hard labor, the existing criminal enforcement system in the Brazilian legal system provides for the obligation of the convict labor to imprisonment for definitively as the person form of rehabilitation and to avoid prison idleness, among other purposes. The regulation provides for the compulsory prison labor is the Law on Penal Execution (LEP), published in 1984, previous legislation to the present Constitution. Thus comes the uproar about the possible non-responsiveness of compulsory prison labor because of the abolishment of the forced labor emerged in art. 5th, subsection XLVII, point "c" in 1988. Despite such controversy, following the deductive method, the prevailing understanding is maintaining compulsory prison labor, as it may not be considered as synonymous with forced labor. Moreover, with the obligation of prison labor, comes the impossibility of framing stuck in CLT labor regime, since labor law appreciates the care the free labor, one in which there is agreement to work.
Keywords: Prison labor; Compulsory labor; Forced labor; Labor Law; Resocialization.
Sumário: Introdução. 1. Considerações iniciais. 2. O trabalho obrigatório. 3. A obrigatoriedade do trabalho prisional e a inaplicabilidade dos direitos trabalhistas. 4. A não receptividade do trabalho obrigatório após a CRFB/1988. 4.1. As diferenças entre trabalho forçado obrigatório e degradante. Considerações finais.
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa tem como tema o trabalho carcerário, mais especificamente a obrigatoriedade imposta pela Lei de Execução Penal, e a consequente situação da marginalização celetista imposta ao apenado, assim, ao preso não é conferido o status da relação de emprego.
A prática do trabalho, em princípio, é apontada como o principal meio cabível para a ressocialização dos apenados, ocupando a mente dos indivíduos para a disciplina nas penitenciárias, profissionalizando os trabalhadores para a futura recolocação à vida em sociedade. Atualmente, a Lei n. 7.210 de 1984, também chamada Lei de Execuções Penais (LEP), em seu artigo 31, prevê a não incidência celetista, ou seja, o preso não possui um regime jurídico disciplinando o seu labor. O apenado apenas possui poucos direitos laborais previstos na LEP.
Tal situação é encarada dessa forma em razão do trabalho do apenado ser considerado obrigatório. Seguindo o raciocínio, a exposição de motivos da LEP demonstra que o preso não possui "a liberdade para a formação do contrato". Por sua vez, o direito trabalhista cuida do trabalho do homem livre, que será aquele no qual há a opção do destinatário dos resultados advindos com o trabalho. Diante desse conflito "trabalho obrigatório X trabalho livre", restaria prejudicada a configuração do contrato de trabalho e, por conseguinte, o trabalho prisional não se encontraria dentro das situações merecedoras de atenção do direito trabalhista.
Todavia, surge a possibilidade da não obrigatoriedade do trabalho prisional após o surgimento da proibição da pena de trabalhos forçados, artigo constitucional inovador, não antes previsto nas constituições anteriores. Sendo assim, é necessária a abordagem do tema para a análise da manutenção em relação ao entendimento quanto à obrigatoriedade.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A ciência do direito sempre deverá ser abordada sob diversos enfoques, não apenas na área pormenorizada, específica na qual se concentram os principais efeitos, mas também nas demais searas em que porventura possam ocorrer respingos desses efeitos. É o que ocorre no campo do trabalho prisional, pois se verifica um forte ponto de encontro entre as disciplinas penalista e trabalhista, visto que o trabalho é realizado em ambiente prisional.
O trabalho aplicado nos estabelecimentos prisionais também poderá ser chamado de laborterapia, conforme disposto no Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa: "1. Psiq. V. Terapia ocupacional. 2. Nas penitenciárias, atividade semelhante à terapia ocupacional e que objetiva a reintegração social do condenado".[1]
A própria origem da terminologia "trabalho", apesar de ser contraditória, remonta à palavra pena, oriunda do vocábulo em Latim "tripalium", que indicaria um instrumento de tortura, ou ainda um instrumento que servia para segurar grandes animais enquanto eram ferrados. Assim ocorre com as demais línguas latinas, em Espanhol, "trabajo"; no Francês, "travail".[2] Portanto, trabalho estava relacionado com a dor, o sofrimento, o castigo. Na Bíblia, no Livro Gênesis, Capítulo 3, Versículo 17 a 19, há a menção de que Adão, pelo cometimento do pecado original, foi por Deus penalizado com o trabalho.[3] É claro que a concepção de trabalho e pena evolui muito no decorrer do tempo, os conceitos aqui expostos são históricos e servem apenas para indicar a sua origem. A pena, a princípio, não está mais vinculada à questão do trabalho, são institutos totalmente diversos.
Adentrando no aspecto do direito penal a respeito das possíveis penas, legalmente permitidas no Brasil, atualmente, de acordo com o artigo 5°, XLVI da CRFB, encontra-se:
“Art. 5°. CRFB.
XLVI. A lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:
a) privação ou restrição da liberdade;
b) perda de bens;
c) multa;
d) prestação social alternativa;
e) suspensão ou interdição de direitos;”
Sem embargo, apesar desse rol de penas na Carta Magna brasileira, demais direitos poderão ser suprimidos em decorrência da sentença condenatória que determinará a pena a ser aplicada no caso concreto, que será o demonstrado neste artigo: a imputação de cumprimento da pena privativa de liberdade com a consequente restrição aos direitos trabalhistas. Portanto, encontra-se, novamente, em outro contexto histórico, a colisão entre a pena e o trabalho.
2. O TRABALHO OBRIGATÓRIO
A LEP, em seu Capítulo III, trata "Do Trabalho". Mais precisamente em seu artigo 31, encontra-se a obrigatoriedade do trabalho para os apenados:
“Art. 31 LEP. O condenado à pena privativa de liberdade está obrigado ao trabalho na medida de suas aptidões e capacidade.
Parágrafo único. Para o preso provisório, o trabalho não é obrigatório e só poderá ser executado no interior do estabelecimento.”
Destarte, vislumbra-se a obrigatoriedade do trabalho para os condenados em definitivo à pena privativa de liberdade. O labor não será obrigatório aos presos provisórios, isto é, àqueles que não possuem sentença condenatória transitada em julgado. O trabalho do preso é um misto de dever (art. 39, V) e direito (art. 41, II) do preso.
“Art. 39 LEP. Constituem deveres do condenado:
V – execução do trabalho, das tarefas e das ordens recebidas;
Art. 41 LEP. Constituem direitos do preso:
II – atribuição de trabalho e sua remuneração;”
O condenado por crime político está desobrigado ao trabalho de acordo com o artigo 200 da LEP. Para a pessoa submetida à medida de segurança de internação o trabalho também não é considerado um dever, dessa forma, não é obrigatório. O que poderá ocorrer é apenas o trabalho interno na medida de suas aptidões e capacidade.
A Lei n. 3.274 de 1957, que tratava sobre as Normas Gerais do Regime Penitenciário, totalmente revogada pela Lei 7.210, já previa a mesma obrigatoriedade para os apenados:
“Art. 1º. Lei 3.274/1957. São normas gerais de regime penitenciário, reguladoras da execução das penas criminais e das medidas de segurança detentivas, em todo o território nacional:
IV – O trabalho obrigatório dos sentenciados, segundo os preceitos da psicotécnica e o objetivo corretivo e educacional dos mesmos”.
A ONU, através das Regras Mínimas para o Tratamento de Reclusos,[4] expedida em 1955, no artigo 71, § 2°, também estabelece a obrigatoriedade do trabalho:
2) Todos os reclusos condenados devem trabalhar, em conformidade com as suas aptidões física e mental, de acordo com determinação do médico.
A respeito do trabalho prisional ainda ser considerado obrigatório, atualmente, Cezar Roberto Bitencourt, através de suas palavras, deixa claro que ainda o considera da seguinte forma: "O trabalho prisional é a melhor forma de ocupar o tempo ocioso do condenado e diminuir os efeitos criminógenos da prisão e, a despeito de ser obrigatório, hoje é um direito-dever do apenado e será sempre remunerado".[5]
Por seu turno, Guilherme de Souza Nucci possui o mesmo entendimento ao tratar dos deveres do condenado, e vai além, tratando, também, da constitucionalidade:
“O principal é a obrigação de trabalhar, que funciona primordialmente como fator de recuperação, disciplina e aprendizado para a futura vida em liberdade. Não se cuida de trabalho forçado, o que é constitucionalmente vedado, mas de trabalho obrigatório. Se o preso recusar a atividade que lhe foi destinada, cometerá falta grave” (art. 50, VI LEP).[6]
Norberto Avena continua com o mesmo entendimento trazido acima:
“Como já dissemos, a LEP contempla no trabalho do preso um direito (art. 41, II) e também um dever (art. 39, V). Logo, é obrigatório, de acordo com as suas aptidões e capacidade (art. 31). Muito embora o segregado não possa ser forçado a sua execução, a recusa importa no cometimento de falta grave (art. 50, VI), sujeitando-o às sanções disciplinares previstas em lei. Ressalva, porém, existe com relação ao condenado por crime político, que, nos termos do art. 200 da LEP, não está obrigado a trabalhar.”[7]
Por fim, Paulo Lúcio Nogueira também aborda a questão ao tratar dos benefícios da laborterapia conjuntamente ao tema da obrigatoriedade:
“[…] o trabalho não visa somente à produção, deve ser encarado também sob o aspecto existencial e de aprimoramento da formação humana, já que ele é necessário à realização pessoal do indivíduo e sendo de utilidade social.
Cumpre, entretanto, salientar que, em regra, a clientela das prisões não é propensa ao trabalho, mas à vida ociosa, bastando fazer uma pesquisa sobre a modalidade de trabalho desenvolvida pelos presos, quando em liberdade, para se verificar que não são criaturas muito laboriosas.
É por isso também que o trabalho carcerário deverá ser obrigatório, já que, sendo voluntário, provavelmente muitos preferirão manter-se ociosos.
A atual Constituição dispõe que não haverá penas de trabalhos forçados, o que de modo algum pode ser entendido como trabalho obrigatório de todo condenado, sob pena de instalar-se definitivamente o regime de ociosidade, já existente nas prisões e que precisa ser substituído pelo regime de trabalho, como único meio de realmente reeducar o condenado.”[8]
Mirabete também explana: "Impõe-se ao preso o trabalho obrigatório, remunerado e com a garantia dos benefícios da Previdência Social (art. 39). Trata-se de um dever social e condição de dignidade humana, que tem finalidade educativa e produtiva".[9]
Conforme exposto, verifica-se que todos os autores acima apresentados defendem, veementemente, a aplicação do caráter obrigatório ao trabalho carcerário. Paulo Emílio Ribeiro de Vilhena adota situação diversa, pois alega que a compulsoriedade do trabalho carcerário é "atenuada":
“Saliente-se que, hoje em dia, o trabalho do apenado, como efeito da condenação criminal, sujeito até a métodos pedagógicos de readaptação, com fundo e técnicas psicoterápicas, vem-se orientando no sentido de impor-se ao detento (mesmo em regime de para-liberdade) uma atividade compatível com a pessoa do prestador ou respeitando-se, tanto quanto possível, as suas aptidões. O princípio da seletividade obedece, em geral, a uma dimensão de caráter profissional, como que se orientando pelo reaproveitamento da anterior atividade do prestador – detento, suas condições de vida, sua classe social, seu modus vivendi, etc. Em suma, está-se diante de uma compulsividade atenuada, mas dirigida.”[10]
Consoante o Vilhena, a obrigatoriedade do trabalho prisional não seria uma obrigação para a realização de um trabalho qualquer, pois o labor deverá respeitar as condições da vida pregressa do condenado, assim como necessidades futuras do preso e as oportunidades oferecidas pelo mercado.[11]
Porém, Luiz Antônio Bogo Chies promove o debate da problemática, pois para o autor:
“Não sendo a pena privativa de liberdade uma pena de trabalhos forçados (em Constituição em seu artigo 5°, XLVII, "c"), como se pode imputar ao apenado a obrigatoriedade da atividade laboral?
Sem que se entre aqui de forma mais aprofundada nesse debate, não obstante sua importância, nossa opinião é no sentido de que a obrigatoriedade do trabalho ao preso é incompatível com a moderna concepção do trabalho como um direito social além de individual. Entretanto, no vigente Direito de Execução Penal brasileiro a questão é também controversa.”[12]
O autor, para tanto, justifica seu entendimento da seguinte forma:
“Mesclando disposições de obrigatoriedade, dever e direito na relação entre preso e trabalho penitenciário, mas sobretudo ao inserir no artigo 31 uma obrigação "condicionada" à medida das aptidões e capacidade do preso, temos que o conteúdo da LEP, em consonância com as disposições constitucionais acerca das penas (em especial os princípios de individualização e humanização – artigo 5° XLVI e III – bem como à vedação das penas cruéis e de intervenções degradantes da pessoa humana – artigo 5° XLVII e III), deve ser imperativamente interpretado como atribuidor e reconhecedor do caráter prioritário de direito, e, portanto, não de dever, do trabalho penitenciário.
Por óbvio que tal entendimento não é pacífico.”[13]
Rui Carlos Machado Alvim também partilha do entendimento da não obrigatoriedade, pois para a correta realização do tratamento deverá existir a adesão do preso:
“[…] o trabalho destaca-se, na moderna política penitenciária, como um dos momentos marcantes do tratamento e este não pode ser obrigatório […]. Fina-se aí, e mais ali, a tal obrigatoriedade: primeiro, pelo fato de que a realização do tratamento deve imprescindivelmente contar com a adesão consciente do "tratado"; e segundo, porque a constituição brasileira desautoriza que, no cumprimento da pena, ofenda-se a integridade moral do presidiário (art. 5, XLIX). Impor-lhe, portanto, contra a sua vontade, o trabalho, como meio terapêutico ou como via de ressocialização, extrapola o âmbito da pena – que é unicamente o cerceamento da liberdade – e o campo do direito penal mesmo, carecendo de legitimidade, porque este não pode obrigar todos a uma conduta uniforme; sua função cessa na exigência de "mera conformidade exterior à lei". Esta é a única alternância para uma sociedade que se apregoa democrática e pluralista.”[14]
Para o autor, o trabalho realizado de forma obrigatória extrapola o âmbito da pena, que deve se ater única e exclusivamente ao cerceamento de liberdade.
E Anabela Miranda Rodrigues também argumenta que o trabalho do recluso, realizado com o fim de ressocializá-lo, deverá ser calcado de forma optativa, ou seja, de forma que seja dada a faculdade de escolha para o apenado:
“Sabe-se como o consentimento e a participação do recluso no tratamento são essenciais para o seu correto entendimento. E foi exatamente este reconhecimento que levou alguns autores a adoptar [sic] uma separação completa entre pena e tratamento, encontrando aí a razão da dissociação: a pena seria puramente repressiva e o tratamento totalmente facultativo.”[15]
Em que pesem as palavras citadas pelos últimos autores estarem calcadas de lógica, conforme demonstrado, a doutrina é quase unânime em afirmar que o trabalho do preso continua a ser considerado obrigatório.[16] Inicialmente, se fosse o caso de ter ocorrido a revogação do preceito, tal revogação foi tácita, pois o artigo 31 continua com a sua redação original intacta no corpo da LEP.
Cumpre ressaltar o Decreto n. 6.049, de 27 de fevereiro de 2007, que aprova o Regulamento Penitenciário Federal, em seu artigo 98, aborda o trabalho do apenado, inclusive quando em Regime Disciplinar Diferenciado (RDD):[17]
“Art. 98 Decreto nº 6.049/2007. Todo preso, salvo as exceções legais, deverá submeter-se ao trabalho, respeitadas suas condições individuais, habilidades e restrições de ordem de segurança e disciplina.
§ 1o. Será obrigatória a implantação de rotinas de trabalho aos presos em regime disciplinar diferenciado, desde que não comprometa a ordem e a disciplina do estabelecimento penal federal.
§ 2o. O trabalho aos presos em regime disciplinar diferenciado terá caráter remuneratório e laborterápico, sendo desenvolvido na própria cela ou em local adequado, desde que não haja contato com outros presos.
§ 3o. O desenvolvimento do trabalho não poderá comprometer os procedimentos de revista e vigilância, nem prejudicar o quadro funcional com escolta ou vigilância adicional.”
O artigo, publicado no Decreto de 2007, continua a considerar o trabalho do preso como obrigatório, e vai além, ao considerar que mesmo no RDD, o tratamento em relação à obrigatoriedade deverá ser mantido, apesar das restrições intrínsecas ao regime.
3. A OBRIGATORIEDADE DO TRABALHO PRISIONAL E A INAPLICABILIDADE DOS DIREITOS TRABALHISTAS
Em razão do trabalho ser considerado obrigatório, consequentemente existe a inaplicação dos direitos trabalhistas aos presos, pois o clássico direito do trabalho preza a prestação dos serviços livre, aquela em que há o acordo das partes em pactuarem o contrato, conforme reza o art. 442 da CLT.[18] Assim, a própria exposição de motivos da LEP justifica a falta de aplicação dos direitos trabalhistas, consoante a mensagem n. 242 de 1983, abaixo citada:
“57. Procurando, também nesse passo, reduzir as diferenças entre a vida nas prisões e a vida em liberdade, os textos propostos aplicam ao trabalho, tanto interno como externo, a organização, métodos e precauções relativas à segurança e à higiene, embora não esteja submetida essa forma de atividade à Consolidação das Leis do Trabalho, dada a inexistência de condição fundamental, de que o preso foi despojado pela sentença condenatória: a liberdade para a formação do contrato.” (grifo da autora)
Ou seja, o legislador optou por não conceder os direitos celetistas ao preso em razão da sua falta de liberdade para a formação do contrato. O legislador considerou que a sentença penal condenatória retirou a liberdade do preso para a formação contratual em razão do trabalho ser obrigatório. Como o direito trabalhista clássico cuida do trabalho do homem livre (que é aquele que pode escolher para quem e no que trabalhar), o trabalho prisional não se encontraria dentro das situações merecedoras de atenção do direito trabalhista, o que resultou na edição do artigo 28 da LEP:
“Art. 28 LEP. O trabalho do condenado, como dever social e condição de dignidade humana, terá finalidade educativa e produtiva.
§ 2º O trabalho do preso não está sujeito ao regime da Consolidação das Leis do Trabalho.”
Apesar dos entendimentos aqui trazidos, a dificuldade em tratar da obrigatoriedade reside no fato da falta de oportunidades de trabalho na prisão, visto que a oferta de postos de trabalho é bem menor do que a mão de obra disponível. Dessa forma, encontra-se um abismo entre a formalidade e a materialidade da laborterapia. Exatamente por existir essa disparidade entre o disposto pela lei e o realizado na prática é que foram trazidos aqui diversos doutrinadores defendendo a manutenção da obrigatoriedade do trabalho carcerário. Porém, para demonstrar a dificuldade do trabalho carcerário ser considerado, efetivamente, obrigatório, serão apresentados dados do INFOPEN, que se trata de um Sistema de Informações Penitenciárias do Ministério da Justiça, através do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), quais sejam os últimos dados constantes no portal da instituição, de junho de 2011:[19]
“População carcerária no país: 513.802 pessoas;
Homens: 93%; Mulheres: 7%
48% são jovens com menos de 30 anos de idade;
Realizando trabalho interno, existem:
a) 33.996 pessoas no apoio ao estabelecimento penal;
b) 24.184 em parceria com a iniciativa privada;
c) 2.834 em parcerias com órgãos do estado;
d) 281 em parcerias com paraestatais (sistema S e ONGs);
e) 12.704 realizando trabalhos artesanais;
f) 1.026 realizando atividades rurais;
g) 4.005 realizando atividades industriais.
Realizando trabalho externo, existem:
a) 8.482 pessoas em parceria com a iniciativa privada;
b) 2.573 em parcerias com órgãos do estado;
c) 559 em parcerias com paraestatais (sistema S e ONGs);
d) 2.573 realizando trabalhos artesanais;
e) 391 realizando atividades rurais;
f) 1.208 realizando atividades industriais.”
De acordo com os dados, a população carcerária do Brasil em 2011, seria composta por mais de 500 mil presos, sendo 93% homens. Somando todas as modalidades de trabalho prisional, o número de presos laborando é 94.816, isto é, um número muito aquém do número total de apenados. Assim, é evidente que o trabalho carcerário está muito distante de ser considerado obrigatório.
Corroborando tais índices, o Protocolo Facultativo da Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, datado em 18 de fevereiro de 2013, realizado pela ONU a respeito do sistema carcerário brasileiro, traz o número aproximado de presos laborando:
“No que diz respeito à terapia ocupacional (trabalho interno e externo), cerca de 110 mil presos (cerca de 20% da população carcerária) exercem atividades de artesanato ou trabalham em projetos industriais e agrícolas sob parcerias com os organismos do sector [sic] ou auto-governo [sic] privadas.”[20]
Conforme assinalado, em 2013, a situação continua muito similar, um índice pequeno, cerca de apenas 20% dos apenados cumprem atividade laboral. Assim, superada a controvérsia a respeito da possível obrigatoriedade laboral subexistir, comprova-se que tal situação está presente apenas no plano formal, e não no plano material.
Em que pese tais argumentos a respeito da manutenção da obrigatoriedade, conforme os dados acima trazidos, não há trabalho para todos, existem filas de espera para o trabalho em algumas prisões. Então, no momento em que não há postos de trabalho suficientes, qual a razão de continuar se valendo do instituto da obrigatoriedade? O trabalho obrigatório, na verdade, acaba não o sendo, visto que não há trabalho para todos, se tornando apenas "letra morta" em nossa legislação. Destarte, o preso acaba demonstrando a sua vontade de trabalhar, muitas vezes tendo que realizar o "rodízio de trabalho" nas prisões, para todos conseguirem trabalhar e obter o benefício da remição da pena.[21] A obrigatoriedade ficaria apenas no plano formal, na Lei, servindo para a marginalização dos direitos trabalhistas.
É claro que quando o beneficiário do labor for a administração pública, a concessão da tutela celetista aos presos é impossível, visto que para se tornar um empregado público, é necessário obter a aprovação em concurso conforme disciplina o artigo 37, II da Constituição.[22] Porém, não se pode esquecer que em muitas ocasiões, é a iniciativa privada a favorecida pelos trabalhos prestados, e dessa forma, o liame empregatício poderá surgir, desde que presentes os elementos essenciais da relação de emprego.
Todavia, mesmo o preso trabalhando em prol da administração pública, alguns direitos trabalhistas deverão ser preservados, como é o direito às férias. Agora, suponha-se, por exemplo, a situação de um condenado a oito anos ao regime semiaberto. Imagine-se que o mesmo preso resolva trabalhar logo no início do cumprimento de sua pena e assim se mantenha até a sua soltura para a vida em liberdade, quanto tempo essa pessoa irá trabalhar sem direito ao descanso anual, ou seja, as férias? Sem dúvidas, ao término da pena, a pessoa estará com alguma fadiga física, pois o corpo precisa de certo tempo estendido para repor suas energias. Conforme explana Maurício Godinho Delgado a respeito do referido descanso:
“De fato, elas fazem parte de uma estratégia concertada de enfrentamento dos problemas relativos à saúde e segurança do trabalho, à medida que favorecem a ampla recuperação das energias físicas e mentais do empregado após longo período de prestação de serviços.
[…] também têm fundamento em considerações e metas relacionadas à política de saúde pública, bem estar [sic] coletivo e respeito à própria construção de cidadania.”[23]
Epaminondas de Carvalho defende o mesmo ponto de vista em relação às férias, mas aplicado ao trabalho prisional:
“É fácil ver que o direito ao gozo de férias remuneradas constitui uma das mais importantes conquistas do trabalhador. Qual a razão de ordem jurídica ou moral invocada para a denegação do benefício ao penitenciário que trabalha durante um ano, dispensando considerável soma de energias?
Qualquer justificação, além de anti-humana, não poderá ser enquadrada na nova concepção do direito, já que não vivemos mais estribados no falso postulado da igualdade teórica.
A cessação do trabalho, com o fim de repouso, é uma necessidade que se não pode negar a pessoa humana, já porque tal direito tem uma tendência universalista, já ainda porque, a repetição de atos de atividade, leva fatalmente ao esgotamento de energias, à fadiga, causa psicológica dos acidentes.
Qualquer que seja a espécie de atividade humana, o trabalho não deve ser executado em estado de fadiga.
Sob este perfil, a sociedade exige que o penitente ao ser devolvido ao seu meio, conserve uma capacidade de trabalho revigorada, visando, assim, [sic] um melhor rendimento.
Pouco importa que o descanso seja feito no próprio estabelecimento penal, de forma intercalada ou prolongada. Pouco importa, ainda, que não possa o recluso afastar-se temporariamente do ambiente em que trabalha e vive, muito embora, possa ser transferido para outro presídio de igual regime.
Cremos que, nos tempos modernos, é necessário que o trabalhador descanse para que não execute trabalhos em estado de esgotamento. O repouso, portanto, como lei biológica que é, não pode ser negado ao penado, pois seria negar a própria dignidade da pessoa humana.”[24]
É evidente, até mesmo para um leigo, que o trabalho realizado ano após ano sem o período de descanso detém uma possibilidade maior de causar acidentes. O Estado, ao possuir a custódia do indivíduo, deveria guiar o trabalho de forma que a integridade física e psíquica do apenado não seja abalada. Assim, deveriam ser concedidas as férias anuais para os apenados trabalhadores.
O preso precisa aprender, precisa ser educado de que, após tanto tempo de trabalho, há o repouso anual remunerado. Não precisaria ser o descanso anual típico celetista de 30 dias, mas, no caso, um descanso de 10 dias, inclusive para o apenado entender como funciona a sistemática trabalhista (período aquisitivo de férias, para depois ocorrer o período concessivo), configurando uma típica interrupção do contrato de trabalho, inclusive para os cálculos de remição da pena. Entende-se que o período de férias pode ser reduzido, pois as férias possuem diversas finalidades, para descansar, para viajar, para o lazer, mais tempo com a família, entre inúmeros benefícios. Como o preso encontra-se com a sua liberdade de ir e vir cerceada, muitos desses benefícios não são adimplidos, e assim o número de dias de férias poderá ser reduzido.
Se o contrário for demonstrado para ele, isto é, que apenas há trabalho sem o descanso anual, o trabalho do apenado poderá fazer o caminho contrário ao da ressocialização: além de lesionar fisicamente e psicologicamente a pessoa, poderá transformá-lo em um "revoltado contra o sistema", mais do que, porventura, ele já possa ser. Esse é o entendimento exemplificativo em relação às férias, porém, outros direitos trabalhistas podem e devem ser pensados no contexto do trabalho prisional.
Cumpre ressaltar que o projeto de Lei n. 513 de 2013 que pretende alterar a LEP continua a prever a mesma sistemática de marginalização celetista para o trabalho carcerário.[25] Porém, apesar da justificativa da "falta de liberdade" para contratação exposta na exposição de motivos de 1984 em decorrência da obrigatoriedade do trabalho do apenado, o PL não prevê mais a sua obrigatoriedade, mas sim o incentivo ao labor.[26] Dessa forma, mesmo sem a obrigatoriedade do trabalho, de acordo com a nova vontade do legislador pátrio disposta no PL, a marginalização persistirá. A incongruência e ilogicidade persistem.
4. A (NÃO) RECEPTIVIDADE DO TRABALHO OBRIGATÓRIO APÓS A CRFB/1988
Conforme demonstrado, o trabalho do preso continua a ser considerado obrigatório diante da doutrina majoritária. Porém, inicialmente, poder-se-ia considerar que o presente artigo da LEP (promulgada em 1984) não foi recepcionado após o advento da Constituição da República Federativa do Brasil em 1988, pois em seu artigo 5°, inciso XLVII, alínea "c", prevê a vedação da pena de trabalhos forçados, podendo haver um conflito entre a norma constitucional e a norma penal. De acordo com a Constituição de 1988 não poderão existir as seguintes penas:
“Art. 5° CRFB/1988.
XLVII. Não haverá penas:
a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;
b) de caráter perpétuo;
c) de trabalhos forçados;
d) de banimento;
e) cruéis;”
Quando ocorrera a promulgação da LEP, a Constituição em vigor era a de 1967, alterada após a Emenda Constitucional n. 11, de 13 de outubro de 1978, que em seu artigo 153 lista o rol de direitos e garantias fundamentais, além das penas incabíveis:
“Art. 153 CRFB/1967. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
§ 11. Não haverá pena de morte, de prisão perpétua, nem de banimento. Quanto à pena de morte, fica ressalvada a legislação penal aplicável em caso de guerra externa. A lei disporá sobre o perdimento de bens por danos causados ao erário ou no caso de enriquecimento no exercício de função pública”.
A Constituição de 1988, em relação às penas proibidas, foi diploma constitucional inovador, visto que proíbe a pena de trabalhos forçados. Todas as Constituições anteriores, 1946 (art. 141, § 31),[27] 1937 (art. 122, n. 13),[28] 1934 (art. 113, n. 29),[29] 1891 (art. 72, § 20 e 21)[30] e 1824 (art. 179, XX),[31] apenas continham, no máximo, disposições parecidas, se não iguais, às da Constituição de 1967.
Consequentemente, realizando-se um comparativo entre as duas Constituições, a de 1967 e a de 1988, é fácil a verificação de que no momento de publicação da LEP não existia a vedação de pena de trabalho forçado, apenas a vedação da pena de morte, de prisão perpétua e de banimento. Logo, quando promulgada a LEP, o artigo 28 era perfeitamente constitucional. A proibição da pena de trabalho forçado foi introduzida pela Constituição de 1988. Portanto, poder-se-ia pensar que a obrigação do trabalho para os apenados, prevista no artigo 31 da LEP, após o advento da CRFB em 1988, tornou-se não recepcionada em razão da vedação da pena de trabalhos forçados.
Celso Ribeiro Bastos, em seu livro Comentários à Constituição do Brasil, publicado logo após o seu advento, explica o teor da vedação da pena de trabalhos forçados:
“Pode parecer estranho que a Constituição proíba trabalhos forçados justamente quando estudos acerca dos problemas prisionais estão a evidenciar o caráter extremamente reeducador da atividade laboral. Seus aspectos benéficos ficam comprovados durante próprio encarceramento, como posteriormente, na vida em liberdade, quando o então aprendido poderá ser de enorme valia na obtenção de trabalho.
Para compreender-se perfeitamente essa vedação há, no nosso entender, que se dar a devida dimensão ao qualitativo "forçados". O que o Texto quis excluir é a possibilidade da imposição de trabalhos com cominação de penas, o que vale dizer, procurou-se banir aqueles labores exigidos coercitivamente. É que aqui a própria valia do trabalho fica posta em causa, prejudicada pelo seu aspecto coercitivo, que assumirá certamente o ar de uma pena aflitiva suplementar. De resto, é preciso atentar-se para possíveis abusos passíveis de ocorrência nesse campo, como nos dá conta Dostoievski, em Recordações da casa dos mortos, ao narrar que o pior castigo enfrentado pelos detidos era o terem de carregar pedras de um lado para outro e, depois, recolocá-las no lugar de origem. O trabalho privado de significação prática é execrável.
É evidente que a Lei Maior não está a repelir métodos positivos de estimulação ao trabalho que poderíamos considerar como autênticas sanções premiais. Assim, entendido o trabalho como uma técnica de dignificação do próprio homem e respeitada a vontade do presidiário em cumpri-lo ou não, livre está o sistema carcerário de estabelecer vantagens, privilégios, compatíveis evidentemente com a vida do recluso ou detento, mas que possam funcionar como um estímulo para a aceitação de tarefas operosas”.[32] (grifo da autora)
Sendo assim, o autor em questão considera, conforme grifado, que não poderá ocorrer a imposição de trabalhos forçados com a imposição de penas, além do fato de que deverá ser respeitada a vontade do presidiário em cumpri-lo ou não. Portanto, conclui-se que, para o constitucionalista, a figura do trabalho obrigatório da LEP, de acordo com a nova ordem constitucional, não poderia mais vigorar, dado o fato da observância à vontade do preso.
Por sua vez, Alexandre de Moraes disserta de forma diversa:
“As penas de trabalho forçado não se confundem com a previsão de trabalho remunerado durante a execução penal, previsto nos arts. 28 ss. da Lei 7.210/84 (Lei de Execuções Penais). O trabalho do condenado, conforme previsão legal, como dever social e condição da dignidade humana, terá sempre finalidade educativa e produtiva, sendo igualmente remunerado, mediante tabela prévia, não podendo ser inferior a três quartos do salário mínimo (art. 29 da citada lei). A própria lei prevê que o sentenciado deve realizar trabalhos na medida de duas aptidões e capacidade. Essa previsão é plenamente compatível com a Constituição Federal, respeito à dignidade humana e visando à reeducação do sentenciado”.[33]
Dessa forma,visualiza-se que, dentro da doutrina constitucionalista, os entendimentos não são uniformes, uma vez que Alexandre de Moraes justifica que a pena de trabalhos forçados e o trabalho do apenado são institutos distintos. Não foram encontrados demais doutrinadores constitucionalistas que entrem no mérito da obrigatoriedade ou não do trabalho prisional.
Alice Monteiro de Barros disserta sobre o assunto, justificando que o trabalho do preso é uma espécie de execução da pena, não uma pena de trabalhos forçados: "Lembre-se que não haverá penas de trabalhos forçados (art. 5°, XLVII, "c", da Constituição). Em consequência, o trabalho do presidiário é modalidade de execução da pena, e não uma espécie de pena".[34]
Por fim, menciona-se Renato Marcão, que, apesar de não justificar, entende que o trabalho do apenado e trabalho forçado são espécies distintas, e dessa forma o artigo 31 da LEP seria recepcionado pela nova ordem vigente:
“Respeitadas as aptidões, a idade, a habilitação, a condição pessoal (doentes e portadores de necessidades especiais), a capacidade e as necessidades futuras, todo condenado definitivo está obrigado ao trabalho, o que não se confunde com pena de trabalho forçado, e, de consequência, não contraria a norma constitucional estabelecida no art. 5, XLVII.”[35]
Além do mais, Renato Marcão reforça a doutrina majoritária a respeito da obrigatoriedade do trabalho, conforme demonstrado anteriormente.
Em suma, a doutrina, além de manter o entendimento a respeito da obrigatoriedade, também argumenta que o trabalho prisional em caráter obrigatório foi recepcionado pela nova ordem constitucional de 1988.
Novamente, cita-se a ideia proposta no Projeto de Lei n. 513 de 2013, que pretende alterar a LEP, e em seu artigo 31[36] não prevê a obrigatoriedade do trabalho interno, mas que o preso será incentivado para tanto. Ou seja, diante do legislador, não haveria problemas na manutenção da obrigatoriedade da laborterapia.
Adentrando o ponto de vista trabalhista, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) trata do tema em duas Convenções: Convenção n. 105, de 1957, ratificada pelo Brasil através do Decreto n. 58.822 de 14 de julho de 1966, que trata da abolição do trabalho forçado; e a Convenção n. 29, de 1930, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto n. 41.721, em 25 de junho de 1957, que trata sobre o trabalho forçado ou obrigatório. Esta última disciplina em seu artigo 2°, item 1:
“1. Para fins desta Convenção, a expressão "trabalho forçado ou obrigatório" compreenderá todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente.”
Porém, encontra-se a exceção na alínea "c", item 2, do mesmo artigo:
“2. A expressão "trabalho forçado ou obrigatório" não compreenderá, entretanto, para os fins desta Convenção:
c) qualquer trabalho ou serviço exigido de uma pessoa em decorrência de condenação judiciária, contanto que o mesmo trabalho ou serviço seja executado sob fiscalização e o controle de uma autoridade pública e que a pessoa não seja contratada por particulares, por empresas ou associações, ou posta à sua disposição;”
Assim, pode-se concluir que, diante dos conceitos da OIT, o trabalho prisional será forçado/obrigatório (são considerados sinônimos dentro do mesmo item), pois conforme a conceituação do item 1, é exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção (que no caso é a configuração da falta grave quando o preso não executa o seu dever de trabalhar, prevista no art. 50, VI combinado com o art. 39, V da LEP), e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente (pois é obrigatório pela LEP). Apenas não será considerado forçado ou obrigatório em função da ressalva do item 2, letra "c", pois há uma condenação judiciária e também em razão da fiscalização e do controle de autoridade pública.
A questão torna-se polêmica no momento em que a Convenção estipula outra condição para o trabalho do apenado, disposta no final da letra "c": "que a pessoa não seja contratada por particulares, por empresas ou associações, ou posta à sua disposição". Algo que, na prática, o Brasil não observa, pois é verificada no atual contexto prisional a entrada maciça de particulares valendo-se da mão de obra carcerária.
O Pacto de Direitos Civis e Políticos, adotado pela XXI Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966, promulgado no ordenamento jurídico brasileiro através do Decreto n. 592 de 06 de julho de 1992, estabelece a mesma situação em seu artigo 8, item 3:
“3. a) Ninguém poderá ser obrigado a executar trabalhos forçados ou obrigatórios;
b) A alínea a) do presente parágrafo não poderá ser interpretada no sentido de proibir, nos países em que certos crimes sejam punidos com prisão e trabalhos forçados, o cumprimento de uma pena de trabalhos forçados, imposta por um tribunal competente;
c) Para os efeitos do presente parágrafo, não serão considerados "trabalhos forçados ou obrigatórios":
i) qualquer trabalho ou serviço, não previsto na alínea b) normalmente exigido de um indivíduo que tenha sido encarcerado em cumprimento de decisão judicial ou que, tendo sido objeto de tal decisão, ache-se em liberdade condicional;”
E ainda, no mesmo sentido, O Pacto de San José da Costa Rica, também conhecido como Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 22 de novembro de 1969, realizada entre os países-membros da Organização dos Estados Americanos (portanto possui vigência apenas na América), subscrita durante a Conferência Especializada Interamericana de Direitos Humanos, adentrando no ordenamento jurídico brasileiro através do Decreto n. 678 de 06 de novembro de 1992, possui o mesmo entendimento internacional já exarado, conforme abaixo:
“Art. 6º. Proibição da escravidão e da servidão
2. Ninguém deve ser constrangido a executar trabalho forçado ou obrigatório. Nos países em que se prescreve, para certos delitos, pena privativa de liberdade acompanhada de trabalhos forçados, esta disposição não pode ser interpretada no sentido de proibir o cumprimento da dita pena, imposta por um juiz ou tribunal competente. O trabalho forçado não deve afetar a dignidade, nem a capacidade física e intelectual do recluso.
3. Não constituem trabalhos forçados ou obrigatórios para os efeitos deste artigo:
a) os trabalhos ou serviços normalmente exigidos de pessoa reclusa em cumprimento de sentença ou resolução formal expedida pela autoridade judiciária competente. Tais trabalhos ou serviços devem ser executados sob a vigilância e controle das autoridades públicas, e os indivíduos que os executarem não devem ser postos à disposição de particulares, companhias ou pessoas jurídicas de caráter privado;”
O Pacto também ressalta, no seu artigo 6°, item 3, letra "a" que: "os indivíduos que executarem os trabalhos não devem ser postos à disposição de particulares, companhias ou pessoas jurídicas de caráter privado." Ou seja, existem três regulamentações internacionais, duas em caráter mundial, uma em caráter americano, todas ratificadas pelo ordenamento jurídico pátrio, que versam a respeito da exceção quanto à obrigatoriedade do trabalho prisional, considerando-o como uma forma lícita, desde que os presos não sejam contratados ou colocados à disposição de particulares.
4.1. AS DIFERENÇAS ENTRE TRABALHO FORÇADO, OBRIGATÓRIO E DEGRADANTE
Além de tudo aqui já abordado, insta frisar que apesar da OIT, assim como o Pacto de Direitos Civis e Políticos e o Pacto de San José da Costa Rica considerarem trabalho obrigatório e forçado como sinônimo, tais terminologias não são consideradas sempre de tal forma. É considerada a diferença terminológica, pois o trabalho obrigatório é aquele imposto pelo direito público, como um dever público. Como exemplo para tanto tem-se no Brasil o caso do labor prisional. Outra situação é o serviço militar, assim como outros atos que os cidadãos são impelidos a realizar: o mesário, assim como a função de jurado e de escrutinador. São deveres cívicos, ligados ao senso de responsabilidade e cidadania. Em outros países há a obrigatoriedade ao trabalho para o fim de utilidade ou necessidade pública para prevenir ou reparar prejuízos comuns (situação prevista no artigo 2°, item 2, "d" da Convenção 29 da OIT).
Por sua vez, o trabalho forçado, conforme aduzido por Luís Antônio Camargo de Melo:
“O trabalho escravo ou forçado, contudo, segundo o conceito hodiernamente adotado, não será somente aquele para o qual o trabalhador não tenha se oferecido espontaneamente, porquanto há situações em que este é engodado por falsas promessas de ótimas condições de trabalho e salário. Esta situação, inclusive, é a que mais se verifica atualmente.
Imprescindível, porém, para a caracterização do trabalho escravo ou forçado, que o trabalhador seja coagido a permanecer prestando serviços, impossibilitando ou dificultando, sobremaneira, o seu desligamento.”[37]
Luís Antônio demonstra que não é apenas a situação do trabalhador ser forçado a trabalhar que considerará o trabalho como escravo. A problemática vai além, pois há casos que em que são pregadas ilusões através de contratações fraudulentas, e após, o trabalhador percebe que foi enganado e deseja rescindir o vínculo, porém, não consegue. O autor continua o seus ensinamentos, ao demonstrar como que o trabalho forçado poderá ocorrer através de três coações:
“Esta coação poderá ser de três ordens: moral, psicológica e física.
Será moral quando o tomador dos serviços, valendo-se da pouca instrução e do elevado senso de honra pessoal dos trabalhadores, geralmente pessoas pobres e sem escolaridade, submete estes a elevadas dívidas, constituídas fraudulentamente com o fito de impossibilitar o desligamento de trabalhador.
Será psicológica quando o trabalhador for ameaçado de sofrer violência, a fim de que permaneça trabalhando. Tais ameaças dirigem-se, normalmente, à integridade física do trabalhador, sendo comum, em algumas localidades, a utilização de empregados armados para exercerem esta coação.
Ameaças de “surra” e de morte não são raras, estabelecendo-se um clima de terror entre os trabalhadores.
A ameaça de abandono do trabalhador à sua própria sorte, em determinados casos, constitui-se em um poderoso instrumento de coação psicológica.
Muitas vezes o local da prestação dos serviços é distante e inóspito, centenas de quilômetros da cidade ou distrito mais próximo, sendo certo que diversos relatos dão conta de trabalhadores desaparecidos ao tentar fugir da exploração.
[…] além de sofrerem ameaças de violência física (o que, por si só, exerce forte coação sobre muitos) os trabalhadores são, efetivamente, submetidos a castigos físicos e, não sendo estes “suficientes”, alguns deles são sumariamente assassinados, servindo, então, como exemplo àqueles que pretendam enfrentar o tomador dos serviços. É a coação de ordem física.”[38]
Dessa forma, de acordo com o autor, a conceituação do trabalho escravo e forçado está relacionada ao fato da impossibilidade ou dificuldade em romper o vínculo com o tomador dos serviços através da coação moral, psicológica ou física. A coação moral surgiria no momento que o empregador abusaria da falta de instrução do empregado para impossibilitar o fim do vínculo, aliado ao fato do empregador forçar o trabalhador a realizar altas dívidas. Já a psicológica ocorre quando houver intimidamento através de ameaças caso o empregado fuja ou denuncie seu empregador. Por fim, a física, ocorre quando é utilizada a violência física contra os trabalhadores.
Maurício Godinho Delgado assim afirma a contrastante separação entre o atual sistema contemporâneo do trabalho livre e os trabalhos servis e escravos:
“Se a ausência da liberdade no interior da relação servil ou escrava conduzia à emergência da sujeição como critério de vinculação entre o titular do meio de produção e o produtor/trabalhador envolvido, não será esse o efeito constatado no sistema produtivo contemporâneo. É que a presença da liberdade/vontade no interior da relação empregatícia afasta a possibilidade do uso do critério do simples comando/obediência, do critério da sujeição como padrão de relacionamento direto empregado/empregador no mundo atual. Inviabilizado o critério fundado na coerção, por incompatibilidade com o trabalho livre, constrói-se – como já apontado – o critério da subordinação objetiva, dirigida à forma de prestação do trabalho, sem interferência na vida e liberdade pessoal do trabalhador.
O critério da subordinação, entretanto, é natural e historicamente elástico. Comporta, assim, fórmulas alternativas em que se contrapõem tanto padrões constituídos por elevada concentração de ordens e controle objetivos […].
A segunda alteração exponencial produzida pelo trabalho livre no interior da relação de produção hegemônica contemporaneamente – se comparada com as relações de produção que lhe foram precedentes – reside especificamente no papel da coerção no núcleo dessa relação. Se a presença da liberdade/vontade já compromete a função da coerção na relação empregatícia, a própria estrutura e dinâmica da contemporânea relação de produção dispensam, como regra, o recurso imediato à coerção como fórmula essencial ao funcionamento do sistema. A relação de produção empregatícia é extremamente mais sofisticada que as relações produtivas servis e escravas, caracterizando-se por uma fórmula de estruturação e funcionamento que organicamente dispensa a coerção como instrumento de existência e dinamismo do sistema produtivo.
De fato, na economia contemporânea, o sistema de produção, apropriação e distribuição cumpre seu integral ciclo sem a necessidade imediata e imperativa do uso de instrumentais coercitivos. O sistema tem uma sofisticação desconhecida nos sistemas precedentes, hábil a permitir que a apropriação do resultado do trabalho do produtor se faça no próprio circuito econômico, sem recurso a mecanismos não-econômicos [sic]. Esta sofisticação se expressa pelo salariato. O trabalhador produz conscientemente para o titular do empreedimento e, em contrapartida, recebe conscientemente uma paga pelo trabalho e contrato pactuados. Ao contrário da noção de expropriação (óbvia na servidão/escravatura) transparece a princípio, no salariato, a noção de contrato sinalagmático, isto é, acordo de vontades contrapostas e contra-influentes [sic].”[39]
Dessa forma, nas palavras de Godinho, visualiza-se a separação entre o trabalho forçado e o trabalho livre, visto que, no primeiro caso, o trabalhador não se coloca à disposição patronal, ou almeja romper o vínculo e não consegue. Já o trabalho livre é dotado de subordinação objetiva, não há interferência na vida pessoal do empregado, pois os comandos patronais ficam restritos aos ditames da relação de emprego. Na relação de emprego, conforma já salientado, a vontade é necessária, isto é, o consenso de ambas as partes para a formação e execução contratual. Não há espaço para coerção. O que vinculará o empregado ao corpo empresarial não será o instrumento coibitivo, pois o que prenderá o empregado à força de trabalho da empresa será a remuneração.
E, por fim, cumpre o esclarecimento em relação ao trabalho degradante. Gustavo Filipe Barbosa Garcia ensina: "O trabalho degradante, e mesmo o trabalho análogo à condição de escravo como um todo, são a negação e a antítese do chamado "trabalho decente", o qual é aquele que respeita o princípio da dignidade da pessoa humana".[40] Isto é, o trabalho degradante é qualquer trabalho, escravo ou não, que não respeita as condições adequadas de trabalho, ferindo as diretrizes expedidas em relação à saúde e segurança dos trabalhadores.
Nesse sentido, no Brasil, a prática de trabalho análoga à de escravo, que configura a sujeição a condições degradantes de trabalho, ou ainda ao trabalho forçado (relacionado à restrição da liberdade do trabalhador), constituiu crime de acordo com o artigo 149 do Código Penal.[41]
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dessa forma, conclui-se que de acordo com a doutrina majoritária assim como em consonância aos ordenamentos internacionais ratificados pelo Brasil, o trabalho prisional aos sentenciados a pena privativa de liberdade em forma definitiva pode ser considerado obrigatório, desde que for realizado em benefício da administração pública e em decorrência de uma condenação judiciária. A obrigatoriedade do trabalho prisional se encontra excepcionado da vedação da pena de trabalhos forçados prevista na Constituição Federal de 1988.
Todavia, mesmo o trabalho sendo considerado como obrigatório perante os operadores do direito, na verdade, acaba não o sendo. Conforme disposto na exposição de motivos da LEP, a marginalização dos direitos trabalhistas decorre da obrigatoriedade, porém, se a obrigatoriedade acaba não se concretizando, consequentemente a retomada dos direitos trabalhistas é devida.
Por mais que o trabalho prisional seja prestado em benefício da administração pública, e assim, não seja possível a típica vinculação empregatícia celetista, alguns direitos trabalhistas deverão ser concedidos aos presos, pois faz parte da sua condição de trabalhador, independentemente de se encontrar preso. Dessa forma, é necessária uma análise para a criação de uma relação especial de trabalho aplicado ao preso quando prestar serviços para a administração pública, pois a pessoa humana, como trabalhador carece de cuidados atinentes à execução dos serviços, e é essa a missão do direito trabalhista, a proteção ao trabalhador.
Por fim, é esse o objetivo do presente trabalho, sem o intuito de esgotar o tema. Bem pelo contrário, o escopo desta pesquisa é apenas iniciar o debate a essa matéria tão esquecida e mal interpretada, fomentando a construção dos direitos trabalhistas aos presos.
Professora de direito e processo do trabalho. Advogada pós-graduada em direito e processo do trabalho. Mestra em direito do trabalho pela UFRGS. Avaliadora de diversas revistas acadêmicas. Link para currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/0555594539829843
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