Direito Constitucional

A pandemia de COVID-19 e o direito fundamental ao isolamento social – Reflexos do novo coronavírus no universo jurídico brasileiro

Igor Nóvoa dos Santos Velasco Azevedo1

Resumo: Os impactos socioeconômicos e políticos causados pela pandemia de COVID-19 são inegáveis, também refletindo no universo jurídico brasileiro. O presente artigo tem o objetivo de analisar, através de pesquisa bibliográfica e documental, baseada, principalmente, em dispositivos constitucionais e legais, na melhor doutrina e na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, as competências dos entes federativos para adotar medidas restritivas a certos direitos fundamentais, notadamente à liberdade de locomoção. Ademais, aborda o conflito entre direitos fundamentais sob a técnica da ponderação de Robert Alexy e propõe o reconhecimento do direito fundamental ao isolamento social.

Palavras-chave: Pandemia de COVID-19. Liberdade de locomoção. Direito à saúde. Técnica da ponderação. Direito fundamental ao isolamento social.,

The COVID-19 pandemic and the fundamental right to isolation –

Reflexes of the new coronavirus in the Brazilian legal universe

Abstract: The socioeconomic and political impacts caused by the COVID-19 pandemic are undeniable, also reflecting in the Brazilian legal universe. This article aims to analyze, through bibliographic and documentary research mainly based on constitutional and legal provisions, the best doctrine and jurisprudence of the Supreme Federal Court, the competences of federative entities to adopt restrictive measures to certain fundamental rights, notably freedom of movement. Furthermore, it addresses the conflict between fundamental rights using the Robert Alexy weighting technique and proposes the recognition of the fundamental right to social isolation.

Keywords: COVID-19 pandemic. Freedom of movement. Right to health. Weighting technique. Fundamental right to social isolation.

Sumário: Introdução. 1. Breves comentários acerca das competências federativas para edição de normas e execução de medidas (restritivas de direitos) para enfrentamento da pandemia. 2. Restrições ao exercício da liberdade de locomoção: violação ou ponderação?. Conclusão. Referências.

Introdução

“O país não aguenta, não pode parar dessa maneira. As pessoas têm que produzir e trabalhar. Não podemos [parar] por conta de cinco ou sete mil pessoas que vão morrer (…)”, afirmou o empresário Junior Durski (apud MOTA, 2020), em um vídeo publicado em sua conta da rede social Instagram, onde falava sobre os efeitos da pandemia de COVID-19 na economia brasileira.

Segundo Rezende (1998, p. 154):

Pandemia, palavra de origem grega, formada com o prefixo neutro pan e demos, povo, foi pela primeira vez empregada por Platão, em seu livro Das Leis. Platão usou-a no sentido genérico, referindo-se a qualquer acontecimento capaz de alcançar toda a população. No mesmo sentido foi também utilizada por Aristóteles.
Galeno utilizou o adjetivo pandémico em relação a doenças epidêmicas de grande difusão.
A incorporação definitiva do termo pandemia ao glossário médico firmou-se a partir do século XVIII, encontrando-se o seu registro em francês no Dictionnaire universel français et latin, de Trévoux, de 1771. Em português foi o vocábulo dicionarizado como termo médico por Domingos Vieira, em 1873.

O conceito moderno de pandemia é o de uma epidemia de grandes proporções, que se espalha a vários países e a mais de um continente, Exemplo tantas vezes citado é o da chamada “gripe espanhola”, que se seguiu à I Guerra Mundial, nos anos de 1918-1919, e que causou a morte de cerca de 20 milhões de pessoas em todo o mundo.

Em 30 de janeiro de 2020, durante conferência realizada em Genebra para tratar do surto do novo coronavírus (SARS-CoV-2) na República Popular da China com exportações para outros países, Tedros Adhanom, diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), com base no Regulamento Sanitário Internacional (RSI), promulgado no Brasil pelo Decreto nº 10.212, de 30 de janeiro de 2020, declarou o surto do novo coronavírus uma emergência de saúde pública internacional, após análise do parecer emitido pelo Comitê de Emergências constituído para avaliar os riscos do evento nascido em Wuhan (WHO, 2020a).

O Comitê destacou a necessidade de que os países implementem medidas robustas para detectar a doença cedo, isolar e tratar casos, rastrear contatos, e promover medidas de distanciamento social conforme o risco2.

De acordo com relatório emitido pela OMS, em 26 de maio de 2020, 5.404.512 (cinco milhões quatrocentos e quatro mil quinhentos e doze) casos foram identificados e 343.514 (trezentos e quarenta e três mil quinhentos e catorze) pessoas morreram no mundo inteiro. Somente no Brasil, até então, 22.666 (vinte e duas mil seiscentas e sessenta e seis) pessoas perderam a vida (WHO, 2020b).

Em meio à pandemia, a imprensa nacional e internacional noticiou, amplamente, o colapso do sistema de saúde em países europeus como Itália e Espanha, dando destaque às recomendações emitidas pela Organização, que levaram à suspensão de grandes eventos internacionais e a medidas tomadas por governos nacionais, como o fechamento de fronteiras, restrições a viagens domésticas e internacionais e à liberdade de locomoção.

Os dizeres de Durski, apesar de constituírem uma opinião pessoal, refletem o pensamento de certas autoridades públicas, empresários e membros da sociedade civil brasileira que repudiam as recomendações emitidas pela OMS, alegando que o enrijecimento do distanciamento social pode causar seríssimos e irreparáveis danos à economia e, inclusive, estimulando o boicote a medidas mais duras implantadas em algumas unidades da Federação.

A resistência proposta também acaba por envolver pessoas sem o mesmo poderio econômico, notadamente trabalhadores, inclusive informais, micro e pequenos empresários, dentre outros, que, sem o suporte assistencial necessário a ser garantido pelo Estado, acabam por não poder promover o seu próprio isolamento social.

Ana Claudia Mielke (OXFAM BRASIL, 2020), jornalista e ativista dos direitos humanos, sustenta que a pandemia de COVID-19 escancara a enorme desigualdade social brasileira, considerando que as minorias historicamente vulneráveis, dificilmente, poderão cumprir o isolamento social recomendado, sem prejuízo de sua própria subsistência e de seus familiares. Ademais, afirma que o isolamento social deve ser encarado como um direito, o qual somente poderá ser efetivado mediante a promoção de medidas de assistência social.

Sobre o tema, o vencedor do prêmio Nobel de economia, Amartya Sen (2010, pp. 243-245), destaca que, em meio a períodos de grave crise, deve o Estado assegurar proteção especial àqueles que mais necessitam e também à democracia, através de liberdades instrumentais:

A desigualdade tem um papel importante no desenvolvimento das fomes coletivas e outras crises graves. Na verdade, a própria ausência de democracia é uma desigualdade – nesse caso, de direitos e poderes políticos. Porém, mais do que isso, as fomes coletivas e outras crises desenvolvem-se graças a uma desigualdade severa e por vezes subitamente aumentada. (…)

(…) Essas crises econômicas gerais, assim como as fomes coletivas, desenvolvem-se atingindo os mais indefesos. Isso é, em parte, a razão por que as disposições institucionais visando a uma “segurança protetora” – na forma de redes de segurança social – constituem uma liberdade instrumental importante (…).

(…) Essa é uma parte importante do processo do desenvolvimento como liberdade, pois envolve o aumento da segurança e da proteção usufruídas pelos cidadãos. Essa relação é constitutiva e instrumental. Primeiro, a própria proteção contra fome, epidemia e destituição acentuada e súbita constitui um aumento de oportunidade de viver bem e com segurança. A prevenção contra crises devastadoras, nesse sentido, é parte integrante da liberdade que as pessoas com razão valorizam. Segundo, o processo de prevenção das fomes coletivas e outras crises é significativamente auxiliado pelo uso de liberdades instrumentais, como a oportunidade de discussão aberta, a vigilância pública, a política eleitoral e os meios de comunicação sem censura. (…)

A discussão envolvendo, de um lado, a necessidade de isolamento social para resguardar a vida e a saúde (uma vez que ainda não há cura ou vacina para a doença), e de outro, as liberdades econômicas e de locomoção gerou debates acalorados, culminando com uma grave crise político-institucional, envolvendo todos os entes da Federação e os poderes constituídos, o que, por óbvio, também repercutiu no universo jurídico.

Assim, impende analisar, através de pesquisa bibliográfica e documental, sob a égide da Constituição Federal de 1988 e outras normas relacionadas, os instrumentos utilizados para conter a disseminação da doença e o reconhecimento do direito fundamental ao isolamento social durante a pandemia, sem qualquer pretensão de esgotar a temática.

  1. Breves comentários acerca das competências federativas para edição de normas e execução de medidas (restritivas de direitos) para enfrentamento da pandemia

Inicialmente, faz-se necessário tecer comentários sobre a repartição de competências prevista na Carta Magna, com o escopo de identificar quais entes federativos são responsáveis pela prática de atos relativos ao enfrentamento da pandemia.

Conforme lição do professor José Afonso da Silva (2008, p. 479), competência nada mais é do que “a faculdade juridicamente atribuída a uma entidade ou a um órgão ou agente do Poder Público para emitir decisões. Competências são as diversas modalidades de poder de que se servem os órgãos ou entidades estatais para realizar suas funções”.

Ademais, o grande mestre ressalta que a repartição de competências no sistema estabelecido pela Constituição Federal de 1988 é regida pelo princípio da predominância do interesse:

O princípio geral que norteia a repartição de competência entre as entidades componentes do Estado federal é o da predominância do interesse, segundo o qual à União caberão aquelas matérias e questões de predominante interesse geral, nacional, ao passo que aos Estados tocarão as matérias e assuntos de predominante interesse regional, e aos Municípios concernem os assuntos de interesse local, tendo a Constituição vigente desprezado o velho conceito do peculiar interesse local que não lograra conceituação satisfatória em um século de vigência.

Acontece que, no Estado moderno, se torna cada vez mais problemático discernir o que é interesse geral ou nacional do que seja interesse regional ou local. Muitas vezes, certos problemas não são de interesse rigorosamente nacional, por não afetarem a Nação como um todo, mas não são simplesmente particulares de um Estado, por abrangerem dois ou mais deles. (…)3

Pois bem, o artigo 23 da Lei Maior, em seu inciso II, estabelece ser de competência material ou administrativa comum a todos os entes federativos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) “cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência” (BRASIL, 1988).

Sobre as competências comuns, Gilmar Mendes e Paulo Branco (2016, p. 866) afirmam que:

Para a defesa e o fomento de certos interesses, o constituinte desejou que se combinassem os esforços de todos os entes federais; daí ter enumerado no art. 23 competências, que também figuram deveres, tal a de “zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público”, a de proteger o meio ambiente e combater a poluição, melhorar as condições habitacionais e de saneamento básico, a de proteger obras de arte, sítios arqueológicos, paisagens naturais notáveis e monumentos, apenas para citar algumas competências/incumbências listadas nos incisos do art. 23.

O Parágrafo único do dispositivo mencionado ainda define que, em tudo visando a dirimir possíveis conflitos e potencializar o espírito colaborativo entre as unidades da Federação, leis complementares fixarão normas para a cooperação.

Já no artigo 24, XII, a Constituição estabelece a competência legislativa concorrente entre a União, os Estados e o Distrito Federal para tratar de “previdência social, proteção e defesa da saúde”4.

Sobre as competências concorrentes, Mendes e Branco (2016, p. 867) lecionam o que segue:

A Constituição Federal prevê, além de competências privativas, um condomínio legislativo, de que resultarão normas gerais a serem editadas pela União e normas específicas a serem editadas pelos Estados-membros. (…)

A divisão de tarefas está contemplada no art. 24, de onde se extrai que cabe à União editar normas gerais – i. é, normas não exaustivas, leis-quadro, princípios amplos, que traçam um plano, sem descer a pormenores. Os Estados-membros e o Distrito Federal podem exercer, com relação às normas gerais, competência suplementar (art. 24, §2º), o que significa preencher claros, suprir lacunas.

Aos Municípios, em conformidade com o artigo 30, I e II, da CF/88, ainda foram conferidas as atribuições de legislar sobre assuntos de interesse local e suplementar a legislação federal e a estadual no que couber.

Igualmente, é válido frisar que os artigos 196 e 198, da Lei Maior, dispõem que a “saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”, os quais “integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único” descentralizado, com direção única em cada esfera de governo, devendo prestar atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais, e que conta com a participação da comunidade (BRASIL, 1988).

Feitas tais considerações, é cristalina a intenção do legislador constituinte de fazer com que todos os entes da Federação participem da proteção e efetivação do direito à saúde. Dessa maneira, torna-se imperativo analisar alguns dispositivos da Lei nº 13.979/2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do novo coronavírus, editada pela União, conforme previsão do artigo 24 supracitado.

O artigo 3º da referida norma estabelece um rol não exaustivo de medidas que poderão ser adotadas pelas autoridades, no âmbito de suas competências, a exemplo da determinação de isolamento (caracterizado pelo artigo 2º, I, como “separação de pessoas doentes ou contaminadas, ou de bagagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas postais afetadas, de outros, de maneira a evitar a contaminação ou a propagação do coronavírus”); quarentena (definida pelo artigo 2º, II, como “restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus”); realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais, coleta de amostras clínicas, vacinação e outras medidas profiláticas ou tratamentos médicos específicos; restrição excepcional e temporária, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), por rodovias, portos ou aeroportos de entrada e saída do país, bem como locomoção interestadual e intermunicipal (BRASIL, 2020a).

Os §§ 8º e 9º do mesmo artigo, incluídos pela Medida Provisória nº 926, de 2020, estabelecem que as medidas restritivas, quando adotadas, devem resguardar o exercício e o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais, definidos mediante decreto da Presidência da República. Os §§ 10 e 11, também incluídos pela referida Medida Provisória, ainda dispõem que as medidas de isolamento, quarentena e de restrição por rodovias, portos ou aeroportos de entrada e saída do país, além de locomoção interestadual ou intermunicipal, somente poderão ser adotadas em ato específico, em articulação prévia com o órgão regulador ou o poder concedente ou autorizador; e sobre a vedação à restrição da circulação de trabalhadores que possa afetar o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais5.

O ato do Presidente da República, conforme exposição de motivos da Medida Provisória (BRASIL, 2020b), se deu para assegurar as competências e prezar pelo entendimento mútuo dos entes federativos. Contudo, sua constitucionalidade foi objeto de questionamento perante o Supremo Tribunal Federal.

O Partido Democrático Trabalhista (PDT) ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade com pedido de medida cautelar (ADI 6.341/DF), alegando que a Medida Provisória violaria as competências dos demais entes federativos e que não observou a forma prevista no Parágrafo único do artigo 23 (lei complementar), da CF/88, o que configuraria abuso de poder, invalidando, por arrastamento, as disposições do Decreto nº 10.282/2020, que regulamenta a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, para definir os serviços públicos e as atividades essenciais. O Ministro Marco Aurélio, relator do caso, em decisão monocrática, deferiu apenas em parte a medida pretendida, “para tornar explícita, no campo pedagógico e na dicção do Supremo, a competência concorrente” (comum), ressaltando que “a disciplina decorrente da Medida Provisória nº 926/2020, no que imprimiu nova redação ao artigo 3º da Lei federal nº 9.868/1999, não afasta a tomada de providências normativas e administrativas pelos Estados, Distrito Federal e Municípios” (BRASIL, 2020c).

Logo, em conformidade com todas as normas e dispositivos supracitados e chancelados pelo Pretório Excelso, os Estados, Distrito Federal e Municípios possuem competência para editar medidas mais restritivas do que aquelas estipuladas pela órbita federal, desde que não contrariem as normas gerais elaboradas pela União.

No Estado do Pará, por exemplo, foi editado o Decreto nº 729, de 05 de maio de 2020, que dispôs sobre a suspensão total de atividades não essenciais (lockdown) em Municípios da zona metropolitana da capital, Belém.

O artigo 2º do ato proibiu a circulação de pessoas, salvo por motivo de força maior, justificada para aquisição de gêneros alimentícios, medicamentos, produtos médico-hospitalares, produtos de limpeza e higiene pessoal; comparecimento, próprio ou de uma pessoa como acompanhante, a consultas ou realização de exames médico-hospitalares, nos casos de problemas de saúde; realização de operações de saque e depósito de numerário; e para a realização de trabalho, nos serviços e atividades consideradas essenciais (PARÁ, 2020).

Em caso de descumprimento, o artigo 6º previu a aplicação, de maneira progressiva, das penalidades de advertência; multa diária de até R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) para pessoas jurídicas, a ser duplicada por cada reincidência; multa diária de R$ 150,00 (cento e cinquenta reais) para pessoas físicas, MEI, ME, e EPPs, a ser duplicada por cada reincidência; embargo e/ou interdição de estabelecimentos6.

Após esta breve análise, torna-se imperioso discorrer acerca de possíveis violações a direitos fundamentais afetados pelas medidas, com base em regras de hermenêutica.

  1. Restrições ao exercício da liberdade de locomoção: violação ou ponderação?

A adoção de medidas mais restritivas em relação ao exercício de direitos fundamentais, notadamente da liberdade de locomoção, assegurada pelo inciso XV, do artigo 5º, da Carta Magna, foi criticada por alguns, que consideraram se tratar de atos inconstitucionais.

Sobre os direitos fundamentais de 1ª geração (ou dimensão), também conhecidos como direitos de liberdade, Paulo Bonavides (2017, p. 578) afirma que estes:

(…) têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado.

Entram na categoria do status negativus da classificação de Jellinek e fazem também ressaltar na ordem dos valores políticos a nítida separação entre a Sociedade e o Estado. Sem o reconhecimento dessa separação, não se pode aquilatar o verdadeiro caráter antiestatal dos direitos da liberdade, conforme tem sido professado com tanto desvelo teórico pelas correntes do pensamento liberal de teor clássico.

São por igual direitos que valorizam o homem-singular, o homem das liberdades abstratas, o homem da sociedade mecanicista que compõe a chamada sociedade civil, da linguagem jurídica mais usual.

Entretanto, mesmo com amplo reconhecimento, nenhum direito fundamental é absoluto e a liberdade de locomoção não constitui exceção à regra:

A liberdade de locomoção (ou ambulatorial) consiste no direito de ir, vir e permanecer, sem interferência do Estado ou de particulares, podendo ainda o indivíduo deixar, em tempo de paz, o território nacional com seus bens.

Como qualquer outro direito, este também é restringível por disposição expressa do texto constitucional ou, ainda, por meio de restrição implícita resultante de ponderação com outros direitos. (RAMOS, 2018, p. 712)

In casu, considerando as evidências científicas ventiladas até o presente momento pela OMS, não há medida mais adequada do que o isolamento social a ser tomada para conter a disseminação do novo coronavírus e evitar o colapso do sistema de saúde. Há um patente conflito entre a liberdade de locomoção e o próprio direito à saúde, que, apesar de constituir um típico direito social, se encontra elevado à categoria de direito transindividual, considerando que são titulares, ao menos durante o período da pandemia, pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato, de acordo com o Parágrafo único do artigo 81, da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990.

Os direitos transindividuais, conforme belos dizeres do ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Britto (apud JABORANDY e col., 2019, p. 252), são direitos de fraternidade:

Efetivamente, se considerarmos a evolução histórica do Constitucionalismo, podemos facilmente ajuizar que ele foi liberal, inicialmente, e depois social. Chegando, nos dias presentes, à etapa fraternal da sua existência. Desde que entendamos por Constitucionalismo Fraternal esta fase em que as Constituições incorporam às franquias liberais e sociais de cada povo soberano a dimensão da Fraternidade; isto é, a dimensão das ações estatais afirmativas, que são atividades assecuratórias da abertura de oportunidades para os segmentos sociais historicamente desfavorecidos, como, por exemplo, os negros, os deficientes físicos e as mulheres (para além, portanto, da mera proibição de preconceitos). De par com isso, o constitucionalismo fraternal alcança a dimensão da luta pela afirmação do valor do desenvolvimento, do meio ambiente ecologicamente equilibrado, da democracia e até certos aspectos do urbanismo como direitos fundamentais. Tudo na perspectiva de se fazer da interação humana uma verdadeira comunidade; isto é, uma comunhão de vida, pela consciência de que, estando todos em um mesmo barco, não têm como escapar da mesma sorte ou destino histórico.

Nesta senda, havendo colisão entre direitos fundamentais no caso concreto, é imperativo que se recorra a regras de hermenêutica, com o escopo de encontrar solução satisfatória. Bobbio (2014, pp. 100-101), ao analisar o tema das antinomias insolúveis (conflitos entre normas contemporâneas, de mesmo nível e ambas gerais), propõe como possível solução a chamada interpretação ab-rogante:

(…) a operação feita pelo juiz ou pelo jurista chama-se interpretação ab-rogante. Mas trata-se, na verdade, de ab-rogação em sentido impróprio, porque, se a interpretação é feita pelo jurista, ele não tem o poder normativo e, portanto, não tem nem poder ab-rogativo (o jurista sugere solução aos juízes e eventualmente também ao legislador); se a interpretação é feita pelo juiz, este em geral (nos ordenamentos estatais modernos) tem o poder de não aplicar a norma que considerar incompatível no caso concreto, mas não o de expeli-la do sistema (ab-rogála), mesmo porque o juiz posterior, tendo que julgar o mesmo caso, poderia dar ao conflito de normas uma solução oposta e aplicar bem aquela norma que o juiz precedente havia eliminado. (…)

Dworkin (1978, p. 297) indica, em sua célebre obra Taking rights seriously, que, ao julgar os chamados hard cases, deve o jurista se basear em argumentos de princípio, em detrimento de argumentos de política, para, enfim, chegar à “única resposta correta”:

The difference between an argument of principle and an argument of policy, then, is a difference between two kinds of questions that a political institution might put to itself, not a difference in the kinds of facts that can figure in an answer. If an argument is intended to answer the question whether or not some party has a right to a political act or decision, then the argument is an argument of principle, even though the argument is thoroughly consequentialist in its detail. Of course a critic of an argument of principle may want to say that it is a bad argument of principle just because it appeals to consequences in the way it does. (…)

A despeito das teses apresentadas, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem se pautado, para decidir os hard cases que lhe são submetidos, na técnica da ponderação. Luís Roberto Barroso (2015, p. 374) ensina que tal técnica surge pela insuficiência da subsunção para lidar com casos que envolvam colisões de princípios ou de direitos fundamentais. Consiste em identificar as normas pertinentes, selecionar os fatos relevantes e “apurar os pesos que devem ser atribuídos aos diversos elementos em disputa e, portanto, o grupo de normas que deve preponderar no caso”.

Alexy (1995, pp. 63-65), criador da técnica da ponderação, sustenta que, no julgamento de casos difíceis, o intérprete deve desenvolver seu discurso com argumentos sistemáticos (teleológicos e deontológicos) que se apóiam na idéia de unidade ou de coerência do sistema jurídico:

Los argumentos sistemáticos se apoyan en la idea de unidad o de la coherencia del sistema jurídico. Con ellos se activa el verdadero núcleo del pensamiento transmitido en el modelo de coherencia. (…)

En la precedente relación los argumentos de principio son de particular significación. En los estados constitucionales democráticos los argumentos de principio se apoyan esencialmente en los preceptos constitucionales.

Su utilización incluye en casos difíciles normalmente una ponderación, lo cual indica que los principios tienen el carácter de preceptos de optimización. Pero en el marco de la ponderación los argumentos prácticos generales cumplen un papel decisivo. Con esto, la parte más importante de la argumentación sistemática es ligada a la argumentación práctica general.

(…) Estos pueden dividirse en argumentos teleológicos y deontológicos. Los argumentos teleológicos se orientan a los efectos de una interpretación y se apoyan en último termo en una idea de lo bueno. Los argumentos deontológicos hacen valer lo que, independientemente de las consecuencias, es justo o injusto.

Assim, após rápido exercício de ponderação, norteado por princípios como o da proporcionalidade, da supremacia do interesse público sobre o interesse privado e do direito à saúde em sua dimensão coletiva, verifica-se que o bem estar de toda uma coletividade não pode se curvar a pretensões individuais, de modo que o direito à saúde deve se sobrepor à liberdade de locomoção.

Finalmente, vislumbra-se a possibilidade de reconhecimento de um direito fundamental ao isolamento social, ao menos enquanto a pandemia durar, como complementar dos direitos à vida e à saúde.

Conclusão

Ante todo o exposto, foi possível concluir que, mediante a técnica da ponderação, as medidas restritivas à liberdade de locomoção, adotadas pelas unidades da Federação brasileira, no âmbito de suas competências constitucionalmente estabelecidas, para enfrentar a pandemia de COVID-19, não atentam contra referido direito fundamental, eis que servem para garantir a observância dos direitos fundamentais à vida e à saúde em uma dimensão coletiva.

É possível ainda reconhecer a existência de um direito fundamental ao isolamento social, nos termos do §2º, do artigo 5º, da Lei Maior, que reconhece, além dos direitos e garantias fundamentais expressos no texto constitucional, “outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” (BRASIL, 1988)

Sobre o assunto, ensina Sarlet (2015, p. 81):

Importante, neste contexto, é a constatação de que o reconhecimento da diferença entre direitos formal e materialmente fundamentais traduz a ideia de que o direito constitucional brasileiro (assim como o lusitano) aderiu a certa ordem de valores e de princípios que, por sua vez, não se encontra necessariamente na dependência do Constituinte, mas que também encontra respaldo na ideia dominante de Constituição e no senso jurídico coletivo. (…)

Ressalte-se que a efetivação de tal direito depende, tendo em vista o período de exceção vivido, do fortalecimento da rede de proteção assistencial para as pessoas físicas e jurídicas em estado de vulnerabilidade.

Finalmente, segundo Kant (2008, pp. 58-59), “o querer de todos os homens individuais de viver numa constituição legal segundo princípios de liberdade (…) não é suficiente para este fim, mas é necessário que todos queiram este estado (a unidade coletiva da vontade unificada)”.

Referências

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BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Traduzido por Ari Marcelo Solon. 2ª ed. São Paulo: EDIPRO, 2014.

BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 32ª ed., atual. São Paulo: Malheiros, 2017.

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1 Mestre em Direito Internacional e Europeu Público e Privado pela Universidade Nice Sophia Antipolis, advogado, professor do programa de graduação e coordenador dos cursos de pós-graduação em Direito da Faculdade Estácio do Pará. E-mail: igor_velasco@hotmail.com.

21 Ibidem.

32 Ibidem, p. 478.

43 BRASIL, op. cit.

54 Ibidem.

65 Ibidem.

Âmbito Jurídico

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