Douglas Rizzi Bitencourte – Pós-Graduando em Direito Público pela ESMAFE/RS. Graduado Laureado em Direito pela UCS. Advogado. E-mail: rizzi.douglasb@gmail.com
Guilherme Dettmer Drago – Professor da Universidade de Caxias do Sul. Mestre em Ciências Criminais PUCRS. E-mail: guilhermedrago@bol.com.br
Resumo: Analisando os projetos e propostas do Congresso Nacional encontra-se a PEC 99/2011 que colide com o princípio da laicidade estatal. Como reflexo da democracia representativa, nos últimos anos houve um considerável aumento no número de parlamentares com ligados a entidades religiosas. Nesse viés, os princípios emba sadores do constitucionalismo nacional garantem a laicidade estatal do mesmo modo que prevê a proteção ao princípio da liberdade religiosa e todos seus corolários. Assim, a PEC fundamenta a possibilidade de entidades religiosas questionarem os atos normativos emitidos pelo Estado quando da produção legiferante. Em um estudo aprofundado, é possível verificar várias vezes em que as funções estatais entram em confronto com as ideologias religiosas, seja na jurisprudência, seja na construção normativa. Desse modo, a PEC 99/2011 demonstra uma tendência de reaproximar o Estado com entidades religiosas, sendo importante um estudo dos institutos que envolvem a polêmica aqui apresentada.
Palavras-chave: Direito Constitucional. Liberdade Religiosa. Princípio da Laicidade. PEC 99/2011.
Abstract: Analysing the projects and proposals of the National Congress we find the PEC 99/2011 that conflicts with the laicity of the state. As a reflex of a representative democracy, in the past years, there’s been a significant rise on the numbers of congressmen that have ties with religious entities. In this regard, the basic principles of the national constitucionalism grant the laicity of the state, in the same way that it foresees the protection of the principle of the religious freedom and all of its derived principles. Therefore, the PEC presents an argument on whether or not religious entities have the right to question the normative acts issued by the State regarding the issuance of laws. In a more careful analysis, it is possible to recognize that the state duties very often collide with religious ideologies, in both jurisprudence and issuence of laws. Thereby, PEC 99/2011 shows a tendency of an approximation between the State and religious entities, which shows the importance of an understanding of the concepts and the controversy here presented.
Keywords: Constitutional law. Religious freedom. Principle of laicity. PEC 99/2011.
Sumário: Introdução. 1. Princípios constitucionais atinentes ao tema. 1.1. Princípio do direito à vida. 1.2. Princípio da dignidade da pessoa humana. 1.3. Princípio do direito à igualdade (formal e material). 1.4. Do princípio da vedação ao retrocesso. 2. Visão específica do princípio da laicidade (e da liberdade religiosa) 2.2. Da isonomia tributária e a isenção de tributos a templos religiosos. 2.3. Do ensino religioso em escolas. 2.4. Dos símbolos religiosos em locais públicos. 2.5. Precedentes jurisprudenciais. 2.5.1. Do sacrifício de animais em religiões de matriz africana e o direito ambiental. 2.5.2. Doação de sangue e os testemunhas de jeová. 3. O princípio da laicidade e a PEC 99/2011: uma análise crítica. 3.1. Do controle prévio e posterior de constitucionalidade. 3.2. Da legitimidade e (in)conveniência para sua propositura. 3.3. A PEC 99/2011 e seu caráter teleológico. 3.4. As consequências do aumento de legitimados para propor ADINS e ADCS e o acúmulo de ações de controle de constitucionalidade perante o STF. Conclusão.
INTRODUÇÃO
Nos últimos anos, tomou notoriedade a grande participação de políticos publicamente declarados religiosos, tanto na esfera do poder executivo quanto do poder legislativo. Essa representatividade pode ser analisada quando observada as frentes parlamentares junto ao Congresso Nacional (CN).
Nessa perspectiva, muitas questões envolvendo a jovem democracia nacional entram em questão sendo necessária uma análise minuciosa acerca do estudo e da verificação da importância dos princípios constitucionais dentro de um modelo de Estado Democrático de Direito.
Entre a gama de direitos e princípios perceptíveis, alguns possuem maior relevância. O marco principiológico na ciência jurídica demonstra uma positivação de princípios que, por vezes, tomam um aspecto de essencialidade no convívio social.
Dentre os tantos que podem ser destacados, alguns têm forte ligação com a problemática do envolvimento religioso na política e no direito. Nesse viés, o estudo histórico demonstra uma tendência em determinados países e, em especial na realidade brasileira, de separar a figura da Igreja com a figura do Estado, que por muito tempo esteve unida.
Essa ideia se encontra presente, no ocidente, na história da Europa e do direito europeu, trazido pelos colonizadores para terras Tupiniquins. A primeira Constituição brasileira manteve as origens e declarou uma religião oficial, a Católica Apostólica Romana, sendo permitido o culto de outras religiões desde que atendidos alguns requisitos.
As demais Constituições seguiram caminho diverso, concretizando uma tendência de laicidade estatal. Importa salientar que a laicidade não é aversão à religião ou religiões, mas uma linha divisória entre essas duas figuras (Estado e Religião).
Não obstante, a ideia do princípio do Estado Laico visa proteger o direito de crença (ou não crença), bem como todos os seus corolários. Um Estado Laico determina que as funções do ente estatal não sejam afetadas e/ou confundidas com as ideologias religiosas, ao passo que protege o direito subjetivo da crença e promove a ideia contra a intolerância religiosa.
Não obstante, tendo em vista que o direito trata-se de uma ciência do dever-ser, confusões e desentendimentos podem ocorrer e, às vezes, abalar os pilares construídos ao longo da evolução da própria ciência jurídica.
Em qualquer democracia representativa os governantes tendem a demonstrar o desejo da maioria da população, sendo verdadeiros reflexos da mentalidade da maioria.
É notório que nos últimos tempos cresceu o número de fiéis das igrejas evangélicas o que consequentemente acarretou em uma maior quantidade de parlamentares desse segmento religioso, traduzindo a vontade de parte da população nacional. A assertiva é visível a partir da análise da frente parlamentar evangélica do CN, conhecida popularmente como “Bancada Evangélica”. Não são poucos os projetos de leis e emendas constitucionais originárias desse grupo de legisladores, sendo vários de conhecimento geral, como por exemplo, o famoso (e polêmico) projeto da “cura gay”, atualmente arquivado (PL 4931/2016).
Nesse contexto criou-se a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 99/2011, com o projeto de acrescentar o inciso X ao artigo 103 da Constituição Federal (CF), dando as entidades religiosas de âmbito nacional, a capacidade de postularem perante o Supremo Tribunal Federal (STF) Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIN) e Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADC).
Assim, o problema apresentado na pesquisa do presente artigo busca o entendimento do princípio do Estado Laico, a fundamentação da PEC 99/2011, os propositores da PEC e se há afronta ao princípio da laicidade.
A presente Emenda Constitucional fundamenta-se na ideia de que há leis que disciplinam conteúdos de natureza religiosa, daí a importância do acréscimo ao referido artigo da Constituição.
Dessa forma, o presente artigo busca compreender a realidade política nacional e, nesse contexto, verificar e demonstrar a impossibilidade das religiões, através de entidades nacionais, de questionarem a (in)constitucionalidade dos atos produzidos pelo poder legiferante quando de sua atuação.
O conteúdo elencado tenta demonstrar que, a realidade da justificativa trazida na presente PEC já é desenvolvida pelo princípio do Estado laico, ou seja, mesmo princípio que também garante o direito à liberdade religiosa, sendo certo que, ao fim e ao cabo, a proposta busca, tão somente, reaproximar a figura religiosa das funções do Estado.
No primeiro capítulo tratar-se-á sobre a importância dos princípios constitucionais num Estado Democrático de Direito e alguns princípios importantes ao presente tema. No segundo capítulo estudar-se-á o princípio da laicidade estatal, da liberdade religiosa e seus reflexos práticos com temas polêmicos. Por fim, no terceiro capítulo realizar-se-á se uma análise crítica da PEC 99/2011 e sua afronta ao princípio do Estado Laico.
O desenvolvimento do presente artigo fundamentou-se na pesquisa de doutrina especializada, nos textos legais, na construção jurisprudencial, em outras propostas de leis e emendas constitucionais e em outros materiais que foram sendo descobertos durante a elaboração, com a finalidade de fomentar e entender da melhor maneira possível os nuances e consequências que o assunto traz não somente ao mundo do direito, mas também no mundo prático e no próprio histórico de laicidade estatal.
1 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS ATINENTES AO TEMA
Como base do ordenamento jurídico de um país tem-se os princípios constitucionais. Superado o período positivista onde normas eram apenas regras determinadas, os princípios passam a ter extrema importância para o funcionamento dos sistemas jurídicos, em especial após a teoria principiológica.
“Os princípios não se colocam, pois, além ou acima do direito (ou do próprio Direito positivo), também eles – numa visão ampla, superadora de concepções positivistas, literalistas e absolutizantes das fontes legais – fazem parte do complexo ordenamental.” (MIRANDA, 2007, p. 432).
São os norteadores para que sua hermenêutica busque o sentido e alcance das normas e forme o núcleo basilar do ordenamento jurídico. Do mesmo modo possuem função integradora do Texto Constitucional, suprimindo eventuais lacunas (AGRA, 2014). Sendo vetores de interpretação, propiciam a unidade e harmonia do ordenamento, integrando diferentes partes da Constituição, atenuando tensões normativas (BULOS, 2012, p. 503).
O doutrinador Ruy Samuel Espíndola (2002, p. 53) refere que para entender o alcance jurídico do conceito de princípio se faz necessário ter em mente a definição da palavra na língua portuguesa, em seu sentido semântico, na qual ele entende.
“Pode-se concluir que a ideia de princípio ou sua conceitualização, seja lá qual for o campo do saber que se tenha em mente, designa a estruturação de um sistema de ideias, pensamentos ou normas por uma ideia mestra, por um pensamento chave, por uma baliza normativa donde todas as demais ideias, pensamentos ou normas derivam, se reconduzem e/ou se subordinam.” (ESPÍNDOLA, 2002, p. 53).
Paulo Bonavides (2004, p. 258) define os princípios da seguinte maneira:
“A caminhada teórica dos princípios gerais, até sua conversão em princípios constitucionais, constitui matéria das inquirições subsequentes. Os princípios, uma vez constitucionalizados, se fazem a chave de todo sistema normativo.”.
Nesse interim, os princípios constitucionais aproximam a realidade fática com o texto constitucional, possibilitando uma maior flexibilização das normas positivadas com os anseios jusnaturalísticos (AGRA, 2014).
“Os princípios fundamentais funcionam como elemento de conexão entre a realidade social e o Texto Constitucional, impedindo a proliferação de aparentes lacunas ou de antinomias, evitando que o choque entre a realidade fática e a realidade jurídica prejudique a eficácia das normas. Importante função desempenham os princípios constitucionais porque trazem para a Constituição subsídio de conteúdo jusnaturalístico, baseado no direito extradogmático, transcendendo a matéria das normas legisladas, contudo, sem um distanciamento dos anseios sociais e do direito positivado. Dessa forma, há a positivação de vários postulados provindos do direito natural.” (AGRA, 2014).
Dessa forma, a caracterização do princípio alarga o entendimento de norma, na qual se inclui os princípios, sendo estes, espécie de norma. Assim, a norma constitui-se de regras e princípios sendo aqueles concretos e estes abstratos (BONAVIDES, 2004, p. 274/275).
“A concepção de que um princípio jurídico é norma de Direito talhou-se através de evolução analítica interessante. Primeiro, a metodologia jurídica tradicional distinguia os princípios das normas, tratando-as como categorias pertencentes a tipos conceituais distintos. Ou seja, norma tinha um significado e princípio, outro. Mas, mesmo assim, a ideia de norma era sobreposta, dogmática e normativamente, à ideia de princípio.” (ESPÍNDOLA, p. 53).
Com o paradigma alterado e orientando-se de modo que regras e princípios são normas, se entende que ambos se formulam com a ajuda de expressões deônticas fundamentais, sendo fundamentos para juízos concretos de dever mesmo que essencialmente diferentes na sua natureza (BONAVIDES, 2004, p. 277). Desse modo, é certo afirmar que os princípios possuem a mesma força de norma das demais regras jurídicas contidas na Constituição, ao passo que qualquer disposição contrária a elas, deve ser declarada inconstitucional. Não se trata de mera retórica, mas sim de bases primordiais dentro do texto constitucional. Tal observação demonstra que os princípios não possuem apenas papel instrumental, mas que têm autonomia própria, sem a necessidade de outra regra (AGRA, 2014).
Deve-se entender esse modelo adotado atualmente com base nos ensinamentos de Robert Alexy, nascido da sua teoria principiológica do direito com pretensões jurídicos-dogmáticas bem determinadas. Explicando a teoria de Alexy, Leonardo Martins (2012, p. 73) diz que “direitos fundamentais são, segundo ela (teoria pricipiológica), ‘mandamentos de otimização’ relativos às suas ‘possibilidades fáticas e jurídicas’.”.
Paulo Bonavides (2004, p. 291) complementa que os princípios constitucionais passam a traduzir os princípios gerais do direito de outrora, conforme se verifica na seguinte passagem de seu livro:
“(…)desde a constitucionalização dos princípios, fundamento de toda a revolução principial, os princípios constitucionais outra coisa não representam senão os princípios gerais de Direito, ao darem estes o passo decisivo de sua peregrinação normativa, que, inaugurada nos Códigos, acaba nas Constituições.”.
Denotado pelo autor supracitado, que as Constituições do século XX fizeram o que os Códigos do século XIX haviam realizado que é a positivação do Direito Natural (BONAVIDES, 2004, p. 293).
Por ter a característica de normatizar o Direito Natural, os princípios possuem conceitos jurídicos indeterminados, sendo tipificados de maneira bastante genérica e abrangente. Em que pese as regras jurídicas tenham uma característica um tanto quanto abrangente, os princípios se destacam por serem mais amplos, não permitindo uma precisão nítida quando da sua interpretação, o que possibilita uma maior discricionariedade no momento de aplicar-lhe no caso em concreto (AGRA, 2014).
“A vaguidade dos “conceitos jurídicos indeterminados” pode provir da linguagem deficiente utilizada em sua construção ou da indeterminação que é apanágio à situação de fato, que ocorre de forma assaz na questão das normas referentes à competência. Determinadas situações fáticas ostentam um alto grau de complexidade que se configura problemático para estruturas normativas enquadrá-las perfeitamente. Havendo um gap entre a seara normativa e a seara fática, sobra espaço para o operador impor os limites de sua realização.” (AGRA, 2014).
Nessa indeterminação conceitual, Jorge Miranda (2007, p. 435/436) divide os princípios em três categorias (dentre muitas outras divisões doutrinárias existentes): princípios axiológicos fundamentais, princípios políticos-constitucionais e princípios constitucionais instrumentais. Os primeiros correspondem aos limites excedentes do poder constituinte, sendo o “portal” entre o Direito Natural e o Direito Positivo, como exemplos, a liberdade de religião e de convicções. Os princípios político-constitucionais correspondem aos limites imanentes do poder constituinte, aos limites da revisão da Constituição, próprios e impróprios e a direção caracterizadora de cada Constituição material, como exemplos, o princípio democrático e o da separação dos poderes. E o último, refere-se à estruturação do sistema constitucional, em moldes de racionalidade e operacionalidade e como exemplos têm-se, o princípio da publicidade das normas jurídicas e o da competência.
Diz-se dos princípios constitucionais que eles possuem três funções relevantes na ordem jurídica, quais sejam: a função fundamentadora da ordem jurídica, na qual todas as normas do sistema jurídico devem irradiar das normas constitucionais; a função interpretativa, onde os princípios cumprem o papel de orientar as questões jurídicas em cada caso concreto; e por fim, a função supletiva, sendo certo que, os princípios integram o Direito, ou seja, “preenchem” as lacunas da ordem jurídica (ESPÍNDOLA, 2002, p. 72/73).
1.1 PRINCÍPIO DO DIREITO À VIDA
Dentre os diversos direitos fundamentais previstos na CF, um dos mais importantes é o direito à vida. O doutrinador Uadi Lammêgo Bulos (2012, p. 539) o determina como sendo o mais importante de todos. Seu significado é amplo e dele decorrem tantos outros direitos que seria impossível citar todos sem esquecer-se de nenhum.
O doutrinador Alexandre de Moraes (2008, p. 35) explica que “O direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os demais direitos.”.
Previsto no caput do artigo 5º do texto constitucional, o direito à vida é de difícil conceituação, uma vez que é dinâmico e ligado com outros direitos fundamentais. Não é analisado apenas pela sua faceta biológica de auto-atividade funcional, é visto acima de tudo pela sua acepção biográficas mais compreensiva. É carregado de significados, sendo em sua essência, um processo que está em constante mudança sem perder sua própria identidade (SILVA, 2011, p 197).
José Afonso da Silva explica que “A vida humana, que é o objeto do direito assegurado no art. 5º, caput, integra-se de elementos materiais (físicos e psíquicos) e imateriais (espirituais).” (2011, p. 198). Destaca-se que é a vida humana que está assegurada neste dispositivo da CF, de modo que a vida de animais não se enquadra nesse direito, mas sim na compreensão do direito ao meio ambiente previsto no artigo 225 da Lei Maior, uma vez que não se tratam de sujeitos de direito (VENOSA, 2014, p. 138).
Veja-se que o direito à vida não se trata de um conceito suprarreal e metafísico, em seu sentido biológico que brota em um instante, mas de um aglomerado de acontecimentos que aparece após a concepção e que se transforma/evoluí progredindo até perecer, vindo a se ramificar nos demais direitos inerentes à pessoa, inclusive e, em especial, no da dignidade da pessoa humana, que será tratado no próximo capítulo (FERRARI, 2011, p. 564).
Tanto o início quanto o fim da vida são discutidos dentro dos ordenamentos jurídicos, entretanto é possível encontrar na doutrina e no Código Civil uma delimitação desses termos. Walber Moura Agra (2014) afirma que “A vida do ser humano começa na concepção e se prolonga até o corpo deixar de emitir sinais vitais.”. Já Uadi Lammêgo Bulos (2012, p. 540) salienta que “O direito à vida inicia-se com a fecundação do óvulo pelo espermatozoide, resultando num ovo ou zigoto.”. O direito à vida também abarca a vida uterina, de modo que começa com a concepção e acaba com o parto (AGRA, 2014). O Diploma Civil (BRASIL, 2002) prevê: “Art. 2º. A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.”.
André Ramos Tavares apud Regina Maria Macedo Nery Ferrari (2011, p. 565) define quatro teorias sobre o começo da vida. A teoria da concepção (do sistema jurídico nacional) entende o início da vida na concepção. Já a teoria da nidação exige que o óvulo tenha sido fixado no útero, tendo como pressuposto a concepção prévia.
Em outra linha, mais complexas, tem-se a teoria do sistema nervoso a qual exige a existência dos elementos que constituem o sistema nervoso, de forma a proporcionar ao feto alguma característica humana. E por fim, o autor descreve a teoria dos sinais eletroencefálicos, ou seja, quando há presença de atividade cerebral no feto (FERRARI, 2011, p. 565).
Em que pese do direito à vida nasça os direitos da personalidade com características de inalienáveis, imprescritíveis, irrenunciáveis e intransmissíveis, certo que a legislação pátria suporta exceções, isso, por que, como todos os direitos, este não é absoluto (AGRA, 2014). Exemplo claro encontrado na Lei são os casos de pena de morte previstos no Código Penal Militar por crimes de deserção e traição ou, na linha da Carta Magna, a possibilidade de pena de morte em caso de guerra declarada.
Outro exemplo de relativização do direito à vida são as possibilidades de aborto previstas no Código Penal (BRASIL, 1940):
“Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico:
Aborto necessário
I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.”.
O STF também já decidiu casos, extremamente polêmicos, tal qual ao da anencefalia, que firmou a possibilidade do aborto nos casos de fetos anencéfalos (ADPF nº 54) e, a possibilidade de estudo de células-tronco sem que reste caracterizada lesão à vida (ADI nº 3510 – DF) (BRASIL, Supremo Tribunal Federal).
De outra banda, de maneira, diga-se contraditória, o ordenamento jurídico pátrio firma a irrenunciabilidade do direito à vida quando não prevê a possibilidade da eutanásia, ou “morte digna”, e tipifica como crime a instigação, induzimento e auxílio ao suicídio (FERRARI, 2011, p. 567).
A Lei de transplantes de órgãos (Lei 9.343/1997) que dispõe sobre a remoção de órgão, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplantes e tratamentos, estabelece que existe a necessidade de se demonstrar previamente a morte encefálica para tais fins. Logo, percebe-se que o legislador (de maneira indireta) preocupou-se em trazer um marco legal para o termino da vida, sem, todavia, esgotar o assunto (BRASIL, 1997).
Assim, sem esgotar os casos encontrados na jurisprudência pátria que divergem sobre o tema, chega-se à conclusão de que “A vida não é apenas um conjunto de valores objetivos, mas integram-na elementos subjetivos, seara pertinente para a incidência dos valores morais. A Constituição realçou a integridade moral, tornando-a um bem indenizável.” (AGRA, 2014). Não se trata de mera retórica constitucional, mas de um princípio com total relevância e aplicação no cotidiano jurídico e fático.
1.2 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Conforme visto no título anterior, do direito à vida deriva todos os demais direitos e garantias individuais, de maneira que, o pré-requisito fático essencial para a existência de direitos é a vida. Sem vida não existe direito.
Nesse interim, entende-se que assegurar o direito à vida abarca muitos outros direitos, de modo que não prevê apenas o estar vivo e o continuar vivo, mas protegê-la em todas as suas dimensões, uma vez que deve estar assegurada sua dignidade de viver (FERRARI, 2011, p. 569).
A expressão “dignidade humana”, assim como o direito à vida, é de difícil conceituação. Não se trata de uma fórmula pronta, única e fechada. Do mesmo modo, amolda-se a cada nova época estando em constante desenvolvimento (FERRARI, 2011, p. 569).
Dignidade vem do latim dignitas e significa tudo aquilo que merece respeito, consideração, estima. A dignidade da pessoa humana é um conjunto de direitos intrínsecos à figura humana, de maneira que sem ele, o homem não passaria de um objeto, uma coisa. Traduz-se em direito à vida, lazer, saúde, educação, trabalho e cultura, sendo sua mantença função primeira do Estado. Esses direitos tornam-se o centro, o pilar fundamental de todo o ordenamento jurídico (AGRA, 2014).
Resumidamente, a vida digna, prevista na Constituição, garante as necessidades vitais básicas dos cidadãos, sendo expressamente vedada qualquer forma de tratamento indigno, tal como tortura, penas perpétuas e trabalhos forçados (LENZA, 2013, p. 1041).
Mesmo sendo um conceito aberto, esse princípio é deveras importante. A CF colocou-o na posição de fundamentos da República Brasileira. O artigo 1º da Constituição (BRASIL, 1988) prevê:
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I – a soberania;
II – a cidadania
III – a dignidade da pessoa humana;
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V – o pluralismo político.”.
O homem é singular, sendo impossível sua repetição, de modo que seu desenvolvimento deve ser protegido e favorecido. Trata-se da estrutura central do ordenamento jurídico. A dignidade da pessoa humana é inviolável e o homem é o centro do sistema jurídico, tornando-se o vetor paradigmático de interpretação das demais normas e princípios constitucionais (AGRA, 2014). Este princípio não pode ser em hipótese alguma esquecido por juristas e legisladores quando da prática de atos de interpretação, aplicação e criação das normas jurídicas (NUNES, 2010, p. 65).
Não é mera liberalidade das instituições estatais proverem esse princípio, trata-se de direito pré-existente a qualquer tipo de direito estatal, de modo que o Estado deve garantir e propiciar sua integral satisfação (AGRA, 2014).
Nesse sentido explica Regina Maria Macedo Nery Ferrari (2011, p. 580):
“A Constituição Federal brasileira de 1988 enfatiza o direito à vida com uma nova extensão, e, no seu art. 1.º, III, expressa, pela primeira vez no constitucionalismo nacional, o princípio da dignidade da pessoa humana como matriz do direito brasileiro, e é a partir deste princípio que afirma, no seu art. 3.º, os objetivos do Estado brasileiro, o que impõe a sua estrita observância na adoção de políticas públicas.”
Veja que o Estado tem o dever de garantir a aplicação deste princípio, inclusive na adoção de políticas públicas. Essa garantia individual traz uma concepção de direito individual protetivo, ou seja, entre o Estado e o indivíduo de direitos. Também deve ser visto na ótica de dignidade na relação dos próprios indivíduos entre si (MORAES, 2003, p. 60).
Gilmar Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco (2016, p. 259) trazem o mesmo entendimento.
“O direito à vida apresenta evidente cunho de direito de defesa, a impedir que os poderes públicos pratiquem atos que atentem contra a existência de qualquer ser humano. Impõe-se também a outros indivíduos, que se submetem ao dever de não agredir esse bem elementar.”
É possível encontrar reflexos do princípio da Dignidade Pessoa Humana em toda a CF (e também em leis infraconstitucionais). Só a titulo de exemplificação, o artigo 3º do Diploma Maior (BRASIL, 1988) acaba por desmembrar alguns aspectos deste princípio de maneira breve, como sendo objetivos da República.
“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II – garantir o desenvolvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”.
É reconhecida na doutrina a força axiológica e teleológica que o princípio da dignidade da pessoa possui. Sendo o ápice do conhecimento e do sistema jurídico, esse princípio representa, sobretudo, as finalidades a serem alcançadas pelo Estado, a sociedade e os cidadãos de maneira em geral. Trata-se de uma estrutura paradigmática que busca o “direito justo”, no qual reconhece e ressalta os valores humanos colocando-os dentro da normativa constitucional (SOARES, 2010, p. 144).
Grande exemplo da eficácia do princípio em comento mostra-se quanto ao tratamento que o ordenamento pátrio dá à tortura. Não é novidade na história mundial e tampouco nacional dos grandes massacres que o ser humano é capaz de cometer, assim, há previsão constitucional (artigo 5º, inciso III da CF) que veda o tratamento desumano ou degradante, bem como, considera crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia a prática de tortura (MORAES, 2008, p. 44). Tal implicância possui reflexos diretos no direito penal, bem como na atuação e rotina dos agentes públicos em especial dos Policiais.
Quanto aos direitos sociais, na esfera trabalhista, tem-se como mandamento constitucional a fixação do salário mínimo, como meio essencial à subsistência do indivíduo, tendo caráter alimentar que deve atender as necessidades do trabalhador e de sua família (FERRARI, 2011, p. 571). Do mesmo modo, resume as garantias que os trabalhadores possuem, proibindo práticas abusivas e degradantes a exemplo da proibição ao trabalho escravo. O artigo sétimo da CF elenca os direitos dos trabalhadores.
Quanto ao salário mínimo a Lei Maior dita (BRASIL, 1988):
“Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: […]
IV – salário mínimo , fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;”.
Assim, são inúmeros e incontáveis os reflexos do princípio da dignidade da pessoa humana e suas previsões constitucionais e infraconstitucionais.
1.3 PRINCÍPIO DO DIREITO À IGUALDADE (FORMAL E MATERIAL)
O princípio da igualdade ou da isonomia tomou maior relevância a partir das constituições pós-segunda guerra mundial, sendo certo que os legisladores preocuparam-se em prever a igualdade nos ordenamentos jurídicos, com a finalidade de acabar com as desigualdades sociais e impedir a discriminação (FERRARI, 2011, p. 572). Não se confunde a discriminação que se trata aqui com a da desigualdade, uma vez que, na própria ideia de justiça se prevê a desigualdade na medida dos desiguais para que possam se igualar. Veja que a finalidade da desigualdade que se busca é acabar com a diferença que existe quando inserido no contexto do ordenamento jurídico, sendo certo que se combatem as discriminações que não tem a finalidade pretendida pelo Direito (MORAES, 2008, p. 36).
O princípio da igualdade determina que todos são iguais perante a lei, não podendo a legislação criar tratamento desigual onde a situação fática não tenha criado. Veja-se que, se a lei tratar de maneira igual quando o enredo fático se apresenta de maneira irregular é, na pior das hipóteses, ensejar o aumento da desigualdade presente (AGRA, 2014).
Nesse sentido, Walber de Moura Agra (2014) afirma:
“O princípio da legalidade pode ensejar desequiparações, desde que motivado por uma finalidade que esteja consentânea com as estruturas do ordenamento jurídico, na busca de concretizar o princípio da justiça. É a desigualdade como ferramenta do princípio distributivo. O que se veda são discriminações gratuitas, destituídas de qualquer sentido. Não basta qualquer motivo, mas uma razão palpável, justa.”.
Desse modo chega-se a uma fórmula. Com base na isonomia, o ordenamento tratará todos de maneira igual, produzindo desigualdades legais quando o contexto fático é desigual, com a finalidade de tonar as relações tratadas pela lei, iguais. Apesar de confuso, o tema é, de maneira geral, simples, tratando-se da visão de igualdade Aristotélica (AYRES, 2007).
A CF (BRASIL, 1988), em seu artigo 5º, caput, dispõe expressamente sobre este princípio.
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […]”
Não são poucos os dispositivos da Lei Maior que tratam do assunto, demonstrando a preocupação do constituinte originário em frisar essa premissa como base do ordenamento jurídico Nacional. Para fins de demonstração, os artigos constitucionais que prevê o princípio da isonomia são: Arts. 3º, III; 5º e incisos I, LXXIV, LXXVI; 7º, XX, XXX, XXXII, XXXIV; 12, §2º; 14; 37, I, VIII, XXI; 40, §1º, III, §4º, I; 43; 143, §2º; 150 e inciso II; 151, I; 152; 165, §7º; 170; 196; 201, §1º, §7º, I, II; 203, V; 206; 226, §5º e 227, §3º, IV e §6º (NOVELINO, 2014). Encontra-se a base desse princípio na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 (FRANÇA, 1789) “Art.1º. Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum.”.
Deve-se entender o princípio da paridade através do conceito de ações afirmativas, na qual a própria Carta Magna prevê situações de disparidade que necessitam de tratamento não igualitário para se equipararem faticamente. Trata-se de compensar os menos favorecidos que historicamente sofreram algum tipo de preconceito, humilhação, desonras de qualquer espécie. Nesse aspecto, enquadram-se os negros, os indígenas, os idosos, os deficientes físicos, as mulheres, os homossexuais, as prostitutas entre outros. É uma prerrogativa do Estado em desiquilibrar situações “normais” para incluir esses grupos afetados por séculos de detrimentos (BULOS, 2012, p. 550).
Vê-se tentativas dessa “compensação” quando se fala em sistema cotas raciais, PROUNI e a Lei Maria da Penha, assuntos muito discutidos nos meios acadêmicos e midiáticos atualmente (LENZA, 2013, p. 1046).
Nesse giro, as ações afirmativas vão de encontro às discriminações negativas, ou seja, desequilíbrios injustificáveis que os legisladores e constituintes (em especial o originário) tentam coibir (via de regra) (BULOS, 2012, p. 551). De acordo com Uadi Lammêgo Bulos (2012, p. 551):
“As ações afirmativas são ao contrário das discriminações negativas. Estas últimas são desequiparações injustificáveis, e, por isso, proibidas pelo constituinte originário. Quando alguém desiguala outrem, sem qualquer supedâneo constitucional, estamos diante das discriminações negativas. Elas Fulminam o pórtico da isonomia quando proíbem o acesso das classes minoritárias àqueles postos reservados aos “bem-nascidos”, com base em critérios de raça, origem, cor, condição financeira, social, etc.”
Para o referido autor, o desigual é subjetivo, não existindo exatidão, de modo que, cabe ao magistrado, através do bom-senso, dos princípios gerais do direito, dos valores, determinar o que é equidade em cada caso concreto (2012, p. 551).
A Lei Maior determina, ainda, como consequência do princípio isonômico, o tratamento igualitário entre homens e mulheres, sendo determinado pela igualdade de gêneros. Esse movimento, muito discutidos ainda hoje, versa sobre a equiparação da mulher como indivíduo de iguais direitos e prerrogativas perante a figura masculina, sendo certo que Carta Magna possibilita algumas diferenças em determinados casos, como por exemplo, a licença gestante maior para mulheres do que a licença paternidade, a oportunidade de mulheres aposentarem-se cinco anos antes, o tratamento especial de presidiárias gestantes e que amamentam etc (AGRA, 2014).
Não se pode olvidar que esse movimento não é novo, tendo reflexos antigos, tal qual o desaparecimento da figura da chefia familiar, possibilitando uma maior maleabilidade no próprio conceito e constituição de família (AGRA, 2014).
Importante demonstrar que o princípio da igualdade possui três finalidades limitadoras, sendo elas, a limitação ao legislador, ao interprete (julgador da lide) e ao particular. O legislador não pode deixar de considerar esse princípio quando da produção normativa sob pena de incorrer em inconstitucionalidade, não podendo olvidar, as situações em que a Constituição e o plano fático permitem tal desigualdades (ações afirmativas) (MORAES, 2008, p. 37).
Por sua vez, autoridade que irá interpretar a norma, não poderá no exercício de suas funções aumentarem as desigualdades arbitrárias existentes nas particularidades de cada caso. Desse modo, o Poder Judiciário, no exercício de suas funções constitucionais de Jurisdição, deverá, através de mecanismos legais, possibilitar a uniformização de decisões (MORAES, 2008, p. 37).
Já com relação ao particular, os cidadãos não podem agir com condutas discricionárias, de maneiras lesivas, preconceituosas e racistas, podendo responder civil e criminalmente por suas atitudes que se pautarem por diferenças de sexo, cor, religião, idade etc (MORAES, 2008, p. 38).
No entanto, dentro do estudo do princípio da igualdade, é possível fazer uma diferenciação de suma importância, a igualdade material ou substancial e a igualdade formal ou jurídica.
A igualdade jurídico-formal, presente no ordenamento pátrio desde o Império, é reconhecida pela frase “igualdade perante a lei” (BULOS, 2012, p. 556). Serve como um norteador do dever de buscar a isonomia quando da aplicação do Direito e, para o doutrinador Marcelo Novelino (2014), em especial, vinculando o Poder Judiciário quando da aplicação da lei.
Em contraponto, e seguindo a maioria da doutrina, José Afonso da Silva (2011, p. 2016) afirma que o executor da lei já é vinculado a aplicação da legal, sendo o cumprimento das disposições do texto legal parte da prática do magistrado, critério básico ao serviço da magistratura, em consonância ao princípio da legalidade. Assim, o âmbito formal do princípio da isonomia dirige-se ao legislador, tendo ele a obrigação de elaborar leis que objetivem o tratamento igualitário conforme o conceito de ações afirmativas.
No plano jurídico-formal, a igualdade surge de maneira indissociável às liberdades, sendo requisito indispensável para a plena garantia das liberdades individuais de todos indivíduos de um ordenamento jurídico. Na Visão do professor José Joaquim Gomes Canotilho (2003, p. 426), a igualdade formal “ ‘igualdade jurídica’, ‘igualdade liberal’ estritamente postulada pelo constitucionalismo liberal: os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”.
Já a igualdade material trata-se de uma igualdade fática, onde haja tratamento uniforme de todos os homens, uma igualdade efetiva e real. Trata-se de uma visão própria ao chamado Estado Social (FERRARI, 2011, p. 574).
As próprias Constituições da atualidade, no ocidente, têm trazido a igualdade material nas previsões de normas programáticas que tendem a desfazer determinados desnivelamento, como no caso do capital e do trabalho, do mesmo modo que tende a garantir saúde, educação, moradia e outros programas sociais que demonstram a tentativa de equilíbrio social (FERRARI, 2011, p. 574).
Assim, pode-se afirmar que a igualdade material é a concretização da igualdade formal, sendo o reflexo da isonomia formal na vida prática. Trata-se de um desdobramento com a finalidade de reforçar o verdadeiro cumprimento da igualdade, (BULOS, 2012, p. 556) uma busca fática pela concretização da isonomia.
1.4 DO PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO AO RETROCESSO
Dentro da grande gama de direitos e garantias adquiridas no decorrer da história brasileira (e da humanidade de maneira geral), nas quais algumas destacadas neste artigo, verifica-se que suas aquisições são conquistadas de maneira lenta e por vezes, violenta, de modo a garantir sua imposição perante a sociedade e os governantes (e governos). Assim, quando se fala de princípio da vedação ao retrocesso, ou do não retrocesso de direitos sociais, diz-se que não é possível extinguir os direitos sociais já implementados, ou seja, é uma verdadeira limitação ao núcleo essencial de direitos (MENDES, BRANCO, 2016, p. 669).
É analisado que a vedação ao retrocesso denota um limite ao legislador, de modo que, depois de positivado um direito, o legislador posterior não pode mais suprimir tal garantia, sob pena de infringir referido princípio (MENDES, BRANCO, 2016, p. 669). Se assemelha muito a figura das cláusulas pétreas (previstas no artigo 60, § 4º da CF), caracterizadas por manterem o núcleo constitucional irreformável, ou seja, impossibilitado de ser alterado formalmente. São em verdade, cláusulas de inamovibilidade, que determinam a rigidez de uma Constituição (BULOS, 2012, p. 414). Nesse aspecto, o princípio da não reversibilidade demonstra-se intrínseco as ideias advindas do direito natural, de modo que são limites transcendentes, ou seja, baseado em valores éticos e de consciência jurídica (PADILHA, 2014).
Ingo Wolfgang Sarlet (2001, p. 402) assevera em seu livro que “[…]existem conteúdos invioláveis dos direitos fundamentais que se reconduzem a posições mínimas indisponíveis às intervenções dos poderes estatais[…]”. Dessa maneira, a vedação ao retrocesso é uma espécie de mecanismo de proteção dos direitos já garantidos, impossibilitando que o Estado (em sua acepção Leviatã de Thomas Hobbes) retire os direitos dos indivíduos. Pedro Lenza exemplifica com a situação da pena de morte, aduzindo que nem mesmo o constituinte originário poderia prever a possibilidade da pena capital, uma vez que estar-se-ia ferindo diretamente o princípio da proibição ao retrocesso (2013, p. 1040).
Uma possibilidade encontrada na doutrina com relação aos direitos conquistados seria a vinculação ao princípio da proporcionalidade, de modo que os direitos adquiridos, em que pese não podendo mais ser suprimidos, podem ser regulados de maneira diversa, de modo que o direito anteriormente previsto não seja suprimido (MENDES, BRANCO, 2016, p. 147).
Este princípio tem bastante notoriedade nas Supremas Cortes, tendo sido objeto de estudo em vários casos que demandam os direitos sociais. As ADIs nº 5230, 5232, 5234 e 5246 questionam a alteração em benefícios previdenciários e trabalhistas.
2 VISÃO ESPECÍFICA DO PRINCÍPIO DA LAICIDADE (E DA LIBERDADE RELIGIOSA)
Antes de discorrer sobre o princípio do Estado Laico propriamente dito, se faz necessário algumas considerações sobre o princípio da liberdade de crença (ou religiosa) no ordenamento jurídico brasileiro. Com base no que já foi tratado neste artigo, a Constituição de Federal de 1988 delimitou direitos individuais aos cidadãos decorrentes de direitos conquistados historicamente, mais precisamente, neste caso, da Revolução Francesa, imortalizada na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão.
Antes da Revolução Francesa, mais ao passado, é possível visualizar a origem de direitos individuais no antigo Egito e na Mesopotâmia, 3000 anos antes de Cristo, quando já havia previsões de proteção individual do homem para com os atos do Estado. O primeiro código que consagrou algum tipo de rol de direitos comuns e gerais foi o Código de Hammurabi, aproximadamente no ano de 1690 a.C, sendo que do rol, constavam direitos como à vida, a propriedade, a honra, a dignidade e a família, bem como a superioridade da Lei perante os governos e governantes da época (MORAES, 2003, p. 24).
Na idade Média, verificou-se a confecção de documentos que limitavam o poder estatal. No entanto, somente no século XVIII que houve grande avanço nos Direitos Humanos. Como grandes marcos, pode-se citar a Magna Charta Libetatum, de 1215 na Inglaterra, a Petition of Rights, de 1628 e a Bill of Rights, de 1689, entre outros documentos de igual relevância (MORAES, 2003, p. 25/26).
Com isso, em meio aos acontecimentos e fatos históricos ocorridos na França do século XVIII, com os privilégios da nobreza e do clero, eis que em 1789, toma forma a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, com a vontade política de instaurar uma nova ordem em relação ao antigo sistema, falido e incapaz de proteger e garantir os direitos dos cidadãos (ALMEIDA, APOLINARIO, 2011, p. 15). Nesse interím, surge o tão famoso lema da Revolução Francesa, “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, tendo sido adotado, ainda que de maneira indireta, pelas Constituições ocidentais que a sucederam. Assim apareceu na história das Constituições modernas, de forma positivada, o princípio da liberdade.
Explicando a formatação da Declaração e dedicando toda a segunda parte de seu livro para esse fim, Norberto Bobbio (1992, p. 93) escreve:
“O núcleo doutrinário da Declaração está contido nos três artigos iniciais: o primeiro refere-se à condição natural dos indivíduos que precede a formação da sociedade civil; o segundo, à finalidade da sociedade política, que vem depois (senão cronologicamente, pelo menos axiologicamente) do estado de natureza; o terceiro, ao princípio de legitimidade do poder que cabe à nação.”
Outro documento com o mesmo caráter surge em 1948, a chamada Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotado por uma resolução da ONU. Nascido em meio ao contexto de um mundo pós-segunda guerra mundial, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, é um marco jurídico adotado pela comunidade internacional para enumerar e estabelecer os direitos basilares para a garantia da dignidade humana (ALMEIDA, APOLINARIO, 2011, p. 15).
Os direitos de maneira geral possuem dois vieses. Fala-se em viés objetivo quando o direito está previsto na norma jurídica e o viés subjetivo é aquele que o sujeito possui em decorrência da norma e, principalmente, pela ocorrência de um ato da vida cotidiana, que para cumpri-lo, terá à disposição as ferramentas jurídicas estatais. Nesse aspecto, os direitos fundamentais, são ao mesmo tempo subjetivos e objetivos. Enquanto subjetivos dão ao titular a possibilidade de impô-lo perante as autoridades obrigadas e, enquanto objetivos, formam a base do ordenamento jurídico de um Estado Democrático de Direito, servindo de base a toda legislação do país (FERRARI, 2011, p. 532).
Muitas terminologias são usadas para expressar a designação da evolução histórica que os direitos humanos têm. Os doutrinadores tradicionais empregam o uso da palavra “geração”, no sentido de desenvolvimento dos direitos. Já a doutrina moderna utiliza o termo “dimensão”, sendo cada fase de direitos é uma evolução da que está se sucedendo, e não uma mudança de prerrogativas e enfoques distintos. O termo “gerações” causa um falso sentido de não continuidade, o que não condiz com os acréscimos que cada fase de direitos carrega da fase que lhe antecedeu (AGRA, 2014).
O grande doutrinador Norberto Bobbio (1992, p. 5) defende que as dimensões de diretos são construções históricas, nascidas de circunstâncias temporais determinadas. Ingo Wolfgang Sarlet (2001, p. 55/56) complementa que, esse processo de gerações é dinâmico e dialético, com vários avanços e por vezes retrocessos.
Os direitos fundamentais encontram-se, inicialmente, em três gerações distintas. Interessa-nos os de primeira geração, que deliberam sobre os direitos individuais. Nas palavras de Uadi Lammêgo Bulos (2012, p. 525), “Nessa fase, prestigiavam-se as cognominadas prestações negativas, as quais geravam um dever de não fazer por parte do Estado, como vistas à preservação do direito à vida, à liberdade de locomoção, à expressão, à religião, à associações etc.”.
Na segunda dimensão, estão os direitos direcionados à coletividade, estando previstos os direitos sociais, culturais e econômicos. Nessa geração, a ênfase se encontra na universalidade dos direitos humanos. Nos direitos de terceira dimensão, encontra-se a fraternidade, que se traduz em direitos como: do desenvolvimento, da paz, ao meio ambiente equilibrado, à autodeterminação dos povos etc. Na Quarta dimensão de direitos encontra-se a democracia. A quinta dimensão traz a concepção de bioética, ou seja, a influência da tecnologia humana em contato com a manipulação da vida; e por fim, os direitos de sexta dimensão revelam os direitos dos animais (AGRA, 2014).
Entende-se a conquista dos direitos fundamentais de primeira geração como um grande avanço, mais especificamente, quando se trata da liberdade religiosa.
“O fenômeno religioso, com apelo ao transcendente, é evidencia do mundo antigo que sempre se impôs com positividade social. Modelo típico da antiguidade, o monismo, identificação entre o poder político e a religião, foi a característica fundamental do mundo pré-cristão, manifestando-se em duas variantes: ‘a teocracia, em que o elemento religioso predomina sobre o político, e o cesarianismo, em que o elemento político prevalece sobre o religioso’.” (WEINGARTNER NETO, 2007, p. 26).
A liberdade sempre foi almejada pelo homem, ainda mais em seu anseio subjetivo na busca pelo inexplicável. Ela passa a ter papel fundamental na construção de uma sociedade democrática. Na visão de Elza Galdino (2006, p. 5/6) “A liberdade como integrante da bandeira de ideais da Revolução Francesa inaugura a cidadania e passa a ser não apenas um direito dos governados, mas também um dever do Estado.”. No Brasil não é diferente, sendo certo que após muitos momentos históricos onde o povo brasileiro teve sua liberdade ceifada, é possível encontrar os reflexos da busca por esse bem intangível, basta olhar as letras do Hino Nacional Brasileiro e no Hino da Proclamação da República.
José Afonso da Silva complementa (2011, p. 233):
“(…) à ideia de liberdade; é poder de atuação sem deixar de ser resistência à opressão; não se dirige contra, mas em busca, em perseguição de alguma coisa, que é a felicidade pessoal, que é subjetiva e circunstancial, pondo a liberdade, pelo seu fim, em harmonia com a consciência de cada um, com o interesse do agente.”.
No ordenamento jurídico pátrio, só se permite a limitação da liberdade quando previsto constitucionalmente ou, em se tratando de lei infraconstitucional, quando expressamente autorizado pela Lei Maior, sob pena de inconstitucionalidade do mandamento legal (FERRARI, 2011, p. 585).
A liberdade deve ser entendida dentro de dois enfoques: a liberdade positiva e a liberdade negativa. A liberdade positiva, também conhecida como liberdade política ou liberdade do querer, refere-se a possibilidade do sujeito orientar-se pela própria vontade, sem que o querer dos outros interfira e determine-o. Já na liberdade negativa (liberdade civil, liberdade moderna ou liberdade de agir), trata-se da situação onde o sujeito pode agir sem ser impedido, ou não ser obrigado por outros a agir, ou seja, é a ausência de impedimentos (NOVELINO, 2014).
Logo, a liberdade tem a função de tornar os interesses subjetivos viáveis dentro de uma sociedade a partir da limitação estatal. Nossa Carta Magna preconiza por diversas vezes nos incisos do artigo 5º, as liberdades que gozam os cidadãos.
Para elencar algumas das facetas e tipos de liberdades previstas na CF, pode-se citar: a liberdade de manifestação do pensamento que garante o se expressar perante os outros, sendo vedado, no entanto, o anonimato; a liberdade de comunicação pessoal, que abrange o ato de transmitir e receber mensagem bem como o sigilo dos conteúdos dessa comunicação, havendo exceção em caso de demandas judiciais devidamente fundamentadas; liberdade de exercício profissional, assegurando aos cidadãos a livre-iniciativa, a escolha de um trabalho, podendo em determinados casos ter requisitos de qualificação, vedado, todavia, o trabalho escravo; a liberdade de informação, consistente no direito de transmissão de informações, diferenciando-se da liberdade de manifestação de pensamento que, por sua vez, trata-se das opiniões sobre determinados assuntos; liberdade de locomoção (ou direito de ir e vir e permanecer) podendo haver exceções em casos excepcionais, como o Estado de Sítio ou em situações de delito (prisão preventiva/definitiva); a liberdade de reunião e a liberdade de associação (NOVELINO, 2014).
Para assegurar essas liberdades, a Lei Maior entregou aos cidadãos instrumento de tutelas dessas liberdades que podem ser usados em caso de lesão dessas garantias. Assim, os instrumentos de tutela das liberdades são meios constitucionais postos ao dispor dos indivíduos ou de grupos de indivíduos (coletividade), para que haja intervenção das autoridades competentes, devido à uma lesão ou iminência de lesão por ilegalidade e/ou abuso de poder (BULOS, 2012, p. 727).
Também chamados de remédios constitucionais, garantias constitucionais, ações constitucionais ou writs constitucionais são eles: o direito de petição (art. 5º, XXXIV, a), direito de certidão (art. 5ºXXXIV, b), habeas corpus (art. 5º, LXVIII), mandado de segurança (art. 5º, LXIX), mandado de segurança coletivo (art. 5º, LXX), mandado de injunção (art. 5º, LXXI), habeas data (art. 5º, LXXII) e, ação popular (art. 5º, LXXIII) (BULOS, 2012, p. 727).
A Convenção Americana de Direitos Humanos, assinado em San José da Costa Rica (COSTA RICA, 1969) dispõe sobre a liberdade de consciência da seguinte forma:
“Artigo 12. Liberdade de consciência e de religião
Quando se trata de liberdade de consciência, a Lei Maior (BRASIL, 1988) prevê em seu inciso VI do artigo 5º, nos termos seguintes:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;”.
Apesar de parecer simples, o inciso em comento assegura várias faces do direito à liberdade religiosa.
A liberdade de consciência garante que o foro íntimo de cada ser humano seja inviolável, sendo imprescindível que cada um siga as diretrizes de vida que achar apropriado, desde que seus atos permanecem dentro do campo da licitude. Faz-se necessária para o exercício das demais liberdades (crença e de culto) (BULOS, 2012, p. 572). É modalidade mais ampla que o direito de crença, compreendendo o direito de crer e o de não crer (GALDINO, 2006, p. 10). Na mesma linha de raciocínio, esclarece Jaime Weingartner Neto (2007, p. 79):
“Em síntese, a liberdade religiosa consagra-se como um corolário da liberdade de consciência – a tutelar juridicamente qualquer opção que o indivíduo tome em matéria religiosa, mesmo a rejeição (a crença é apenas uma das alternativas possíveis que se colocam ao sujeito).”.
Marcelo Novelino (2014) afirma que o âmbito de proteção da liberdade de consciência “constitui a resposta política adequada aos desafios do pluralismo religioso, permitindo desarmar o potencial conflituoso existente entre as várias concepções.”. Ele continua:
“A liberdade de consciência consiste na adesão a certos valores morais e espirituais, independentes de qualquer aspecto religioso, podendo se determinar no sentido de crer em conceitos sobrenaturais propostos por alguma religião ou revelação (teísmo), de acreditar na existência de um Deus, mas rejeitar qualquer espécie de revelação divina (deísmo) ou, ainda, de não ter crença em Deus algum (ateísmo).”.
Nesse aspecto, as pessoas dispõem de uma liberdade de articulação, hierarquização e ordenação de seus valores pessoais, num âmbito de intimidade e privacidade constitucionalmente protegido. Trata-se de verdadeira “sacralização constitucional das opções em matéria de fé” (WEINGARTNER NETO, 2007, p.79).
Por sua vez, a liberdade religiosa (Lato sensu) subdivide-se em: liberdade de crença (Stricto sensu), liberdade de culto e liberdade de organização religiosa. A liberdade de crença em stricto sensu é mais restrito que a liberdade de consciência, tendo uma dimensão sócio-institucional que abarca o direito de escolha a uma crença/religião. A liberdade de culto por sua vez, compreende a exteriorização da crença individualmente ou em reuniões, como ritos e cerimônias. E por último, a liberdade de organização religiosa, decorrente diretamente do princípio do Estado Laico (GALDINO, 2006, p. 10).
Quando se fala na liberdade de culto, deve-se entender a limitação proveniente dessa garantia, uma vez que, não poderão ser contrários à ordem, a tranquilidade e ao sossego público, bem como devem compatibilizar com os bons costumes. Nesse viés, quando envolver questões relacionadas a pregação e curas religiosas faz-se necessário balancear a garantia da liberdade religiosa com o acobertamento de práticas ilícitas. Por óbvio, as garantias decorrentes da liberdade religiosa, assim como outros direitos, não são absolutas e não podem ser pretexto para o cometimento de atos atentatórios à lei (MORAES, 2003, p. 129/130).
Outra observação a ser feita, refere-se a escusa de consciência. Escusa de consciência é quando o indivíduo deixa de cumprir uma obrigação imposta a todos os cidadãos por motivos políticos, filosóficos ou religiosos (AGRA, 2014). Desse modo, deve cumprir prestação diversa. O tema é trazido pela CF (BRASIL, 1988) em seu artigo 5º, inciso VIII.
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:[…]
VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;”.
O descumprimento da atividade alternativa acarreta na perda dos direitos políticos. Logo, a crença religiosa e as convicções filosóficas e políticas só acarretaram em perda de direitos quando não houver cumprimento da obrigação imposta a todos ou da obrigação alternativa (MORAES, 2003, p. 124).
Cabe narrar que dentro do modelo de liberdade existem duas instâncias possíveis. Na liberdade interna ou subjetiva, tem-se o livre-arbítrio da vontade humana, é a manifestação interior do homem, que permanece na subjetividade do “querer”. Assim, dentre as infinidades de opções opostas, o indivíduo tem o poder de optar por aquela que lhe melhor servir. Já na liberdade externa ou objetiva, define-se na exteriorização do querer individual (SILVA, 2011, p. 231).
“Liberdade interna (chamada também liberdade subjetiva, liberdade psicológica ou moral e especialmente liberdade de indiferença) é o livre-arbítrio, como simples manifestação da vontade no mundo interior do homem. Por isso é chamada igualmente liberdade do querer. Significa que a decisão entre duas possibilidades opostas pertence, exclusivamente, à vontade do indivíduo; vale dizer, é poder de escolha, de opção, entre fins contrários. (…) A questão fundamental, contudo, é saber se, feita a escolha, é possível determinar-se em função dela. Isto é, se se têm condições objetivas para atuar no sentido da escolha feita, e, aí, se põe a questão da liberdade externa.” (SILVA, 2011, p. 231).
O querer subjetivo exteriorizado dentro de uma determinada sociedade leva a criação de conflitos com outros indivíduos que, apesar dos pontos negativos, muitas são as criações derivadas do pensamento humano em uma coletividade. Nessa busca espiritual nasce a religião. Como a religião está presente desde os primórdios no cotidiano das relações humanas ela se relacionou com os ordenamentos existentes de várias formas durante a história, a relação com o Estado não foi diferente.
Legalmente não há um conceito do que venha a ser o fenômeno religião, sendo sua conceituação um produto de estudos e observações feitas fora da área do direito (GALDINO, 2006, p. 13). A questão da Religião é problemática dentro dos próprios movimentos religiosos, como exemplo, o teólogo Holandês Hans Küng demonstra a dificuldade na hora de conceituar a Religião quando da elaboração da “Declaração do Parlamento das Religiões do Mundo”, assinado em 1993 na cidade Norte-Americana de Chicago.
“Houve sugestões para tornar a declaração mais “religiosa”. Contudo, novas dificuldades resultariam daí. Se, por exemplo, falássemos “em nome de Deus”, a priori excluiríamos os Budistas. Além do mais, não há consenso sobre a definição do que é “religião”. Em todo caso, referi-me claramente à dimensão da transcendência, sem forçar a anuência dos não religiosos, que esta declaração deve incluir.” (KUNG).
Alexandre de Moraes (2003, p. 125) conceitua religião de maneira breve, como sendo “o complexo de princípios que dirigem os pensamentos, ações e adoração do homem para com Deus, acaba por compreender a crença, o dogma, a moral, a liturgia e o culto.”.
Para a sociologia, através de uma descrição empírica, a religião une-se a adoração de uma divindade, um Ser superior, e na dependência da espécie humana em relação aos acontecimentos naturais e sobrenaturais, exteriorizando-se em um conjunto doutrinal de práticas e rituais, possuindo sempre implicações éticas e morais (WEINGARTNER NETO, 2007, p. 98).
A partir de 1960 houve uma tendência de conceituar a religião no seu sentido funcional-subjetivo. A Suprema Corte Norte-Americana propôs um entendimento com o objetivo de abranger todas as formas de crenças fazendo uma analogia ao que, tradicionalmente, equivale ao lugar funcional das crenças deístas, ou seja, desvia-se do sentido objetivo de crença e passa-se a verificar “o elemento subjetivo da sinceridade com que uma crença é individualmente sustentada.” (WEINGARTNER NETO, 2007, p. 100).
Posteriormente, buscou-se na doutrina especializada, encontrar uma definição que evitasse, equivocadamente, um conceito muito amplo e outro demasiadamente estrito. Dessa forma, abriu-se oportunidade para a possibilidade de um conceito tipológico, de modo a abarcar o maior número de manifestações religiosas sem incluir correntes meramente ideológicas e filosóficas e, nessa medida, não ter uma interferência jurisdicionalistas, mas sim, uma visão neutra, válida e não confessional, que harmonize a auto-compreensão religiosa, no âmbito individual e coletivo, garantindo dessa forma liberdade religiosa (WEINGARTNER NETO, 2007, p. 101/102).
José Afonso da Silva (2011, p. 250) observa três sistemas de interação entre o Estado e a Igreja (entendida aqui em seu sentido amplo): a confusão, a união e a separação. O autor entende que na confusão, o Estado se confunde com determinada religião, de modo que cria o Estado teocrático. Nesses casos o Estado materializa o fenômeno religioso e é dirigido, por vezes, por líderes religiosos daquela crença, sendo todas as funções estatais direcionadas à figura da Igreja. Como exemplo, encontramos a cidade do Vaticano.
No caso da união, a organização e funcionamento estatal estão diretamente ligados a uma religião. Nessa modalidade, o Estado escolhe uma religião determinada e a declara como oficial. É o famoso Estado confessional. Como exemplos, temos o caso da Inglaterra ou a do Brasil na era Imperial (SILVA, 2011, p. 250). Nesse aspecto, há o pressuposto de um credo, definido em valores, ideias e conceitos de cunho religioso e de maneira explícita nos atos governamentais (SCALQUETTE, 2013, p. 120).
Já na separação, José Afonso da Silva (2011, p. 251) entende que as figuras do Estado e da Igreja passam a ocupar posições distintas, de modo que o ente estatal passa a estabelecer a liberdade religiosa como princípio básico da organização do Estado. Na separação alcança-se o Estado Laico, leigo ou ainda não-confessional.
Rodrigo Arnoni Scalquette (2013, p. 120) resume o estado laico da forma que passa a expor.
“‘o Estado laico proclama a laicidade absoluta das instituições sociopolíticas e da cultura, ou que pelo menos reclama para estas autonomia face à religião1 e, neste sentido, o Estado laico deve ser neutro em face da religião, não apoiando uma ou outra religião especificamente, garantindo e protegendo apenas e tão somente o direito de cada cidadão em sua liberdade religiosa.”
No Brasil, adotou-se o modelo confessional no período imperial. A Constituição de 1824 (BRASIL, 1824) proclamou que o império teria como religião oficial a Católica Apostólica Romana, sendo lícito o culto doméstico ou particular de outras religiões, desde que não tivesse forma exterior de templo.
“Art. 5. A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo.”
As demais Constituições do País seguiram-se em sentido inverso, permanecendo-se laicas. A atual Constituição não é diferente de modo que prevê em vários dispositivos a separação entre o Poder Estatal e a Igreja, firmando assim o modelo de separação ou de Estado não confessional. O artigo 19 da Lei Maior (BRASIL, 1988) discorre:
“Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;”.
Foi claro o constituinte originário ao tratar do tema, estabelecendo as diretrizes do princípio da Laicidade. Desse modo, em que pese não possa ser medido na prática a liberdade dos cidadãos em relação à suas crenças, certo é que a regra de separação, através da laicidade, no Brasil é medida impositiva que deve ser seguida, sob pena de inconstitucionalidade (GALDINO, 2006, p. 29).
O Estado deve se manter neutro no assunto religioso, de maneira que os poderes estatais devem garantir o direito as múltiplas formas de crenças, mas, também, não haver confusão entre a figura do ente estatal e uma determinada religião.
Nesses moldes, Paulo Pulido Adragão citado por Jayme Weingartner Neto (2007, p. 172), verifica que a laicidade não implica na aversão ou indiferença estatal para com o fenômeno religioso, mas especialmente para garantir liberdades individuais e igualdade previstas constitucionalmente.
Na área de família, o casamento já foi todo regido pelo Direito Canônico, sendo que atualmente há previsão legal de casamento tanto no “civil” como no “religioso”. No entanto, a regra é a do casamento realizado no civil, sendo certo que, por vezes, os casais optam por realizar primeiro o casamento civil e depois o enlace eclesiástico. O casamento religioso obedece a formalidades, rigorosamente, previstas no Código Civil, sendo que sua falta poderá ocasionar no não reconhecimento do ato no mundo jurídico (RODRIGUES, 2008, p. 23). Preceitua o Diploma Civil (BRASIL, 2002):
“Art. 1.515. O casamento religioso, que atender às exigências da lei para a validade do casamento civil, equipara-se a este, desde que registrado no registro próprio, produzindo efeitos a partir da data de sua celebração.
Art. 1.516. O registro do casamento religioso submete-se aos mesmos requisitos exigidos para o casamento civil.
Nesse ponto, outra problemática encontrada concerne à ocorrência do casamento, ainda que obedecido os moldes legais, em religiões minoritárias como, por exemplo, em terreiras de Umbanda e Candomblé. Tropeça-se na intolerância religiosa presente em vários espaços públicos, inclusive, na mídia televisiva, onde encontram-se programas e, até mesmo emissoras inteiras de propriedade de determinado segmento religioso, propagando (sem generalizar), por vezes, ódio à outras religiões, sejam elas minoritárias ou não (SILVA, RIBEIRO, 2007, p. 16). Por óbvio esse não é o único problema encontrado quando se remete ao assunto do Estado Laico como será demonstrado nos próximos títulos.
2.1 DO PREÂMBULO CONSTITUCIONAL
É visível que dentro de um Estado Democrático de Direito as ideias sejam expostas até mesmo quando se trata dos operadores do direito e legisladores. O constituinte originário da atual Carta Magna, não escapou de tal afirmativa ao criar uma das maiores polêmicas envolvendo o assunto do princípio do Estado Laico, quando ao redigir o texto do preâmbulo constitucional, invocou à Divindade.
Uadi Lammêgo Bulos (2012, p. 501), em sua obra, afirma que a invocação da palavra Deus na atual Constituição remete-se à face teísta da sociedade. Ele argumenta que o Estado não é ateu ou agnóstico, reverenciando à Deus sem aderir a qualquer movimento ou crença religiosa.
Desde que o país passou a adotar a laicidade do Estado, apenas a Constituição de 1891 e de 1937 não fizeram menção à palavra Deus em seus preâmbulos. Já nas constituições Estaduais, o único Estado que não faz a referida menção em seu preâmbulo é a Constituição Estadual do Acre, sendo que a omissão do termo foi discussão em julgamento do STF na ADIN 2.076/AC, que julgou não ser necessário o uso do termo “Deus” nas Constituições dos Estados (PADILHA, 2014).
Etimologicamente a palavra preâmbulo vem do latim, praeambulu, e significa “parte introdutória”, “parte preliminar”. Trata-se de um documento que serve para demonstrar a legitimidade e certificar a origem do novo texto, demonstra as diretrizes e princípios que os constituintes originários traçaram para a construção do texto constitucional (SCALQUETTE, 2013, p. 173). É um ato recheado de simbolismo, por quanto representa a ruptura com o ordenamento constitucional anterior e o surgimento (ao menos jurídico) de um novo Estado (MORAES, 2008, p. 20).
O preâmbulo não integra o texto constitucional propriamente dito e por isso não contêm normas jurídicas de valor autônomo, no entanto, ele serve como elemento de interpretação e integração de artigos da própria Constituição e, por isso, possuí sua relevância jurídica dentro de um ordenamento constitucional (MORAES, 2008, p. 20).
Assim, em que pese o discurso constitucional de laicidade estatal, não se pode negar que a religião é presente na sociedade e sendo o constituinte um representante do povo, a expressão “sob a proteção de Deus” possui um grande sentido de estar expressa no preâmbulo (SCALQUETTE, 2013, p. 173). Deve-se considerar que o Direito como um todo é rodeado por ideologias o que nas palavras de Roberto Lyra Filho (2012, p. 13) evidenciam-se de tal maneira quando buscamos entender esse fenômeno social de “[…] o que o Direito é, estamos antes perguntando o que ele vem a ser, nas transformações incessantes do seu conteúdo e forma de manifestação concreta dentro do mundo histórico social.”.
No mesmo sentido, explicando a ocorrência desse fenômeno no preâmbulo constitucional Rodrigo Arnoni Scalquette (2013, p. 173) ensina:
“[…]A inclusão do nome de Deus no Preâmbulo do texto constitucional não é por acaso. “O campo da fé é o do qualitativo e do indemonstrável; ele esteve essencialmente ligado à lei e à deliberação pública.”[…]
Não nos emancipamos da Religião, ela está presente entre nós e, o ‘fato de o cristianismo ter hoje perdido em certos Estados ocidentais seu lugar constitucional não significa, em absoluto, que esses Estados estão desprovidos de fundamentos dogmáticos’. Muito pelo contrário, os ‘Estados, assim como as pessoas, continuam a ser sustentados por certezas indemonstráveis, por verdadeiras crenças, que não procedem de uma livre escolha, pois elas participam da identidade deles’.”.
Os reflexos da invocação à divindade não param na CF. Vinte e quatro das Constituições Estaduais, com exceção a do Estado do Acre, fazem menção à divindade. O fato da Constituição Estadual do Acre não fazer referência à palavra Deus chegou a ser objeto de ação direita de inconstitucionalidade (Adin 2.076/AC, Rel. Min. Carlos Velloso), sendo que a Corte Excelsa julgou não ser necessária o uso da expressão “Deus” nos preâmbulos constitucionais, não ferindo, dessa forma, o disposto nos artigos 11 e 25 dos atos das Disposições Constitucionais Transitórias (BULOS, 2012, p. 501).
É clara que a visão política do momento histórico em que a CF foi escrita mostra sua face teísta, uma vez que grande parte da população pátria não é constituída por ateus e agnósticos. Ela não demonstra uma visão clara de adesão a determinado movimento religioso, mas certamente constata-se sua não neutralidade (SCALQUETTE, 2013, p. 175/176). Para tanto, basta abrir sua carteira, pegar qualquer cédula (que é emitida pelo Banco Central) e verificar a expressão “Deus seja louvado”, maior símbolo da não neutralidade estatal nesse aspecto.
2.2 DA ISONOMIA TRIBUTÁRIA E A ISENÇÃO DE TRIBUTOS A TEMPLOS RELIGIOSOS
Como reflexo do princípio da igualdade (tratado em tópicos anteriores do presente artigo) no direito tributário, tem-se o princípio da igualdade tributária, prevista no artigo 150, II da CF que proíbe o tratamento desigual de contribuintes que estão em equivalência, podendo diferenciá-los quando dos reflexos do princípio da capacidade contributiva (COLOMBO, C, COLOMBO, J, 2010, p. 50/51).
O princípio da capacidade contributiva aplica-se somente aos impostos (espécie de tributo), de modo que a Administração Pública observará o caráter pessoal de cada contribuinte no momento da cobrança do imposto, para uma justa incidência do mesmo. A observância far-se-á por um conjunto de aspectos econômicos que cercam determinado contribuinte, tais como: rendimentos, atividades econômicas e até mesmo o próprio conjunto patrimonial daquele que deve o tributo (COLOMBO, C, COLOMBO, J, 2010, p. 51).
Nesse viés, a CF dá imunidade tributária a determinadas pessoas, bens ou serviços, sendo um limitante do exercício da competência tributária. Essa imunidade pode ser genérica, ou seja, atingem diversos tributos de uma única vez ou, específicos, que prevê a imunidade de tributo determinado (CAMILOTTI, 2011, p. 47).
Desse modo, o artigo 150, VI, b, da Carta Magna (BRASIL, 1988) disserta sobre a imunidade dos templos religiosos:
“Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
VI – instituir impostos sobre:
Tal prerrogativa decorre diretamente do princípio de liberdade de culto, do qual o Estado não interferirá na prática religiosa, nesse ponto, não fazendo incidir qualquer tipo de imposto sobre os templos religiosos.
Com relação à extensão da imunidade, a doutrina diverge. José Renato Camilotti (2011, p. 48) refere que a não incidência é sobre a pessoa jurídica, de direito privado, instituição de cunho religioso, e não apenas ao espaço físico (a casa, a construção), não trata apenas do bem isoladamente. Para ele, a tributação nunca incidirá quando o elemento a ser tributado tiver vínculo direto ou indireto com a atividade do culto religioso, de modo que a falta desse vínculo possibilita a cobrança do imposto pela Administração Pública competente.
Cristiano Colombo e Juliano Colombo (2010, p. 65) seguem um rumo parecido e entendem que a análise do artigo não pode ser restritiva, de modo que a imunidade abrange o prédio do culto, a residência dos religiosos, os seminários, os salões paroquiais etc, tudo em decorrência do objetivo do constituinte, no sentido de desonerar a prática religiosa, estimulando dessa feita, a religiosidade.
Já Zelmo Denari (2008, p. 173) é mais restrito, fazendo uma leitura literal do enunciado constitucional, entende que os anexos ao templo religioso (terreno, bens e rendas) não gozam da mesma prerrogativa.
Efetivamente, essa possibilidade constitucional no âmbito tributário garante a livre ocorrência dos cultos religiosos, sendo que a discussão doutrinária recai sobre sua extensão.
2.3 DO ENSINO RELIGIOSO EM ESCOLAS
A educação é um direito essencial e universal, sendo direto de todos os cidadãos e dever do Estado e da família garantirem a completa satisfação do ensino, que cumpra com critérios de desenvolvimento pessoal, preparo para o exercício da cidadania e qualificação profissional (SCALQUETTE, 2013, p. 197).
No âmbito familiar, é assegurado para crianças e adolescentes na legislação infraconstitucional o direito de transmissão das crenças e culturas (BRASIL, 1990). Tal previsão do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069/90) que passou a vigorar com acréscimo da Lei nº 13.257/2016 (BRASIL, 2016), tem por fundamento os ensinamentos de cunho familiar.
Não é de hoje que o ensino religioso tem espaço nas escolas. Todas as Constituições a partir de 1934 fazem menção ao ensino religioso, inclusive a atual Lei Maior (SCALQUETTE, 2013, p. 197). Em seu artigo 210, parágrafo 1º, prevê que o ensino religioso será matéria facultativa nas escolas públicas de ensino fundamental, sendo que, deverá ocorrer em horários normais (BRASIL, 1988). O texto constitucional foi repetido pelo artigo 33 da Lei nº 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) (BRASIL, 1996).
O texto legal, em seu caput, faz referência ao “respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil”, claro corolário do princípio da liberdade religiosa e preocupação com a discriminação decorrente da intolerância religiosa. Outra preocupação do artigo em comento aparece em seus parágrafos, quanto a matéria a ser tratada pela disciplina e do modo de admissão dos professores.
No tocante ao tópico do conteúdo da disciplina de ensino religioso, cabe frisar a grande possibilidade de se ferir o princípio do Estado Laico, uma vez que, se a matéria for vinculada ao ensinamento de uma religião em específico, estar-se-á favorecendo uma religião em face de outras, bem como, determinada religião estará vinculada a atuação do Estado.
Nas palavras de Rodrigo Arnoni Scalquette (2013, p. 197):
“Considerando a natureza laica do Brasil, o Estado não pode adotar uma fé como a oficial e propagá-la nas escolas públicas e, por essa razão, deve garantir às várias religiões o acesso a tal educação no sentido de comunicar e expressar suas doutrinas e culturas aos estudantes do ensino fundamental, com a seguinte advertência: “não pode obrigar a criança e o adolescente a cumprir disciplina religiosa; mas tem o dever de oferecer opções de disciplinas religiosas aos que se interessem por realizá-la”.”.
Em sua obra, Alexandre de Moraes (2003, p. 131) completa:
“Dessa forma, destaca-se uma dupla garantia constitucional. Primeiramente, não se poderá instituir nas escolas públicas o ensino religioso de uma única religião, nem tampouco pretender-se doutrinar os alunos a essa ou àquela fé. Em segundo lugar, a Constituição garante a liberdade das pessoas em matricular-se ou não, um vez que, conforme já salientado, a plena liberdade religiosa consiste também na liberdade ao ateísmo.”
Não se trata de proibir o ensino religioso como um todo, mas oportunizar que as várias correntes religiosas possam ter espaço no ensino público.
No ano de 2003, a Secretaria Estadual de Educação do Estado do Rio de Janeiro divulgou um edital para professores de ensino religioso, no qual havia punições (afastamento ou mesmo demissão) caso o concursado que tornar-se ateu ou agnóstico. Sendo a punição determinada pela autoridade religiosa que credenciou o professor. Anterior a essa época, o Estado Fluminense utilizava o ensino religioso de caráter genérico (histórico-antropológico) que foi substituído pelo confessional, ferindo assim a laicidade estatal (FOLHA DE SÃO PAULO, 2003).
Por fim, deve se ter em mente a dupla visão do ensino religioso. De um lado, nobremente, o Constituinte previa a ampliação da liberdade religiosa a partir da base estudantil, por outro lado, poderia levar a um fim catastrófico, de levar os conflitos até as salas de aula e, por vezes, levar a doutrinação religiosa para mentes ainda não, completamente, formadas o que pode(ria) enraizar entendimentos discriminatórios e exclusivos.
2.4 DOS SIMBOLOS RELIGIOSOS EM LOCAIS PÚBLICOS
Alguns anos atrás, a utilização de símbolos religiosos em espaços públicos tomou certa notoriedade nas mídias de informação. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), nos pedidos de providência nº 1344, 1345, 1346 e 1362, entendeu que a utilização de símbolos de cunho religioso no âmbito das repartições do Poder Judiciário não fere o princípio do Estado Laico (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2007).
No entanto, tal fato não se obsta no âmbito do poder judiciário, mas também dos outros poderes do Estado e também em outros locais públicos tais como escolas. Jayme Weintgartner Neto (2007, p. 101/102) entende que, diferentemente da decisão do Conselho Nacional de Justiça, deve haver uma diferença entre os espaços que o Estado deve providenciar sem que os indivíduos sejam influenciados por determinada ideologia ou pensamento, daqueles em que o Estado se manifesta e os símbolos que, presentes no local, representam o Ente. Nessa esteira, o crucifixo é o símbolo maior do cristianismo, sendo não aderido por ateus e não cristãos, o que poderia importar em ofensa a essas diferentes filosofias religiosas.
Outra aparição religiosa em um “bem público”, se dá na expressão encontrada na moeda corrente nacional que, em letras miúdas abaixo do valor nominal do Real diz “Deus seja louvado”. Não se pode olvidar que o dinheiro é impresso pelo Banco Central e dessa forma, possui característica social e abrange toda a população. No ano de 2013, a Juíza da sétima vara cível federal de São Paulo, entendeu que a expressão utilizada nas cédulas do Real não interfere na laicidade estatal, sendo certo que se fosse entendido por sua exclusão dever-se-ia rever a nomenclatura de cidades e Estados (exemplo de Espirito Santo) e os feriados religiosos.
Assunto deveras importante tem seus reflexos na história do país, começando pelo descobrimento do Brasil, local onde os Portugueses desembarcaram que hoje, sustenta uma cruz enorme onde foi realizada a primeira missa em solo Tupiniquim.
2.5 PRECEDENTES JURISPRUDÊNCIAIS
Não poderia passar despercebido o fato de que as questões referidas neste capítulo passam a ter especial atenção em diversos julgados nos Tribunais Superiores e dos Estados, dando-se ênfase aqui, ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que possuem inúmeros precedentes envolvendo temas polêmicos sobre a religião, a liberdade religiosa e ao Estado Laico em última análise.
Assim, para tecer algumas configurações importantes sobre o princípio do Estado Laico e entender o real reflexo da PEC 99/2011, passar-se a expender considerações sobre temas recorrentes na área.
2.5.1 DO SACRIFÍCIO DE ANIMAIS EM RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA E O DIREITO AMBIENTAL
O tópico em questão é um dos mais polêmicos quando se fala em liberdade religiosa. Muito se discute quanto a possibilidade do abate de animais dentro de cultos religiosos. Em que pese a maior visibilidade seja das religiões de matriz africanas, deve se ter em mente que outras religiões utilizam-se se tal ritual, sendo parte integrante dos seus próprios cultos, como exemplo, os rituais mulçumanos, judaicos e de algumas sociedades indígenas.
A Bíblia Sagrada, no evangelho de Levítico (do Velho Testamento), descreve e fundamenta como deve se dar os sacrifícios de animais e sua função axiológica para o cristianismo. No envangelho, está descrito as qualidades que o animal deve possuir, não podendo ter “defeitos”, bem como sinaliza que a imolação será uma oferenda de paz, ou mesmo, dar-se-á como pedido de perdão por cometimento de pecados (BÍBLIA, 2006, p. 110/120).
Norton Figueiredo Côrrea (2006, p. 108/109) descrevendo cultos de matriz africana, observa que “Na hora do sacrifício, igualmente, em todos os templos, as pessoas dirigem-se a estes animais como se fossem o Orixá, fazendo-lhes a saudação ritual deste para que comam o alimento oferecido.”.
Verifica-se nesse aspecto, a da liberdade religiosa (liberdade de culto) e o direito ambiental, em específico, o de não maus-tratos aos animais.
Na CF está assegurado o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem como a sadia qualidade de vida devendo a Administração Pública e a coletividade preservá-los para as gerações atuais e futuras (artigo 226) (BRASIL, 1988).
Nessa esteira, o artigo 32 da Lei de crimes ambientais (BRASIL, 1998) e o artigo 64 da Lei de Contravenções penais (BRASIL, 1941) tipificam como crime a prática de maus-tratos, ou qualquer outro meio cruel contra animais.
Logo, o que se discute é se a liberdade religiosa alcança a possibilidade de sacrifício de animais em rituais ou, se tal ato inflige princípios do direito ambiental e acabam por vezes, a serem tipificados como os delitos descritos acima. É uma dicotomia entre a visão biocêntrica, onde o homem está incluso no ecossistema e por isso sua cultura não pode apresentar dano aos demais seres vivos, sendo o direito dos animais de cunho intrínseco e independente da vida humana e, de outro lado, aceitando que, sequer há colisão dos princípios, a visão antropocêntrica, onde a imolação é uma exteriorização da cultura popular, sendo certo que, o abate para fins religiosos acompanha a história humana, não sendo verdadeiramente cruel e/ou por diversão (como nos caso dos “rodeios” e na “farra do boi”), mas uma expressão cultural (WEINGARTNER NETO, 2007, p. 101/102).
Nesse sentido, o legislador Estadual do Rio Grande do Sul instituiu a Lei Estadual nº 12.131/2004 que acrescentou o parágrafo único ao artigo 2º do Código Estadual de proteção aos animais (Lei Estadual nº 11.915/2003), que determina que o livre exercício de culto de religiões de matriz africanas não se enquadra na vedação referente aos sacrifícios de animais (RIO GRANDE DO SUL, 2004). As vedações que o texto legal prevê são:
“Art. 2º – É vedado:
I – ofender ou agredir fisicamente os animais, sujeitando-os a qualquer tipo de experiência capaz de causar sofrimento ou dano, bem como as que criem condições inaceitáveis de existência;
II – manter animais em local completamente desprovido de asseio ou que lhes impeçam a movimentação, o descanso ou os privem de ar e luminosidade;
III – obrigar animais a trabalhos exorbitantes ou que ultrapassem sua força;
IV – não dar morte rápida e indolor a todo animal cujo extermínio seja necessário para consumo;
V – exercer a venda ambulante de animais para menores desacompanhados por responsável legal;
VI – enclausurar animais com outros que os molestem ou aterrorizem;
VII – sacrificar animais com venenos ou outros métodos não preconizados pela Organização Mundial da Saúde – OMS -, nos programas de profilaxia da raiva.” (RIO GRANDE DO SUL, 2003).
O Decreto Estadual nº 43.252/2004 regulou o acréscimo e impôs em seu artigo 2º que “Para o exercício de cultos religiosos, cuja liturgia provém de religiões de matriz africana, somente poderão ser utilizados animais destinados à alimentação humana, sem utilização de recursos de crueldade para a sua morte.” (RIO GRANDE DO SUL, 2004). Desse modo, regulamentou-se impondo duas condições básicas ao sacrifício de animais para cultos religiosos, o primeiro determina que só poderá haver a imolação em animais que se destinam ao consumo humano e segundo, colocou que os meios empregados para o sacrifício não poderão ser cruéis.
Ocorre que, o Ministério Público do Rio Grande do Sul, apoiado por entidades protetoras dos animais e parcela da coletividade não contentes com o acréscimo legal, buscaram o TJRS para que fosse determinada a inconstitucionalidade da Lei. Como fundamentos para a inconstitucionalidade, têm-se o viés ético de que animais possuem sentimentos, bem como sofrem e sentem dor; o viés jurídico frisou a limitação da liberdade religiosa em face ao respeito pelos interesses dos animais; o equívoco de ordem factual, quanto a dor no sentido biológico; a de ordem sanitária, por quanto o consumo de carne que não passa por procedimentos de controle e fiscalização de qualidade podem levar a problemas de saúde, pessoal e coletiva, uma vez que presente os riscos de intoxicação e outros decorrentes da má qualidade do alimento e por fim, o viés histórico, do retrocesso do Estado do Rio Grande do Sul quanto ao pioneirismo de implantação e consolidação de políticas ambientais (FERREIRA, K. C. R. S, FERREIRA, S. S).
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no julgamento da Adin nº 700110129690 pelo Pleno, entendeu que a Lei Estadual nº 12.131/2004 não é inconstitucional, de modo que não há proibição legal em matar animais, de maneira que a prática de rituais religiosos está protegida pela liberdade de culto, fazendo, assim, uso ao princípio da proporcionalidade. Fez-se uso de doutrina ambiental no sentido de que o meio ambiente cultural deve, nesse caso, prevalecer sobre o meio ambiente natural (RIO GRANDE DO SUL, 2005). Em sentido parecido, restou decidido na Apelação Cível nº 70026890210, que a prática desses cultos não gera, ao menos no caso em questão, o reconhecimento de atos cruéis e, tampouco, risco à saúde humana (RIO GRANDE DO SUL, 2009).
A questão sobre a constitucionalidade da Lei 12.131/04 restou julgada pelo STF (RE 494601) (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL) em 28 de abril de 2019, que entendeu, por unanimidade, pela Constitucionalidade da legislação, em termos semelhantes ao já decidido pelo TJRS. A tese produzida foi de que “É constitucional a lei de proteção animal que, a fim de resguardar a liberdade religiosa, permite o sacrifício ritual de animais em cultos de religiões de matriz africana”. Cabe ressaltar que, para o Ministro Alexandre de Moraes o sacrifício é constitucional independente de consumo da carne animal.
2.5.2 DOAÇÃO DE SANGUE E OS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ
Outro tema bastante recorrente, em especial nas aulas de direito nas universidades e faculdades, é com relação à doação de sangue de testemunhas de Jeová. Com fundamento em questões bíblicas os adeptos da religião testemunhas de Jeová entendem que o sangue é “especial”, sendo, conforme passagens da Bíblia (2006, p. 21), a alma, essência, das pessoas e por isso, não deve ser comido ou tomado, de qualquer forma, sendo os que o fizerem, estarão fadados à morte (Gênesis, 9:4).
Na doutrina constitucional, se aceita que, por óbvio, quando houver alternativa ao tratamento médico, este deverá ser usado, como maneira de se proteger a liberdade de escolha do paciente. No entanto, o problema se dá quando não há outro procedimento, senão a transfusão de sangue. Quanto ao paciente que recusa a transfusão de sangue, não deve recair nenhuma punição, ainda que a vida seja um direito irrenunciável (NOVELINO, 2014).
Para Marcelo Novelino (2014), quando o paciente é consciente e plenamente capaz, deve-se respeitar sua manifestação de vontade, uma vez que, em que pese a irrenunciabilidade do direito à vida, deve-se entender que com este direito esta intrínseco sua dignidade que deve ser respeitada. Todavia, quando o paciente esteja absolutamente incapaz e inconsciente, a vontade não pode ser suprimida por declaração de familiares, sob pena de responsabilização dos médicos e dos parentes. Nesse caso, deve ser realizada a transfusão de sangue.
Em decisões do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, invoca-se o princípio da igualdade para apaziguar a tensão, reconhecendo que, efetivamente, quando o paciente requer tratamento diferenciado e mais oneroso ao Estado em decorrência de questão religiosa não cabe ao Ente Público seu custeio, conforme é possível ver na decisão que segue.
“Dentre as prestações positivas previstas na Constituição da República, contudo, não decorre a de o Estado financiar tratamentos de saúde resultantes de escolhas religiosas ou de crença. Com efeito, a liberdade de religião ou de crença não garante o direito de exigir do Estado o custeio de tratamento à saúde segundo as práticas e regras religiosas, já que o direito social à saúde destina-se a garantir às pessoas e à coletividade condições de bem-estar físico, mental e social de modo universal e igualitário.
Distinções na prestação do serviço público de saúde para atender às convicções religiosas ferem o direito à igualdade na repartição dos encargos públicos.
Não podem, portanto, os Agravados serem obrigados a sustentar serviços de saúde que não decorrem apenas de prescrição médica, mas da liberdade de religião.” (RIO GRANDE DO SUL, 2014).
Em outra oportunidade, o mesmo Tribunal decidiu que não há necessidade de ajuizamento de ação por parte do hospital ou do médico quando não há consentimento do paciente ou de seus familiares, uma vez que o profissional da área da saúde tem o dever de empenhar todos os esforços necessários para tratamentos onde há iminente perigo de vida, somente sendo válido, o consentimento do que se submeterá ao tratamento quando não houver risco de vida. Conforme a ementa do TJRS.
“APELAÇÃO CÍVEL. TRANSFUSÃO DE SANGUE. TESTEMUNHA DE JEOVÁ. RECUSA DE TRATAMENTO. INTERESSE EM AGIR. Carece de interesse processual o hospital ao ajuizar demanda no intuito de obter provimento jurisdicional que determine à paciente que se submeta à transfusão de sangue. Não há necessidade de intervenção judicial, pois o profissional de saúde tem o dever de, havendo iminente perigo de vida, empreender todas as diligências necessárias ao tratamento da paciente, independentemente do consentimento dela ou de seus familiares. Recurso desprovido.” (RIO GRANDE DO SUL, 2007).
Referido recurso foi bastante discutido, sendo certo que o Desembargador revisor, Dr. Paulo Sergio Scarparo, entendeu pela maximização da vontade do paciente, negando provimento há demanda do hospital, uma vez que, em seu entendimento não cabe ao Poder Judiciário determinar o que é eticamente correto, ou não, na relação paciente-médico. Do mesmo modo, reconheceu que, sendo o paciente maior de idade, seu consentimento deve ser seguido à risca, não incorrendo em crime o profissional da saúde caso o paciente venha a óbito, podendo o médico, com base no código de ética médica, pedir dispensa, caso haja outro médico disponível, nos casos em que discorde do tratamento.
3 O PRINCÍPIO DA LAICIDADE E A PEC 99/2011: UMA ANÁLISE CRÍTICA
O poder de reforma constitucional é exercido pelo poder constituinte derivado, cabendo-lhe a alteração formal da Constituição. É também conhecido pela doutrina como reformador, de segundo grau, secundário, entre outros. É determinador da recriação, reformação e atualização da Constituição e da ordem jurídica, complementando a manifestação do poder constituinte originário (ou primário) (BULOS, 2012, p. 405).
Nesse diapasão, cabe ao povo a titularidade de reformador da Constituição, enquanto que a competência da reforma cabe aos Deputados e Senadores de promulgar as emendas realizadas (BULOS, 2012, p. 407). O tema vem disciplinado no artigo 60 e parágrafo segundo da Lei Maior (BRASIL, 1988).
“Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: (…)
A competência para a propositura das emendas também está prevista no artigo citado anteriormente, mais especificamente nos incisos do artigo 60 da CF/88. Interessa nesse artigo o inciso primeiro, que assim declara “I – de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal;” (BRASIL, 1988). É a partir de uma proposta da Câmara dos Deputados que surgiu a PEC 99/2011, que tem como proposta a inclusão do inciso “X”, ao artigo 103 da Constituição, para outorgar capacidade postulatória das Associações Religiosas de âmbito nacional para propor ação de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade de leis ou atos normativos, perante a CF (BRASIL, 2011).
Resumidamente, se aprovada a PEC, as Associações Religiosas de caráter Nacional, tais como Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil (CGADB), Convenção Nacional das Assembleias de Deus no Brasil Ministério Madureira (CONAMAD), entre outras citadas na Proposta, passarão a ter legitimidade para proporem ADIN’s e ADC’s perante o STF, questionando Leis e atos normativos exarados pelas respectivas instituições estatais competentes.
Existe uma tentativa de reaproximação entre Igreja e Estado na presente PEC que, embora sutil, possibilita que Associações Religiosas discutam no STF, a (in)constitucionalidade dos produtos gerados pela atividade legiferante.
Nesse sentido, Jayme Weingartner Neto (2007, p. 146) explica:
“O princípio da separação das confissões religiosas do Estado (CPJ 2.1.1) é um produto do constitucionalismo liberal e representa, justamente, a superação dos modelos de união político-religiosa, tendo-se já percorrido o trajeto histórico que parte da mundivisão teleológico-confessional (manifesta seja em estruturas teocráticas ou hierocráticas, cesaropapistas ou regalistas) e aporta ao discurso jurídico-constitucional.”.
Desse modo, deve ser levantado o fato de que o rol trazido, atualmente, pelo artigo 103 da CF, por si só, suprimiu o monopólio conferido ao Procurador-Geral da República e outorgou direito de propositura a mais oito legitimados, quais sejam, o Presidente da República; a Mesa do Senado; a Mesa da Câmara dos Deputados; a Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; o Governador de Estado ou do Distrito Federal; o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; partido político com representação no Congresso Nacional; confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional, além do próprio Procurador-Geral da República, como bem lembra Ives Gandra Silva Martins e Gilmar Ferreira Mendes (2009, p. 155/156).
Por fim, os autores asseveram.
“A Constituição não fornece base para limitação do direito de propositura. Por outro lado, não resta dúvida de que, ao assegurar uma amplíssima legitimação, o constituinte buscou evitar, também, que se estabelecessem limitações a esse direito. Tal como já ressaltado, os titulares do direito de propositura atuam no processo de controle abstrato de normas no interesse da comunidade ou, se quisermos adotar a formulação de Friesenhahn, atuam como autênticos advogados da Constituição.” (MARTINS, MENDES, 2009, p. 155/156).
Dessa forma, é consabido que o rol elencado pelo artigo 103 da CF cumpre com sua função de trazer os limites de quem pode questionar, pela via concentrada, a constitucionalidade das leis. Nesse sentido, deve-se salientar que dentro dos legitimados já estão pessoas com cargos políticos, ou seja, que são periodicamente “trocados” pelo voto popular democrático.
No modelo social e político do país, vigora o princípio da representação democrática, ou seja, há participação popular indireta, periódica e formal, que se desenvolve por meio de procedimentos eleitorais que garantem e disciplinam a escolha do representante. Assim, na representação democrática, o povo outorga um órgão/pessoa soberano, instituído nos moldes constitucionais, para que haja em prol de seus interesses (SOARES, 2011, p. 234). Não distante, ainda que essa representação seja em nome da maioria, os direitos e garantias da minoria devem ser respeitados, nos moldes dos direitos e princípios elencados no primeiro capítulo deste artigo e de outros que não foram aqui elencados, mas que possuem igual relevância.
Noutro giro, conforme demonstrado no presente artigo, existem outros meios que a lei processual traz para que os representantes de entidades religiosas possam se manifestar em ações judiciais. Trata-se da figura do amicus curie, que pode ser visto, por exemplo, quando da discussão sobre o aborto de fetos anencefálicos na Suprema Corte, visto que no feito foi ouvido, sustentado oralmente, um representante da Igreja Católica. Outro exemplo é o da ADIN proposta pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul quando questionou a Lei Estadual que permite o sacrifício de animais, sendo certo que, na lide houve representação de religiões de matriz africana quando do julgamento no Tribunal de Justiça do Estado, bem como, há representação no STF, o que demonstra que, atualmente já há participação de entidades religiosas em processos que envolvam a liberdade religiosa.
Valdemar da Luz (2016, p. 845) explica o significado de amicus curie da seguinte forma:
“Amicus curiae “Amigo da Corte”. Intervenção assistencial, requerida ao juiz ou relator, por pessoa natural ou jurídica, órgão ou entida- de especializada, com representatividade ade- quada, nos casos de relevância da matéria, es- pecificidade do tema objeto da demanda ou repercussão social da controvérsia[…]”.
Característica interessante de ser avaliada diz com relação as limitações e interferências religiosas no âmbito da política e do poder legiferante. Dentro de um modelo democrático, Mário Lúcio Quintão Soares aduz que se faz necessário, quando das decisões da maioria parlamentar, o respeito “as devidas regras de proteção às minorias opositoras, para que as mesmas possam atuar com destemor” (SOARES, 2011, p. 239). Desse modo, os limites, que têm característica volátil, dependem em grande parte da sociedade e do momento pelo qual se presencia, de maneira que o limite da interferência religiosa na esfera político-legislativa varia no espaço e no tempo (SCALQUETTE, 2013, p. 206). Nesse sentido, concluí avaliar que, a influência evangélica no país teve grande aumento nos últimos anos, de modo que tal fato teve reflexos diretos nas Casas Legislativas, com o grande aumento de parlamentares religiosos.
Veja que as Casas Legislativas, partidos políticos, Presidente da República e Governadores já são legítimos para a propositura de ADINs e ADCs, sendo certo que, se encontra outra maneira que as entidades religiosas possuem de questionar a legislação e atos normativos, através dessas figuras políticas que por vezes são pastores, padres e outros representantes que estão à frente de entidades religiosas.
Logo, a conclusão a que se chega é que a inclusão requerida na PEC tende a ampliar ainda mais o número de legitimados para proporem ações perante o STF que, no entanto, retoma uma posição próxima do Estado Confessional, ou similar, onde as Igrejas passam a assumir maior relevância no cenário político/jurídico nacional. Referida conclusão não se esgota nesse ponto, mas demonstra uma tendência de reaproximação entre a igreja e o Estado, em virtude do grande aumento da influência de religiosos dentro da política nacional, que não se trata de mero de reflexo democrático, mas de uma inconstitucionalidade por ferir a laicidade estatal.
3.1 DO CONTROLE PRÉVIO E POSTERIOR DE CONSTITUCIONALIDADE
Controle de constitucionalidade trata-se de uma averiguação de um ato jurídico (em especial a Lei) aos preceitos constitucionais, verificando-se se há (ou não) embate entre a norma infraconstitucional e o texto da Lei Maior. São analisados os requisitos formais (subjetivos e objetivos) que são os referentes à competência do órgão, prazos e outras questões de procedimento e os requisitos substanciais que se referem aos direitos consagrados na Constituição (FERREIRA FILHO, 2003, p. 34). Esse sistema funda-se na ideia de supremacia da Constituição, da qual decorre que todos atos normativos inferiores (em retomada ao ensinamento da pirâmide de Kelsen) devem estar de acordo com a Carta Magna (OLIVEIRA, 2012, p. 49).
Dois são os momentos em que podem ocorrer esse controle de constitucionalidade o prévio (ou preventivo) e o posterior (ou repressivo). O controle prévio é àquele defendido neste artigo quando menciona a representatividade das entidades religiosas nas Casas Legislativas, já o controle posterior é àquele afetado diretamente quando do acréscimo proposto pela Emenda Constitucional 99/2011 como se verá adiante.
O controle prévio realizado pelo poder legislativo se dá durante o processo legislativo, ou seja, quando da formação do ato legislativo (normativo). O poder legislativo verifica a se há algum vício que possa gerar inconstitucionalidade através das Comissões de Constituição e Justiça, onde o projeto de lei ou emenda constitucional é analisado (LENZA, 2013, p. 275).
Após todo o trâmite de votação o projeto (proposta), se aprovado, vai para promulgação do chefe do poder executivo, que poderá vetá-lo. O veto fundamentar-se-á ou por ser inconstitucional (veto jurídico) ou contrário ao interesse público (veto político), de modo que a há possibilidade de derrubada do veto na Casa Legislativa (LENZA, 2013, p. 276).
No momento posterior de controle de constitucionalidade, ocorre sobre a Lei propriamente dita. No Brasil, esse controle é jurisdicional misto, uma vez que possui o controle difuso e o concentrado (LENZA, 2013, p. 280).
No controle difuso (por via de exceção ou defesa) qualquer juiz ou Tribunal pode analisar a inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo no caso em concreto. Nessa esteira, o julgador analisará não o objeto do caso em si, mas, se a legislação está de acordo com o todo constitucional, permitindo o interessando de agir daquela maneira no caso em liça. Dessa forma, a inconstitucionalidade alcançará os envolvidos no processo e não em terceiros (MORAES, p. 729).
Por sua vez, o controle concentrado de constitucionalidade (ou via de ação direta) é realizado pelo STF, no qual julgará a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo como cerne do processo, ou seja, não se trata de um incidente em uma lide, ou meio de defesa, mas sim da discussão principal do processo (MORAES, p. 729).
Chega-se assim, a figura da Ação Direta de Inconstitucionalidade, meio concentrado do controle de constitucionalidade previsto no artigo 103 da Constituição. É em suma, a principal ação para pleitear a decretação de inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo, seja ela federal ou estadual (FERREIRA FILHO, 2003, p. 40).
A lei nº 9.868/1999 disciplina o processo das ADINs e ADCs e os efeitos de seu julgamento, de forma que delimita que a declaração de inconstitucionalidade terá efeito erga omnes (FERREIRA FILHO, 2003, p. 40).
Dos legitimados para a propositura de ADINs e ADCs que estão elencados no artigo 103 da Lei Maior, os que estão enumerados nos incisos IV (mesa da assembleia legislativa ou da câmara legislativa do Distrito Federal), V (o governador de Estado ou do Distrito Federal) e IX (confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional) devem demonstrar que há pertinência de agir nos temas que pretendem propor as ações, motivo pelo qual são denominados pela doutrina como autores especiais. Os demais legitimados elencados no artigo não necessitam de tal requisito, por isso, são denominados de autores universais ou neutros (OLIVEIRA, 2012, p. 64).
Não se pode olvidar que se incluso o inciso X conforme a PEC 99/2011, ficaria difícil até de classificar as entidades religiosas de âmbito nacional nesta divisão. Não há de se falar em autor universal, uma vez que os que já estão elencados atualmente possuem uma função institucional perante a sociedade bem determinada para serem legitimados dessa forma. Da mesma forma não poderia classificá-los como autores especiais, afinal, qual seriam os temas de interesse religioso? Tais interesses poderiam abarcar qualquer nuance da vida cotidiana, de forma que seria uma legitimidade irrestrita e por vezes inconveniente (conforme se mostrará no próximo tópico).
3.2 DA LEGITIMIDADE E (IN)CONVENIÊNCIA PARA SUA PROPOSITURA
Como assinalado em linhas anteriores, para apresentar Proposta de Emenda à Constituição é necessário estar expressamente previsto na Lei Maior. A PEC 99/2011 restou promulgada no Diário da Câmara dos Deputados no dia 20 de outubro de 2011, cumprindo os requisitos constitucionais (BRASIL, 2011).
Seguindo o modelo tripartido de organização do Estado de Montesquieu, o Estado brasileiro divide-se em três funções estatais, independentes entre si, quais sejam: o executivo, o legislativo e o judiciário. Cada um desses poderes possui independência entre si, e constituem um modelo de “freios e contrapesos”, sendo certo que suas funções são delimitadas pela CF. O poder legislativo federal, organiza-se através de duas casas legislativas (Câmara dos Deputados e Senado Federal), sendo que ambos formam o CN, responsável pela produção legislativa no âmbito da União. O artigo 45 da Lei Maior (BRASIL, 1988) determina que a Câmara dos Deputados seja constituída por Deputados Federais, representantes do povo, eleitos pelo sistema proporcional em cada Estado (território e Distrito Federal). Os Deputados diferenciam-se dos Senadores, uma vez que estes últimos são representantes dos Estados e do Distrito Federal.
Além do poder legiferante, competem aos Deputados, privativamente, os itens elencados no artigo 51 da CF (BRASIL, 1988).
O autor da PEC 99/2011 é o Sr. Deputado João Campos de Araújo, então PSDB/GO. Em informações do próprio sitio da Câmara dos Deputados, o Sr. João Campos de Araújo coordenador da Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional da 55ª Legislatura, popularmente conhecida como “Bancada Evangélica do Congresso Nacional”.
Ainda do sitio desta Casa Legislativa é possível encontrar diversas Frentes Parlamentares de cunho religioso, para citar algumas da 55ª Legislatura: Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional; Frente Parlamentar Mista Católica Apostólica Romana; Frente Parlamentar Para a Liberdade Religiosa do Congresso (Mista); entre outras que têm algum tipo de relação indireta com alguma religião, como por exemplo, Frente Parlamentar em Defesa dos Povos Tradicionais de Matriz Africana.
A PEC estuda neste artigo não é a única com cunho religioso que tem origem nos Parlamentares que participam da “Bancada Evangélica”. Projeto polêmico que tomou notoriedade dessa frente parlamentar (de autoria do Deputado João Campos também) foi o projeto de decreto legislativo da “cura gay” que permite tratamentos para “reverter homossexuais” (BRASIL, 2011).
Já o Projeto de Lei 7561/2014, do Deputado Missionário José Olímpio, proíbe o implante em seres humanos de chips ou outros componentes eletrônicos para identificação pessoal. A primeira vista, o projeto de lei parece singelo, no entanto, ao se analisar a justificativa do referido projeto, percebe-se a carga religiosa que possui. A fim de melhor entendimento, transcreve-se parte da justificativa que começa fazendo menção expressa da Bíblia.
“Tendo em conta que o fim dos tempos se aproxima, é preciso que o Parlamento brasileiro se antecipe aos futuros acontecimentos e resguarde, desde logo, a liberdade constitucional de locomoção dos cidadãos. Sendo assim, urge que se proíba a implantação em seres humanos de chips ou quaisquer outros dispositivos móveis que permitam o rastreamento dos cidadãos e facilitem que sejam as pessoas alvo fácil de perseguição e toda sorte de atentados.” (BRASIL, 2014).
Frisa-se a parte em que cita o “fim dos tempos”, famosa passagem bíblica propagada por cristãos, em especial evangélicos, e traz como função do parlamento brasileiro resguardar a liberdade de locomoção dos cidadãos, fundado no temor sobre o fim do mundo (fundamento da crença cristã), e a justificativa continua:
“Infelizmente, de modo sorrateiro, já são conhecidos no Brasil diversas iniciativas de implantação de chips como “rastreadores pessoais” que pretensamente simulam uma ferramenta de segurança na medida em que possibilitariam a rápida localização de pessoas que estivessem em poder de sequestradores. Entretanto, o povo brasileiro não se deve iludir com tais artifícios, que escodem uma verdade nua e cruel: há um grupo de pessoas que busca monitorar e rastrear cada passo de cada ser humano, a fim de que uma satânica Nova Ordem Mundial seja implantada.” (BRASIL, 2014).
É destacada na justificativa uma suposta instauração de uma “satânica Nova Ordem Mundial”, o que demonstra, primeiramente, o forte vínculo dessa e demais propostas (e da PEC em estudo) com entidades religiosas das igrejas evangélicas, e segundo, além da intolerância com demais crenças (afinal, ser satânico também é uma possibilidade de crença garantida constitucionalmente), demonstra que a finalidade dos projetos legislativos dessa frente parlamentar são voltadas a uma aproximação entre a máquina pública e as igrejas evangélicas. Do mesmo modo, conforme explanar-se-á no próximo tópico, a PEC 99/2011, quando de sua justificativa, apenas cita como exemplos as Associações Religiosas de segmentos evangélicas.
3.3 A PEC 99/2011 E SEU CARÁTER TELEOLÓGICO
Tércio Sampaio Ferraz Júnior, em seu livro, explica que a Lei (ou nesse caso a PEC), deve ser entendida numa relação de comunicação entre emissores e receptores das mensagens legais. Assim, toda norma possui um propósito pelo qual está inserido no ordenamento jurídico, sendo que nem sempre é evidente e simples de ser verificado. Essa finalidade deve ser suficiente para explicar a Lei em um contexto social, de modo que, busque a sociabilidade humana e o bem comum (FERRAZ JÚNIOR, 2012, p. 265).
A leitura teleológica da norma objetiva inferir a finalidade buscada pela espécie normativa. Trata-se de uma interpretação onde a valoração dependerá do hermeneuta, em cada caso. Toda hermenêutica jurídica embasa-se em uma interpretação teleológica, fundando-se na consistência axiológica do sistema jurídico (SOARES, 2015, p. 41/42).
Nesse diapasão, importa salientar que as propostas de emendas à Constituição são espécies de reformas constitucionais, de menor abrangência, uma vez que não têm o condão de alterar o todo Constitucional, tão somente um parte delimitada. Parte da doutrina critica o modo como as emendas constitucionais são usadas, indagando tratar-se de verdadeiras “retaliações constitucionais”, ensejando profundas alterações na Constituição (BULOS, 2012, p. 1185). Em partes, esse parece ser o conteúdo da PEC 99/2011, não pelo seu singelo acréscimo formal no texto da Lei Maior (artigo 103 da CF), mas por abalar o modelo de separação entre o Estado com a Religião, modelo histórico construído nos longos anos de constitucionalismo brasileiro.
A PEC 99 de 2011 tem sua justificativa respaldada no fato de, muitas vezes, as Leis/Decretos tratarem, direta ou indiretamente, de assuntos ligados ao evento religioso. Dessa forma, os propositores da PEC em comento, entendem que o fato de os agentes estatais tratarem de assuntos que envolvam o princípio da liberdade religiosa e liberdade de culto (assegurados constitucionalmente conforme visto previamente), cabe as Associações Religiosas de Âmbito Nacional fazerem uso do controle de constitucionalidade (BRASIL, 2011).
“Com este paradigma, considerando que os agentes estatais no exercício de suas funções públicas, muitas vezes se arvoram em legislar ou expedir normas sobre assuntos que interferem direta ou indiretamente no sistema de liberdade religiosa ou de culto nucleado na Constituição, faz-se necessário garantir a todas as Associações Religiosas de caráter nacional o direito subjetivo de promoverem ações para o controle de constitucionalidade de leis ou atos normativos, na defesa racional e tolerante dos direitos primordiais conferidos a todos os cidadãos indistintamente e coletivamente aos membros de um determinado segmento religioso, observados o caráter nacional de sua estrutura.” (BRASIL, 2011).
A conclusão da justificativa se embasa em um processo histórico de Laicidade Estatal, iniciando pela separação entre Estado-Igreja que teve seu início a partir da República, em 1889. É associado a importância dos movimentos evangelistas, em especial da Assembleia de Deus e dos Presbiterianos com a busca pela liberdade cívica, momento este que começou com a chegada dos primeiros missionários evangelistas no ano de 1910 (BRASIL, 2011).
Outra análise a ser realizada sobre a finalidade da PEC é que se busca a autonomia privada das organizações religiosas em face do Estado Constitucional. Assim, visto que cada corrente religiosa possui suas normas e preceitos próprios, lhe é necessária a capacidade de buscar a auto-organização perante a interferência do Poder Público (BRASIL, 2011).
“Não obstante as idas e vindas dos regimes políticos que caracterizam a vida política nacional no século passado, a redemocratização do Brasil em 1988, ampliando o referido sistema de liberdades públicas, solidificou princípios inerentes a liberdade de culto e, sobretudo, enfatizou a dicotomia entre o Estado e as Igrejas (ou Religiões) dimensionando um novo estágio de confessionalidade do Estado brasileiro, para consolidar a sistemática de autonomia privada de organização das confissões religiosas.
Não poderia ser de outro modo, visto que cada segmento religioso se rege por valores e normas próprias, o que nos seus contornos determinam a subordinação a uma crença espiritual, que dado a singularidade que assume acabam por distinguir os diversos credos e formas de culto, tornando implícito ao direito e liberdade de culto, portanto, a especial autonomia de se determinar segundo os preceitos de sua fé ou como seja o de cada segmento se auto-organizar, sem a intromissão do Poder Público ou qualquer outra inferência.” (BRASIL, 2011).
Entende-se que o fenômeno religioso se materializa na sociedade também como fenômeno político-ideológico, capaz de interferir no meio político conforme ensina Clemildo Anacleto da Silva e Mario Bueno Ribeiro (2007, p. 58):
“Tradição e cultura não podem servir de pretextos para restringir convicções religiosas e suas manifestações legítimas. Os regimes autoritários frequentemente tentam calar a religião porque elas pregam uma autoridade que está além do Estado. Assim sendo, torna-se ameaça à ideologia dominante.
Por essas atitudes, percebe-se que em algumas regiões a religião é vista como componente político e ideológico para manter a unidade e salvaguardar-se de ideologias que possam comprometer a estabilidade política. Nesse aspecto a intolerância ou, pelo menos, a falta de liberdade religiosa, faz parte também de um projeto político de dominação e de sustentação ideológica.”.
Atualmente, a PEC 99/2011 está em tramitação na Câmara dos Deputados, com a última ação legislativa datada em 04/11/2015.
É nesse contexto que a PEC 99/2011 possui sua maior relevância, por propor a possibilidade das Entidades Religiosas discutirem diretamente os atos do Poder Público que disciplinem matérias que afetam de alguma forma a liberdade religiosa e de culto. Mas, mais que isso, propõe uma espécie de reaproximação do Estado com a Igreja, de modo que qualquer matéria poderá ser questionada pelas Associações Religiosas de Caráter Nacional.
3.4 AS CONSEQUÊNCIAS DO AUMENTO DE LEGITIMADOS PARA PROPOR ADINs E ADCs E O ACÚMULO DE AÇÕES DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE PERANTE O STF
Não é de hoje que o sistema judiciário nacional enfrenta uma crise institucional. O modelo Brasileiro é propício para o grande número de processos judiciais, uma vez que se criou uma cultura judicialista. Ocorre que qualquer questão cotidiana acaba por findar no Judiciário, de maneira que o próprio Estado passa a exigir ainda mais as decisões judiciais. Assim, é transmitido ao cidadão a imagem de que só terá seu direito reconhecido se for para a “justiça”, o que, consequentemente faz crescer o número de processos em todo o País.
Conforme ensina a sociologia jurídica, a sociedade moderna trouxe um amplo empoderamento jurídico da sociedade, denominado de jurisdicionalização. Nesse prisma, a jurisdicionalização, dá ensejo a um processo social que busca o reconhecimento de direitos individuais, que acaba por influenciar a normatização do cotidiano. Traduz-se na criação cada vez maior de normas e códigos, bem como de políticas públicas pautadas na positivação dos direitos. Dessa figura surge, o que a sociologia jurídica denomina de judicialização, que é a projeção de que o Poder Judiciário é o único meio de resolução de litígios (LUCAS, 2017, p. 13/14).
O professor João Ignacio Pires Lucas (2017, p.14) explica:
“A judicialização não é totalmente diferente da jurisdicionalização, pois representa uma das suas partes, particularmente quando a sociedade, depois do reconhecimento dos seus próprios direitos, busca resolver os seus litígios no judiciário. A judicialização é a busca pela resolução dos conflitos políticos, sociais, econômicos, culturais etc, no âmbito do judiciário, ou seja, dessa complexa estrutura institucional de instâncias e competências.”.
De acordo com uma notícia vinculada no sitio do STF, no ano de 2015, a Corte Suprema teve o ingresso 86.977 novos processos, o que demonstra uma expressiva quantidade de processo correntes no Supremo Tribunal, ainda mais se analisarmos o fato de que são 11 os Ministros que o compõem.
Nesse contexto, quanto maior for o número de legitimados competentes para intentar ações, por óbvio, maior será o aumento da demanda judicial. Trata-se de uma questão matemática e lógica. Levando isso à Proposta em liça (e qualquer outra com o objetivo de ampliar o número de legitimados para proporem ADINs e ADCs), tem-se uma maior demanda ao STF que ocasiona o trancamento da máquina judiciária e, como consequência, estimula um ativismo judicial.
CONCLUSÃO
O presente artigo não teve o condão de esgotar o estudo dos institutos aqui apresentados, mas tão somente incentivar e aprofundar-se mais num tema tão polêmico, visto se tratar de um conhecimento que transcende o conhecimento empírico e lida com o desejo individual de cada um, qual seja, a crença. No entanto, o presente estudo se mostrou razoável quando inserido num contexto histórico de laicidade.
O ordenamento jurídico pátrio sempre se fundamentou, com exceção da primeira Constituição, no ideal de separação entre Estado e Igreja, fomentando assim, o princípio da laicidade estatal.
É evidente que essa separação nem sempre é nítida, sendo certo que por vezes, há interferência religiosa nas funções estatais quando se verifica uma sociedade pautada na democracia representativa.
A problemática trazida no artigo demonstrou-se respondida pela divisão dos tópicos. A conceituação do princípio da laicidade se mostra fundamental para responder como se comporta a PEC99/2011 em perspectiva com a atual conjectura brasileira. Do mesmo modo, é visto a parcialidade quando da propositura, em especial quando analisada a frente parlamentar evangélica do CN.
Assim, no primeiro tópico do presente artigo, restou claro a importância dos princípios constitucionais numa perspectiva de Estado Democrático de Direito, em especial, o estudo do princípio da vedação ao retrocesso que não permite o retrocesso dos direitos sociais já adquiridos e, inclusive, o do princípio da laicidade estatal.
Nesse sentido, o princípio do Estado Laico demonstra uma construção histórica conquistada em muitos anos da ciência jurídica. No mesmo prisma, a liberdade religiosa mostra-se ligada ao fundamento de separação entre Estado e igreja.
Muitos temas são polêmicos dentro da liberdade religiosa, sendo que o Estado brasileiro já mostrou uma determinada proteção a esta liberdade.
Não obstante, a PEC 99/2011 tem a finalidade de acrescentar ao artigo 103 da CF a possibilidade de entidades religiosas de âmbito nacional proporem ADINs e ADCs. A priori, a ideia apresentada mostra-se singela, no entanto, ao se analisar os parlamentares que propuseram-na, verifica-se que há inconveniência em sua propositura, sendo que outros projetos da mesma frente parlamentar se mostraram duvidosos e extremamente parciais, afrontando, inclusive, a liberdade religiosa e o direito das minorias. Não se pretende questionar a legitimidade dos Deputados, mas sim, analisar que, possibilitar o questionamento de leis e atos normativos por entidades religiosas invade uma seara que não lhes compete.
Se fosse diferente, bastaria questionar “qual o campo de atuação religiosa?”. A resposta para a indagação é complexa e extremamente ampla, assim, qualquer tema poderia ser debatido por entidades representantes de religiões. Veja que, o sistema jurídico, por si só, quando na presença da laicidade e da liberdade religiosa, já restringe o Estado, de forma que não possa legislar atropelando os direitos e garantia religiosas, de culto, de crença ou outro que decorra de uma vida digna e igualitária
As funções políticas no poder legislativo e executivo trazem prerrogativas de proteção à temas que venham a invadir assuntos eminentemente religiosas, sendo função destes representantes religiosos, na esfera política, barrar qualquer tipo de violação as garantias religiosas.
Uma consequência facilmente reconhecida ao se aumentar o número de legitimados do artigo 103 da CF é o acréscimo da demanda perante o STF. É consabido que no mundo atual, com as várias ondas de direitos, a jurisdicionalização da vida acarreta em um trancamento da máquina judiciária, o que, somado com a possibilidade de atuação irrestrita das entidades religiosas questionarem atos normativos, acabaria por tomar um rumo catastrófico, visto que o judiciário brasileiro é reconhecidamente um dos mais lentos no mundo.
Estado laico não é Estado ateu, tampouco teísta. Não há impedimento de atos religiosos na vida pública e privada, mas garante a cada indivíduo a possibilidade de se determinar por suas próprias crenças (ou ausência dela), de modo que as liberdades individuais não interfiram na máquina pública, separando o Estado da religião (seja uma determinada ou o conjunto delas).
A laicidade trata-se de um princípio que está intrínseco em um modelo de democracia, onde se respeita as minorias e garantem seus direitos.
Nesse sentido, existe no ordenamento pátrio a possibilidade de que assuntos de relevância religiosa sejam questionados, a exemplo da figura do amicus curie visto no julgamento do caso de aborto de feto anencefálicos (onde representante da igreja católica teve a possibilidade de opinar sobe o tema).
Por fim, a própria democracia garante a representatividade religiosa nas Casas Legislativas. Assim, referida PEC tende a aproximar as religiões de funções que não lhes competem, invadindo um campo de atuação já devidamente delimitado pelo Constituinte originário.
REFERÊNCIAS
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______. Câmara dos Deputados. Proposta de Emenda à Constituição PEC 99/2011. Acrescenta ao art. 103, da Constituição Federal, o inc. X, que dispõe sobre a capacidade postulatória das Associações Religiosas para propor ação de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade de leis ou atos normativos, perante a Constituição Federal. Diário Oficial [da Câmara dos Deputados], Brasília, DF, n. 184, 20 out. 2011. P. 57234. Disponível em: <http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD20OUT2011.PDF#page=202>. Acesso em: 12 nov. 2016.
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