A responsabilidade do médico na negativa da interrupção gestacional de feto anencéfalo

Resumo: A anencefalia nos últimos anos foi bastante discutida no Brasil, antes da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, a mulher ao descobrir gerar um feto anencéfalo era obrigada a ingressar no judiciário a fim de que pudesse interromper a gestação de um feto já reconhecido pela ciência médica e jurídica como morto. Exatamente por isso, vemos a ADPF 54 como uma das maiores vitórias de lutas travadas no judiciário. Por mais que a ADPF 54 tenha pacificado esta questão a favor da legalidade da interrupção da gestação de feto anencéfalo, ficando tal procedimento a critério da gestante, restou uma brecha no assunto, qual seja a liberdade do profissional médico em recusar-se a executar tal procedimento. Portanto, na ausência de debates acerca do assunto foi desenvolvido este trabalho, e ao longo do mesmo percebemos que o médico não esta obrigado a realizar a interrupção da gestação, exceto é claro quando a vida da gestante correr riscos ou ainda quando este médico fizer parte da equipe de aborto do SUS, pois obviamente se trata da sua função. Logo, não ha que se falar em responsabilidade médica quando houver negativa como uma regra, e sim exceção.[1]

Palavras-chave: ADPF 54, Anencefalia, Responsabilidade e Consciência.

Abstract: Anencephaly in recent years has been widely discussed in Brazil, before the complaint of breach of fundamental precept 54, the woman to discover generate an anencephalic fetus was forced to join the judiciary so that could interrupt the gestation of a fetus already recognized by science medical and legal as dead. Exactly why we see the ADPF 54 as one of the greatest victories of struggles in the judiciary. For more than 54 ADPF have pacified this issue in favor of the legality of the termination of pregnancy of anencephalic fetus, getting such a procedure at the discretion of the mother, left a gap in the subject, which is the freedom of medical professionals to refuse to perform such procedure.

Keywords: ADPF 54 , Anencephaly , Responsibility and Free conscience .

1. Introdução

É cediço que o direito de escolha por parte da gestante em interromper sua gestação, deriva de grande batalha e ferrenhaslutas nos tribunais.

Ocorre que, antes da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, as mulheres que geravam um feto anencéfalo eram obrigadas a pedir autorização ao poder judiciário para que pudessem interromper sua gestação o que por muitas vezes gerava tristeza, dor emuito sofrimento a estas mães, uma vez que enfrentariam longos nove meses para ao fim da gestação, ter seu filho dado como morto ainda na maternidade. De fato, não é justo submeter uma mulher a todo o emocional que envolve a gestação para no fim de tudo, não ver o sorriso de seu filho, e pior de tudo, consciente de que deve carregar em seu ventre um bebê morto por nove meses.

Contudo, a ADPF 54 trata tão somente do poder de decisão da gestante. Mas e em relação ao direito de escolha do médico?Ora, a interrupção da gestação é um procedimento que deve ser realizado dentro dos parâmetros legais, sendo assim somente poderá ser executado por um médico.

A ADPF 54 foi omissa no que tange à posição médica, a jurisprudência nada diz, os doutrinadores pouco tem discutido a respeito, mas, seria razoável o estado obrigar o médico a realizar a interrupção quando for esta a vontade da gestante? Porventura a gestante pode ter convicções e o profissional médico não? Obviamente que sim, afinal se trata de um ser humano como outro qualquer, com sua própria criação, filosofia de vida e crenças religiosas.

2Da negativa do médico em realizar a interrupção gestacional de feto anencéfalo

Em se tratando de uma gestante que descobriu estargerando um feto anencéfalo sem, contudo sofrer qualquer risco a sua saúde. Ora, o que impede esta gestante de procurar outro médico, outra junta hospitalar, até mesmo o SUS? Nada!

Porventura pode o Estado obrigar o profissional médico a executar a interrupção?Entende-se que não!

A cada ser humano é reservado o direito de buscar sua felicidade, sem estar obrigado a executar atividades que possam agredir suas crenças, amparado pelo direito à liberdade de consciência, conforme art. 5º, inciso VI, da Constituição Federal (1988) que diz: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.

Ora, a escusa de consciência devido a crenças, principalmente religiosas, é um direito constitucional garantido ao médico através de seu estatuto e por nossa carta magna. Mediante a ausência de emergência ou risco à gestante, não ah que se falar em obrigatoriedade.

Nos ensina Fleiner-Gerter, 2006, p.581 que “o Estado deve, pois, deixar a cada indivíduo a busca da felicidade e do bem-estar e não tem o direito de intervir em sua liberdade”.

Muito embora o profissional médico tenha de fato assumido o dever diante da sociedade de lutar pela promoção da saúde, precisamos lembrar que ele é um ser humano e precisa ter sua dignidade e seus direitos fundamentais também respeitados.

2.1Da tese de Inexigibilidade de Conduta Diversa

Acredita-sena tese de Inexigibilidade de Conduta Diversa na tese de Inexigibilidade de Conduta Diversa, observando que como a causa suscitada para isentar o profissional de sanção penal será sua consciência adquirida ao longo dos anos, não podendo se esperar dele outra conduta que não essa, praticada por uma convicção íntima e pessoal.

Ora, tendo em vista que a estrutura da definição de culpabilidade se perfaz nos seguintes elementos: imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa, logo, fatalmente só a prática de um fato típico e ilícito, pode expor o agente à sanção penal. Evidentemente que é necessário ser esta conduta imputável, ou seja, uma conduta consciente e voluntária, com potencial consciência da ilicitude e que diante da situação nesta situação possa ser exigido outro comportamento.

Questiona-se. Você conseguiria obrigar um adventista a trabalhar aos sábados? Por certo que não. Ao saber de sua religião já nem é exigido isto, pois seria infrutífera tal exigência. De forma mais séria é vista a interrupção da gestação para estes religiosos, é de conhecimento de todos que eles jamais realizariam a interrupção, isso não é minimamente exigível de um cristão. A sociedade é ciente disto, sabemos das condições e limitações nas quais eles se impõem então não lhe devem exigir uma postura contrária.

A favor deste posicionamento, CORREA(2013) diz:

“A garantia jurídica da liberdade de consciência vincula o poder público a oferecer alternativas jurídicas, sempre que uma regulação jurídica geral obriga os indivíduos a um comportamento contrário à consciência, provocando um conflito que assume verdadeiras proporções sociais. No ato de legalização dessas situações o legislador visa criar um espaço livre do Direito em que é juridicamente neutra a atuação do sujeito. Devendo a ordem jurídica estabelecer para o autor que atua com base em convicções éticas, políticas, sociais, uma disposição especial, o que pode incorrer na não aplicação de pena em alguns casos.”

Portanto, a liberdade de consciência se trata de um direito fundamental assegurado pela Constituição Federal, dessa sorte, não se pode obrigar um indivíduo a atuar de forma contrária ao que sua consciência determina, por sua previsibilidade em lei, de que poderá agir de acordo com sua consciência, e como sendo este um direito constitucional, deverá ser isento de sanção penal, caso contrário não constituiria efetivamente um direito.

2.2 Da tese de Exercício Regular do Direito

Caso hajaimputação de crime por parte do agente, entende-se que a tese de Exercício Regular do Direito seja a mais adequada ao caso.

Segundo o artigo 23 do Código Penal, as causas de exclusão de antijuridicidade são: estado de necessidade, a legítima defesa, o estrito cumprimento do dever legal e por fim o exercício regular de direito.

“Art. 23 – Não há crime quando o agente pratica o fato:

I – em estado de necessidade;

II – em legítima defesa;

III – em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito”.

A Excludente do Exercício Regular do Direitotrata da possibilidade de se praticar um fato considerado como fato típico, sem, contudo trata-lo como tal, isto porque tem-se por retirada da mesma toda a ilicitude que lhe era de natureza. Podemos dizer então que esta excludente de ilicitude é uma autorização concedida pelo Estado para que em determinadas situações tais fatos não sejam considerados como crime.

Vejamos: caso espantosamente haja imputação de conduta criminosa por conta da negativa do médico em realizar a interrupção da gestação de feto anencéfalo. Não ah que se falar em imputabilidade, tendo em vista que neste caso hipotético o médico está escudado pelo direito da livre consciência amparado tanto pelo Código de Ética Médica e ainda pela nossa Carta Magna. Sendo assim, não ah que se falar em imputabilidade.       

EnsinaDelmanto Cód. Penal Comentado 2007, p. 92:

“Se um comportamento é aprovado ou legitimado por lei extrapenal, o Direito Penal não pode considerá-lo ilícito penal. Assim, sempre que o Direito – entendido em qualquer de seus ramos – permite uma conduta, essa mesma conduta não pode ser punida pela legislação penal.”

Em relação à responsabilidade civilcada caso concreto deve ser observado em suas peculiaridades, contudo no caso em comento não há que se falar em indenizaçãopelo fato de não haver dano.

No que tange a responsabilidade Administrativa, cada caso também deve ser analisado minunciosamente. Mas exemplificadamente, sendo este médico participante da equipe de realização de aborto pelo SUS, evidentemente que o médico estará obrigado a fazer a interrupção, pois esta é sua função. Se recusando, a vítima poderá ajuizar uma ação de obrigação de fazer, independentemente da ação de indenização. Importa dizer que a Administração poderá abrir processo disciplinar contra o profissional médico omisso, podendo levar até mesmo a exoneração do profissional. Contudo, esse posicionamento não alcança ao profissional médico do SUS que não faça parte da referida equipe de aborto, não estando, portanto obrigado a executar o procedimento da interrupção da gestação, primeiro por que já existe uma equipe para esta finalidade, segundo por que o direito de livre consciência é um direito constitucional a todos assegurado.

Insta salientar, que nos termos do Direito Administrativo, quando o médico for parte da equipe de aborto do SUS e se negar a realizar a interrupção, a vítima poderá ajuizar ação de Indenização casa haja dano, comprovando tão somente o dano, por se tratar de responsabilidade objetiva, e obviamente uma ação de obrigação de fazer.

Por fim, mister se faz lembrar que um médico particular não é obrigado a realizar o procedimento de interrupção da gestação, também pelos termos dito ao norte, direito de livre consciência.

 Maria Helena Diniz, (2012, p. 83):

“A participação nessas equipes é resultado de um acordo entre obrigações institucionais e motivações individuais dos profissionais de saúde, que significa que não é imposta ao médico a atuação do serviço de aborto legal.”

2.3Da negativa do médico em interromper a gestação de feto anencéfalo no caso de risco a vida da gestante

A assistência ao aborto legal pelo SUS é regulamentado pela Portaria 1.508/05 (2005), que em seu artigo 1º diz:

“O Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei é condição necessária para adoção de qualquer medida de interrupção da gravidez no âmbito do Sistema Único de Saúde, excetuados os casos que envolvem riscos de morte à mulher”.

Os profissionais médicos que por qualquer motivo seja contra a prática de abortiva, ainda que necessário, sentimental ou autorizado por decisão judicial, não devem fazer parte dessas equipes, assim evitam qualquer transtorno.

Se estivermos diante de eminente risco à vida da gestante? O médico de acordo com as normatizações mais recentes não pode, portanto alegar escusa de consciência bem como não poderá invocar este direito quando não puder ser substituído.

Aqui, não conseguimos vislumbrarexcludentes de ilicitude ou escusas absolutórias,pois estamos diante da maior defesa da nossa constituição a VIDA,salvaguardada pela Constituição Federal e por diversos tratados de direitos humanos dos quais o Brasil faz parte.

Quando ocorrer negativa por parte do médico em realizar o procedimento de interrupçãoda gestação de feto anencéfalo quando a vida da gestante correr risco, estamos diante da incidência no tipo penal de omissão se socorro e desobediência ao Código de Ética Médica (1988) por abandonode paciente.

“Art. 135 – Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública:

Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa.

Parágrafo único – A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte”.

E ainda:

“Art. 36. Abandonar paciente sob seus cuidados.

§ 1° Ocorrendo fatos que, a seu critério, prejudiquem o bom relacionamento com o paciente ou o pleno desempenho profissional, o médico tem o direito de renunciar ao atendimento, desde que comunique previamente ao paciente ou a seu representante legal, assegurando-se da continuidade dos cuidados e fornecendo todas as informações necessárias ao médico que lhe suceder.

§ 2° Salvo por motivo justo, comunicado ao paciente ou aos seus familiares, o médico não abandonará o paciente por ser este portador de moléstia crônica ou incurável e continuará a assisti-lo ainda que para cuidados paliativos”.

Portanto, quando se tratar de caso urgente e emergente, haverá tanto responsabilidade civil como responsabilidade penal e ainda administrativa. Lembrando que a responsabilidade civil e administrativa é de caráter pessoal.

3Considerações

De fato, quando se tratar de uma gestação sem qualquer risco a gestante não ah que se falar em obrigação e dever médico de interromper a gestação de um feto anencéfalo, uma vez que esta gestante pode procurar outro médico para realizar estre procedimento, até mesmo a equipe de aborto do SUS que detém essa obrigação. Evidentemente que os membros desta equipe estão sim obrigados a realizar a interrupção gestacional deste feto anencéfalo. Aquele que não faz parte da referida equipe de aborto não esta obrigadoa a realizar o procedimento da interrupção gestacional tendo em vista realmente o direito a livre consciência que antes do Código de Ética Médica, a Constituição Federal já nos assegurava. 

Como modo de segurança a execução deste direito, apostamos em duas teses, quais sejam: inexigibilidade de conduta adversa e exercício regular de um direito, esta última com mais ênfase, tendo em vista que ao negar a realização do procedimento de interrupção da gestação de feto anencéfalo, o médico está exercendo o seu direito a livre consciência.

É óbvio que não ah que se falar em escusa de consciência quando esta gestante corre riscos, posto que, maior que o direito de livre consciência é o direito a vida.

Sendo assim, Não ah que se falar em responsabilidade médica na negativa de interrupção gestacional de feto anencéfalo, exceto quando esse médico seja membro da equipe de aborto do SUS ou quando a vida da gestante corra risco, podendo incidir tanto em responsabilidade civil, administrativa e/ou até mesmo penal de acordo com cada caso concreto.

Referências
FERREIRA. Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Positivo, 2010, p. ;
BRASIL. Decreto Lei 2.848 de 7 de dezembro de 1940.Código Penal.Brasília – DF: Presidente da República. 1940;
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BRASIL. PORTARIA no 1.508 de 24 de julho de 2013.Dispõe sobre a justificação da interrupção da gravidez. Ministério de Estado e Saúde. Brasília – DF: 2005;
BRASIL, Resolução CFM nº 1.246/88 de 01 de janeiro de 1988.Código de Ética Médica.  CFM. 1988. Disponível em: http//:www.abctran.com.br/Conteudo/código_etica_medica.pdf. Acesso em 07 de outubro de 2013;
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DELMANTO, Roberto; DELMANTO JR., Roberto. Código penal comentado. 7.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p 92;
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Nota:
[1]Artigo apresentado ao programa de Pós Graduação em Direito Penal e Processo Penal DO Instituto Específico de Ensino Pesquisa e Pós – Graduação como parte dos requisitos para conclusão.

Informações Sobre o Autor

Gabriela Moura Fonseca de Souza

Advogada Especialista em Direito Penal e Processo Penal proprietária do Escritório GM Advocacia com sede em Palmas-TO


Equipe Âmbito Jurídico

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