A responsabilidade do município de promover as obras de infraestrutura de loteamento irregular sob a perspectiva do Superior Tribunal de Justiça

Resumo: O presente trabalho realiza a análise do art. 40 da lei federal n.º 6.766, publicada em 19 de dezembro de 1979, que traz as normas gerais acerca do Parcelamento do Solo Urbano. O dispositivo legal em questão versa sobre possibilidade de regularização de loteamento por parte dos municípios, especificamente no que diz respeito à realização de obras de infraestrutura, quando estas não tiverem sido feitas pelo loteador. Tal tema possui relevantes contornos que serão esmiuçados ao longo deste estudo, gerando posicionamentos divergentes nos Tribunais acerca de como se dá a responsabilidade dos municípios. Dentro desse contexto, foram utilizados os textos legais atinentes ao tema, citações doutrinárias, bem como os julgados mais recentes dos Tribunais Superiores acerca da matéria.

Palavras-chave: Direito Urbanístico. Infraestrutura em loteamentos irregulares. Lei Federal nº. 6.766/79.

Abstract: The present work analyzes the art. 40 of Federal Law No. 6,766, published on December 19, 1979, which sets forth the general rules regarding Urban Land Installment. The legal provision in question concerns the possibility of regularization of allotment by the municipalities, specifically with regard to the execution of infrastructure works, when these have not been made by the developer. This theme has relevant contours that will be scrutinized throughout this study, generating divergent positions in the Courts about how the responsibility of the municipalities is given. Within this context, the legal texts related to the topic, doctrinal quotations, as well as the most recent Supreme Court judgments on the matter were used.

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Sumário: Introdução. 1. A Lei 6.766/96 e os loteamentos irregulares. 2. O posicionamento do STJ. Considerações finais. Referências.

INTRODUÇÃO

A lei federal n.º 6.766, publicada em 19 de dezembro de 1979 e vigente até os dias atuais, disciplina o parcelamento do solo para fins urbanos no território nacional, trazendo em seu texto uma série de normas de natureza civil, administrativa, urbanística, penal, entre outras.

O presente artigo pretende trazer à baila o art. 40 da referida lei, que trata da possibilidade de regularização de loteamento por parte dos municípios, especificamente no que diz respeito à realização de obras de infraestrutura, quando estas não tiverem sido feitas pelo loteador.

Trata-se de uma situação recorrente, em que o loteador obtém a aprovação do projeto de loteamento pelos órgãos competentes do município, efetua o registro do loteamento no Cartório de Registro de Imóveis, mas não executa as obras de infraestrutura necessárias que constavam do projeto aprovado.

Nesses casos, estaria o município obrigado a realizar as obras de infraestrutura não executadas pelo loteador, ou consiste numa faculdade do ente público? Trata-se de atuação vinculada ou discricionária?

Para responder tais indagações, far-se-á primeiramente a análise do dispositivo legal que versa sobre o tema, abordando como a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça vem enfrentando a questão ao longo do tempo.

1 A LEI N.º 6.766/79 E OS LOTEAMENTOS IRREGULARES

Para a análise jurídica da matéria em discussão no trabalho, convém esposar, primeiramente, o que dispõe o art. 40 da Lei Federal nº. 6.766/79, que traz as normas gerais acerca do Parcelamento do Solo Urbano:

“Art. 40. A Prefeitura Municipal, ou o Distrito Federal quando for o caso, se desatendida pelo loteador a notificação, poderá regularizar loteamento ou desmembramento não autorizado ou executado sem observância das determinações do ato administrativo de licença, para evitar lesão aos seus padrões de desenvolvimento urbano e na defesa dos direitos dos adquirentes de lotes.

§ 1º A Prefeitura Municipal, ou o Distrito Federal quando for o caso, que promover a regularização, na forma deste artigo, obterá judicialmente o levantamento das prestações depositadas, com os respectivos acréscimos de correção monetária e juros, nos termos do § 1º do art. 38 desta Lei, a título de ressarcimento das importâncias despendidas com equipamentos urbanos ou expropriações necessárias para regularizar o loteamento ou desmembramento.

§ 2º As importâncias despendidas pela Prefeitura Municipal, ou pelo Distrito Federal quando for o caso, para regularizar o loteamento ou desmembramento, caso não sejam integralmente ressarcidas conforme o disposto no parágrafo anterior, serão exigidas na parte faltante do loteador, aplicando-se o disposto no art. 47 desta Lei.

§ 3º No caso de o loteador não cumprir o estabelecido no parágrafo anterior, a Prefeitura Municipal, ou o Distrito Federal quando for o caso, poderá receber as prestações dos adquirentes, até o valor devido.

§ 4º A Prefeitura Municipal, ou o Distrito Federal quando for o caso, para assegurar a regularização do loteamento ou desmembramento, bem como o ressarcimento integral de importâncias despendidas, ou a despender, poderá promover judicialmente os procedimentos cautelares necessários aos fins colimados.

§ 5o A regularização de um parcelamento pela Prefeitura Municipal, ou Distrito Federal, quando for o caso, não poderá contrariar o disposto nos arts. 3o e 4o desta Lei, ressalvado o disposto no § 1o desse último”. (Incluído pela Lei nº 9.785, de 1999)

Com efeito, o parcelamento do solo para fins urbanos é uma instituição jurídica, especificamente de direito urbanístico, servindo a legislação federal supracitada como norma orientadora do comportamento da administração local.

Por sua vez, para se ter um adequado ordenamento territorial, necessário que haja um planejamento urbano por parte do Poder Público municipal, conforme as diretrizes gerais fixadas na legislação federal acima citada. Tal planejamento tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes, conforme preceitua a Constituição Federal em seu art. 182, que também estabelece que “o plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana”.

Após a breve digressão acima, importante se faz conceituar o que se chama de “loteamento irregular”, tendo em vista que o caput do art. 40 da Lei Federal nº. 6.766/79 trata da possibilidade de o município “regularizar loteamento”.

De acordo com o catedrático doutrinador José Afonso da Silva (2010, p. 339), os loteamentos irregulares constituem outro mal do sistema de parcelamento do solo, especialmente nas grandes cidades. Os loteadores, nesse caso, providenciam junto à Prefeitura a aprovação do seu loteamento e, depois de consegui-la, abandonam o caminho da legalidade e enveredam pela ilegalidade, provocando dificuldades aos compradores de lotes, sob vários aspectos, inclusive quanto à obtenção de licença para edificá-los.

Uma das irregularidades costumeiras é a inexecução das obras de infraestrutura necessárias que constavam do projeto aprovado, conforme mencionado alhures. A infraestrutura básica, nos termos do art. 2º, §5º, da referida lei, é constituída pelos equipamentos urbanos de escoamento das águas pluviais, iluminação pública, esgotamento sanitário, abastecimento de água potável, energia elétrica pública e domiciliar e vias de circulação.

Exsurge, neste ponto, o questionamento nevrálgico do presente estudo, qual seja, se a realização das obras de infraestrutura constitui um dever ou uma faculdade do Poder Público Municipal.

A resposta será dada sob o enfoque jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça, que transitou por caminhos diferentes ao longo do tempo, conforme será visto a seguir.

2 O POSICIONAMENTO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

O entendimento que há tempos se firmou a respeito da interpretação do dispositivo acima transcrito era no sentido de que, na hipótese de o loteador não cumprir com sua obrigação de implantar os serviços públicos necessários ao loteamento, o Município deveria assumir tal ônus, urbanizando o local e integrando-o à cidade. Em vários julgados, o Superior Tribunal de Justiça assentou que “o Município tem o poder-dever de agir para fiscalizar e regularizar loteamento irregular, pois é o responsável pelo parcelamento, uso e ocupação do solo urbano, atividade essa que é vinculada, e não discricionária” (vide Resp 1170929/SP, Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJ 27/05/2010).

Dessa forma, de acordo com o julgado acima mencionado, a competência do município para regularizar os loteamentos seria vinculada, podendo o Judiciário compeli-lo a realizar as obras de infraestrutura caso haja omissão nesse sentido.

Ocorre que, em julgado posterior, o Colendo Superior Tribunal de Justiça modificou o posicionamento anteriormente adotado, passando a entender que o art. 40 da Lei n. 6.766/1979 confere ao município a faculdade de promover a realização de obras de infraestrutura em loteamento, sob seu o critério de oportunidade e conveniência.

Eis a ementa do referido julgado, publicado em 16/03/2012:

“RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE DO MUNICÍPIO. LOTEAMENTO. OBRAS DE INFRA-ESTRUTURA. EXEGESE DO ART. 40 DA LEI N. 6.766/79. – O art. 40 da Lei n. 6.766/1979 confere ao município a faculdade de promover a realização de obras de infra-estrutura em loteamento, sob seu o critério de oportunidade e conveniência. Recurso especial não conhecido”. (REsp 859.905/RS, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, Rel. p/ Acórdão Ministro CESAR ASFOR ROCHA, SEGUNDA TURMA, julgado em 01/09/2011, DJe 16/03/2012)

No voto vencedor, o eminente Ministro Cesar Asfor Rocha asseverou que “a norma transcrita concede ao município o direito, não a obrigação, de realização de obras de infraestrutura em loteamento. O verbo utilizado pelo legislador, revela uma faculdade da municipalidade. Quer dizer que esta empreenderá nos loteamentos quando considerar, por razões superiores, de interesse social, que tem condições de fazê-lo. Não cabe outra interpretação ao preceito legal, não só diante da clareza do texto como dos princípios informadores da administração pública, não se mostrando razoável impor ao município a realização de obras que eventualmente não sejam do interesse da coletividade ou obrigá-lo a assumir encargos que não tenha condições de cumprir”. 

Tal posicionamento tem sido mantido até os dias atuais, como se pode inferir do recente aresto:

“PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO RECEBIDOS COMO AGRAVO REGIMENTAL.  PRINCÍPIOS DA ECONOMIA PROCESSUAL E DA FUNGIBILIDADE.  RESPONSABILIDADE DO MUNICÍPIO. LOTEAMENTO. OBRAS DE INFRAESTRUTURA. EXEGESE DO ART. 40 DA LEI N. 6.766/79.

DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA.

1. Os embargos de declaração podem ser recebidos como agravo regimental em obediência aos princípios da economia processual e da fungibilidade.

2. Segundo entendimento do Superior Tribunal de Justiça, "o Município tem o poder-dever de agir para fiscalizar e regularizar loteamento irregular, pois é o responsável pelo parcelamento, uso e ocupação do solo urbano, atividade essa que é vinculada" (AgRg no AREsp 446.051/SP, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 27/03/2014, DJe 22/04/2014.).

3. Todavia, "o art. 40 da Lei n. 6.766/1979 concede ao município o direito e não a obrigação de realização de obras de infraestruturas em loteamento, o que revela uma faculdade do ente federativo, sob o critério de conveniência e oportunidade" (REsp 859.905/RS, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Rel. p/ Acórdão Ministro Cesar Asfor Rocha, Segunda Turma, julgado em 1º/09/2011, DJe 16/03/2012.).” Embargos de declaração recebidos como agravo regimental, mas improvido.

(EDcl no REsp 1459774/RS, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 03/11/2015, DJe 16/11/2015)

É importante frisar que não se trata de afastar a atividade de fiscalização por parte do município, que é impositiva, mas de reconhecer que não está o ente compelido a promover a realização de obras de infraestruturas em loteamento, pois sua atuação será pautada a critério de conveniência e oportunidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da clareza do entendimento jurisprudencial atual e da legislação aplicável, conclui-se que é obrigação do loteador, e não do Município, realizar e executar as obras de infraestrutura mínima do loteamento, constantes dos projetos aprovados pelos órgãos competentes.

Caso o loteador não cumpra com sua obrigação de realizar e executar as obras de infraestrutura, o Município terá a faculdade, isto é, o Administrador Municipal terá poder discricionário para optar pela realização das obras, sem prejuízo de seu permanente dever de fiscalizar os loteamentos em seu território.

É de se destacar que, caso o Administrador Municipal, após avaliação discricionária, opte por realizar as referidas obras de infraestrutura não executadas pelo loteador, deverá fazê-lo com fulcro nos parágrafos do art. 40, da Lei Federal 6.766/79, que conferem ao Município a possibilidade de levantar da garantia prestada pelo loteador para a execução das obras, buscar o restante junto ao loteador ou, ainda, receber os valores diretamente dos promitentes compradores, a título de ressarcimento das importâncias despendidas com equipamentos urbanos ou expropriações necessárias para regularizar o loteamento.

Caso o poder público municipal, após avaliação discricionária, decida por regularizar o loteamento, sua atuação deve ser restrita às obras essenciais a serem implantadas, em conformidade com a legislação urbanística local (art. 40, § 5º, da Lei 6.799/1979), visando a atender os moradores eventualmente já instalados.

 

Referências
FRANCISCO, Caramuru Afonso. Estatuto da Cidade Comentado. Editora: Oliveira Mendes, 2001.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. São Paulo: Saraiva. 2003.
PINTO, Victor Carvalho. Direito Urbanístico: Plano Diretor e Direito de Propriedade. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
RIZZARDO, Arnaldo. Promessa de compra e venda e parcelamento do solo urbano: lei n. 6.766/79 E 9.785/99. 10. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 6 ed. São Paulo: Malheiros, 2010.

Informações Sobre o Autor

Davi Valdetaro Gomes Cavalieri

Procurador Federal da Advocacia Geral da União em Brasília/DF, Bacharel em Direito pela Faculdade de Direi-to de Vitória (FDV) e Especialista em Direito Público


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Equipe Âmbito Jurídico

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