Fernando Garcia Algarte Filho – Graduado em Direito pela Universidade Norte do Paraná Pós-Graduado em Direito Público com ênfase em Direito Constitucional pela Universidade Potiguar Pós-Graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Gama Filho Analista Judiciário do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná e Chefe de Secretaria do Juizado Especial Cível Criminal e da Fazenda Pública de Apucarana Paraná.
Resumo: O presente trabalho visa traçar considerações acerca do término da personalidade jurídica em situações anormais, bem como as possibilidades jurídicas delineadas no ordenamento jurídico pátrio sobre o tema. Tem o escopo principal o de analisar os institutos da morte presumida no vertente material, em especial aquela espécie oriunda da justificação de óbito, delineada na Lei de Registros Públicos, e contextualizar o tema para com a recente tragédia ocorrida no Estado de Minas Gerais, mais precisamente na cidade de Brumadinho.
Palavras-chave: Subsunção. Morte. Presumida. Desastre. Justificação.
Abstract: This article has the objective to chart considerations about the end of juridic personality in anormal situations and the legal possibilities fixed in the national law about the issue. The main point is the analysis of the institutes of presumption´s death in material way, in special that one coming of death´s justification, writing in Public´s Registers Law and contextualize the issue with the recent tragedy happened in Minas Gerais state, exactly in Brumadinho´s city.
Keywords: Subsumption. Death. Presumed. Disaster. Justification.
Sumário: Introdução. 1. Do término da personalidade jurídica – a morte real e morte presumida; 1.1. Morte presumida com decretação de ausência; 1.2. Morte presumida sem decretação de ausência – presunção de óbito; 1.3. Morte presumida – certeza de óbito – Justificação – Lei nº 6015/73; 1.3.1. Natureza do provimento judicial; 1.3.2. A subsunção da morte presumida decorrente da justificação de óbito na tragédia de Brumadinho; 1.3.3. A influência histórica e fática para com instituto da justificação de óbito; Conclusão. Referência.
Introdução – Início da Personalidade Jurídica
O nascimento com vida de uma pessoa, não obstante o fato de trazer sentimentos prazerosos para os familiares, também ocasiona um efeito jurídico de singular importância para o novo individuo, o qual adquire personalidade jurídica, sendo, pois, titular de direitos e obrigações.
Conforme conceituação do doutrinador Walter Moraes (apud JUNIOR; NERY, 2015), “a personalidade é aptidão para ser pessoa, ou – o que é equivalente – aptidão para ser sujeito de direitos e de obrigações na ordem jurídica”.
A personalidade jurídica se resume, pois, na característica que torna uma pessoa detentora de direitos e obrigações, aptidão esta que a faz defender sua individualidade e autonomia perante outrem.
Respectiva independência torna-se ainda mais latente quando analisada a legislação civil juntamente com a Constituição Federal, a qual elenca a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos que alicerçam toda a sociedade e a ordem jurídica vigente.
A legislação brasileira, quanto à aquisição de personalidade jurídica, é adepta da teoria natalista, a qual possui como requisito o fato unitário de nascimento com vida. Tal entendimento se encontra devidamente preconizado no artigo 2º do Código Civil
“Art. 2º A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro. ”
Trata-se, pois, da personalidade, um atributo intrínseco e inerente à pessoa, se iniciando com o nascimento com vida e alcançando seu término com a morte.
Apesar de aparentar-se como um tema simplório, a morte de uma pessoa, no campo jurídico, detém sua particularidade, haja vista que nem sempre tal fato poderá ser comprovado na esfera real, ponto este central do presente artigo.
O término da personalidade jurídica de uma pessoa ocorre quando constatado o seu óbito, haja vista que com “a morte, termina a vontade do homem e, pois, a sua manifestabilidade”. (MIRANDA apud JUNIOR; NERY, 2015)
Importante conceituação sobre a morte advém do jurista Fábio Ulhoa Coelho:
“A morte é o fato jurídico que importa o término da pessoa natural (CC, art. 6.º). Ao morrerem, homens e mulheres deixam de ser pessoas e sujeitos de direito. Depois de pagas todas as dívidas pendentes, seus bens serão transmitidos aos sucessores, herdeiros ou legatários. E, embora alguns dos interesses extrapatrimoniais nutridos em vida ainda continuem sob tutela, como o direito ao nome ou à imagem, não lhes poderá ser imputada a titularidade de novos direitos ou obrigações. ” (COELHO, 2016)
Quando da constatação do término da vida em situações diuturnas, com o regular cumprimento do ciclo biológico e configuração da cessação da atividade cerebral atestada por profissional médico, conforme constante na Lei nº 9.434 de 1997, estaremos diante do instituto da morte real, a qual, segundo palavras de Cristiano Vieira Sobral Pinto (2017) “é a que consta a declaração de óbito, e pressupõe a análise do corpo sem vida. ”
Ocorre que, em situações extraordinárias, a constatação por um médico e até mesmo a verificação pessoal do término da vida de uma pessoa poderão ser de extrema dificuldade e até mesmo impossíveis de acontecer.
Tal cenário pode ser exemplificado quando da ocorrência de acidentes em que pessoas, mesmo comprovadamente sendo vítimas da tragédia, não tem o seu corpo examinado, seja pelas dificuldades de localização ou até mesmo pela inexistência de vestígios materiais face ao total exaurimento pelo fogo, água ou qualquer outro elemento.
Para tais situações, o ordenamento jurídico estabeleceu o instituto da morte presumida, a qual poderá ser declarada com a análise de indícios e meios de prova que atestem seguramente a ocorrência do fato.
A linha de pensamento ora narrada é ratificada pelo doutrinador supracitado, o qual diante da pertinência e relevância, cita-se neste momento:
“Nem sempre, porém, essa condição de fato se apresenta. Há pessoas que morrem em situações excepcionais, quando as formalidades e cautelas próprias à documentação do evento simplesmente não se podem adotar. Nesses casos, a ordem jurídica presume a morte da pessoa. A morte presumida é sempre declarada pelo juiz, após se convencer, pelas provas reunidas pelos interessados no processo judicial, que estão presentes os requisitos legalmente estabelecidos para considerar alguém morto, mesmo sem saber do paradeiro do cadáver. ” (COELHO, 2016. Não paginado.)
Por se tratar de fato com extrema importância e efetividade na esfera jurídica da pessoa, deverá esta somente ser proclamada após o exaurimento da situação fática apresentada, e conforme preceitos do jurista Nelson Nery Junior (2015), deve ser “cercado dos cuidados que lhe confiram credibilidade, para o bem da segurança jurídica de todos. ”
Nota-se que a constatação e reconhecimento judicial da morte, mesmo em casos de tragédias de grande publicidade pela mídia e convicção social, trata-se de medida com ampla pertinência e importância para os familiares da pessoa vitimada, haja vista que sem a certificação formal do término da personalidade jurídica, eventuais direitos sucessórios, garantias previdenciárias ou quaisquer outros atos atrelados ao óbito ficarão sobrestados e sem possibilidade de produzir efeitos.
O instituto da morte presumida vem previsto no ordenamento jurídico pátrio como uma “solução” para a configuração do término da personalidade jurídica de alguém que, por determinadas razões, não pode ter sua morte real constatada.
A referida constatação do óbito de natureza presumida tratar-se-ia de um gênero, sendo existente objetivamente três espécies, as quais serão a seguir explicitadas e pontuadas.
Nesta primeira espécie de reconhecimento da morte presumida, parte-se do pressuposto de que a pessoa para a qual seja declarada o óbito tenha, simples e puramente, desaparecido.
O referido instituto tem previsão no artigo 6º, bem como no artigo 22 e seguintes do Código Civil, sendo que em tal situação a pessoa desaparece de seu domicílio, sem qualquer informação de seu eventual destino e deixa patrimônio que fica sem administração, seja por ausência de mandatário ou por inexistência de vontade desse em continuar para com o encargo.
Conforme Sílvio de Salvo Venosa (2003, pag. 191), a declaração de ausência neste caso tem como escopo principal “a proteção do patrimônio do desaparecido, levando à sucessão provisória e à sucessão definitiva. ”
Não obstante o fato de que a declaração da morte por ausência irá solver situação na esfera afetiva dos envolvidos, haja vista que irá reconhecer o término da personalidade jurídica daquele cujo paradeiro não mais se conhece, a situação jurídica envolvendo os bens patrimoniais será devida e gradativamente abarcada, sendo este o ponto central do instituto.
A espécie de morte presumida em comento tem previsão legal no artigo 7º do Código Civil, e é configurada quando a probabilidade do óbito for extremamente elevada.
“Art. 7o Pode ser declarada a morte presumida, sem decretação de ausência:
I – se for extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida;
II – se alguém, desaparecido em campanha ou feito prisioneiro, não for encontrado até dois anos após o término da guerra.
Parágrafo único. A declaração da morte presumida, nesses casos, somente poderá ser requerida depois de esgotadas as buscas e averiguações, devendo a sentença fixar a data provável do falecimento. ”
Conforme análise literal do dispositivo supracitado, na primeira hipótese caracterizadora dessa espécie de morte presumida a pessoa para a qual se almeja reconhecer o óbito deve experimentar perigo de vida e ser extremamente provável a morte do mesmo.
No inciso II do mesmo artigo verifica-se a possibilidade da declaração da morte presumida quando aquele que estivera participando de campanha ou feito prisioneiro, não for localizado dentro de lapso temporal de 2 anos após o término da guerra.
Mantendo o enfoque na primeira situação, a análise nos leva a concluir que, apesar do óbito ser fato dotado de grande probabilidade, o mesmo não possui o atributo de absoluta certeza, ponto este o principal diferenciador da espécie prevista no artigo 88 da Lei nº 6015/73.[1]
Importante parecer doutrinário de Vitor Frederico Kumpel (2016) é apresentado em tal sentido:
“Nesse caso (ausência de cadáver), estar-se-á diante de morte presumida com ausência (arts. 22 a 39 do Código Civil) ou morte presumida sem ausência com elevada probabilidade da morte (art. 7º do Código Civil) ou morte presumida sem ausência com absoluta certeza da morte (art. 88 da Lei dos Registros Públicos – justificação de óbito). Deve-se observar um pouco mais atentamente essas situações, até para análise do desfecho deste trabalho na última coluna de série. ”
Tal situação de distinção ainda pode ser obtida quando da análise do parágrafo único do artigo 7º do Código Civil, o qual exige também como requisito ensejador da morte presumida o esgotamento das buscas e averiguações, o qual, sendo interpretado literalmente nos leva a concluir que a morte não é certa, haja vista que procedimentos de ajuda e resgate foram necessários no fato em questão e só ocorreram, pois, face à possibilidade da existência de vida.
Outro ponto bastante interessante que distingue os referidos institutos é a análise do evento fatídico que estará exposta a pessoa para a qual se almeja declarar o óbito, sendo nesta situação o perigo de vida, e naquela a ocorrência de uma catástrofe.
O perigo de vida pressupõe um estado de agonia e gravidade preexistente à situação de provável morte da pessoa que se encontrava em tal situação, já a catástrofe implica circunstância totalmente inversa, ou seja, de total tranquilidade e calmaria, a qual é drasticamente violada por algum fato que se desprende da vontade humana.
Assim sendo, não obstante a proximidade dos institutos da morte presumida previstos no artigo 7º do Código civil para com a justificação de óbito esculpida no artigo 88 da Lei de Registros Públicos, estes são conceitos totalmente distintos conforme pode-se concluir através da análise dos itens diferenciadores totalmente pertinentes e relevantes para a classificação e subsunção à situação fática ocorrida.
Insta salientar ainda que nesta espécie não ocorrerá a decretação da ausência, situação esta que somente acontecerá naqueles casos previstos no artigo 6º, 22 e seguintes do Código Civil, hipótese abordada no item anterior ao presente.
Em análise incipiente de tal espécie, podemos nos deparar com uma contradição na própria terminologia e definição do instituto, haja vista que para a configuração dessa morte presumida a certeza da ocorrência do óbito é requisito indispensável, o que levaria, em atividade silogística, a concluir então que o término da personalidade jurídica seria certo e não, pois, presumido.
A diferenciação desta espécie “sui generis” de morte presumida para com a morte real se funda no ponto de que nessa a constatação da cessação da atividade cerebral devidamente atestada por profissional médico é efetivamente realizada, com a existência de um corpo e consequente expedição de atestado médico, naquela tal diligência se mostra impossível por particularidades ocorridas na situação fática.
Assim sendo, como o requisito de atestar a morte previsto na lei nº 9.434/97 não se configura, a situação ora em comento, apesar de se substancializar o óbito, trata de espécie de morte presumida.
O posicionamento ora esboçado possui guarida e apoio em doutrina do ilustre jurista Vitor Frederico Kumpel (2016), a qual segue adiante citado face à relevância e pertinência jurídica:
“No caso de justificação de óbito, de acordo com o art. 88 da LRP, muito embora não haja cadáver, há certeza “absoluta” da morte. Pense-se no caso de catástrofes aéreas onde não há sobreviventes, mas o reconhecimento de corpos não é possível. Basta a prova de que a pessoa está no evento para garantir a lavratura do assento de óbito no livro “C”, ocasião em que a pessoa será reconhecida como morta, com transmissão imediata de bens a herdeiros legítimos ou testamentários. ” (Art. 1.784/CCB).
Conforme mencionado na citação supra, referido instituto da morte presumida possui respectiva previsão legal na Lei de Registros Públicos, de nº 6.015/73, mais precisamente no artigo 88:
“Art. 88. Poderão os Juízes togados admitir justificação para o assento de óbito de pessoas desaparecidas em naufrágio, inundação, incêndio, terremoto ou qualquer outra catástrofe, quando estiver provada a sua presença no local do desastre e não for possível encontrar-se o cadáver para exame.
Parágrafo único. Será também admitida a justificação no caso de desaparecimento em campanha, provados a impossibilidade de ter sido feito o registro nos termos do artigo 85 e os fatos que convençam da ocorrência do óbito. ”
Em análise do caput do artigo que define uma das hipóteses da referida espécie, pode-se concluir que um dos requisitos necessários para a utilização do procedimento de justificação se funda na situação fática ocorrida, sendo ela de natureza extraordinariamente grave e atípica, além da comprovada presença da pessoa no local do evento danoso e a impossibilidade de se localizar o corpo.
O preceito legal ora em comento também prevê a possibilidade do reconhecimento da morte presumida em casos de pessoas participantes de campanha, desde que provada a impossibilidade de registro conforme preconizado no artigo 85 do mesmo diploma, o qual elenca que os registros deverão ser feitos em livro próprio a serem manuseados pelos responsáveis da corporação militar correspondente.
Seguindo o enfoque delineado no caput do mesmo, percebe-se de forma translúcida que em virtude do acontecimento da natureza ser dotado de tamanha gravidade, a morte daqueles que comprovadamente estiveram presentes no local é dotada de certeza e indubitabilidade.
Este é, conforme anteriormente delineado, o principal ponto de diferenciação da morte presumida prevista no artigo 7º do Código Civil, haja vista que prescinde do esgotamento das buscas e averiguações, situação a qual nos leva a concluir que a morte é provável, mas não é certa.
Novamente apresenta-se a ideia do jurista Vitor Frederico Kumpel (2016) que ratifica o entendimento:
“Percebe-se que a situação que atrai a incidência do art. 88 da Lei 6.015/73 é consideravelmente mais gravosa que aquelas descritas nos incisos do art. 7º do Código Civil. Há quem afirme, contudo, que ambas as “mortes” são iguais, isto é, que as hipóteses do art. 7º do CC/02 e do art. 88 da LRP seriam exatamente as mesmas. Respeitada a opinião contrária, repita-se aqui com rigor: são situações distintas. Morte presumida é morte altamente provável; morte do procedimento de justificação é morte dotada de certeza absoluta. Essa conclusão é facilmente obtida pela leitura do art. 7º, no seu parágrafo único/CC. A própria dicção do dispositivo ora mencionado diz claramente “depois de esgotadas as buscas e averiguações”, de sorte que se são necessárias buscas e averiguações, é porque não há certeza absoluta da morte, não sendo possível a lavratura de um assento de óbito, o que implicaria em imediato perdimento de bens por parte do desaparecido. ”
Quanto à configuração do evento trágico que permite a aplicação do instituto da justificação de óbito e caracteriza a morte presumida, acertadamente fez previsão o legislador de um rol exemplificativo, quando da análise do termo “qualquer outra catástrofe”, permitindo-se assim a aplicação do dispositivo em eventos com elevada gravidade.
Importante ainda se destacar que, em conjunto com a ocorrência do evento catastrófico, não obstante a impossibilidade de encontrar o corpo para a realização de exames, se faz necessária a devida comprovação de presença da pessoa cujo óbito se queira declarar no local, sendo requisito imprescindível e dotado de absoluta necessidade de certeza.
Conforme anteriormente explanado, a espécie de morte abordada no presente tópico se refere ao óbito presumido, se diferenciando do gênero real pois a constatação da cessação da atividade cerebral, com o atesto por profissional médico, trata-se de diligência impossível por razões circunstanciais, situação fática esta que se trata de requisito positivado na parte final do caput do artigo 88 da Lei nº 6015/73.
O instituto da morte presumida oriundo da justificação de óbito é espécie de óbito cuja aplicação se faz necessária e imprescindível em situações calamitosas praticamente insolúveis no campo fático, sendo de salutar importância e até mesmo se tornando medida essencial em tais casos.
Ponto que merece destaque na análise do presente instituto é constatar a natureza jurídica do provimento judicial que será concedido, haja vista que os efeitos a serem produzidos serão de extrema importância para os interessados.
O procedimento de justificação de óbito possuía previsão legal no artigo 861 e seguintes do Código de Processo Civil de 1973, tendo sua positivação alterada para o artigo 381, § 5º da nova legislação de 2015.
Quando da análise do instituto na legislação revogada, mais precisamente do artigo 866, constatava-se que o procedimento apresentado para a aplicação da jurisdição seria de natureza não exauriente no contexto material, limitando-se única e exclusivamente na verificação do preenchimento dos requisitos e formalidades legais.
“Art. 866. A justificação será afinal julgada por sentença e os autos serão entregues ao requerente independentemente de traslado, decorridas 48 (quarenta e oito) horas da decisão. Parágrafo único. O juiz não se pronunciará sobre o mérito da prova, limitando-se a verificar se foram observadas as formalidades legais. ”
O preceito legal que estabelece a justificação judicial no ordenamento pátrio atual segue a mesma sistemática do texto revogado, conforme a seguir se expõe:
“Artigo 381(…) § 5o Aplica-se o disposto nesta Seção àquele que pretender justificar a existência de algum fato ou relação jurídica para simples documento e sem caráter contencioso, que exporá, em petição circunstanciada, a sua intenção.
Artigo 382(…) § 2o O juiz não se pronunciará sobre a ocorrência ou a inocorrência do fato, nem sobre as respectivas consequências jurídicas. ”
Pode-se concluir, com uma análise gramatical dos dispositivos que o provimento judicial não se ocupará de analisar o mérito da questão fática apresentada, nem irá constituir um estado jurídico ou até mesmo modificará uma relação, mas tão somente irá declarar uma situação para que esta sirva, eventual e futuramente, para o exercício de outros direitos.
Assim sendo, a natureza do provimento judicial é puramente declaratória, tendo, pois, nos ensinamentos de Elpídio Donizetti (2017), “por objeto simplesmente a declaração da existência ou inexistência de relação jurídica”.
A consequência lógica e totalmente pertinente de constatar a natureza declaratória do provimento em casos de justificação de óbito é nos assegurarmos de que os efeitos do óbito que será declarado pelo julgador irão retroagir até a data auferida por este.
Nota-se que, não obstante a previsão legal da justificação judicial do óbito, sua abrangência é extremamente breve, concisa e consequentemente, lacônica, haja vista que não define em qual momento a morte do interessado será declarada.
Para tal questão, importante se faz utilizar da analogia[2] para com a hipótese da morte presumida delineada no artigo 7º do Código Civil, mais precisamente em seu parágrafo único, o qual define que a sentença deverá fixar a data provável do falecimento.[3]
Assim sendo, declarada a morte da pessoa que fora vitimada em tragédia ou catástrofe, sem a devida localização, através do procedimento de justificação de óbito, estarão os interessados aptos a proceder as consequências legais e jurídicas que tal fato repercute, seja em esfera de sucessão, no campo previdenciário ou outra área de interesse, resolvendo-se, pois, um ponto de extremo sofrimento pessoal e sensibilidade jurídica.
Conforme proposta inicialmente delineada, o presente artigo visa subsumir o instituto da morte presumida para com a ocorrência de óbitos em catástrofes, incluindo, pois, situações fáticas reais naquelas delineadas na letra abstrata da lei.
Em data anterior à elaboração do presente trabalho, mais precisamente no dia 25 de janeiro de 2019, uma barragem de rejeitos localizada no ribeirão Ferro-Carvão, na região do Córrego do Feijão, no município de Brumadinho, estado de Minas Gerais, sucumbiu ao seu estado altamente deteriorado e drasticamente se desfez, rompimento este que ocasionou um desastre de grandes proporções.
A referida catástrofe é considerada como um desastre humanitário e um dos maiores acidentes com rejeitos de mineração no Brasil, ocasionando até o presente momento o fatídico número de 190 mortos e 115 desaparecidos, sendo classificado pelo desembargador Antônio Souza Prudente (apud FERRARI, 2019), da Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em Minas Gerais, como “o resultado de um conjunto de ações negligentes por parte do setor privado e do Poder Público”.[4]
Não obstante o sentimento de total reprovabilidade social que a tragédia alcançou em âmbito mundial, a situação ocasionada pelo rompimento da barragem acarretou certamente problemas jurídicos em dimensões diretamente proporcionais ao evento pois, além de deixar milhares de pessoas sem condições de desenvolver uma vida digna, lhes ceifaram a vida de familiares e amigos dentre os quais, muitos, ainda permanecem desaparecidos.
A não localização dos corpos vitimados ocasiona, na esfera jurídica, a total impossibilidade de produção dos efeitos de tal óbito na redoma de vida dos familiares, os quais não podem exercer os direitos sucessórios oriundos do término da personalidade daqueles e acabam por permanecer em estado lamacento de incerteza e irresolução jurídica.
Nesta situação de total desamparo surge o instituto da morte presumida, objeto central do presente trabalho, em especial a espécie definida na Lei de Registros Públicos, instituto o qual certamente auxiliará os familiares a realizarem os procedimentos judiciais pertinentes e efetivamente exercerem os direitos que lhes são oriundos.
Interessante se faz realizar uma interpretação histórica e até mesmo teleológica da Lei nº 6015/73, levantando o contexto existente em tal período que ocasionou a criação da norma que positiva o instituto da justificação de óbito, objeto central do presente estudo.
Quando da elaboração da Lei nº 6.015/73, originada no Projeto de Lei nº2267/1970, de autoria do Deputado Federal Accioly Filho, no tocante ao contexto histórico existente em referido período, constata-se que a sociedade brasileira experimentara algumas tragédias de grandes magnitudes jurídicas, as quais ocasionaram inúmeros casos de óbito cuja constatação física se tornara impossível.
No ano de 1961, mais precisamente no dia 17 de dezembro, um circo de nome “Gran Circo Norte-Americano, então instalado na cidade de Niterói, estado do Rio de Janeiro, foi destruído por um incêndio proposital, fatalidade na qual morreram carbonizadas 503 pessoas.
Em data posterior, no mês de marco de 1967, intensas chuvas atingiram a cidade de Caraguatatuba, estado de São Paulo, as quais ocasionaram enchente e deslizamentos de terra que vitimaram 436 pessoas.
Seguindo a ordem cronológica, no ano de 1972, o edifício Andraus, localizado na cidade de São Paulo, fora palco de um incêndio acidental, causado por prováveis problemas elétricos, evento fatídico este que ceifou a vida de 16 pessoas.
A elaboração e criação da Lei de Registros Públicos, datada do ano de 1973, certamente fora influenciada pelas tragédias ocorridas na sociedade brasileira, as quais possivelmente embasaram a criação do instituto da justificação de óbito previsto em seu artigo 88, sendo este um mecanismo para acalentar as necessidades dos familiares de pessoas cuja morte, não obstante a inexistência material de cadáver, era dotada de absoluta e indubitável certeza.
Importante destacar que a sensibilidade do legislador em referido momento histórico deve ser ponto que merece destaque e aclamações, visto que o instituto “sui generis” da morte presumida através da justificação de óbito fora alicerçado pelo clamor da população, que necessitava de um amparo do Estado, seja de forma material ou mesmo institucional, como ocorrido.
Espera-se que a tragédia ocorrida na cidade de Brumadinho seja evento trágico capaz de tocar os legisladores, assim como ocorrera no passado, para que novos institutos jurídicos sejam criados ou aprimorados, em especial com o escopo de aplicar medidas punitivas aos causadores, se caso, ou até mesmo de amenizar o sofrimento e a consternação experimentadas pelos familiares de pessoas vitimadas em tais fatalidades, tudo alicerçado na dignidade da pessoa humana, fundamento maior da sociedade brasileira.
Conclusão
Conforme amplamente abordado no presente artigo, o instituto da morte presumida visa declarar o término da personalidade jurídica em casos nos quais a morte real não pode ser auferida, especialmente em virtude da impossibilidade de análise do cadáver.
A inteligência do legislador ao prever tais hipóteses no ordenamento jurídico pátrio é ato a ser destacado, haja vista que tenta trazer uma solução em situações nas quais o sofrimento, aflição e ansiedade dos envolvidos atinge níveis tão elevados que demasiadas burocracias e formalidades legais e processuais tão somente fariam por procrastinar a consternação que a morte, por si só, já acarreta aos familiares e amigos das pessoas envolvidas.
O instituto da morte presumida, em especial aquela reconhecida através da justificação de óbito delineado na Lei de Registros Públicos, certamente será preceito legal altamente efetivo e eficaz a ser aplicado nas situações das pessoas vítimas de catástrofes e não encontradas, contextualmente utilizado na tragédia ocorrida na cidade de Brumadinho, trazendo, pois, segurança e conforto jurídico a todos os familiares daquele cuja morte seja necessária declarar.
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[1] Art. 88. Poderão os Juízes togados admitir justificação para o assento de óbito de pessoas desaparecidas em naufrágio, inundação, incêndio, terremoto ou qualquer outra catástrofe, quando estiver provada a sua presença no local do desastre e não for possível encontrar-se o cadáver para exame. Parágrafo único. Será também admitida a justificação no caso de desaparecimento em campanha, provados a impossibilidade de ter sido feito o registro nos termos do artigo 85 e os fatos que convençam da ocorrência do óbito.
[2] Artigo 4o (LICC). Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
[3] Artigo 7º. (…) Parágrafo único. A declaração da morte presumida, nesses casos, somente poderá ser requerida depois de esgotadas as buscas e averiguações, devendo a sentença fixar a data provável do falecimento.
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