Direito Administrativo

A Supremacia Mitigada do Interesse Público Sobre o Privado

Luiza Leite Cabral Loureiro – Graduada pela Faculdade de Direito de Campos – UNIFLU. Pós-graduada lato sensu pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Advogada.

 

Resumo: Torna-se gradualmente predominante a aplicação do Direito Administrativo como ciência não somente destinada a regular o Poder Executivo perseguindo os interesses do Estado, mas que busca a gestão dos interesses da sociedade na sua mais variada dimensão. Para tanto, ocorre em situações específicas a ponderação de valores, para alcançar a efetiva justiça. Neste novo contexto fático-jurídico, procede-se à releitura dos princípios pertinentes. A essência do trabalho é abordar esse fenômeno, que culmina na gradual conversão de um Estado Administrativista em um efetivo e equitativo Estado Democrático de Direito.

Palavras-Chaves: Constituição, Estado, Supremacia, Interesse público, Ponderação.

 

Abstract: The application of Administrative Law as a science is gradually becoming predominant, not only aimed at regulating the Executive Power, pursuing the interests of the State, but which seeks to manage the interests of society in its most varied dimension. Therefore, in specific situations the weighting of values ​​occurs to achieve effective justice. In this new phatic-legal context, the relevant principles are reread. The essence of the paper is to address this phenomenon, which culminates in the gradual conversion of an Administrativeist State into an effective and equitable Democratic State of Law.
Keywords: Constitution, State, Supremacy, Public Interest, Weighting.

 

Sumário: Introdução. 1- Fundamentos Relevantes do Direito Administrativo. 2- Conceito de Interesse Público. 2.1- Interesse Público Primário e Secundário. 3- Indisponibilidade do Interesse Público. 4- Debate crítico sobre a supremacia. 4.1- Escola Paulista Tradicional (Celso Antonio Bandeira de Mello) X Escola Carioca de Vanguarda (Diogo de Figueiredo Moreira Neto). 4.2- A ponderação como critério de satisfação do interesse público. 5- Reconstrução da supremacia do interesse público. Conclusão. Referências.

 

INTRODUÇÃO

O presente trabalho oferta a discussão de controverso tema pertinente ao Direito Administrativo Constitucional contemporâneo. A pesquisa versa sobre a identificação de uma limitação ao princípio da prevalência do interesse público sobre o particular, caso em que poderá, por vezes, ocorrer a restrição de um direito fundamental individual.

Parte da doutrina concebe o interesse público de forma absoluta, considerando que sempre preponderará sobre o privado, sem necessidade de identificar se ocorre sua verificação no caso concreto. Em contraposição, pretende-se, neste estudo, provar hipóteses em revés.

Demonstram-se aqui os aspectos da supremacia do interesse estatal sobre todo o ordenamento jurídico e na hodierna mitigação desse dever, com a eventual superelevação do direito do particular em detrimento da vontade estatal. Para tanto, procede-se à ponderação, ante o princípio da razoabilidade, verificando que a relativização da discricionariedade estatal advém do novo modelo constituicional, voltado à mais intensa proteção da dignidade humana.

Diferentemente do modelo estatal pretérito, a ordem jurídica contemporânea não mais superestima o Estado como mantenedor de seus interesses exclusivos, mas como garantidor de justiça e bem estar social, para o que prima-se, quando necessário, por privilegiar interesse particular mais relevante, salvo se de encontro à sua função social.

Será explorada sua incidência na atividade legislativa constitucional e infra, bem como comprovar a existência de hipóteses em que se faz imperiosa uma releitura constitucional mitigada da supremacia do interesse público coletivo, sendo forçosa a predominância de um interesse que embora particular, traduza-se como o verdadeiro interesse público.

Caminha-se, portanto, à justificação da necessidade de se aplicar a algumas situações concretas levadas aos tribunais brasileiros a relativização do conceito de interesse público, pois, no Estado Democrático de Direito, nenhum valor ou princípio deverá ser absoluto.

 

1 FUNDAMENTOS RELEVANTES DO DIREITO ADMINISTRATIVO

O princípio da supremacia do interesse público deve ser analisado sob a ótica dos fundamentos do Direito Administrativo, cabendo a sua releitura com a ascensão da proteção aos direitos fundamentais e do Estado Gerencial.

A Administração Pública age pautada no interesse público, levando à conclusão pouco racionalizada da sua supremacia. Pelos princípios da finalidade e da efetividade, é a pedra de torque na gestão do patrimônio da coletividade a indisponibilidade desse interesse. Isso lhe confere poderes especiais de tornar efetivos os interesses públicos, devendo também obedecer a limites especiais e formas legais de controle, como as licitações e os Tribunais de Contas.

No entanto, não cabe apenas à Administração perfazer e realizar o interesse público, face a desmonopolização do interesse público, pois a quantidade de interesses dessa natureza é demasiada, admitindo-se à Administração delegar o poder de concretizá-los a particulares.

 

2 CONCEITO DE INTERESSE PÚBLICO

Por ser muito amplo constitui matéria de extrema dificuldade entre os doutrinadores. Ainda não se logrou definir o interesse público, caracterizando-se em conceito indeterminado. Os significados variam, pois há aqueles que entendem que é um interesse contraposto ao individual, e outros defendem que é a somatória de interesses individuais, passando pela soma de bens e serviços, além do conjunto de necessidades humanas indispensáveis ao particular.

Diz Celso Antônio Bandeira de Mello[1] que, ao se pensar em interesse público, pensa-se, habitualmente, em uma categoria contraposta à de interesse privado, isto é, ao interesse pessoal de cada um. Constitui-se no interesse do todo, ou seja, do próprio conjunto social. Não se confunde com a somatória dos interesses individuais, peculiares de cada qual.

As normas de direito público, embora protejam reflexamente o interesse individual, somente começaram a se desenvolver quando, depois de superados o primado do Direito Civil e o individualismo nos vários setores da ciência, inclusive a do Direito, substituiu-se a ideia do homem com fim único do direito (própria do individualismo) pelo princípio que hoje serve de fundamento para todo o direito público e que vincula a Administração em todas as suas decisões, segundo o qual os interesses públicos tem supremacia sobre os individuais.

Afinal, já em fins do século XIX, começaram a surgir reações contra o individualismo jurídico decorrentes de profundas transformações econômicas, sociais e políticas, provocadas pelos efeitos do individualismo exacerbado. O Direito deixou de ser instrumento de garantias individuais apenas e passou a ser meio para consecução de justiça social e bem-estar coletivo.

De fato, o interesse do conjunto social é a dimensão pública dos interesses individuais, nisto se abrigando também o depósito intertemporal desses mesmos interesses, tendo em vista a sucessividade das gerações de seus nacionais. Assim, deve ser conceituado como resultante do conjunto de interesses individuais dos membros da sociedade pelo simples fato de o serem.

Segundo Gustavo Binenbojm[2], deve o administrador, à luz das circunstâncias do caso concreto e dos valores constitucionais concorrentes, alcançar solução ótima que realize ao máximo os interesses públicos em jogo. Como resultado dessa ponderação, tem-se o melhor interesse público, ou seja, o fim legítimo que orienta a atuação da Administração Pública. Somente pode ser obtido por procedimento racional que envolva a disciplina constitucional de interesses individuais e coletivos específicos, bem como um juízo de ponderação, embasado em proporcionalidade, que permita a realização de todos eles na maior extensão possível.

Enquanto o particular busca a satisfação do seu interesse individual, existe também uma coletividade de pessoas que busca a satisfação de seus interesses. E quem tem o dever de satisfazê-los é a Administração Pública, sob pena de desvio da finalidade pública.

Por fim, elucida-se a ideia de interesse público com as lições de Maria Sylvia Zanella Di Pietro[3] ao assinalar que, pelo primado do interesse público, inúmeras transformações ocorreram: houve ampliação de atividades assumidas pelo Estado para atender a necessidades coletivas, com a consequente ampliação do próprio conceito de serviço público.

O mesmo ocorreu com o poder de polícia do Estado, que deixou de impor obrigações apenas negativas, visando resguardar a ordem pública, e passou a impor obrigações positivas, além de ampliar o seu campo de atuação para abranger, além da ordem pública, também a sócio-econômica. Surgem no plano constitucional novos preceitos reveladores da crescente interferência do Estado na vida econômica e no direito de propriedade e cresce a preocupação com os interesses difusos, como o meio ambiente.

Portanto, o princípio do interesse público está na base de todas as funções do Estado, constituindo fundamento essencial de todos os ramos de direito público. O Estado tem o dever de perseguir a realização do interesse público, pois todo ato administrativo deve ter finalidade, expondo que interesse pretende-se atingir e pautando-o pela motivação e pela legalidade.

 

2.1 INTERESSE PÚBLICO PRIMÁRIO E SECUNDÁRIO

Tradicionalmente, a supremacia do interesse público, ao lado da indisponibilidade, seriam as pedras de torque do Direito Administrativo, que justificam as prerrogativas estatais e a sujeição dos particulares, por isso o regime jurídico administrativo é apoiado no binômio prerrogativa-sujeição. Exemplo claro ocorre quando a Administração Pública exerce poder de polícia e intervenção na propriedade privada, via desapropriação, sob sujeição do particular.

O princípio da supremacia traz consigo a ideia de exigibilidade do ato administrativo, traduzida na previsão legal de o Poder Público impor sanções ou providências indiretas ao administrado, que terá que acatá-las.         Não se encontra expresso na Constituição da República de 1988, mas decorre do Estado Democrático de Direito, além de previsto no artigo 2º, caput, da Lei 9.784/1999. Todavia, tem sido criticado por alguns autores modernos. Primeiramente, todos concordam que tal princípio não é absoluto – até mesmo a doutrina tradicional. E vão além ensinando a distinção entre os dois interesses públicos possíveis: primário e secundário. Tal distinção é originária e transportada do Direito Italiano.

O interesse público primário está atrelado às finalidades do Estado, vinculado às quais estão os objetivos do Estado e os interesses que deve alcançar em suas atividades. Está ligado à atividade-fim do Estado. Diogo de Figueiredo Neto[4] fala em “Administração Extroversa”, pois esse interesse está ligado ao Estado em sua relação com o cidadão, em atendimento e promoção dos interesses da coletividade. Está ligado a direitos fundamentais, como saúde, educação, desporto e moradia. Tais interesses remetem à adoção de políticas públicas.

O interesse público secundário está ligado à “Administração Introversa”, às atividades instrumentais ou internas do Estado. São os meios necessários para que o Estado possa promover os interesses primários. Nesse tipo de atividade-meio do Estado, o que se tem, a rigor, são o orçamento estatal, os agentes públicos que exercerão atividades e o patrimônio estatal, para que com este arsenal o Estado possa atender aos interesses públicos primários.

O princípio da supremacia abrange somente o interesse público primário. Tanto é assim que o alargamento de prazo da ação rescisória para a Fazenda Pública não se justifica porque o interesse supremo é o primário. Esse argumento é utilizado pelo Ministério Público, pois entende que só deve intervir como custos legis quando houver interesse público primário.

Na lição de Celso Antonio Bandeira de Mello[5], o interesse secundário do Estado não se insere na categoria dos interesses públicos propriamente ditos. Não existe coincidência necessária entre interesse público e interesse estatal.

A razão central é que o interesse público estaria previsto na própria Constituição da República e que não existe hierarquia in abstrato entre normas constitucionais originárias. O que há é uma relação virtual de ponderação – com a supremacia in concreto do interesse público – entre dois interesses previstos em normas iguais. Assim, ainda que a Constituição possa realizar ponderações abstratas (trazendo parâmetros preferenciais), nunca serão vedadas diante de situações reais ponderações in concreto que modifiquem a primazia positivada.

A rigor, não existe necessariamente um conflito entre interesse público (ou a dimensão pública dos interesses individuais) e direitos fundamentais, porque muito comumente o interesse do Direito Público passa pela efetivação dos direitos fundamentais, como ocorre, por exemplo, na prestação de serviços de saúde satisfatórios ao indivíduo.

Contudo, no exemplo da desapropriação, o Estado retira a propriedade privada de um particular havendo nesse momento uma prevalência do interesse público sobre o privado. Mas a desapropriação somente será válida se vier para atender ao interesse público da coletividade, efetivando direitos fundamentais, como quando transforma o imóvel do particular, que foi desapropriado, em uma escola pública ou um posto de saúde.

É vedado que o particular expropriado discuta a tese levantada na contestação da ação de desapropriação, visto que o conteúdo da contestação é vinculado, na forma dos artigos 9º e 20 do Decreto-Lei nº. 3.365/41, daí a ampla defesa na ação de desapropriação poder ser postergada, podendo ser discutido em MS se o meio é adequado ou não. O juiz pode fiscalizar o desvio de finalidade, pois criado para controlar o ato discricionário. O juiz não entrará no mérito, visto que os elementos do ato administrativo discricionários são o motivo e o objeto, já que a finalidade é vinculada. Assim, pode ser analisada a finalidade pelo Poder Judiciário.

O interesse público prepondera, em regra, porém há exceções, que devem ser sopesadas na casuística. Se o interesse privado está de um lado, e o público de outro, havendo dúvida sobre qual deve ser privilegiado, o método é o da ponderação de interesses. Mesmo havendo a preponderância (ponderação legal prévia) do interesse público – uma orientação normal –, na casuística, a balança da ponderação poderá pender em favor do particular.

Imagine que o Município do Rio de Janeiro seja proprietário de terrenos invadidos há anos por população de baixa renda e pretenda reavê-los sem que tenha determinado o remanejamento destes cidadãos. Segundo a doutrina, o Poder Público quando atua com poder de polícia possui autoexecutoriedade, e pode fazer valer os atos administrativos com sua própria força. Desta feita, o Estado não teria, em regra, interesse em propor ação judicial de reintegração de posse. Na teoria, o particular não poderia permanecer no local, porque o Município estaria atuando segundo a lei. No entanto, a Lei Orgânica do Rio de Janeiro exige que encontre outro lugar para as pessoas morarem, respaldada no interesse público primário.

A simples possibilidade de se questionar judicialmente os atos de tributação, por exemplo, é indício da mitigação da supremacia do interesse público, pois coloca-se o interesse privado de pagar menos tributos (sem subverter a lei) em contraponto com o interesse público da arrecadação. Crendo o Judiciário que assiste razão ao interesse privado, é óbvio que este triunfará na lide, não havendo impeditivo, à conta da supremacia, que tolha direito individual.

O regramento que inibe a oposição do particular, em face da Administração Pública, da exceção de contrato não cumprido encontra-se afeto aos princípios da supremacia do interesse público e da continuidade do serviço público. São exemplos dessa regra as causas de rescisão dos contratos administrativos, previstas no art. 78, XIV e XV, da Lei 8.666/93.

Diogo de Figueiredo Neto[6] defende que a Administração não tem a disponibilidade de decidir se vai ou não efetivar o interesse público primário, no entanto, há uma margem de discricionariedade quanto aos meios de concretizá-lo.

 

3 INDISPONIBILIDADE DO INTERESSE PÚBLICO

A Administração deve realizar suas condutas sempre velando pelos interesses da sociedade, mas nunca dispondo deles, uma vez que o administrador não goza de livre disposição dos bens que administra, pois o titular desses bens é o povo. Isso significa que a Administração Pública não tem competência para desfazer-se da coisa pública, bem como não pode desvencilhar-se da sua atribuição de guarda e conservação do bem. A disponibilidade dos interesses públicos deve ser delegada pelo legislador.

Há dois importantes institutos que concretizam o dever de indisponibilidade do interesse público pela Administração: a licitação e o concurso público. No primeiro caso, a Administração não pode escolher, sem nenhum critério objetivo definido em lei, com quem celebrará o contrato. A lei estabelece um processo administrativo que deve ser rigorosamente seguido a fim de que se possa escolher o interessado que apresente a proposta mais vantajosa. No que tange ao concurso público, se há uma vaga na estrutura administrativa, a escolha de quem será nomeado não pode ser aleatória, dando-se a mesma oportunidade a todos que preenchem os requisitos legais de capacidade física e intelectual para a função.

Leciona Diógenes Gasparini[7] que, segundo a indisponibilidade do interesse público, não se acham os bens, direitos, interesses e serviços públicos à livre disposição dos órgãos públicos, a quem apenas cabe curá-los, ou do agente público, mero gestor da coisa pública. Aqueles e este não são seus donos, cabendo-lhes tão-só o dever de guardá-los e aprimorá-los para a finalidade a que estão vinculados. O detentor dessa disponibilidade é o Estado. Por essa razão, há necessidade de lei para alienar bens, para outorgar concessão de serviço público, para transigir, para renunciar, para confessar, para revelar a prescrição e para tantas outras atividades a cargos dos órgãos e agentes da Administração Pública.

Hely Lopes Meirelles[8] assevera que a Administração Pública não pode dispor desse interesse geral num renunciar a poderes que a lei lhe deu para tal tutela, mesmo porque ela não é titular do interesse público, cujo titular é o Estado, que, por isso, mediante lei poderá autorizar a disponibilidade ou a renúncia.

Na concepção de José dos Santos Carvalho Filho[9], bens e interesses públicos não pertencem à Administração nem a seus agentes. Cabe-lhes apenas geri-los, conservá-los e por eles velar em prol da coletividade, a verdadeira titular dos direitos e interesses públicos. A Administração não tem a livre disposição de bens e interesses públicos, porque atua em nome de terceiros. Por essa razão é que os bens públicos só podem ser alienados na forma em que a lei dispuser. Da mesma forma, os contratos administrativos reclamam, como regra, que se realize licitação para atingir o modo mais vantajoso para a Administração Pública.

Todos os cuidados exigidos para os bens e interesses públicos trazem benefícios para a própria coletividade (Lei nº. 9.784/99, art. 2º, parágrafo único, inciso II). O interesse público é indisponível, um princípio integrante do regime jurídico administrativo. No entanto, embora não seja a alternativa primeira, nem mesmo a regra, pode ser que, em dada realidade, abrir mão de uma vantagem seja a única saída para a real proteção do interesse público primário.

O que se admite discutir, portanto, é o que representa proteger o interesse público primário em cada situação. Se o bem estar geral for atendido com a perseguição integral de todas vantagens decorrentes do ordenamento em favor da Administração, é isto que cabe ao Estado buscar, de modo irrenunciável. Se, contudo, em determinados contextos, o empenho na satisfação de todos os benefícios públicos não conduzir à satisfação do bem comum, cabe o uso de medida flexibilizadora inserida no novo arsenal normativo para o desenvolvimento da atividade negocial administrativa, inclusive diante de conflitos, segundo as especificidades do caso concreto e o dever de motivar jurídica e concretamente a escolha levada a efeito.

A Administração Pública não titulariza interesses públicos. O titular deles é o Estado, que, em certa esfera, os protege através da função administrativa, mediante o conjunto de órgãos (em sentido subjetivo ou orgânico) geradores da vontade estatal consagrada em lei.

Excepcionalmente, o administrador público não pode gerir o Estado desvinculado do interesse público coletivo. A indisponibilidade significa, portanto, obediência obsequiosa aos direitos fundamentais e aos valores constitucionais eleitos pelo constituinte embrionário.

Indisponibilidade, no contexto do Direito Administrativo, deixa de ser só o ato de não dispor com liberdade dos deveres entregues à tutela do administrador. Torna-se, também é dever de prover a coisa pública com equidade, isonomia, proporcionalidade e moralidade, enfim, com todos os princípios explícitos e implícitos, enraizados no Direito Administrativo, que são afluentes do princípio da indisponibilidade do interesse público.

Diante do que foi exposto, vale ressaltar que os bens, direitos e interesses públicos são confiados ao administrador apenas para a sua gestão, nunca para a sua disposição. Para dispor, alienar, renunciar ou transacionar, o administrador dependerá sempre de lei. Assim sendo, não há para a Administração e seus agentes, qualquer liberdade de disposição ou renúncia, mas sim de indisponibilidade no que tange ao interesse do povo.

Visto o princípio da indisponibilidade do interesse público, passamos a discorrer sobre o princípio da supremacia do interesse público, cujo conteúdo é problematizado no presente trabalho, merecendo, dessa forma, ser tratado em capítulo separado.

 

4 DEBATE CRÍTICO SOBRE A SUPREMACIA

4.1 Escola Paulista Tradicional (Celso Antonio Bandeira de Mello[10]) X Escola Carioca de Vanguarda (Diogo de Figueiredo Moreira Neto[11])

Será, então, que os princípios da finalidade e da indisponibilidade do interesse público, necessariamente, advêm do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado?

No Brasil, um artigo científico do professor Humberto Ávila[12], denominado “Direito Público em Tempos de Crise”, deu uma arrancada no debate crítico acerca da supremacia do interesse público. São argumentos empregados por esse autor: a) ênfase na proteção da esfera individual de direitos das minorias pela Constituição da Republica de 1988; b) interesse público como conceito jurídico abstrato e indeterminado; c) interesse público indissociável dos privados individuais; d) a supremacia incompatível com o postulado da proporcionalidade e da concordância prática, em razão do dever de ponderação dos interesses envolvidos.

O princípio da supremacia é um verdadeiro axioma (autodemonstrável, patente) do Direito Administrativo, segundo Diogo de Figueiredo Neto[13]. Tal entendimento é altamente criticado por Humberto Ávila. Se todos os princípios veiculam valores e são mais abstratos que as regras, como pode haver um princípio que já exclui qualquer forma de ponderação? Trata-se, portanto, de regra abstrata de preferência, e não de princípio, porque não permite a máxima realização de todos os interesses envolvidos no caso concreto.

A supremacia jurídica que a Administração Pública possui decorre de o Estado ser o agente responsável pela satisfação das necessidades concretas e específicas da coletividade. O interesse público se coloca como legitimador da atuação estatal, pois as atividades administrativas devem ocorrer em prol da satisfação de interesses da coletividade e, para tanto, o sistema jurídico assegura uma diferenciação do ente público em relação ao particular como forma de garantir a implementação das medidas administrativas necessárias para a efetivação dos interesses da coletividade.

Decorre do princípio da supremacia a posição de autoridade da Administração Pública, uma vez que a lei a torna responsável pela efetivação de diversos interesses públicos. Significa que o Poder Público se encontra em situação de comando, relativamente, aos particulares, como indispensável condição para gerir os interesses públicos postos em confronto. Portanto, decorre do aludido princípio, a verticalidade das relações existentes entre o público e o privado, importando, sempre, o desequilíbrio natural a favor do ente estatal.

A problemática aparece quando a autoridade administrativa é exercida de forma a efetivar as “razões de Estado”, ou seja, quando a função administrativa é realizada para a satisfação de interesses privados dos detentores do poder gerando o exercício reiterado de autoritarismo estatal, distante dos preceitos do Estado Democrático de Direito e da disposição constitucional que impõe a observância e a efetivação dos direitos e garantias fundamentais.

No Brasil, desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público, há severas críticas à supremacia do interesse público, tendo como base a concepção moderna da teoria constitucional e uso indevido e ultrapassado do aludido princípio no País, voltado muito mais a práticas de autoritarismo que propriamente à satisfação de interesses coletivos, assegurando uma atuação estatal voltada para a defesa da efetivação dos direitos e garantias fundamentais.

Fábio Medina Osório[14], em defesa, reconhece a supremacia do interesse público e a entende como implícita na ordem constitucional brasileira, já que a Constituição é repleta de situações que impõem a superioridade estatal para o fim de satisfação do interesse público.

A título meramente exemplificativo, algumas normas constitucionais nas quais o interesse público se apresenta em grau de desigualdade em relação ao interesse particular, como a que trata da função social da propriedade privada, assegurada no inciso XXIII do artigo 5º da Constituição. Para efetivar tal função social, a Constituição autoriza os institutos: requisição da propriedade em caso de iminente perigo; desapropriação ordinária por interesse social ou necessidade e utilidade pública; desapropriação sancionatória por descumprimento da função social da propriedade urbana e rural, esta destinada a políticas de reforma agrária; confisco da propriedade privada em caso de cultivo de cultura ilegal de plantas psicotrópicas.

 

4.2 A ponderação como critério de satisfação do interesse público

Considerando a importância que os direitos fundamentais possuem na ordem jurídica contemporânea de preponderância das normas constitucionais, Daniel Sarmento[15] analisa o conflito entre a satisfação de interesses públicos e direitos fundamentais e manifesta que o princípio da supremacia do interesse público não constitui o critério mais acertado para a resolução do conflito. Para tanto, propõe solução fundada na teoria dos direitos fundamentais.

Em caso de colisão de interesses públicos primários voltados para a satisfação de uma meta coletiva e os interesses primários que sirvam para a garantia de um direito fundamental, Luís Roberto Barroso[16] sugere que seja realizada uma ponderação sujeita a dois parâmetros: a análise da razão pública e da dignidade humana. O uso da razão pública consiste na busca por elementos constitucionais essenciais e consensuais de justiça, dentro do pluralismo político.

O princípio da dignidade da pessoa humana, por sua vez, pressupõe que o ser humano seja tratado como um fim em si mesmo e evita, por via de consequência, que seja reduzido à condição de meio para a realização de metas coletivas, ou até mesmo individuais.

Dessa forma, se numa atuação estatal que visa alcançar uma meta coletiva, a dignidade da pessoa humana for desrespeitada, tal atuação deve ser evitada. A utilização da técnica da ponderação também é defendida por Gustavo Binenbojm[17] quando a própria Constituição ou a norma infraconstitucional não esgotarem as possibilidades de ponderação entre interesses públicos e privados. Caberá à Administração efetuar a ponderação concreta, como meio de legitimação dos atos administrativos, traduzindo postura objetivamente comprometida com a realização de princípios, valores e aspirações sociais expressos na Constituição.

O resultado do raciocínio ponderativo leva ao melhor interesse público, ou seja, o fim legítimo que orienta a Administração. A ponderação só é alcançada a partir do princípio da proporcionalidade, nas vertentes: adequação, necessidade e proporcionalidade strictu senso.

O jurista tedesco Robert Alexy[18] define o princípio da proporcionalidade nos seguintes termos: o princípio da proporcionalidade consiste de três princípios: os princípios da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito. Todos os três princípios expressam a ideia de otimização. Os direitos constitucionais como princípios são comandos de otimização. Enquanto comandos de otimização, princípios são normas que requerem que algo seja realizado na maior medida possível, das possibilidades fáticas e jurídicas.

Os princípios da adequação e da necessidade dizem respeito ao que é factualmente possível. O princípio da adequação exclui a adoção de meios que obstruam a realização de, pelo menos, um princípio sem promover qualquer princípio ou finalidade para a qual foram adotados. O balanceamento sujeita-se à proporcionalidade em sentido estrito, que expressa o que significa a otimização relativa às possibilidades jurídicas.

Conforme leciona Daniel Sarmento[19], a ponderação deverá ser efetivada levando em consideração que cada restrição a interesse em jogo será justificada na medida em que for apta a garantir a sobrevivência do interesse contraposto, não houver solução menos gravosa e o benefício logrado com a restrição a um interesse compensar o grau de sacrifício imposto ao interesse antagônico”, ou seja, a partir da incidência do princípio da proporcionalidade.

Nesse sentido, ante interesses conflitantes, públicos e privados, Gustavo Binenbojm[20] defende que o melhor interesse público só pode ser obtido a partir de um procedimento racional que envolve a disciplina de interesses individuais e coletivos específicos, bem como um juízo de ponderação que permita a realização de todos eles na maior extensão possível. O instrumento desse raciocínio ponderativo é o postulado da proporcionalidade caso a caso. O postulado a explicar o Direito Administrativo não é de supremacia.

A preservação, na maior medida possível, dos direitos individuais constitui porção do próprio interesse público. São metas gerais da sociedade política, juridicamente estabelecidas, tanto viabilizar o funcionamento da Administração Pública, mediante prerrogativas materiais e processuais, como preservar e promover, da forma mais extensa possível, os direitos dos particulares. Concluída a existência do dever de ponderação, pautado na proporcionalidade, a discussão deve ser sobre qual interesse, público ou privado, prepondera no caso concreto.

Dessa forma, a ponderação se apresentaria como o melhor instrumento de resolução de conflitos de interesses públicos e privados, por considerar interesses individuais e coletivos, tomando por paradigma situações concretas, sem que haja a supremacia a priori de um deles.

 

5 RECONSTRUÇÃO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO

O interesse coletivo que requer tratamento desigual por parte do Poder Público é o que efetiva direitos fundamentais. Para tanto, a Constituição assegura patamar de desigualdade para o ente estatal efetivar a satisfação do interesse público, tal como na intervenção da Administração Pública na propriedade privada via requisição e desapropriação, buscando a efetivação de outros direitos fundamentais.

No caso de interesses privados em conflito com o público e ambos pertencerem ao amplo rol de direitos fundamentais, a Administração Pública deve se sobrepor ao interesse privado se diante da satisfação do interesse público primário, que se direciona à real satisfação dos interesses da coletividade, pois, a partir de uma interpretação sistêmica da Constituição, nem os interesses públicos são superiores aos privados, tampouco estes superiores àqueles.

A satisfação do interesse público secundário não efetiva diretamente quaisquer direitos fundamentais e, nesse caso, a Administração Pública não está constitucionalmente autorizada a exercer o tratamento pautado na desigualdade para fins de efetivar interesses patrimoniais do Estado. Havendo conflito entre o interesse privado e público secundário, deve prevalecer o interesse do primeiro, sob pena de violação ao núcleo essencial da Constituição.

À luz do Estado Democrático de Direito, os institutos jurídicos que integram o Direito Administrativo devem respeitar os preceitos constitucionais, cabendo ao Estado, enquanto administrador da res publica, a promoção e efetivação dos direitos individuais e coletivos. A partir desse novo paradigma, a Constituição apresenta-se como verdadeiro condicionante da atuação estatal, já que as escolhas não mais se fundamentam na autoridade e supremacia do Estado, mas em mecanismos que visam à efetivação dos direitos e garantias fundamentais.

É verdade que a Constituição tem que ser efetivada, contudo, o Poder Público ainda é a grande instituição do mundo pós-moderno, posto que possui o papel essencial de guia na concretização de diversos direitos. Portanto, não obstante os esforços críticos da doutrina sob a ótica da supremacia (ou não) do interesse público primário, a melhor direção é sempre a tutela de direitos fundamentais, independente da sua aparência pública ou privada.

Afinal, o interesse público no qual o indivíduo não consiga identificar um fragmento concreto do seu próprio interesse particular é mera ficção, e não merece ser supremo.

 

CONCLUSÃO

As discussões acerca da reação à tentativa de desconstrução da supremacia transitam entre o binômio autoridade-liberdade. Não há como exterminar todas as prerrogativas da Administração Pública sob o argumento de que não haveria supremacia do interesse público.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro[21] entende que os autores que sustentam uma releitura do princípio da supremacia do interesse público seria o mesmo que violar o consenso social e deixar desprotegidos tais direitos de caráter fundamental. A supremacia do interesse público não faria resurgir a ideia totalitarista de “razões do Estado”, que lhe permitia realizar todo tipo de arbitrariedade pautado na noção de estar concretizando um interesse supremo.

Embora a doutrina majoritária conclua pela aplicação absoluta do interesse público em detrimento do privado, há de se convir que isso somente será possível analisando-se o caso concreto e verificando se, efetivamente, há essa prevalência.

Nesse sentido, não se nega a existência do interesse público, apenas se entende que para que ele efetivamente possa prevalecer sobre o privado deve ser averiguado no caso concreto, ou seja, se analisadas as circunstâncias fáticas, estas realmente identifiquem uma hipótese de incidência do interesse público. Aí sim se pode falar em supremacia do interesse público sobre o particular. Caso contrário, se a situação em concreto apresentar elementos que indiquem que o interesse privado a ser tutelado deve prevalecer sobre o público, aquele deverá ser resguardado. Com isso, não seria viável o nome supremacia do interesse público sobre o particular, pois tal supremacia somente se concretizará com a análise de cada caso.

 

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MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 20ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo: parte introdutória, parte geral e parte especial. 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

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SARMENTO, Daniel. Interesses públicos vs. interesses privados na perspectiva da teoria e da filosofia constitucional. In: Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 216.

 

[1] MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 20a ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

[2] BINENBOJM, Gustavo. Da supremacia do interesse público ao dever de proporcionalidade: um novo paradigma para o direito administrativo. In: SARMENTO, Daniel. Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 117-169.

[3] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2009.

[4] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de Direito Administrativo: parte introdutória, parte geral e parte especial. 14ª ed. revisada, ampliada e atualizada. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2005.

[5] MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Op. cit., p. 427 a 429.

[6] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Op. cit., p. 286.

[7] GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 17ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Saraiva, 2012, p. 73.

[8] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 28ª ed. São Paulo: Ed. Malheiros, 2003, p. 87.

[9] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 22ª ed. revista, ampliada e atualizada. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2009.

[10] MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Op. cit., p. 448.

[11] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Op. cit., p. 395.

[12] ÁVILA, Humberto Bergmann. Neoconstitucionalismo: entre a ciência do direito e o direito da ciência. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel; BINENBOJM, Gustavo (coord.), Vinte anos da Constituição de 1988, 2008. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2009, p. 93.

[13] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Op. cit., p. 397.

[14] OSÓRIO, Fábio Medina. Existe uma supremacia do interesse público sobre o privado no direito administrativo brasileiro? Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 220, p. 69-107, abril/junho de 2000.

[15] SARMENTO, Daniel. Interesses públicos vs. interesses privados na perspectiva da teoria e da filosofia constitucional. In: Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 216.

[16] BARROSO, Luís Roberto. Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 4ª ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2013, p. 343.

[17] BINENBOJM, Gustavo. Op. cit., p. 117-169.

[18] ALEXY, Robert. Direitos fundamentais, balanceamento e racionalidade. Tradução de Menelick de Carvalho Netto. Ratio Juris, v.16, n. 2, p. 131-140, jun. 2003.

[19] SARMENTO, Daniel. Op. cit., p. 118.

[20] BINEMBOJM, Gustavo. Op. cit., p. 94 a 96.

[21] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. cit., p. 129.

Âmbito Jurídico

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