Autor: Guilherme Lozano de Moraes – Bacharel em Direito pelo Centro Universitário das Faculdades Integradas de Ourinhos; Pós-Graduando em Direito Penal, Processo Penal e Criminologia pela instituição PROJURIS; Pós-Graduando em Direito Público pela instituição FALEG; gui-lozano@hotmail.com.
Resumo: O presente trabalho tem por objetivo explorar a Teoria da Cegueira Deliberada e sua aplicação prática em face do Direito Penal pátrio, em atenção ao delito de violação de direitos autorais. Busca-se evidenciar através de uma ótica fenomenológica a presença do dolo eventual do agente que, tendo meios de constatar a origem ilícita dos fatos, se omite de tomar pleno conhecimento destes, portanto, não é crível que se beneficie dos resultados consequentes de sua torpeza. Assim, torna-se necessária a análise dos elementos componentes da Teoria da Cegueira Deliberada e sua aplicação, em face do delito de violação de direitos autorais.
Palavras-chave: Teoria da Cegueira Deliberada. Violação de Direito Autoral. Dolo Eventual.
Abstract: The present work aims to explore the Willful Blindness Doctrine and its practical application in the face of the Brazilian Criminal Law, in attention to the crime of copyright infringement. It seeks to show through a phenomenological perspective the presence of the potential fraud of the agent who, having the means to verify the illicit origin of the facts, omitted to take full knowledge of these, therefore, it is not credible that he benefits from the results of his clumsiness. Thus, it is necessary to analyze the components of the Willful Blindness Doctrine and its application, in the face of the crime of copyright infringement.
Keywords: Willful Blindness Doctrine. Oblique Intent. Copyright Infringement.
Sumário: Introdução. 1. Da Teoria da Cegueira Deliberada. 2. Da Teoria da Cegueira Deliberada no Direito Penal Brasileiro. 3. Do Crime de Violação de Direito Autoral. 4. A Imputação do Crime de Violação de Direito Autoral com Base na Teoria da Cegueira Deliberada. Conclusão.
Introdução
O presente trabalho tem por objetivo explorar a Teoria da Cegueira Deliberada (Willful Blindness Doctrine ou Ostrich Instructions), que tem sua origem no Direito estrangeiro, e seus reflexos no Direito Penal pátrio, com especial ênfase ao delito de violação de direito autoral, que encontra previsão legal no artigo 184 do Código Penal, bem como de uma análise fenomenológica do elemento volitivo necessário para sua configuração, na espécie, o dolo eventual ou indireto, de forma a abordar a conduta do agente que, tendo meios de constatar a origem ilícita dos fatos com que se relaciona, ignora-os e se omite de obter pleno conhecimento destes, inclusive, criando obstáculos a sua descoberta, beneficiando-se da sua condição de falsa ignorância e obtendo indevida vantagem patrimonial.
Para tanto, será procedida a análise da jurisprudência nacional e internacional, bem como conceituações abordadas pela legislação e doutrina, através de uma metodologia de pesquisa baseada na exploração descritiva e qualitativa de material correlato ao tema da presente pesquisa, na busca de referencial teórico bibliográfico.
Assim, inicia-se com a conceituação da Teoria da Cegueira Deliberada com base em julgados de origem estrangeira, bem como pela forma com que tal teoria se encontra recepcionada pelo Poder Judiciário brasileiro, além de sua análise pela doutrina e âmbito de incidência nas relações jurídico-criminais do Estado Democrático de Direito a qual se encontra inserida.
Ademais, torna-se necessário o estudo do delito de violação de direito autoral, que encontra previsão no artigo 184 do Código Penal, através de uma análise detalhada do referido tipo penal e dos elementos que o cercam, além de um exame quanto ao elemento volitivo do dolo eventual ou indireto, necessário a configuração do delito e seus reflexos quanto a Teoria da Cegueira Deliberada.
Ao final, tem-se por objetivo propor uma ponderação quanto a recepção e aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada no Direito Penal brasileiro, em especial quanto a sua possibilidade de aplicação em relação ao delito de violação de direito autoral, em vista da complexa análise do elemento volitivo necessário a configuração do crime em testilha, bem como o risco da presença de uma verdadeira responsabilidade penal objetiva, atentatória a realidade do Direito Penal pátrio, enquanto instrumento de manifestação de vontade estatal e garantia a aplicação dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988.
A Teoria da Cegueira Deliberada (Willful Blindness Doctrine ou Ostrich Instructions) tem sua origem no Direito estrangeiro, notadamente nos países de tradição no Direito Consuetudinário. A ideia central da Cegueira Deliberada encontra seus registros iniciais por volta de 1861 na Inglaterra, durante o julgamento do caso Regina vs. Sleep, que, em síntese, trata da revisão da pena de autor de má administração de recursos públicos, o qual, sob a alegação de desconhecimento, embarcou um barril em seu navio contendo o símbolo real da propriedade do Estado. (SYDOW, 2017).
A concepção de Cegueira Deliberada, nesse sentido, passou a ser explorada pelos operadores de direito, ocupando espaço em precedentes ligados ao sistema jurídico do Direito Consuetudinário, em especial no direito britânico e norte-americano. Assim, em 1976 no Estado da Califórnia nos Estados Unidos, ocorreu o emblemático julgamento do caso intitulado “Jewell v. United States”, em que foi posto em debate pelos julgadores da corte do 9º circuito norte-americano (equiparado a estrutura de um Tribunal Regional Federal no Brasil) se a conduta do agente que age com desconhecimento deliberado poderia ser considerada como se o autor estivesse agindo de forma consciente.
Quanto ao caso “Jewell v. United States”, explica Robbins:
“No caso, ficou provado que o réu estava num bar no México quando um terceiro, após lhe oferecer maconha, ofereceu US$ 100 para que dirigisse um carro pela fronteira e o deixasse num endereço predeterminado. Também ficou provado que o réu sabia de um compartimento secreto no carro, mas não averiguou sobre o que havia dentro. O réu acabou sendo parado na fronteira e foram descobertos 110 quilos de maconha no compartimento, que acabou acarretando sua condenação. Ao apelar da sentença para a Ninth Circuit Court, o réu se insurgiu contra as instruções dadas pelo juiz ao júri, que determinava que mesmo que o réu não soubesse das drogas no carro, a ignorância dele de seu exclusivamente por sua vontade para evitar saber o que tinha no veículo. Para o réu, tal instrução foi equivocada e permitiu a condenação sem que o réu agisse propositadamente ou conscientemente sobre os elementos que compunham o tipo penal, como determina a lei. A condenação foi mantida. (ROBBINS, 1990).”
Conforme se extrai do julgado estrangeiro, foi posto para deliberação dos jurados, e torna-se necessária a ressalva de que no direito norte-americano os jurados são incumbidos de deliberar quanto ao juízo de culpa do réu e não ficam adstritos a votação de quesitos como no direito brasileiro, que a ignorância deliberada do réu ao examinar a existência de drogas em seu carro de maneira precária corresponderia em consciência quanto pratica delitiva de tráfico de entorpecentes, o que foi aceito pelos julgadores após consideráveis deliberações, não se tratando de posição unânime dos juízes norte-americanos, mas de sua maioria, entretanto, é suficiente para tornar possível considerar como um notório caso de aplicação prática da Teoria da Cegueira Deliberada a um caso concreto.
Ademais, referida teoria ganhou mais notoriedade ainda através da construção de mais precedentes por parte da Suprema Corte dos Estados Unidos, principalmente no julgamento do caso conhecido como “In re Aimster Copyright Litigation”, o qual abordou discussões referentes a tese defensiva de desconhecimento da violação dos direitos autorais dos arquivos compartilhados pelo acusado. Por oportuno, faz-se necessária a transposição de trecho do referido julgado:
“Nós também rejeitamos o argumento de Aimster no sentido de que o recurso de criptografia do serviço oferecido por Aimster o impedia de saber quais músicas estavam sendo copiadas pelos usuários de seu sistema. Dessa forma, não pode prosperar a alegação de que ele não tinha o conhecimento da atividade ilícita, o que é uma exigência para a responsabilização pela conduta de contribuir para a infração de direitos autorais. Cegueira voluntária é o conhecimento (…) é a situação em que o agente, sabendo ou suspeitando fortemente que ele está envolvido em negócios escusos ou ilícitos, toma medidas para se certificar que ele não vai adquirir o pleno conhecimento ou a exata natureza das transações realizadas para um intuito criminoso. Em United States v. Giovannetti (1990) restou estabelecido que o esforço deliberado para evitar o conhecimento da ilicitude é tudo que a lei exige para estabelecer a culpa do acusado. Em United States v. Josefik (1985), restou estabelecido que não querer saber porque se suspeita, pode ser, se não for o mesmo estado de espírito, o mesmo que a prática de uma conduta culposa. Em United States v. Diaz, o acusado deliberadamente isola-se da transação de drogas real para que pudesse negar o conhecimento da transação ilícita, o que fez, por vezes, ao se afastar da entrega efetiva da droga (…) O acusado não pode fugir as suas responsabilidades pela manobra, não pode sustentar a alegação de que o software de criptografia o impede de ter conhecimento da violação de direitos autorais, que ele fortemente suspeita que ocorre (…)suspeita essa de que todos os usuários do seu serviço são, de fato, infratores de direitos autorais. (ESTADOS UNIDOS, 2003).”
Nesse sentido, denota-se que a conceituação da Teoria da Cegueira Delibera consiste na conduta do agente que, sabendo ou possuindo fortes suspeitas de que se relaciona com negócios ilícitos, passa a adotar comportamentos que lhe impedem de tomar pleno conhecimento dos fatos, em outras palavras, pratica um esforço deliberado para evitar o conhecimento da ilicitude na tentativa de evitar eventual responsabilidade criminal, razão pela qual referida teoria também é conhecida por “Ostrich Instructions”, ou seja, Instruções do Avestruz, em alusão a ave que enterra sua cabeça no solo, evitando com que tenha contato com acontecimentos da superfície.
Na oportunidade do julgamento do caso “In re Aimster Copyright Litigation”, conforme consta acima, é de se apurar que os agentes deliberadamente, ou seja, através do exercício de sua vontade livre e consciente, tomaram medidas ativas afim de não tomar conhecimento das violações de direitos autorais, argumentando a existência de software de criptografia que lhes restringia a informação sobre fatos ilícitos dos quais suspeitam.
Denota-se então que a Cegueira Deliberada se tornou presente em precedentes da Suprema Corte Norte-Americana, onde diversos juristas passaram a discuti-la a luz de seu próprio sistema jurídico, delimitando seu âmbito de incidência. Todavia, é de se vislumbrar que o direito norte-americano e o direito brasileiro são essencialmente distintos, principalmente quanto a construções dos preceitos gerais do Direito Penal, sendo que, a importação de tal teoria não deve se dar de forma automática, haja vista a necessidade de adaptações de suas disposições com os institutos jurídicos existentes no ordenamento brasileiro, principalmente no que tange ao elemento volitivo do agente.
Em vista da transposição da construção da Teoria da Cegueira Deliberada pelos precedentes do Sistema de Justiça Norte-Americano ao direito brasileiro, é de se constatar que referida concepção teórica reside e encontra correspondência no elemento volitivo do agente relativo ao dolo, em sua modalidade indireta ou eventual, na medida que, voluntariamente, ignora as fortes suspeitas que possui de envolvimento em ocasiões potencialmente ilícitas, atuando de modo contrário da expectativa social da boa-fé e cautela, assumindo o risco na concretização de seu resultado.
Faz-se necessário, então, como forma de adequação da Cegueira Deliberada ao Direito Penal brasileiro, a devida conceituação doutrinária quanto ao elemento volitivo do dolo eventual, na ocasião abordado por Cézar Roberto Bitencourt:
“Haverá dolo eventual quando o agente não quiser diretamente a realização do tipo, mas aceitá-la como possível ou até provável, assumindo o risco da produção do resultado (art.18, I, in fine, do CP). No dolo eventual o agente prevê o resultado como provável ou, ao menos, como possível, mas, apesar de prevê-lo, age aceitando o risco de produzi -lo. (BITENCOURT, 2012).”
Mais adiante explica o mesmo autor:
“A consciência e a vontade, que representam a essência do dolo direto, com os seus elementos constitutivos, também devem estar presentes no dolo eventual. Para que este se configure é insuficiente a mera ciência da probabilidade do resultado ou a atuação consciente da possibilidade concreta da produção desse resultado, como sustentaram os defensores da teoria da probabilidade. É indispensável uma determinada relação de vontade entre o resultado e o agente, e é exatamente esse elemento volitivo que distingue o dolo da culpa. (BITENCOURT, 2012).” Dessa forma, na ocasião do dolo eventual, o agente não possui diretamente a intenção na realização do tipo penal, todavia, entende como provável sua ocorrência e aceita o risco da produção do resultado. Denota-se, então, que referido instituto penal coaduna-se com o que dispõe a Teoria da Cegueira Deliberada, uma vez que, é possível que o agente não necessariamente se interesse pela prática criminosa, porém, possuindo suspeitas da potencial ilicitude de determinados atos com que se relaciona, entende como possível a sua ocorrência e se omite de praticar qualquer ato que o leve ao pleno conhecimento desta, de forma que ignora seu exercício e aceita o risco de seus resultados, muitas vezes se beneficiando destes.
No mesmo caminho, é possível de se constatar que a Teoria da Cegueira Deliberada se afasta do elemento volitivo da culpa, seja esta própria ou consciente, no sentido de que o agente, na espécie, não é negligente, imprudente ou imperito, nem tampouco apesar de cogitar eventual resultado, acredita piamente que conseguirá evitar que aconteça, mas sim deliberadamente omisso, na hipótese de não desejar ter conhecimento dos fatos potencialmente ilícitos, criando até mesmos obstáculos para tanto, na esperança de que não seja responsabilizado por estes, apesar de seu evidente envolvimento, mesmo que tal esperança não seja exigida para aplicação da referida teoria, conforme se denota:
“É desnecessário provar-se que o agente tinha a intenção específica de evitar eventual responsabilização penal futura – ainda que seja frequente a percepção do sentido dessa classe de intenção. A configuração da cegueira deliberada depende, apenas, de que o agente, com o conhecimento suficiente para direcionar sua ação, aja (ativa ou passivamente) com a intenção de desconhecer elemento típico para que o delito seja cometido com ignorância penalmente relevante. (FERRAZ, 2018).”
Em continuidade, explica o autor sobre a ignorância intencional do agente, demonstrando a desnecessidade de seu resultado efetivo:
“Há uma ação de cegueira deliberada quando há ação com a intenção de ignorância penalmente relevante, independentemente desta ignorância ter se concretizado ou não e, pois, de a intenção ter sido bem-sucedida ou não. O que importa aqui para a compreensão do sentido da ação é a intenção de cegueira e não o resultado efetivo desta. Por isso, a concepção de cegueira deliberada aqui defendida a considera presente quando o agente organiza sua própria vida de modo a que venha a colocar em dúvida se possui o conhecimento necessário para a configuração do dolo no momento da execução do delito no futuro. (FERRAZ, 2018).”
De outro norte, no que tange ao elemento volitivo do dolo eventual e a Teoria da Cegueira Deliberada, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), em seu boletim informativo de N.º 204, de novembro de 2008, abordou de forma bastante didática a relação entre ambos os conceitos:
“O problema da cegueira deliberada é, em verdade, um problema de dolo eventual: cabe perquirir se, segundo o ordenamento pátrio, atua com dolo aquele que, diante de situações suspeitas, age de modo a possivelmente praticar o tipo objetivo sem se importar em conhecer mais a fundo as circunstâncias de fato. Desde já, cabe assentar uma premissa: quando se trata de ignorância deliberada, fala-se sempre em “certo grau de suspeita a respeito das circunstâncias de fato”. O sujeito tem alguma noção daquilo que o rodeia, chegando a suspeitar da existência de alguma ilegalidade. A ignorância intencional se dá a respeito apenas de eventuais conhecimentos adicionais que poderiam vir a ser conhecidos caso o agente empreendesse uma investigação, ainda que sucinta. Sabe-se que o dolo eventual é conceituado legalmente a partir da assunção do risco de produzir o resultado da ação típica (artigo 18, inciso I, CP). Mas é claro que essa modalidade dolosa também exige o elemento cognitivo. Em primeiro lugar, porque é impossível, logicamente, assumir o risco de produzir o resultado daquilo que não se conhece, ao menos minimamente. Em segundo, porque o próprio artigo 20 do CP prevê que o erro sobre elemento constitutivo do tipo exclui o dolo. (IBCCRIM, 20088).”
Nesse sentido, a conduta do agente punível a luz da Teoria da Cegueira Deliberada deve ser aquela praticada mediante o elemento volitivo do dolo eventual, no qual o autor se empenha em não tomar total conhecimento dos fatos potencialmente ilícitos no qual se envolve, em outros termos, torna-se propositalmente cego para aquilo que pode lhe acarretar resultados danosos na esfera penal.
Mais adiante, apesar de originária do Direito Estrangeiro, notadamente em países de tradição no Direito Consuetudinário, referida teoria também encontra aplicações na ordem jurídica do Brasil, de tradição no Direito Positivo, como é possível de se constatar da jurisprudência de diversos tribunais na federação. Caso de bastante repercussão nacional, o famoso furto ao Banco Central, ocorrido na cidade de Fortaleza/CE, no que se refere ao delito de lavagem de capitais, teve julgamento interessante pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região levando em conta a Teoria da Cegueira Deliberada:
“PENAL E PROCESSUAL PENAL. FURTO QUALIFICADO À CAIXA-FORTE DO BANCO CENTRAL EM FORTALEZA. IMPUTAÇÃO DE CRIMES CONEXOS DE FORMAÇÃO DE QUADRILHA, FALSA IDENTIDADE, USO DE DOCUMENTO FALSO, LAVAGEM DE DINHEIRO E DE POSSE DE ARMA DE USO PROIBIDO OU RESTRITO. SENTENÇA CONDENATÓRIA. (…) 2.4- Imputação do crime de lavagem em face da venda, por loja estabelecida em Fortaleza, de 11 veículos, mediante o pagamento em espécie: a transposição da doutrina americana da cegueira deliberada (willful blindness), nos moldes da sentença recorrida, beira, efetivamente, a responsabilidade penal objetiva; não há elementos concretos na sentença recorrida que demonstrem que esses acusados tinham ciência de que os valores por ele recebidos eram de origem ilícita, vinculada ou não a um dos delitos descritos na Lei n.º 9.613/98. O inciso IIdo PARÁGRAFO 2.º do art. 1.º dessa lei exige a ciência expressa e não, apenas, o dolo eventual. Ausência de indicação ou sequer referência a qualquer atividade enquadrável no inciso IIdo PARAGRAFOO 2º. – Não há elementos suficientes, em face do tipo de negociação usualmente realizada com veículos usados, a indicar que houvesse dolo eventual quanto à conduta do art. 1.º, PARÁGRAFO 1º, inciso II, da mesma lei.(…) (TRF-5 – ACR: 5520 CE 0014586-40.2005.4.05.8100, Relator: Desembargador Federal Rogério Fialho Moreira, Data de Julgamento: 09/09/2008, Segunda Turma, Data de Publicação: Fonte: Diário da Justiça – Data: 22/10/2008 – Página: 207 – Nº: 205 – Ano: 2008)”
O Acórdão acima remete-se ao ano de 2008, no julgamento dos crimes de lavagem de capitais, decorrentes do conhecido assalto ao Banco Central, o qual consiste em uma das primeiras aparições da Teoria da Cegueira Deliberada no Brasil. No que tange aos fatos acima, a referida Ação Penal tinha por objetivo a responsabilização dos proprietários de concessionárias, às penas do delito de lavagem de capitais, que concretizaram os negócios jurídicos relativos à venda de onze veículos automotores pagos em dinheiro em espécie pelos autores da subtração. Na espécie, em primeiro grau de jurisdição, os autores foram condenados por lavagem de capital, segundo o entendimento do magistrado de que assumiram o risco da negociação e não desconfiaram, em tese, de seu pagamento anormal, a luz da Cegueira Deliberada. Todavia, em segunda instância, o Tribunal Regional Federal decidiu por afastar a responsabilização desses, segundo os fundamentos lançados na ementa acima.
Entretanto, apesar do entendimento do Tribunal Regional Federal da 5ª Região pela improcedência da Ação Penal, a Teoria da Cegueira Deliberada passou a encontrar maior difusão dentro do Judiciário brasileiro, oportunidade em que se tornou tese válida quanto a imputação de delitos de diversas naturezas, na modalidade do dolo eventual.
Outro caso de bastante repercussão no Brasil foi no julgamento da Ação Penal 470 (caso Mensalão), em que o Ministro Celso de Mello abordou com bastante clareza a incidência de tal teoria, sendo sua abordagem sintetizada no teor do Informativo N.º 684 do Supremo Tribunal Federal:
“AP 470/MG – 142. Ato contínuo, o decano da Corte, Min. Celso de Mello admitiu a possibilidade de configuração do crime de lavagem de valores mediante dolo eventual, com apoio na teoria da cegueira deliberada, em que o agente fingiria não perceber determinada situação de ilicitude para, a partir daí, alcançar a vantagem pretendida. (STF, 2012).”
Nesse sentido, denota-se que a Teoria da Cegueira Deliberada se harmoniza com o ordenamento jurídico brasileiro, de forma que se torna plenamente aplicável dentro da estrutura do crime aceita pelo Código Penal, residindo então no elemento da vontade do agente, qual seja o dolo eventual. Inclusive, é importante o destaque de que, apesar de em não raras oportunidades ter sido abordada em relação ao crime de lavagem de capitais, a aplicação de tal teoria não se esgota em tal tipo, de modo que é plenamente possível sua aplicação em diversas outras estruturas típicas.
Como forma de exemplo, observa-se a aplicação da Cegueira Deliberada no julgamento de crime de corrupção eleitoral:
“RECURSO CRIMINAL. CRIME DE CORRUPÇÃO ELEITORAL E DE FORMAÇÃO DE QUADRILHA. ELEIÇÕES 2004. RECURSO DE DEFESA DE UM DOS CORRÉUS NÃO CONHECIDO. INTEMPESTIVIDADE CONFIGURADA. RECURSO DO AUTOR MEDIATO CONHECIDO E IMPROVIDO. MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS. PROVA TESTEMUNHAL ABUNDANTE. PRESCINDÊNCIA DE PROVA DIRETA QUANTO À PRÁTICA ILÍCITA. PRINCÍPIO DO LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO. DOLO ESPECÍFICO CONFIGURADO. TEORIA DO DOMÍNIO FINAL DO FATO. TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA. APLICABILIDADE AO CRIME DE CORRUPÇÃO ELEITORAL. ALEGAÇÃO DE PRESCRIÇÃO PUNITIVA ESTATAL. REJEIÇÃO. CONDENAÇÃO EM REGÍME ABERTO. PENAS SUBSTITUTIVAS. MULTA. DOSIMETRIA DA PENA APLICADA AO CRIME DE FORMAÇÃO DE QUADRILHA. SOPESAMENTO DETALHADO DAS CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS. PENA-BASE ACIMA DO MÍNIMO LEGAL. POSSIBILIDADE, (…) VI – Imputação viável tendo em vista que o agente não se deteve, conformando-se com o resultado. Teoria da “cegueira deliberada” (“willful blindness” ou “conscious avoidance doctrine”). VII – Dosimetria acima do minimo legal do crime de formação de quadrilha aferida com base em detalhado sopesamento das circunstâncias judiciais. Possibilidade. VIU – Pretensão punitiva acolhida. Regime aberto. Pena substitutiva de prestação de serviços à comunidade e prestação pecuniária. Multa. IX – Recurso do autor mediato conhecido e improvido, mantendo-se, in totum, a sentença de primeiro grau. (TRE-RN – RCRIM: 1457668 RN, Relator: MARCO BRUNO MIRANDA CLEMENTINO, Data de Julgamento: 28/06/2011, Data de Publicação: DJE – Diário de justiça eletrônico, Data 05/07/2011, Página 03)”
Como se observa, na prática do delito de corrupção eleitoral, o agente no momento em que se conforma com o resultado, assume o risco na produção deste, agindo de forma livre o consciente em sua prática, de tal maneira que o dolo, no caso o dolo eventual, torna-se visível, permitindo a incidência das conceituações trazidas pela Teoria da Cegueira Deliberada.
Por oportuno, torna-se extremamente relevante apontar que no que se refere a Teoria da Cegueira Deliberada, não há que se falar de forma alguma em responsabilidade penal objetiva. Apesar da mencionada teoria explorar a ignorância do agente quanto ao conhecimento da ilicitude dos fatos com que se relaciona, na espécie trata-se da ignorância intencional, ou deliberada, ou seja, o agente propositalmente se omite de obter informações de prováveis práticas criminais em que se encontra inserido. Nesse sentido, é necessária a produção da prova quanto ao elemento volitivo do autor, uma vez que a cegueira deliberada recai justamente sobre o dolo de natureza eventual, o qual é necessário para a concretização do crime que eventualmente se impute em face do agente infrator. Assim, em momento algum busca-se a responsabilidade objetiva dos autores, modalidade de responsabilidade vedada no sistema penal brasileiro, haja vista que a incidência de tal teoria reside no dolo eventual do agente, o qual deve ser efetivamente provado, em conjunto com os demais elementos contidos no conceito analítico de crime.
Se tratando de um Estado Democrático de Direito, como o Brasil, é de se observar que para a aplicação de qualquer instituto jurídico, notadamente os de ordem penal, é necessária a observância das disposições de natureza constitucional, com o devido respeito aos direitos e garantias fundamentais. Nesse sentido, constata-se que a Teoria da Cegueira Deliberada encontra plena aplicação, posto que se propõe a explicar situações abarcadas pelo dolo eventual, que possui prévia disposição legal no sistema jurídico nacional, de tal maneira que se reveste de constitucionalidade e importa em relevante instituto jurídico no tocante as relações jurídico-criminais.
O crime de violação de direito autoral tem previsão legal no teor do artigo 184 do Código Penal, o qual encontra-se inserido no Título III do referido diploma legal, denominado Dos Crimes Contra a Propriedade Imaterial, dentro de seu Capítulo I, Dos crimes Contra a Propriedade Intelectual, cuja finalidade do tipo reside na proteção jurídica ao autor da obra artística, científica e literária, garantindo-lhe a propriedade sobre sua criação e dos proveitos que dela derivem, sancionando aquele que de forma não autorizada proceda sua reprodução, representação, execução, adaptação, recitação, transposição e demais outras formas de violação, da forma como abaixo exposto:
“Art. 184. Violar direitos de autor e os que lhe são conexos:
Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.
Sendo certo, ainda, que a proteção aos direitos autorais encontra correspondência constitucional no artigo 5º, XXVII, da Constituição Federal de 1988, que assegura: “aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar”. Ademais, toda a matéria relativa aos direitos autorais encontra-se devidamente disciplinada no teor da Lei 9.610 de 1998.
Em continuidade, os direitos autorais são tidos como bem móveis pertencentes a seus criadores, os quais possuem plena legitimidade para explorar os proveitos patrimoniais que deles decorrem, sendo certo que a reprodução de tais obras sem a devida autorização, acarretaria desfalque indevido ao seu autor, de forma que torna-se necessária a proteção estatal em vista de sancionar os agentes infratores. Nesse sentido, leciona Rogério Greco sobre os direitos autorais e a responsabilização dos autores de violações:
“Os direitos autorais possuem a natureza jurídica de bens móveis, conforme salienta o art. 3º da Lei nº 9.610/98, sendo considerado como autor a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica (art. 11). Pertencem-lhe os direitos morais e patrimoniais sobre a obra que criou (art. 22), cabendo-lhe o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor das mencionadas obras (art. 28). Os direitos de autor poderão, no entanto, ser total ou parcialmente transferidos a terceiros, por ele ou por seus sucessores, a título universal ou singular, pessoalmente ou por meio de representantes com poderes especiais, por meio de licenciamento, concessão ou por outros meios admitidos em Direito, obedecidas as limitações constantes dos incisos previstos pelo art. 49 do diploma especial em exame.
O tipo penal em estudo responsabiliza criminalmente não somente aquele que infringe os direitos do autor, mas também aqueles que lhe são conexos, vale dizer, os relativos aos direitos dos artistas intérpretes ou executantes, dos produtores fonográficos e das empresas de radiodifusão (arts. 89 a 96). (p. 994, 2017).”
Nesse sentido, enquanto bens móveis e sujeitos a reflexos patrimoniais, o legislador entendeu como pertinente a proteção do bem jurídico da propriedade intelectual, cominando pena ao causador de sua violação, bem como daqueles conexos as condutas empregadas.
Feitas tais considerações iniciais, do teor do preceito primário do artigo 184 do Código Penal, denota-se tratar de crime comum, ou seja, que o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa. Em relação ao sujeito passivo, aquele que pode figurar como vítima de tal figura típica, este deve ser o autor da obra ou a quem a tenha sido transmitida, herdeiros ou pessoa jurídica, não importando, inclusive, a forma com que o autor se identifique, nos termos do artigo 12 da Lei 9.610 de 1998 que dispõe:
“Art. 12. Para se identificar como autor, poderá o criador da obra literária, artística ou científica usar de seu nome civil, completo ou abreviado até por suas iniciais, de pseudônimo ou qualquer outro sinal convencional.”
Mais adiante, observa-se que a conduta exigida para a configuração do referido delito é a descrita em seu “caput”, qual seja, o ato de violar o direito do autor, reproduzindo, publicando ou modificando, sem sua devida autorização, sua obra. Sinala-se que o delito de violação de direitos autorais é normal penal em branco, ou seja, que o tipo penal não aborda todos os elementos necessários para a concretização delitiva, sendo preciso sua complementação, e que seu conteúdo deve ser complementado pelas disposições contidas na Lei 9.610 de 1998.
Ponto de maior relevância para o presente trabalho é o elemento volitivo necessário para a configuração do delito previsto no artigo 184 do Código Penal, e nesse sentido Rogério Sanches é bastante claro em sua obra:
“É o dolo, consubstanciado na vontade consciente de violar os direitos do autor, sendo desnecessário o intuito de lucro (havendo essa finalidade, o crime passa a ser qualificado – § 1º do art. 184 do CP).
O tipo penal não admite a modalidade culposa. Sendo assim, se o agente pratica a violação supondo que a obra caiu em domínio público, incorrerá em erro de tipo, sendo impunível sua conduta (art. 20 do CP). (SANCHES, 2018).”
Assim, entende-se que tal figura típica comporta tão somente a conduta dolosa, seja esta direta ou indireta, também conhecida por eventual, caracterizando como criminosa a ação daquele que atua de forma livre e consciente ou que assuma os riscos de seus atos e aceite a concretização de resultado, quando necessário e exigido pelo tipo penal.
Nesse contexto, vislumbra-se a possibilidade de relação entre o crime de violação de direitos autorais com as disposições abordadas pelo segmento teórico da cegueira deliberada, haja vista que, sendo tal delito admitido tão somente em sua modalidade dolosa, não havendo qualquer impedimento quanto ao dolo indireto, torna-se viável a imputação criminal em face de autores que, possuindo meios de conhecer a ilicitude dos fatos, se omitem de forma deliberada de entender a integralidade das ações que lhe são relacionadas.
Como forma de exemplificação, pode-se analisar situação análoga ao caso “In re Aimster Copyright Litigation” exposto em etapa anterior do presente trabalho, em que o proprietário de serviço eletrônico de compartilhamento de dados, possuindo fortes suspeitas de que seu serviço é utilizado para o distribuição de obras, sejam estas científicas, artísticas ou literárias, em situação de violação de direitos autorais, deliberadamente se omite de tomar pleno conhecimento de tais atos, faz “vista grossa” em termos populares, e até mesmo cria obstáculos para o seu devido conhecido, como a alegação da existência de mecanismos de criptografia que lhe impede o acesso aos conteúdos utilizados pelos usuários, mantendo indiferença e desconhecimento intencional de tais práticas, conduta esta que, a luz da teoria da cegueira deliberada, torna evidente o dolo eventual do autor na prática do delito tipificado no artigo 184 do Código Penal, uma vez que assumiu o risco da produção do resultado ao não tomar plena ciência de tal utilização de seu serviço, ocasião esta que encontra plena correspondência no direito brasileiro.
Outro exemplo seria do artista que, objetivando aumentar a publicidade de sua obra, compartilha endereço eletrônico que possibilita o “download” de sua produção, todavia, o mesmo agente possui certo grau de conhecimento de que através de tal informação compartilhada, também seria possível a reprodução de obras de outros artistas que não deram a devida autorização, de tal forma que o sujeito se mantem indiferente e de forma deliberada assume condição de desconhecimento, posto que, sem se alongar quanto aos direitos inerentes as obras dos outros artistas que serão potencialmente afetados, é atingido seu objetivo final, que é a publicidade de seus feitos, de modo que deve ser responsabilizado na medida das disposições contidas no teor do artigo 184 do Código Penal. No presente exemplo, de forma puramente abstrata, é de se constatar a prática do delito de violação de direitos autorais, através do elemento volitivo do dolo eventual, segundo o que leciona a teoria da cegueira deliberada.
Nesse sentido, a teoria da cegueira deliberada vem para auxiliar o ordenamento jurídico brasileiro por, justamente, explicar a presença do dolo eventual em determinadas situações, como em algumas condutas de violação de direitos autorais, servindo de mecanismo efetivo na proteção de bens jurídicos penalmente relevantes, propiciando um resguardo efetivo aos direitos do autor que dispõe de seus esforços na criação de sua obra e possui direitos inequívocos em sua exploração. A teoria da cegueira deliberada busca, justamente, sancionar o agente que deliberadamente se coloca em condição de ignorância, para não se aprofundar em situação suspeita com que se relaciona. Por oportuno, ante a análise de todos os fundamentos expostos no presente trabalho, é de se observar que a teoria da cegueira deliberada sustenta sua existência sobre dois preceitos fundamentais de incidência, o primeiro consiste na consciência do agente que possui considerável nível de conhecimento ou suspeita de que se relaciona com condutas ilícitas ou que perceba bens ou direitos de provável origem criminosa; em segundo que tal agente empregue esforços deliberados para que não se aprofunde em suas suspeitas, ou eleve seu nível de conhecimento da situação, até mesmo criando obstáculos para que não passe a ter ciência dos fatos com que se relacione.
Sinala-se que a conduta do agente deve ser deliberada, ou seja, proposital, no sentido de verdadeiramente fechar os olhos para as atividades com que se relacione, para não ter plena convicção de sua ilicitude, se restringindo apenas ao estágio de consciência das fortes suspeitas.
No que tange o dolo, elemento volitivo integrante do conceito de crime, este é previsto no artigo 18 do Código Penal, sendo certo que comporta duas modalidades de ocorrência, consistentes no dolo direito ou indireto. Nesse sentido, os conceitos de dolo são explicados por teorias que foram adotadas pelo direito brasileiro e consubstanciadas no teor do artigo supra, restando claro em demonstrar que quanto ao dolo direto é adotada a teoria da vontade, enquanto ao indireto a teoria do assentimento, da forma como explica Rogério Greco:
“Segundo a teoria da vontade, dolo seria tão somente a vontade livre e consciente de querer praticar a infração penal, isto é, de querer levar a efeito a conduta prevista no tipo penal incriminador.
Já a teoria do assentimento diz que atua com dolo aquele que, antevendo como possível o resultado lesivo com a prática de sua conduta, mesmo não o querendo de forma direta, não se importa com sua ocorrência, assumindo o risco de vir a produzi-lo. Aqui o agente não quer o resultado diretamente, mas o entende como possível e o aceita. Segundo a precisa lição de Juarez Tavares, “a teoria do consentimento ou da assunção é a teoria dominante e tem por base uma vinculação emocional do agente para com o resultado. Vale dizer, exige não apenas o conhecimento ou a previsão de que a conduta e o resultado típicos podem realizar-se, como também que o agente se ponha de acordo com isso ou na forma de conformar-se ou de aceitar ou de assumir o risco de sua produção”. (p. 111, 2017).”
Nesse contexto, a aplicação da teoria da cegueira deliberada torna-se visível ao operador do direito que procede a análise de fatos levados a efeito através de investigações criminais, uma vez que, na ocasião em que se torna cego a suas suspeitas e mesmo assim permanece relacionado a fatos potencialmente ilícitos, o agente assente com a conduta típica, atuando em claro dolo eventual, posto que, diretamente o autor da infração não pretende o resultado, já que deliberadamente se omite do pleno conhecimento dos fatos, mas o compreende na medida de suas suspeitas e aceita a produção de seu resultado, porquanto permanece relacionado aos fatos consubstanciados nos autos, agindo, então, com o elemento volitivo previsto na segunda parte do inciso I, do artigo 18 do Código Penal.
Tais ponderações são perfeitamente aplicáveis ao delito de violação de direito autoral, uma vez que permite em sua incidência o elemento volitivo do dolo eventual, tratando como punível a conduta do agente deliberadamente cego a práticas ilícitas com que se relacione.
Dessa forma, a teoria da cegueira deliberada consiste em considerável contribuição a proteção dos bens jurídicos relacionados a propriedade intelectual, uma vez que cria hipóteses de sanção a agentes que em muito contribuem para a violação dos direitos dos autores, sancionando condutas que importam em prejuízos patrimoniais, e até mesmo morais, aos criadores de obras científicas, artísticas ou literárias, que empenham demasiados esforços e dedicam a vida a suas criações, sendo assim, torna-se justa e defensável a punição dos violadores de tais direitos, os quais tentam se afastar da responsabilidade penal através do manto da ignorância proposital, ao certo que o dolo eventual, sob as predileções da teoria da cegueira deliberada encontra plena incidência na subsunção dos fatos as normas, possibilitando a movimentação do mecanismo estatal através de seu direito de punir, na busca de salvaguardar os direitos de propriedade daquele que se dedica a criação de obras contributivas a comunidade.
Conclusão
Em vista da necessidade constante de atualização e desenvolvimento da ciência jurídica, da evolução das relações sociais e do surgimento de novas situações no bojo das sociedades contemporâneas, em muito propiciadas pelo avanço dos meios tecnológicos de transmissão de dados como a internet, é preciso que os operadores do direito busquem diuturnamente o estudo de novas concepções teóricas a fim de compreender e possibilitar a aplicação de conceitos jurídicos, com o escopo de se alcançar justiça ao caso concreto, sem que ocorra qualquer distanciamento da adequada aplicação das normas do ordenamento jurídico, do fiel cumprimento da Constituição Federal e da defesa dos direitos e garantias fundamentais, enquanto necessários para a existência de um Estado Democrático de Direito.
Nesse cenário, a Teoria da Cegueira Deliberada assume importante papel no que tange a busca de uma maior proteção aos bens jurídicos penalmente relevantes, posto que, aos seus termos, tem por objetivo sancionar o agente que, de forma deliberada, se omite de fatos com que se relaciona, criando até mesmo obstáculos, mas que em muito contribui para a prática da conduta delituosa.
Certo é que a Teoria da Cegueira Deliberada, que ganhou maior notoriedade após sua aplicação pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América, propicia uma adequada aplicação do Direito Penal a condutas bastante frequentes nas comunidades contemporâneas, visto que, visa aumentar o alcance das normas penais incriminadoras, mas não de forma ampla e irrestrita, mas de maneira pontual e efetiva, na busca da sanção dos agentes que ostentam meios de conhecer o potencial ilícito das condutas em que se encontram inseridos, de forma que os frutos da aplicação de tal teoria são bastante benéficos a sociedade, já que com a sanção de tais ações, se obtém uma menor circulação de bens ou proveitos de origem criminosa, além de apresentar uma proteção adequada aos bens jurídicos tutelados, apresentando uma resposta efetiva a coletividade.
Ademais, é de se observar que apesar de originária do direito estrangeiro, a Teoria da Cegueira Deliberada encontra pleno respaldo no ordenamento jurídico brasileiro, haja vista que as condutas exploradas encontram amparo na figura do elemento volitivo do dolo eventual, sendo passível a sanção dos agentes que assumiram o risco na produção do resultado, mesmo que inicialmente não intentem sua prática. Assim, denota-se que tal teoria tem por objetivo explicar o dolo na conduta dos autores que deliberadamente se omitem de informações que os levariam a compreensão do caráter ilícito dos fatos.
Torna-se importante ressaltar que no mundo contemporâneo, em que as relações entre indivíduos localizados em polos opostos do planeta ocorrem em instantes, deve o aplicador do direito se situar entre os diversos sistemas jurídicos existentes e compreender que a aplicação de concepções teóricas provenientes de ordenamentos distintos deve se dar de forma cautelosa, devendo sempre observar as regras e formas de aplicação das medidas judiciais do local em que se anseia a aplicação de teorias ou institutos estrangeiros. Nesse contexto, a Teoria da Cegueira Deliberada, originária de um direito de matriz consuetudinária, encontra campo fértil de aplicação no direito brasileiro, todavia, o operador do direito tem o dever de analisar adequadamente os institutos, proceder a harmonização para, assim, aplica-la ao caso concreto.
Dessa forma, o presente trabalho buscou explorar o surgimento da Cegueira Deliberada, com a apresentação de julgados estrangeiros relevantes, demonstrar qual o seu conteúdo e de que forma é possível sua aplicação no direito brasileiro. Ainda, buscou-se demonstrar que tal concepção teórica é aplicável para diversas infrações penais, em especial para os delitos de violação de direitos autorais, desde que seja procedida uma análise minuciosa do elemento volitivo do agente, estruturada por uma adequada produção probatória, assegurado o contraditório, de forma a consubstanciar em uma aplicação eficaz da justiça.
Por fim, ressalta-se que o escopo da análise de concepções teóricas, principalmente aquelas voltadas ao Direito Penal, é a realização de uma persecução penal e atividade processual justa, nem se aproximando de um Direito Penal Máximo, tampouco de um Garantismo Hiperbólico Monocular, mas de um Direito que se atenha a proteger de forma eficiente os bens jurídicos tutelados e respeite os direitos e garantias fundamentais, propiciando, assim, as estruturas necessárias para a manutenção da vida em comunidade e para a existência de um verdadeiro Estado Democrático de Direito.
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