Resumo: O Direito brasileiro, filiado ao sistema do “civil law” vem se aproximando continuamente do sistema anglo-americano do “common law”. Assim, cada vez mais os precedentes judiciais vêm ganhando força, dando origem a uma forma híbrida de aplicação das normas, em que a lei e a jurisprudência são igualmente relevantes. Todavia, isto se mostra delicado quanto ao Direito do Trabalho, uma vez que este é dotado de uma estrutura peculiar, destinada a proteger o trabalhador, possuindo princípios e ideologia própria. Logo, a teoria dos precedentes judiciais deve ser analisada em conjunto com os princípios específicos trabalhistas, de forma a garantir o equilíbrio da relação jurídico-trabalhista.
Palavras Chave: Civil Law – Common Law – Ordenamento Jurídico – Precedente Judicial
Abstract: The brazilian law, affiliated to the "civil law" system has been continuously approaching the anglo-american system of "common law". Thus, judicial precedents have been gaining strength, creating an hybrid form of legal application, in which both law and jurisprudence are equally relevant. However, this becomes a complex problem for the Labor Law, since it has a particular structure, designed to protect the worker, having specific principles and ideology. Therefore, the theory of judicial precedents must be examined together with those specific principles in order to ensure the balance of the juridic and work relationship.
Keywords: Civil Law – Common Law – Legal System – Case Law
Sumário: Introdução – 1. Considerações Iniciais Sobre a Figura do Precedente Judicial -1.1. Conceito – 1.2. Figuras Assemelhadas – 1.3. Eficácia dos Precedentes Judiciais – 1.3.1. Precedentes de Observância Obrigatória ou Vinculantes – 1.3.2. – Precedentes de Observância Relativamente Obrigatória – 1.3.3. Precedentes Meramente Persuasivos – 2. Sistemas do Civil Law e Common Law – 2.1. Civil Law – 2.2. Common Law. – 2.3 – A Convergência de Sistemas: a valorização do precedente judicial no Brasil – 3. Precedentes Judiciais e Especificidade: Análise dos princípios peculiares ao Direito do Trabalho – 3.1. Princípio da Proteção – 3.2. Princípio da Primazia da Realidade Fática – 3.3. Princípio da Prevalência da Norma Mais Benéfica – 4. Considerações Finais – 5. Referências Bibliográficas.
Introdução
Ainda que oficialmente se filie ao sistema legal romano-germânico, conhecido como ‘civil law’, o Brasil já não mais o segue de forma integral, vez que nas últimas décadas passou a conferir grande relevância aos precedentes judiciais. Desta maneira, acena ao sistema anglo-americano do ‘common law’, incorporando parte de suas principais características.
Logo, no Direito brasileiro a lei deixa de ser a única diretriz, exigindo-se também uma grande valoração e interpretação sobre os princípios adotados pelo ordenamento, bem como sobre a forma como o pensamento vem sendo construído nas manifestações judiciais. Desta forma, abre-se ao julgador a possibilidade de moldar sua interpretação da norma legal, fugindo da simples aplicação mecânica do previsto no diploma normativo.
Ocorre assim uma convergência de sistemas jurídicos, com o ordenamento pátrio adquirindo inegável caráter misto, situando-se entre o ‘civil law’ e o ‘common law’. Todavia, isto apresenta consequências significativas na seara justrabalhista.
O Direito do Trabalho sempre se pautou pela individualização do atendimento ao trabalhador, especialmente em razão da própria natureza alimentar das verbas com que lida. Deste modo, visa que a prestação jurisdicional ocorra da forma mais rápida e benéfica ao obreiro, protegendo a inerente fragilidade deste e cumprindo assim a ideia de igualdade material nas relações jurídicas. Outrossim, a utilização excessiva do precedente judicial poderia ao massificar a análise jurisdicional, ocasionando um descompasso com o objetivo final do ramo jurídico em questão.
Neste sentido, o presente trabalho objetiva analisar como a teoria dos precedentes judiciais impacta o ramo justrabalhista.
1. Considerações iniciais sobre a figura do precedente judicial
1.1Conceito
Antes de estudar-se a teoria dos precedentes judiciais em sentido estrito, faz-se necessário uma análise sobre a estruturação da decisão judicial, bem como suas implicações.
Neste sentido, em um primeiro momento caberia ao julgador a análise do objeto da lide em relação à Constituição Federal. Efetuaria assim o controle prévio de constitucionalidade, além de verificar a proporcionalidade dos direitos fundamentais envolvidos no caso concreto[1]. Vencida esta etapa, deve-se ponderar em caráter individual a situação submetida a julgamento, de maneira a alicerçar a decisão judicial propriamente dita conforme as peculiaridades fáticas presentes[2]. Seria assim a criação de uma norma jurídica individualizada, contida no dispositivo da decisão que resolve um caso concreto.
Todavia, esta decisão individual aplicada pelo magistrado, chamada de ratio decidendi, não se limitaria unicamente ao caso decidido. Incorporar-se-ia ao ordenamento jurídico, estando disponível para consultas por outros operadores do Direito, atingindo o patamar de fonte auxiliar do Direito. Logo, poderia ser usada como elemento norteador ou mesmo como fundamento de decisões para casos assemelhados.
Constituir-se-ia assim em um precedente judicial, que nada mais é que a decisão tomada à luz de um caso concreto, cujo núcleo essencial pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos[3]. Todavia, um precedente judicial também apresenta elementos periféricos, não providos de poder decisório. Tais argumentações laterais são chamadas de obter dictum, e consideradas como expostos apenas de passagem na motivação da decisão, estabelecendo manifestações acessórias, sem influência relevante e substancial para a decisão. Estas não poderiam assim ser isoladamente consideradas como base para decisões futuras.
1.2 Figuras Assemelhadas
Embora sejam partes integrantes do sistema como um todo, é necessário diferenciar o precedente judicial do que se entende por súmula e por jurisprudência.
A jurisprudência deve ser entendida como um aspecto mais amplo do precedente judicial, possuindo duas acepções. Em um aspecto global pode ser conceituada como qualquer manifestação prolatada, sendo um conjunto de tudo o que possua conteúdo decisório produzido por magistrados dentro do território pátrio. Em um aspecto mais individualizado, pode ser entendida como o conglobamento de julgados harmônicos entre si, resultantes da reiterada e constante aplicação da lei em um determinado sentido[4].
Necessário destacar que ainda que a jurisprudência seja considerada uma das fontes do Direito, tal classificação não deve ser confundida com a teoria dos precedentes judiciais. Isto ocorre uma vez que o uso da jurisprudência como fonte é feito de forma auxiliar, e não como meio principal, buscando apenas abranger eventuais lacunas da lei. Por sua vez, o precedente demonstraria o raciocínio técnico-jurídico a ser aplicado, tendo por base casos semelhantes já decididos.
Feita esta ressalva, deve-se ter em mente que uma vez que um tribunal prolate um grande número de decisões em uma mesma orientação sobre a aplicação da lei, este poderá editar uma súmula. Tal mecanismo configura-se como um enunciado normativo que retrata o posicionamento predominante acerca de um determinado tema. Logo, a súmula nada mais é do que sistematização da jurisprudência que fora aplicada de forma frequente.
1.3 Eficácia dos Precedentes Judiciais
Dentro deste contexto é importante analisar a eficácia dos precedentes judiciais, visto que não apresentam o mesmo grau de vinculatividade ao operador do Direito. Variam assim de proposições de observância obrigatória à estruturas com mero caráter de persuasão.
Portanto, a força do precedente atinge de forma significativa a atuação do julgador, que poderá ver-se restringido por decisões superiores ou ter a oportunidade de confrontar os posicionamentos já existentes conforme seu entendimento. Neste caso, possuiria participação ativa na mudança da interpretação da lei pelas cortes superiores, colaborando ativamente para a atualização do pensamento jurisprudencial.
1.3.1 Precedentes de Observância Obrigatória ou Vinculantes
Os precedentes de observância obrigatória vinculam o julgador ainda que este discorde daquilo que lhe é exposto. Não se restringem assim apenas ao caso concreto onde foi emanado, mas projetam seus efeitos de forma genérica para todas as hipóteses que possam ser abarcadas por sua previsão. Geram assim uma verdadeira norma jurídica, ou seja, um comando geral e dotado de força vinculante.
Tal forma de manifestação de precedente judicial não é a regra do ordenamento brasileiro, mas pode ser verificada em situações pontuais, tais como as decisões do STF em Ação Direta de Inconstitucionalidade, as Súmulas Impeditivas de Recurso, as Súmulas Vinculantes, dentre outros.
1.3.2 Precedentes de Observância Relativamente Obrigatória
Um precedente judicial de observância relativamente obrigatória é aquele que regra geral deve ser seguido, mas permite solução diversa caso haja suporte argumentativo suficiente. Outrossim, uma vez que o julgador supere o ônus de demonstrar que o caso em análise não se amolda totalmente ao previsto, poderá afastar o precedente[5].
Pode-se apontar no ordenamento jurídico brasileiro apenas uma manifestação deste tipo de precedente, na figura da decisão do STJ em recurso especial nas causas repetitivas. Apreciada a questão, os tribunais ordinários devem seguir o que fora decidido, seja para negar seguimento aos recursos especiais ou para reexaminá-los. Somente seria possível uma manifestação em sentido diverso caso o Tribunal indicasse fundadamente as razões pra tanto[6].
Verifica-se assim que é uma figura de influência pontual no sistema jurídico brasileiro.
1.3.3 Precedentes Meramente Persuasivos
Este tipo de precedente não possui a mesma força das hipóteses anteriores, sendo a regra geral no Direito Brasileiro.
Neste sentido, o precedente não vincula o julgador, que pode optar livremente por decidir de forma diversa, ainda que haja enorme similitude fática entre os casos em questão. Desta maneira, a decisão judicial prévia atua apenas como um elemento norteador, indicado ao magistrado a forma como usualmente aquela questão vem sendo tratada, mas sem impedir que um novo posicionamento seja emanado.
2. Sistemas do civil law e common law
2.1 Civil Law
Embora o Brasil adote o sistema jurídico romano-germânico, conhecido como ‘civil law’, é importante destacar-se que a crescente relevância da teoria dos precedentes judiciais fundamenta-se e remete diretamente ao sistema do ‘common law’. Faz-se necessário assim uma breve análise sobre os dois sistemas.
Quanto ao sistema romano-germânico, conhecido como ‘civil law’, tem-se que seu surgimento vincula-se à própria ideia de ciência do Direito, desenvolvida a partir do século XII. Tal ramo científico sistematizou-se tomando por base os diversos sistemas jurídicos existentes no continente europeu, em especial o corpus juris civilis. Deu origem assim a um conhecimento significativamente próximo ao direito romano, mediante uma ciência jurídica erudita, fortemente baseada em regras escritas e no predomínio da lei codificada [7].
Neste diapasão, a norma jurídica destina-se não à solução de um caso concreto, mas a servir como ditame geral e abstrato para as condutas humanas. Assim, embora possua inegável aspecto prático, a lei dispõe também sobre considerações de justiça, de moral, de política e de harmonia do sistema sócio-jurídico como um todo, definindo abstratamente as condutas lícitas ou não [8].
Logo, cabe aos operadores do Direito a interpretação e aplicação das regras, devendo estas conceder determinado grau de liberdade ao julgador[9]. Este por sua vez, determinará a força e o alcance do texto normativo face aos dados do caso em análise [10].
Verifica-se, portanto que nos países da família romano-germânica há um predomínio da lei escrita como fonte do direito, sendo o mecanismo para a solução dos conflitos[11]. Neste sentido, vale ressaltar que lei e norma são conceitos distintos. Esta é apenas uma prescrição, devendo submeter-se a um procedimento institucionalizado para que se torne lei e seja incorporada ao sistema jurídico do Estado[12].
Ainda que a lei escrita e codificada seja o alicerce do sistema do ‘civil law’, outros elementos como costumes e o uso de analogias se fazem presentes e necessários, atuando de forma secundária para que o ordenamento possa manter a unidade e a coerência.
2.2 Common Law
O sistema denominado ‘common law’ baseia a atividade jurisdicional na aplicação de decisões semelhantes dos órgãos julgadores a casos individuais. Tal sistema confere grande peso ao precedente judicial, de maneira que uma decisão anterior será a estrutura base do raciocínio a ser aplicado para a resolução da lide.
Neste tipo de ordenamento jurídico a lei não possui a natureza ampla e abstrata encontrada no sistema romano-germânico, mas sim um aspecto mais individualizado. No que tange à formulação da decisão judicial, o texto normativo não possui precedência, vez que frente a um caso concreto o julgador analisará com a mesma relevância a lei e as decisões anteriores sobre eventos similares ao em questão. Tais precedentes indicarão a forma de resolução e aplicação da lei.
Em razão de sua formação histórica, o ‘common law’ destaca o processo em si e não as regras sobre o Direito[13]. Neste sentido, é possível afirmar-se que tem como ponto base não o princípio da legalidade, mas sim o do devido processo legal[14]. Ainda nesta análise, torna-se possível dizer que enquanto os juristas romanistas iniciam sua atividade perquirindo o direito almejado, os juristas do ‘common law’ tem por objetivo inicial descobrir qual a medida judicial almejada para o caso em análise e sua adequação [15].
Todavia, não há que se falar em aplicação absoluta do precedente judicial, uma vez que se resguardam hipóteses em que não deverá ocorrer a utilização da decisão prévia[16]. A primeira situação diz respeito à existência de vício material ou formal no procedimento que deu causa à decisão. A segunda, por sua vez, seria considerar que o caso em exame distingue-se do precedente de tal modo que a analogia torna-se indevida, uma vez que inexistem os mesmos pressupostos. A terceira, por fim, seria caracterizada pela total negação dos elementos que garantem a permanência do precedente, de modo que ele seja ab-rogado e substituído por uma nova manifestação jurisdicional[17].
2.3 A Convergência de Sistemas: a valorização do precedente judicial no Brasil
Prevaleceu no país uma posição eminentemente positivista até meados da década de sessenta. Neste momento a doutrina estritamente legalista começou a ser substituída pelo ideário pós-positivista, que reconhecia a existência de valores supralegais, maiores que a mera aplicação mecânica do texto normativo. Inicia-se assim uma abertura para uma maior discricionariedade do julgador, bem como uma crescente valorização do posicionamento dos tribunais para a elaboração das decisões judiciais.
Neste cenário em que se buscava a solidificação do papel principiológico, bem como a celeridade da prestação jurisdicional, surgiu o mecanismo das Súmulas. Fortalece-se assim a relevância as manifestações dos Tribunais julgadores e o ideário de unidade do ordenamento.
Esta ideologia ganhou força com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que alçou diversos princípios à categoria de norteadores do Direito brasileiro, de modo a estruturar a coerência e a continuidade do sistema legal. Logo, a lei perde sua posição de única diretriz do Direito, devendo ser confrontada com a hermenêutica principiológica[18].
Todavia, o movimento de maior destaque nessa diluição de sistemas jurídicos foi dado com a Emenda Constitucional n. 45/2004 que trouxe a figura da súmula vinculante. Com tal mecanismo, a jurisprudência deixaria de ter caráter meramente indicativo e se tornaria de observância obrigatória por todos os tribunais do país dentro de determinadas situações.
Porém, é válido salientar que mesmo antes da referida Emenda, os magistrados vinham paulatinamente utilizando-se de julgamentos anteriores como parâmetros decisórios. Buscavam assim conferir unidade ao sistema jurídico, embasando suas argumentações conforme o que pacificado pelos órgãos julgadores.
3. Precedentes judiciais e especificidade: Análise dos princípios peculiares ao Direito do Trabalho
Efetuando-se a análise da teoria dos precedentes no Direito brasileiro, surge interessante questão ao se confrontar a crescente valorização da jurisprudência com a necessária proteção ao trabalhador, figura central do ramo justrabalhista. Face à natural fragilidade do obreiro em relação ao empregador, todo o sistema normativo do Direito do Trabalho desenvolveu-se a fim de conceder um tratamento diferenciado, de modo a atingir a real justiça nas relações jurisdicionais. Neste sentido, foram estabelecidos diversos princípios inerentes e peculiares ao Direito do Trabalho.
Necessário salientar que princípios jurídicos podem ser considerados como o conjunto de regras ou preceitos que se fixam para servir de norma às ações jurídicas, definindo condutas e metas a serem respeitadas dentro de qualquer operação técnico-jurídica[19]. Logo, ao prolatar uma decisão judicial, deve o julgador avaliar se foram respeitados os princípios norteadores, sob pena de inadequação ou mesmo ilegalidade por desrespeito principiológico.
Dentre tais comandos específicos, proceder-se-á a uma análise da teoria dos precedentes em relação aos mais proeminentes.
3.1 Princípio da Proteção
Originalmente a legislação trabalhista desenvolveu-se de modo a se contrapor às condições de trabalho degradantes praticadas sobretudo a partir da Revolução Industrial. Neste momento da história o interesse do empregador era visto como o interesse nacional, de modo que se legitimavam toda sorte de violações aos trabalhadores[20].
Dentro desta ideia desenvolveu-se o principio basilar do ramo jurídico justrabalhista, o princípio da proteção. Tal regramento pode ser entendido como um sistema protetivo ao trabalhador, que é reconhecido como parte hipossuficiente na relação empregatícia. Objetiva assim atenuar no plano jurídico o desequilíbrio inerente ao plano fático do contrato de trabalho[21].
Resulta assim de uma conjunção de normas de ordem pública para modular a autonomia da vontade. Logo, nas relações trabalhistas a vontade dos contratantes torna-se limitada pelo Estado, que atua diretamente para fornecer uma estrutura mínima protetiva ao trabalhador. Concretiza assim a busca pela igualdade material, já que reconhece e atua abertamente para estruturar um equilíbrio de forças desiguais. Não há que se falar que empregado e empregador possuam as mesmas armas processuais, em especial pelo poder diretivo deste, que lhe confere o poder potestativo de dispor sobre a continuidade da relação de trabalho. Deste modo, a minimização da disparidade fática deveria ser o norte do sistema justrabalhista.
Portanto, atua assim o princípio da proteção como um super-princípio, que abarca as demais normas e princípios protetivos ao trabalhador, de modo a atingir o objetivo do Direito do Trabalho.
Dentro deste panorama, a utilização dos precedentes judiciais para guiar a prestação jurisdicional se apresenta como um instrumento poderoso, mas delicado. Embora a celeridade da resolução da lide trabalhista seja não só desejável, mas necessária, impõe-se uma análise mais cautelosa.
A Justiça Trabalhista lida com verbas de caráter alimentar, essenciais à própria manutenção do indivíduo e de sua família. Logo, ainda que os fatos narrados na reclamação trabalhista sejam inicialmente semelhantes, uma decisão embasada em um precedente já existente poderia ignorar detalhes significativos ao caso, afetando seu trâmite. Aliado a isto, a inexistência de recorribilidade imediata das decisões judiciais na seara trabalhista poderia criar um cenário de grande instabilidade, em que uma decisão judicial sem a devida profundidade perpetuar-se-ia por grande lapso temporal.
Assim, sob uma pretensa celeridade, estar-se-ia sedimentando a brecha para violação ao princípio protetivo.
3.2 Princípio da Primazia da Realidade Fática
O princípio em questão estabelece que a realidade fática da relação trabalhista sobrepõe-se ao que fora documentado ou pactuado. Logo, ainda que o instrumento do contrato de trabalho tenha sido firmado sem vícios ou ilegalidades, deve-se analisar por outros meios de prova se estes ocorriam ou não na rotina do trabalhador[22].
A institucionalização do corrente princípio jurídico demonstra o abandono do liberalismo e individualismo das relações econômico-jurídicas, destacando que a boa fé e a igualdade material suplantariam simples afirmações documentais não embasadas em outros meios de prova.
Logo, tal princípio encerra a ideia de que a realidade documental por si só não é apta a definir se a relação de trabalho estava ou não em conformidade com a lei, cabendo ao julgador utilizar-se de todos os meios de prova ao seu alcance para determinar a veracidade das alegações prestadas pelo reclamante e pelo reclamado.
Neste diapasão, ainda que não ocorra um conflito direto com a teoria dos precedentes judiciais, torna-se difícil compatibilizar um cenário em que seja possível uma prestação jurisdicional embasada em precedentes anteriores e que ainda assim permita uma análise detalhada da lide em questão, com a oitiva de testemunhas e análise de toda sorte de documentos.
3.3 Princípio da Prevalência da Norma Mais Benéfica
O princípio em questão tem efetividade quando ocorre divergência sobre o possível sentido da lei, e destina-se à proteger o trabalhador, parte mais frágil da lide, e assim obter-se uma verdadeira igualdade material.
Neste diapasão, havendo mais de uma interpretação cabível, quando da análise da norma caberia ao aplicador do Direito a escolha da mais benéfica ao trabalhador. Além da necessidade de múltiplos entendimentos sobre do texto legal, tal opção seria limitada ainda pelo respeito à vontade do trabalhador. Desta maneira, a interpretação mais benéfica deveria ser afastada caso colidisse com o interesse expresso pelo obreiro.
Sendo um principio hermenêutico, a avaliação em favor do trabalhador lastreia-se unicamente na equiparação de forças, equilibrando a estrutura da relação trabalhista conforme o caso concreto. Logo, torna-se complexa a estruturação dos precedentes judiciais como parâmetros para a aplicação da lei, uma vez que havendo mais de uma interpretação cabível, o ramo justrabalhista exige um intenso grau de individualização na análise decisória.
4. Considerações finais
O Direito do Trabalho possui uma fundamentação histórica e principiológica própria, que em muito o distingue dos demais ramos jurídicos. Logo, é afetado de forma especial pela aproximação do ordenamento jurídico brasileiro ao sistema do “comon law”, com a consequente valorização dos precedentes judiciais.
Ao estruturar-se de forma a proteger a parte mais fraca em uma relação, não só jurídica, mas também fática, o ramo justrabalhista exige uma extrema individualização da análise do julgador. Trabalhadores de uma mesma empresa e submetidos a um mesmo modelo de contrato de trabalho podem possuir especificidades relevantes, no que tange à suas condutas, a forma como são tratados pelos superiores, etc. Assim, mais do que uma relação legal, uma reclamação trabalhista constitui-se em fatos cotidianos, que demandarão uma análise extremamente pormenorizada do julgador.
Logo, a contínua aproximação do Direito brasileiro a noções do sistema legal anglo-americano do “common law” deve ser visto com cautela no que tange às relações trabalhistas. Ainda que a um precedente judicial e a jurisprudência como um todo possam representar uma maior celeridade da prestação jurisdicional, deve-se sempre ter em mente os princípios norteadores do ramo jurídico. Desta forma, cabe ao julgador a sensibilidade de sopesar quando a aplicação da teoria dos precedentes judiciais pode prejudicar a melhor proteção do trabalhador, e assim afastá-la ou não, conforme o caso concreto.
GLISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. Tradução de A.M. Hespanha e L.M. Macaísta Malheiros. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Golbenkian, 2003.
Advogado. Especialista em Direito Privado pela Universidade Cândido Mendes
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