Bárbara Limonta Rosa
Resumo: Visando analisar e defender que a usucapião por abandono do lar, inserida em nosso ordenamento jurídico através da edição da Lei 12.424/11, é um instituto positivo e de proteção às mulheres, o presente artigo demonstrará o amparo desta novel modalidade pelos de princípios civis-constitucionais que orientam o Direito de Família Brasileiro. Ainda, uma breve digressão sobre a origem do patriarcalismo e sobre a figura da mulher nas relações monogâmicas da nossa sociedade, será primordial para afirmar que usucapião por abandono do lar é um instrumento de luta esperançoso à emancipação feminina, especialmente quando encontra-se em situação de vulnerabilidade após o término de uma relação marital.
Palavras-chaves: Usucapião por abandono do lar. Princípios civis-constitucionais. Patriarcalismo. Valorização feminina.
Abstract: The present study aims to analyze the prescription modality by abandoning the home and to defend that this institute is positive, since its application to the concrete case generates the observance of several civil-constitutional principles, especially the dignity of the human person and the dwelling. For this, examination of the requirements and specific characteristics of the modality in question; besides demonstrating its constitutionality, supported by the guiding principles of Brazilian Family Law. Moreover, a brief digression on the origin of patriarchalism and on the figure of women in the monogamous relations of our society will be of prime importance for the interpretation that usucaption by abandonment of the home is an instrument of hopeful struggle for the feminine emancipation, especially of women who find is vulnerable after the termination of a marital relationship.
Keywords: Prescription modality by abandoning the home. Civil-constitutional principles. Patriarchy. Woman’s emancipation.
Sumário: Introdução. 1. A usucapião por abandono do lar: origem e requisitos. 2. A (in)constituicionalidade da Usucapião por Abandono do lar, os princípios civis-constitucionais que regem esse instituto e a interpretação do requisito abandono do lar. 3. A Aplicação do Artigo 1240-A do Código Civil como um instrumento de valorização feminina. 3.1. A origem do patriarcalismo. 3.2. A figura feminina na monogamia. 4. O artigo 1240-A do Código Civil e a sua relevância para a valorização feminina
Introdução
Entre os diversos institutos voltados à proteção da família, os direitos à moradia e à dignidade da pessoa humana são, sobremaneira, os que mais merecem destaque quando se debate a proteção familiar em nosso ordenamento jurídico, especialmente diante do caráter constitucional que tais direitos carregam e, também, da nova concepção de família que vem sendo construída em nossa sociedade.
Nesse contexto, visando dar amplitude à proteção do direito à moradia, além de dar amparo às mulheres que se tornaram ou estão se tornando chefes de família, a Lei 12.424, de 2011, inseriu no Código Civil Brasileiro uma nova modalidade de usucapião, aqui tratada como usucapião por abandono do lar, mas também conhecida como usucapião especial urbana por abandono do lar. (TARTUCE, 2015, p. 736)
O artigo visa analisar os requisitos específicos da modalidade de usucapião em comento e a sua constitucionalidade, demonstrando-se que não se faz necessária a análise acerca da culpa no término da relação marital para a aplicação do instituto.
Além disso, buscar-se-á trazer à luz uma discussão sobre a interpretação do termo “abandono do lar” e debater a necessidade de se privilegiar aquele que remanesceu no imóvel e sofreu com a sequencial despreocupação daquele que não cumpriu com o dever de assistência ao cônjuge e/ou ao cuidado dos filhos. (VILARDO, 2012a, p. 46-60)
Será feita, ainda, uma análise de como esse instituto pode ser benéfico à população feminina do nosso país, uma vez que, via de regra, essa fração populacional está sujeita ao desamparo quando do término da relação conjugal, dados os aspectos socioculturais de nossa sociedade marcadamente patriarcal. (DIAS, 2011, p.6)
A partir da edição da Lei nº 12.424, em 2011, que alterou alguns dispositivos da Lei nº 11.977, de 2009 – responsável por regulamentar o Programa Minha Casa Minha vida (PMCMV) – foi incluído o artigo 1240-A no Código Civil, introduzindo-se uma nova modalidade de usucapião no Direito Brasileiro: a usucapião por abandono do lar, também conhecida como usucapião especialíssima, usucapião familiar, usucapião pró-família, entre outros títulos, que representou uma importante conquista para os direitos das mulheres em nosso país.
Não obstante, a Lei nº 11.977, de 2009, teve como finalidade a criação de mecanismos incentivadores à produção e à aquisição de unidades habitacionais, ou requalificação de imóveis urbanos, além da produção e reforma de habitações rurais para famílias que não possuem imóveis próprios, como forma de colocar em prática o direito social à moradia, como manda o preceito constitucional previsto no artigo 6º da Constituição da República, de 1988.[1]
Na exposição de motivos da Medida Provisória nº 514 de 2010[2] (que se tornou a Lei nº 11.977 de 2009), vem elencado como seu objetivo precípuo “garantir o acesso à moradia adequada, a melhoria da qualidade de vida da população de baixa renda e a manutenção do nível de atividade econômica, por meio de incentivos ao setor da construção civil”.
E foi nesse contexto que a Lei nº 12.424/2011, responsável por alterar alguns dispositivos da Lei de 2009, criou a modalidade da usucapião por abandono do lar, inserindo no Código Civil o artigo 1240-A, com o seguinte conteúdo:
“Art. 1240-A: Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
[…].
Desse modo, a modalidade de usucapião em comento foi instituída em favor de pessoas de baixa renda, que não têm imóvel próprio, seja ele urbano ou rural, cujo cônjuge abandonou o lar comum, de imóvel cuja propriedade dividia com o ex-cônjuge/companheiro.
Ressalta-se que a usucapião por abandono do lar é um desdobramento da usucapião constitucional ou especial urbana (pro misero), que está tratada no artigo 183 da Constituição Federal e reproduzida no artigo 1240 do Código Civil Brasileiro.
Nesse aspecto, o artigo 1240-A disciplina o instituto utilizando-se dos mesmos critérios previstos no artigo 183 da Constituição da República, de 1988[3]. Ou seja, tanto na usucapião por abandono do lar, quanto na usucapião especial urbana, é necessário que o usucapiente não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural e exerça posse mansa, pacífica e ininterrupta sobre imóvel urbano de até 250 metros quadrados, para fins de sua moradia ou de sua família, não se permitindo a concessão dessa medida a favor da mesma pessoa mais de uma vez. (TARTUCE, 2017, p. 1030)
Nesse ponto, há que se observar, ainda, os requisitos particulares da usucapião em comento, o que será feito detalhadamente a seguir.
A usucapião é modo originário de aquisição da propriedade e, no caso em comento, é ensejada quando há abandono do bem por um dos cônjuges/companheiros consortes, somado aos demais requisitos exigidos pelo instituto.
Nesse sentido, o artigo 1240-A do Código Civil elenca as peculiaridades que devem ser cumpridos pelo usucapiente, quais sejam: o lapso temporal de 2 (dois) anos, a posse ininterrupta, mansa, direta e exclusiva (para moradia de um dos cônjuges ou de sua família), o imóvel urbano ter até 250 metros quadrados, e o abandono do bem e do lar por um dos cônjuges/companheiros.
Outrossim, o cotitular que pretende usucapir o bem deve ser seu coproprietário e não deve possuir a propriedade de outro imóvel urbano ou rural.
Para a aquisição da propriedade a partir modalidade de usucapião por abandono do lar, há a necessidade de que a posse do usucapiente seja direta, mansa e pacífica pelo prazo mínimo e ininterrupto de dois anos, a contar da vigência da Lei nº 12.424 de 16 de junho de 2011.
A Lei inova com a criação desse efêmero prazo, que é o menor lapso temporal previsto para usucapião de bens imóveis previsto no Código Civil. Certa, portanto, é a necessidade de se agilizar os litígios familiares, evitando situações corriqueiras como a busca pelo outro cônjuge, após um longo período de separação, da partilha dos bens do casal, sem em nada ter contribuído com seu consorte e com a sua família, e nem mesmo reembolsando o ex-companheiro pelas despesas que arcou com a manutenção do imóvel e com os cuidados e as necessidades da família.
Ainda, sendo a posse elemento fundamental para a configuração da prescrição aquisitiva, não é qualquer espécie de posse que está apta, em nosso ordenamento jurídico, à condução da usucapião. A Lei exige, nesse sentido, que a posse exercida pelo usucapiente revista-se de certas características, dentre elas, o ânimo de dono por parte do possuidor, a sua mansidão, a sua pacificidade e a sua continuidade.
Portanto, para a aquisição da propriedade pelo usucapiente, além de preencher o prazo de dois anos de posse do imóvel que pretende usucapir, deve o interessado possuí-lo de forma ininterrupta e direta, ou seja, o cônjuge deve exercer a posse diretamente sobre o bem, sem nenhum óbice ao exercício dos poderes de proprietário. Deve o usucapiente, assim, ter a coisa diretamente em seu poder.
Além disso, a posse exercida pelo cônjuge deve ser exclusiva para sua própria moradia ou de sua família. E assim o é, uma vez que, como já mencionado, a Lei que inseriu a nova modalidade de usucapião em nosso ordenamento jurídico pretende beneficiar famílias de baixa renda, vedando, portanto, o proveito da lei àquele que utiliza o imóvel para fim diverso da moradia.
O imóvel que se pretende usucapir deve respeitar a metragem máxima de 250 m² (duzentos e cinquenta metros quadrados). Frisa-se que essa área compreende tanto a do terreno quanto a da construção, sendo vedada a aplicação da usucapião por abandono do lar em terreno que ultrapasse esse limite.
Ainda, o texto legal traz que, para a aplicação da usucapião por abandono do lar, deve o imóvel em litígio ter sido dividido entre os ex-cônjuges ou ex-companheiros na constância da relação de conjugalidade, e um deles deve ter abandono o lar por pelo menos 2 (dois) anos ininterruptos.
Desse modo, na medida em que a coabitação é prescindível à constituição da entidade familiar, a data da separação fática do casal marca a contagem do período aquisitivo, sendo irrelevante o seu prévio reconhecimento formal, pela via judicial ou pela escritura pública. Destaca-se, por conseguinte, o Enunciado n. 501, aprovado na V Jornada, que conclui que não é requisito indispensável à usucapião o divórcio ou a dissolução da união estável, bastando a mera separação de fato[4] (término da coabitação).
Frisa-se, ainda, que é necessária a adequação dos termos empregados na redação do artigo 1240-A do Código Civil, pela interpretação sistemática da concepção de ex-cônjuge e ex-companheiro, tendo em vista a guarida que a Constituição confere à pluralidade de entidades familiares. Nesse sentido é o Enunciado 500 da V Jornada de Direito Civil[5]: “A modalidade de usucapião prevista no artigo 1240-A do Código Civil pressupõe a propriedade comum do casal e compreende todas as formas de família ou entidades familiares, inclusive as homoafetivas”.
Quanto ao requisito abandono do lar, a doutrina e a jurisprudência se dividem no momento de interpretá-lo. De antemão, o que se defende neste artigo é que a análise sobre o presente requisito deve ser feita a partir da situação jurídica dos entes familiares que restaram desamparados e podem vir a merecer certa proteção material, o que será explicitado pormenorizadamente a seguir.
Da leitura do artigo 1240-A do Código Civil Brasileiro, podemos identificar a boa intenção do legislador que procurou tutelar situações fáticas e corriqueiras da nossa sociedade, ao dar uma solução adequada ao fim conflituoso de uma relação advinda do matrimônio ou da união estável[6]; onde não ficaram resolvidas, entretanto, as questões atinentes à propriedade conjugal.
Isso porque, com a separação física do casal, usualmente um dos membros permanece no lar (na maioria das vezes a mulher e os filhos), enquanto o outro dali aparta (majoritariamente o homem)[7], podendo ocorrer, num momento futuro, a reivindicação desse imóvel pelo parceiro(a) abandonante, implicando problemas de diversas ordens e ameaçando o direito à moradia e à dignidade da pessoa humana daqueles que ali permaneceram.
Parece plausível, nesse sentido, que o legislador, ao redigir a Lei, em 2011, tenha tentado tutelar situações fáticas como a acima descrita, buscando amparar o consorte que necessitaria do bem para a sua moradia e que responsabilizou-se, inclusive, pelas despesas e custos referentes à manutenção do imóvel.
Nesse interregno, resta evidente a preocupação em tutelar a família abandonada e em ver efetivado o direito fundamental à moradia. No entanto, em que pese a boa intenção do poder legiferante quando da redação do artigo 1240-A do Código Civil, diversas atecnias presentes nessa modalidade de usucapião colocam em cheque o efetivo emprego do instituto pelos juristas.
Tal inconsistência técnica reflete-se na dicotomia doutrinária e jurisprudencial que existe em nosso ordenamento jurídico, ora alegando ser a novel modalidade de usucapião positiva e acolhida pelos princípios basilares da nossa Constituição, ora afirmando que é ela inconstitucional, gerando, assim, demasiada insegurança jurídica e a consequente inaplicabilidade do instituto no direito pátrio.
Nesse ínterim, como é sabido, a investigação da culpa esteve presente nas ações de separação judicial litigiosa até a Constituição da República, de 1988, quando então houve a “repersonalização” das relações civis, como bem afirma Lôbo (2018a, p. 19), que levou à constitucionalização da dignidade da pessoa humana. Por conseguinte, com a promulgação da Emenda Constitucional nº 66 de 2010[8], que alterou o § 6º do artigo 226 da Constituição, deu-se por afastada qualquer discussão acerca da culpabilidade de um dos cônjuges pelo fim do vínculo marital, consolidando-se a dissolução do casamento civil a partir do divórcio.
Desse modo, assevera Dias (2011, p. 112) que nada justifica a inserção da culpa no âmbito das relações familiares. No entanto, a redação de um dos requisitos para a aquisição da propriedade pela usucapião em estudo leva parte da doutrina à defesa de que a prescrição aquisitiva por abandono do lar apresenta uma afronta ao princípio constitucional de vedação ao retrocesso[9], uma vez que traz à tona a discussão da superada busca do culpado pelo fim dos relacionamentos conjugais.
Nesse sentido, afirmam Farias e Rosenvald (2012, p. 466): “[…] o art. 1.240-A do Código Civil se apoia no subjetivismo da identificação de um culpado para criar uma nova pena civil: a do perdimento da copropriedade sobre o imóvel do casal como consequência do ato ilícito do abandono injustificado do lar.”
Freitas (2012, p. 10), no mesmo sentido, pondera que a volta da discussão sobre a culpa torna o instituto da usucapião inconstitucional, assim como Venosa (2012, p. 213), cujo raciocínio evidencia que a intenção do legislador de amparar o consorte abandonado não logrou êxito no texto conferido à norma, dificultando a aplicação do artigo em razão do requisito abandono do lar.
Contudo, em que pese os argumentos dos renomados doutrinadores aqui citados, não há como vendar os olhos diante da realidade existente em nosso país, cujo histórico de saída do lar por um dos cônjuges, que abandona o núcleo familiar de maneira econômica/financeira e afetiva ainda é observado.
Oliveira, em artigo publicado na Revista Elaborar[10], destaca que o fenômeno do abandono familiar, principalmente pelos pais, não é um fato observável somente na atualidade. O autor demonstra que a deserção da paternidade remete ao Brasil Colônia, quando os filhos eram rejeitados pelos genitores masculinos, especialmente por serem frutos de relações extraconjugais.
Certo é que o atual cenário de abandono familiar, principalmente pela figura do pai, é reflexo do nosso passado que estigmatizava mulheres solteiras que tinham filhos com homens casados. Hoje em dia, há mulheres que, por uma maternidade indesejada ou ocasional, terminam por assumirem sozinhas e legalmente a parentalidade (OLIVEIRA, 2015, p. 12). Por outro viés, existem também mulheres que são deixadas pelos cônjuges/companheiros, que acabam assumindo, por conseguinte, a chefia da família e o ônus de prover materialmente a casa e os filhos.
Por essa razão, a atecnia produzida pelo legislador quando da redação do artigo 1240-A, ao elencar o requisito abandono do lar, deve ser revista e reinterpretada por nossos doutrinadores e juristas, a fim de que a modalidade da usucapião em comento seja aplicada na prática, com o intuito de proteger os direitos fundamentais da dignidade da pessoa humana e da moradia.
Assim, a tutela do consorte abandonado, que, na maioria dos casos, é a mulher encarregada da criação dos filhos, deve ser efetivada pelo Estado e pelo poder legiferante.
A usucapião por abandono do lar, nesse sentido, é uma tentativa de amparar as entidades familiares que se encontram inseridas nessa realidade fática e, por isso, deve ser bem recebida pelos aplicadores do direito e interpretada de modo a garantir os direitos fundamentais presentes na Constituição.
A partir da afirmativa de que a Constituição serve de guia para a interpretação do Código Civil, e não o contrário, vê-se como possível extrair um sentido da usucapião por abandono do lar que seja compatível e adequado ao texto constitucional. (LEONARDO, 2004, p. 271-287)
Dessa forma, tomando-se como base o princípio da dignidade da pessoa humana, basilar na Constituição de 1988, a atenção a esse corolário circunscreve-se a proteções que podem assumir relevos patrimoniais, uma vez que, como bem assevera Maria Celina Bodin:
“[…] o princípio constitucional visa a garantir o respeito e a proteção da dignidade da pessoa humana, não apenas no sentido de assegurar um tratamento humano e não degradante, e tampouco conduz ao mero oferecimento de integridades físicas ao ser humano […]. Neste ambiente, de um renovado humanismo, a vulnerabilidade humana será tutelada, prioritariamente, onde quer que ela se manifeste. De modo que terão precedência os direitos e as prerrogativas de determinados grupos considerados, de uma maneira ou de outra, frágeis e que estão a exigir, por conseguinte, a especial proteção da lei. (MORAES, 2003, p. 116)”
Assim, aqueles integrantes do núcleo familiar que restaram desamparados e que necessitam do uso do imóvel para a sua moradia e sobrevivência, devem ser tutelados pelo ordenamento jurídico pátrio, notadamente para o cumprimento do princípio da dignidade humana, o qual é a base de outros direitos fundamentais previstos no texto constitucional, sendo os mais relevantes para a finalidade do presente trabalho de conclusão de curso o da solidariedade, o da responsabilidade familiar e o da função social da propriedade.
Tais direitos fundamentais sustentam, sobremaneira, a constitucionalidade da usucapião por abandono do lar, contrapondo-se às declarações dos doutrinadores expostas anteriormente nesse capítulo, que entendem ser a modalidade da usucapião inconstitucional.
Há sólida corrente doutrinária nesse sentido, a exemplo de Fachin (2011a) que afirma a adequação da aplicação do artigo 1.240-A do Código Civil aos vetores do ordenamento jurídico brasileiro, sendo possível o acolhimento do artigo em comento a partir da leitura orientada pelas “determinantes principiológicas-constitucionais”.[11]
Em igual raciocínio, Vilardo (2012b, p.46-60) menciona que, embora resgatado o termo abandono do lar – já apagado de nosso ordenamento jurídico pela Emenda Constitucional nº 66/2010 – não se pode utilizar o mesmo conceito de outrora. Para a autora, o abandono do lar deve ser entendido como a saída do lar comum por um dos cônjuges e a sequencial despreocupação com o dever que possui de assistência ao cônjuge ou com o cuidado dos filhos. E ainda completa:
“Caso não haja necessidade de alimentos para ex-cônjuge ou ex-companheiro, ou por ausência de filhos menores de idade, o abandono poderia ser caracterizado pela ausência de contribuição para o pagamento dos impostos relativos ao imóvel, na ausência de acordo sobre tal pagamento por aquele que ficou residindo. (VILARDO, 2012c, p. 50)”
Desse modo, segundo Fachin (2011b), o instituto da Usucapião por Abandono do Lar protege o direito à moradia da pessoa que restou no imóvel. Complementa o autor que se trata de uma escolha que visa proteger o mínimo existencial daquele que, materialmente, pouco possui, ainda que isso se dê em detrimento da tutela à propriedade daquele que abandonou o lar.
Isso porque, assegurar o direito à moradia do consorte que restou financeiramente desemparado significa proteger, além do mais, a moradia e a dignidade daquele núcleo familiar que remanesceu no imóvel.
Não obstante a Constituição de 1988 proteger o direito fundamental à propriedade em seu artigo 5º, inciso XXII, essa Carta o condiciona ao cumprimento da função social, no inciso XXIII do mesmo artigo.
Dessa forma, a usucapião por abandono do lar visa resguardar o direito daquele que atende a função social do imóvel, conferindo autonomia ao possuidor sem, entretanto, descumprir com o direito à propriedade, vez que esse corolário está vinculado ao atendimento da função social da propriedade, o que torna o instituo amparado pela Constituição Federal (FACHIN, 2011c) e pelos princípios civis-constitucionais supra mencionados.
Por isso, o requisito do abandono do lar merece uma interpretação objetiva e cautelosa e, o que se indica, é que seja feita no sentido de interrupção, por um dos cônjuges/companheiros, da comunhão da vida conjunta e da assistência financeira e moral àqueles que compõem o núcleo familiar, renegando o dever solidário de responsabilidade para com a família. (FACHIN, 2011d)
Assim sendo, em que pese os argumentos de doutrinadores que entendem a usucapião por abandono do lar em um sentido diverso, alegando ser inconstitucional em virtude da averiguação da culpa por parte do consorte abandonante, foi sedimentado pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho de Justiça Federal, coordenador da VII Jornada de Direito Civil, o Enunciado 595[12], que aclara o atual significado da expressão “abandono do lar”, indicando a interpretação do dispositivo de lei a ser seguido:
“O requisito do “abandono do lar” deve ser interpretado na ótica do instituto da usucapião familiar como abandono voluntário da posse do imóvel, somando à ausência da tutela da família, não importando em averiguação da culpa pelo fim do casamento ou união estável. Revogado o Enunciado 499.”
Demonstrado, portanto, que existe parte da doutrina favorável à constitucionalidade do artigo 1240-A do Código Civil – com amparo, essencialmente, aos princípios civis-constitucionais mencionados neste capítulo – indica-se que a interpretação acerca do requisito “abandono do lar” deve ser feita com base no atual cenário do Direito de Família brasileiro. Ou seja, qualquer averiguação de eventual culpa pelo término de uma relação de conjugalidade não será adequada à aplicação da usucapião por abandono do lar, sendo que este requisito deve ser orientado a partir, principalmente, da responsabilidade e solidariedade familiares que o cônjuge abandonante tem para com a família.
Nesse sentido, e com base na constitucionalidade da usucapião em comento, é que se defende a sua utilização por mulheres que encontram-se em situação de vulnerabilidade, quando o núcleo familiar a que pertencem é abandonado pelo cônjuge/companheiro. Esta afirmação, por conseguinte, será debatida a seguir.
Para justificar tal assertiva, será necessária uma breve digressão sobre o surgimento do patriarcalismo e seu reflexo em nossa sociedade. Em especial, será feita uma análise da estrutura patriarcal que permeia as relações entre cônjuges e companheiros, destacando-se a posição que a mulher desempenha no lar.
Perante essa realidade, faz-se necessário recorrer-se aos estudos de Marx e Engels (1984) que versam sobre a origem da Família, da propriedade privada e do Estado.
3.1. A Origem do patriarcalismo
Engels serve-se dos estudos de Morgan para explicar o surgimento das entidades familiares. Para isso, o autor divide o desenvolvimento humano em três períodos – o selvagem, o da barbárie e o da civilização –, afirmando que o desenvolvimento da família é paralelo, mas não tão bem delimitado, a tal classificação. (ENGELS, 1984a, p. 21)
E, de toda uma evolução histórica, amparada, pelos estudos do autor (1984p, p. 21-68), extrai-se que: 1) com o surgimento da monogamia, o patriarcalismo triunfou; 2) esse sistema de opressão do homem sobre a mulher é benéfico ao atual sistema econômico que vivemos – o capitalismo – por delimitar a propriedade privada e a concentração de riquezas.
Desse modo, entendendo ser o patriarcalismo uma organização social que beneficia o homem em detrimento da mulher, percebe-se que essa estrutura básica tem correspondência com a formação de uma esfera privada e outra pública. A esfera privada, nesse sentido, é ocupada pelo ideal “feminino” – família, sexualidade, entre outros – quando a esfera pública – trabalho, Estado, política, ciência, arte, etc. – é, por sua vez, “masculina”. (SCHOLZ, 1996a)
Nessa linha de raciocínio, Scholz (1996b, p. 19-52), demonstra, a partir de uma abordagem histórico-sistemática, o percurso em direção à clausura doméstica da mulher e da exclusão do feminino desde a Antiguidade Clássica até os dias atuais.
Assim, a autora afirma que os pressupostos do patriarcado ocidental cristão ligado à “forma-valor” têm origem na Grécia Antiga: a esfera pública conduzida pela dialética e pela lógica formal era reservada, exclusivamente, aos cidadãos masculinos. Às mulheres, todavia, cabiam o exílio em casa, de onde deveriam sair o mínimo possível. A principal tarefa dessa mulher era conceber um filho, caso contrário, sua vida seria em vão.
Posteriormente, na sociedade medieval, a mulher era subordinada juridicamente ao homem e podia até mesmo ser negociada como um escravo ou um objeto qualquer. Foi nessa época que Igreja Católica reprimiu, fortemente, o controle feminino da natureza, institucionalizando a chamada “caça às bruxas”, pelo que houve a expropriação da ciência empírica das mulheres e uma ascensão à racionalidade masculina.
Com o advento da Idade Moderna, desenvolveu-se o ideal materno, como tendência de domesticar a mulher para que ela levasse uma vida “serena” e controlada pelo patriarcado. Surge, assim, o esboço de uma feminilidade burguesa voltada à família: a mulher estava incumbida às atividades privadas e de cunho pessoal, enquanto o homem, às atividades produtivas das ciência e tecnologias. (FREVERT, 1986, p. 65 in SCHOLZ, 1992c)
Na segunda metade do século XX, surge um potencial contraditório. Mesmo com o aumento vertiginoso das atividades femininas remuneradas após o término da II Guerra Mundial, a mulher vê-se presa ao seu papel tradicional pela responsabilidade que lhe é imbuída no tocante à criação dos filhos e pelo fato de que sempre são elas as principais atingidas pelo desemprego em massa.
Beck (1990, p. 24 in SCHOLZ, 1992d), demonstra empiricamente a disparidade da situação entre homens e mulheres com base em dados contraditórios da emancipação feminina: as mulheres equiparam-se aos homens na obtenção de diplomas escolares, todavia, não conseguem ocupar, em pé de igualdade, as áreas dominantes da sociedade – política, economia, ciência, mídia – preponderantemente desempenhadas pela figura masculina.
Essa breve digressão histórica trazida por Scholz em seu livro “O valor é o homem”, revela o porquê da monogamia e do patriarcalismo permearem, cultural e estruturalmente, nossa atual sociedade. Foucault (1988, p. 115 e 166), ainda, chama esse processo de “histerização feminina”, concluindo que: “o corpo da mulher passa a ser analisado, qualificado e desqualificado com o corpo social, com o espaço familiar e com a vida das crianças, onde sempre deveria figurar como valor, onde lhe atribuíam novo rol de obrigações conjugais e parentais”.
Demonstrado, portanto, que a mulher vive em um meio social calcado pelo patriarcalismo e pela desigualdade de gênero, mister é ressaltar, mais especificadamente, o papel feminino nas relações de conjugalidade da nossa sociedade, afim de que a justificativa do presente aritgo reste exaurida, conforme passo a expor.
4.2 A figura feminina na monogamia
É na dicotomia entre o público e o privado que se delineia no imaginário dos indivíduos o que é ser mulher. Isso cria representações sociais em nossa sociedade, evidenciando quais são os papéis que devem ser desempenhados exclusivamente pelo sexo feminino – e quais papéis são a ele negados. Esse imaginário fabricado através de um contexto histórico e sociocultural condiciona as escolhas e as posições que as mulheres devem exercer na coletividade. Dessa forma, podemos considerar que:
“[…]sem ser remunerada, a mulher ficou encarregada das tarefas da reprodução da força de trabalho e da reprodução biológica do social nas esferas do privado. Enquanto o homem responsabilizou-se pelo trabalho produtivo na esfera do público e por tal passou a ser remunerado. A ideologia se encarregou do resto, transformando essa rígida divisão sexual do trabalho em uma divisão natural, própria à biologia de cada sexo. A mitificação do papel de esposa e de mãe concretizou-se mais facilmente na medida em que casa e família passaram a significar a mesma coisa, apesar de na verdade não o serem. (MASSI, 1992a, p.79)”
Segundo o entendimento da autora, ao homem foi concedido o espaço público e à mulher, o espaço privado. Ou seja, enquanto o papel social da figura masculina era o de trabalhar e o de prover a família, o papel feminino era o de cuidar do lar e de se responsabilizar pela criação dos filhos. Esse estereótipo do que é masculino e do que é feminino foi assimilado e internalizado no cotidiano da nossa sociedade. Os papéis atribuídos às mulheres quanto à criação dos filhos e ao cuidado do lar (ambos domésticos) foram sedimentados e naturalizados. (MASSI, 1992b)
É por essa razão que medidas advindas tanto do Poder Legislativo, quanto do Executivo, que têm o escopo de reverter esse quadro desigual ocasionado pelo patriarcalismo e pela desigualdade de gêneros, devem ser recebidas e aplicadas pelos operadores do direito, e com um olhar crítico sem a limitação das amarras do direito positivado, mas levando em conta o processo histórico e cultural que permeia o caso concreto e, também, o arcabouço principiológico que rege o direito pátrio.
Esse, portanto, é o sentido que se busca demonstrar quando da aplicação da Usucapião por Abandono do Lar, que demonstra ser uma medida extremamente positiva à proteção de mulheres que se encontram em situação de desamparo quando do término de uma relação de conjugalidade, o que será debatido no capítulo que segue.
4.3 O artigo 1240-A do Código Civil e a sua relevância para a valorização feminina
Em que pese parte da doutrina não ter recebido com bons olhos a novel modalidade de usucapião o aplicador do direito e os doutrinadores devem interpretar essa nova instituição como um instrumento positivo na luta pela igualdade de gênero.
Isso porque não se pode ignorar a existência da diferença histórica entre homens e mulheres em nossa sociedade, que envolve também uma questão de poder econômico, acesso ao mercado de trabalho e instrumentos legislativos legitimadores, como bem assevera Maria Berenice Dias:
“A família assim tutelada pelo Estado sempre teve um perfil patriarcal, sendo uma relação hierarquizada, patrimonializada, verticalizada e, é claro, heterossexual. O homem era o chefe da sociedade conjugal, o cabeça do casal, o administrador dos bens da família. Tudo isso assegurava a supremacia masculina, o que acabava chancelando a violência doméstica. (DIAS, 2010, p. 6)”
Nesse aspecto, a usucapião por abandono do lar deve ser recebida como um instrumento de amparo às mulheres que, privadas do mercado de trabalho e da educação, acabaram tornando-se econômica e financeiramente dependentes de seus parceiros, conforme o esclarecido em capítulo próprio, sendo que ao homem foi apresentado o lugar público, e à mulher, o privado.
Por essa razão, esse instituto deve ser analisado como uma medida de amparo às mulheres que, dependentes da figura masculina para sua sobrevivência e sustento do lar, se veem abandonadas pelo parceiro. Essa mulher abandonada que, na grande maioria dos casos, herda o encargo pela criação dos filhos e pela manutenção do lar, não pode ter o imóvel em que vive com seus filhos reivindicado, anos após, pelo marido que os abandonou, ou até por terceiros estranhos à relação.
Nesse ponto, cumpre frisar que a figura da usucapião por abandono do lar demonstra ser um instrumento muito positivo às mulheres que enquadram-se nessa situação, quando arguido, também, como matéria de defesa. Não é incomum verificar, no nosso dia-a-dia, a figura paterna que abandona o lar e deixa de contribuir com o sustento da casa e de seus filhos, e volta, anos depois, com o escopo de tomar o bem para si – ou até desejando a partilha da copropriedade – alegando ser o proprietário do imóvel.
Seria um contrassenso, nesse sentido, não outorgar a propriedade a essa mulher que foi abandonada e que permaneceu no bem, cuja possibilidade de comprar um imóvel por conta própria é remota.
Numa sociedade marcadamente patriarcal como a nossa, com parte da população feminina dependente econômica e financeiramente de seus cônjuges/companheiros – privadas, portanto, do mercado de trabalho –, a aquisição do imóvel, a partir do cumprimento dos requisitos da usucapião por abandono do lar, demonstra ser um instrumento de valorização feminina, cujo principal elemento reside na possibilidade de reestruturação e proteção do núcleo familiar abandonado.
Por isso, a discussão central sobre a nova modalidade de usucapião não deve ser permeado pela “culpabilização” do cônjuge abandonante, conforme defendem alguns doutrinadores. Pelo contrário, deve-se examinar o outro lado da relação e, se observada a violação de direitos fundamentais – especialmente o da dignidade da pessoa humana e o da moradia, como também os princípios que norteiam o Direito de Família –, deve o direito priorizar e tutelar esse lado da relação que demonstra ser o mais fragilizado e que está com seus direitos básicos sob ameaça.
Frisa-se, mais uma vez, que esse polo é majoritariamente ocupado por mulheres, em razão de todo um processo histórico e sociocultural responsável pela criação da estrutura patriarcal que sustenta a nossa sociedade.
Por outro lado, não se pode vedar os olhos à nova realidade social que acomete a composição das famílias brasileiras da atualidade. Há grande parcela de mulheres optando por criar seus filhos sozinhas, com a ausência da figura paterna.
No entanto, segundo Giddens (2005, p. 158), essas mulheres que podem optar por serem mães “solo” têm poder econômico e financeiro suficientes para o sustento material de suas famílias. Porém, para a grande maioria das mulheres, o cenário é outro: a maternidade “solo” não é uma escolha para aquelas que são pobres, e sim uma consequência, que pode ser fruto de diversos motivos.
Sobre esse fato, Fonseca atenta para o fato de que:
“O recente aumento do número de famílias chefiadas por mulheres esteja ligado, entre as camadas médias, ao movimento feminista e à nova autonomia da mulher. Projetar essa mesma explicação sobre grupos pobres, cuja alta taxa de mulheres chefe de família tem sido historicamente ligada à pobreza, seria um engano. (FONSECA, 1997, p. 546)”
Ocorre que essa mudança na característica da estrutura familiar “tradicional” do país, segundo Dandurand (1991, apud Abranhão, 2003, p. 34), é um fato que sempre ocorreu na sociedade brasileira. Explica o autor que a existência de mães solteiras e mulheres separadas ou abandonadas por seus maridos e companheiros já existia anteriormente, mas que agora os analistas sociais denominam esse novo núcleo familiar de “famílias monoparentais”.
Ou seja, o fenômeno do abandono familiar pela figura paterna e o encargo da figura materna pela criação dos filhos fez e faz parte da história da humanidade. As mulheres, por ocasião da opressão de gênero e do patriarcalismo, tiveram e têm que buscar saídas para superarem essa ausência constante da figura paterna dentro do núcleo familiar.
Apesar do atual protagonismo de algumas mulheres que superam essa ausência, acabando por descontruir papéis importantes que as oprimem em razão do gênero, esse não é, nem de longe, o cenário da maioria das mães que criam seus filhos sozinhas.
É nessa linha interpretativa, portanto, que deve a novel modalidade de usucapião ser observada pelos aplicadores do direito, uma vez que esse instituto permite à mulher de baixa renda que vê seu núcleo familiar abandonado pelo provedor a chance de defender e de reivindicar a propriedade em que reside.
Isso porque, com a aquisição da propriedade, ou até mesmo com a impossibilidade da retomada pelo ex-cônjuge do imóvel em litígio, essa mulher pode iniciar um caminho à emancipação econômica e financeira, assistindo-lhe assim, os princípios da dignidade da pessoa humana e da moradia, como manda a Constituição de 1988.
Nesse sentido, para uma melhor aplicação da modalidade de usucapião em comento, em especial, visando ao amparo de mulheres que se veem desassistidas quando do término de uma relação de conjugalidade, a interpretação acerca do requisito abandono do lar deve ser orientada para a finalidade de tutelar a entidade familiar e o conjunto de direitos que compõem a sua esfera existencial mínima.
De antemão, ressalta-se que, segundo Fachin (2011e), o artigo 1240-A, CC trata de imóvel cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar. Esse artigo, portanto, refere-se à propriedade em sentido amplo, de modo que não é necessário que o imóvel seja de titularidade do usucapiente, uma vez que a modalidade de usucapião em comento não altera o regime de bens, já que se trata de aquisição originária de propriedade.
No tocante à abrangência do termo abandono do lar, o que se indica é que a sua interpretação não deve ser somente quanto à simples saída do lar por um dos cônjuges/companheiros. “Abandonar é abdicar” e, pois, deve ser interpretado, conforme anteriormente mencionado, no sentido da interrupção da vida em conjunto e da consequente despreocupação afetiva e material para com o núcleo familiar remanescente daquele que abandonou o lar.
Além disso, por estar diretamente atrelada à proteção da família e à concretização da dignidade da pessoa humana, há que se garantir uma interpretação tecnicamente mais branda do requisito previsto no artigo 1240-A quanto ao termo “posse direta”, ampliando o alcance do artigo 1240-A a determinados casos específicos. (SIMÃO, TARTUCE, 2013, p.172)
Isso porque, em uma sociedade em que persistem condições de desigualdade de gênero e alto índice de violência doméstica, não se pode limitar a aplicação do instituto somente àquele cônjuge ou companheiro que permaneceu fisicamente no imóvel. Especialmente pelo motivo da grande maioria das vítimas de violência doméstica não representarem seus agressores, por temerem o agravamento do conflito familiar e, com isso, saírem do lar conjugal sem acionar as autoridades públicas competentes para tutelar a situação pela qual passam.
Um exemplo hipotético apresentado na Revista Brasileira de Direito Civil (CALDERON, IWASAKI, 2015, p. 48-49), no qual a mulher, vítima de violência doméstica, sai do lar com seus filhos para evitar tais hostilidades, sendo que grande parte delas não ajuíza nenhuma ação judicial e, sequer registra boletim de ocorrência. Ao lado dessa mulher que saiu do lar conjugal, está o pai/marido agressor que restou fisicamente no lar e não fez frente a suas responsabilidades parentais: não pagou alimentos e não visitou os filhos, por exemplo. Nessa realidade, presente com frequência no cenário das populações de baixa renda, seria sustentável afirmar que o consorte-agressor que restou fisicamente no lar por dois anos seguidos, mas abandonou por completo sua família neste período, descumprindo os princípios da solidariedade e da responsabilidade familiar, venha a receber a propriedade em seu favor a partir da usucapião por abandono do lar?
Evidente que não.
Deve ser apurada, portanto, a função contemporânea da modalidade de usucapião por abandono do lar, de acordo com uma análise una do ordenamento jurídico. Isto porque os princípios presentes no direito familiar, balizados, ainda, pelos princípios constitucionais, devem ser observados como categoria ética e moral, significando, nas palavras de Lôbo (2018b, p. 57), “um vínculo de sentimento racionalmente guiado, limitado e autodeterminado que compele à oferta de ajuda”.
Somada a essa interpretação, o aplicador do direito deve também analisar que, ao termo abandono do lar deve ser conferido um significado adequado com base no atual retrato civil-constitucional da família atual, de modo que qualquer interpretação que retome a averiguação da culpa na dissolução do vínculo conjugal não deve ser acatada, uma vez que a culpa pelo término das relações de conjugalidade é uma questão superada no Direito Civil Brasileiro.
As considerações aqui defendidas ressaltam a necessidade de uma hermenêutica crítica acerca da usucapião em comento que seja harmônica com os tempos presentes.
Utilizar esse sentido de abandono do lar como pressuposto para a usucapião do artigo 1240-A do Código Civil permite uma aproximação com todos os princípios e valores constitucionais que foram os justificadores e criadores do dispositivo e, consequentemente, constitui um instrumento positivo à valorização das mulheres.
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[1] Art. 6º da Constituição de 1988. São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 90, de 2015).
[2] Disponível em: <<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Mpv/514.htm>>. Acesso em: 25/07/2019.
[3] Art. 183 da Constituição da República de 1988. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
[4] Jornadas de Direito Civil I, III, IV e V: Enunciados Aprovados. Coordenador científico Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior – Brasília: Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários, 2012. “As expressões ‘ex-cônjuge’ e ‘ex-companheiro’, contidas no artigo 1240-A do Código Civil, correspondem à situação fática da separação, independentemente do divórcio”. Disponível em: <http://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/570.> Acesso em: 5 jun. 2018.
[5] Jornadas de Direito Civil I, III, IV e V: Enunciados Aprovados. Coordenador científico Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior – Brasília: Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários, 2012. “As expressões ‘ex-cônjuge’ e ‘ex-companheiro’, contidas no artigo 1240-A do Código Civil, correspondem à situação fática da separação, independentemente do divórcio”. Disponível em: <http://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/570.> Acesso em: 5 jun. 2018.
[6] O Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu julgamento que discute a equiparação entre cônjuge e companheiro para fins de sucessão, inclusive em uniões homoafetivas. A decisão foi proferida no julgamento dos Recursos Extraordinários (REs) 646.721 e 878.694, ambos com repercussão geral reconhecida. No julgamento realizado, os ministros declararam inconstitucional o artigo 1.790 do Código Civil, que estabelece diferenças entre a participação do companheiro e do cônjuge na sucessão dos bens.
O RE 878.694 trata de união de casal heteroafetivo, e o RE 646.721 aborda sucessão em uma relação homoafetiva. A conclusão do Tribunal foi de que não existe elemento de discriminação que justifique o tratamento diferenciado entre cônjuge e companheiro estabelecido pelo Código Civil, estendendo esses efeitos independentemente de orientação sexual. Assim, tem-se equiparada a união estável ao casamento, incidindo na primeira, todos os efeitos pré-estabelecidos em norma ao segundo. STF. Repercussão Geral n. 646.721. Relator Ministro Marco Aurélio. Brasília, DF, julgamento em 10/05/2017. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=342982>. Acesso em: 30 abr. 2018.
[7] CALDERON, R.L, IWASAKI, M.M. Usucapião familiar: Quem nos salva da bondade dos bons? Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, v. 3 – jan/mar, p. 31, 2015, ISSN 2358-6974.
[8] Emenda Constitucional nº 66, de 13 de julho de 2010, dá nova redação ao § 6º do art. 226 da Constituição Federal, que dispõe sobre a dissolubilidade do casamento civil pelo divórcio, suprimindo o requisito de prévia separação judicial por mais de 1 (um) ano ou de comprovada separação de fato por mais de 2 (dois) anos. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc66.htm>. Acesso em: 30 abr. 2018.
[9] O Supremo Tribunal Federal, ao tratar do princípio da vedação ao retrocesso, decidiu: […] A proibição do retrocesso social como obstáculo constitucional à frustação e ao inadimplemento, pelo poder público, de direitos prestacionais. – O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. – A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculos a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. Doutrina. Em consequência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar – mediante supressão total ou parcial – os direitos sociais já concretizados. STF. ARE 639.337 AgR. Relator: Min. Celso de Mello, Segunda Turma, julgado em 23/08/2011, DJe-177.
[10] OLIVEIRA, Ronisson de Souza de. Mães Solteiras e a Ausência do Pai: Questão Histórica e Novos Dilemas. Revista Elaborar. Vol. 2, ano 3, n. 1, 2015, ISSN 2318-9932.
[11] FACHIN, Luiz Edson. A constitucionalidade da usucapião familiar do artigo 1.240-A do Código Civil. Revista Carta Forense, 2 de outubro de 2011. Disponível em: <http.//www.cartaforensen.com.br/conteúdo/artigos/a-constitucionalidade-dausucapiao-familiar-artigo-1240-a-do-codigo-civil-brasileiro/7733>. Acesso em: 10 abr. 2018.
[12] Enunciado 595, da VII Jornada de Direito Civil. Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal. Brasília, DF, 2015. Disponível em: <http://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/853>. Acesso em: 10 abr. 2018.
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