Rogério Duarte Fernandes dos Passos – Advogado, pedagogo e historiador. Mestre em Direito Internacional pela Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP). Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
Resumo: Objetiva-se com o presente texto proceder breves anotações e percepções à Lei nº 14038, de 17 de Agosto de 2020, que dispôs sobre a profissão de Historiador. Para tanto, far-se-á breve análise acerca da interface infraconstitucional e constitucional envolvida, colhendo-se considerações de Historiadores no tema, deduzindo, por derradeiro, as considerações finais.
Palavras-chave: Direito Administrativo. Profissões regulamentadas. Regulamentação da profissão de Historiador. Consolidação das Leis do Trabalho no Brasil.
Abstract: The objective of this text is to make brief notes and insights into Law nº 14.038/2020, about the profession of Historian. In order to do so, a brief analysis will be made about the infraconstitutional and constitutional interface involved, collecting considerations from Historians on the subject, deducing, at last, the final considerations.
Keywords. Administrative law. Regulated professions. Regulation of the profession of Historian. Consolidation of labor laws from Brazil.
Sumário: Introdução: sobre a História. 1. Breves notas e percepções sobre a Lei nº 14.038, de 17 de Agosto de 2020. 1.1. A interface infraconstitucional e constitucional. 2. Trazendo ao debate algumas posições de historiadores sobre a regulamentação. Considerações finais. Referências.
Introdução: sobre a História
O que é a História?
Sobre o que a História é, não responde plenamente à questão a assertiva de ser ela a mera rememória do passado. Ela deve ser tomada, igualmente, como revisita aos eventos pretéritos para a sua compreensão e análise do momento presente. Seu estudo adquire relevo na medida em que, por meio dela, temos a ciência de não ser o momento presente fruto de acaso ou de circunstâncias meramente aleatórias.
Acerca de um possível conceito, Antônio Houaiss (1915-1999), Mauro Salles Villar e Francisco Manoel de Mello Franco vêm em nosso socorro, aduzindo para ela o “conjunto de conhecimentos relativos ao passado da humanidade, segundo o lugar, a época, o ponto de vista escolhido”, o “tratado ou resumo desses conhecimentos”, e, também, a “ciência que estuda eventos passados com referência a um povo, país, período ou indivíduo específico” (HOUAISS; VILLAR; FRANCO, 2015, p. 511).
De investigação sobre o passado, a História firmou-se como campo do conhecimento, materializando experiências e intenções do investigador – Historiador – inquirindo, por diferentes métodos, objetos de pesquisa os mais variados, documentando e analisando a trajetória de pessoas e instituições.
Sobre o desenvolvimento e estabelecimento da História enquanto área do conhecimento e, mesmo, na condição de ciência, antecedentes importantes podem ser colacionados no período da Grécia Antiga – a partir do Século V a.C. –, com Heródoto (485 a.C. – 425 a.C.) – “o pai da História” –, além de Tucídides (ca. 460 a.C.- ca. 400 a.C.) e Xenofonte (ca. 430 a.C.- ca. 355 a.C.) – os dois últimos com os relatos da Guerra do Peloponeso. Já no mundo romano, grande contribuição foi dada por nomes como os de Tito Lívio (ca. 59 a.C. – 17 d.C.), Flávio Josefo (ca. 37 – ca. 100) e Dião Cássio (ca.155 a 163-164 – após 229), e, na tentativa de ilustração de certa síntese de aspectos da vida do universo greco-romano que substanciaram o Ocidente, tem-se os trabalhos do historiador Numa Denis Fustel de Coulanges (1830-1889), e no âmbito do orientalismo – e mesmo do Cristianismo –, de Joseph Ernest Renan (1832-1892), ambos franceses.
Dando salto em direção ao âmbito brasileiro, Vavy Pacheco Borges destaca a contribuição entre nós de Francisco Adolfo de Varnhagen – o Visconde de Porto Seguro (1816-1878), “o Heródoto brasileiro” –, que em seus trabalhos trazia a influência da chamada “Escola Científica Alemã” – com grande preocupação na recuperação de fontes originais de pesquisa (BORGES, 1993, p. 74) –, no que ousamos acrescentar, dentre tantos significativos nomes, John Armitage (1807-1856) (inglês de nascimento), Joaquim Nabuco (1849-1910), Júlio de Mesquita (1862-1927), Euclydes da Cunha (1866-1909), Humberto de Campos (1886-1934), Silvino Canuto Abreu (1892-1980), Tito Lívio Ferreira (1894-1988), Sérgio Buarque de Hollanda (1902-1982) – este bacharel em Direito pela Universidade do Brasil, a atual Universidade Federal do Rio de Janeiro –, Caio Prado Júnior (1907-1990) e Eurípedes Simões de Paula (1910-1977) – originalmente formados em Direito pela Faculdade do Largo São Francisco, da Universidade de São Paulo –, Raymundo Faoro (1925-2003), este formado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e que presidiu o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil entre 1977 e 1979, Pedro Calmon (1902-1985), Josué de Castro (1908-1973), José Honório Rodrigues (1913-1987), Celso Furtado (1920-2004), Darcy Ribeiro (1922-1997), Hernâni Donato (1922-2012), Mílton Santos (1926-2001) – este, sobretudo, um dos maiores geógrafos brasileiros também –, José Sebastião Witter (1933-2014), Boris Fausto, Carlos Guilherme Mota, Evaldo Cabral de Mello, Maria Beatriz Borba Florenzano, Demétrio Magnoli, Milton Neves, Rogério Micheletti, Maria Aparecida de Aquino, Osvaldo Coggiola (argentino de nascimento), Elio Gaspari, Milton Parron, Maria Celina Soares D’Araújo, Heródoto Barbeiro, Paulo Henrique de Figueiredo, Anita Leocádia Benário Prestes, Melhem Adas, José Reinaldo de Lima Lopes, Jaime Pinsky e José Murilo de Carvalho.
Destacaríamos, ainda, além da própria professora Vavy Pacheco Borges – que lecionou na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) –, Letícia Bicalho Canêdo, Leandro Karnal e Pedro Paulo de Abreu Funari – estes também da UNICAMP –, Jorge Luís Mialhe – da Universidade Estadual Paulista e Universidade Metodista de Piracicaba (este com formação em Direito e História) –, sem olvidar no Estado de São Paulo de outros grandes nomes regionais e produtores de conteúdo de micro História, como João Rodrigues Guião (1865-1957) (também advogado); Plínio Travassos dos Santos (1886-1966), Osmani Emboaba da Costa (1912-1988), José Pedro Miranda (1930-1999), Fernando Gelfuso, Igor Ramos, Júlio José Chiavenato, Maria Aparecida Junqueira Veiga Gaeta, José Antônio Corrêa Lages, Wílson Roveri (1929-2004), Rubem Cione (1918-2007) e Divo Marino (1925-2015) – todos atuantes na região de Ribeirão Preto e os três últimos também advogados –, Delphim Ferreira da Rocha Netto (1913-2003) e João Chiarini (1919-1988) (este último também atuante na advocacia), na região de Piracicaba, Leopoldo Amaral (1856-1938), Ruyrillo de Magalhães (1917-2003) (este também do Direito), Orestes Toledo, Eduardo Jintoku Nako e Celso Bodstein, em Campinas, Fanny Olivieri, em Americana, e João José Bellani e Antônio Carlos Angolini, em Santa Bárbara d’Oeste, ao lado de tantos outros Historiadores de todo o Brasil, nos papéis concomitantes de analistas, artistas, cronistas, jornalistas, comunicadores, professores, escritores e memorialistas de inestimável importância para a cultura local e regional em diferentes áreas.
Como nos acrescentam João Paulo Mesquita Hidalgo Ferreira e Luiz Estevam de Oliveira Fernandes, todos nós possuímos condições de relatar nossa própria individualidade e história, considerando nossas vivências e as experiências colhidas na interface daqueles com quem dialogamos e, mesmo, diante do que vemos e ouvimos; diante disso, cada um possui uma história única, estabelecendo experiências muito particulares, na constatação que cada indivíduo é único (FERREIRA; FERNANDES, 2005, p. 6).
Carreando e catalogando as contribuições da cultura para as gerações presentes e futuras, a História encontra antecedentes mais sistematizados desde a Grécia Antiga, e na tentativa de substanciar um projeto de registro do passado apto a superar o mero conteúdo de lendas, narrativas épicas e feitos heroicos, torna-se, no presente, parte integrante dos contextos de educação escolar formal, especialmente em face do objetivo de clarificar e situar o momento presente em ínterim de continuidade com o tempo remoto.
Neste tópico, como afirmamos em outro trabalho, neste verdadeiro de registro do passado enquanto projeto social e tomando a configuração da História como parte do sistema formal de educação, o seu ensino
“relaciona-se com a necessidade premente do ser humano em alcançar as próprias raízes e respostas acerca do significado e de melhor compreensão do momento presente. Nesse processo, a análise das provas, dos indícios ou despojos que trazem sorrateiro e precário conduto vivificador de sobrevida ao passado, pelo estudo histórico se mostra não definitivamente incauto ante as circunstâncias paradoxais que lhes são de forma impávida e heroicamente retroalimentadas, não raro, no trabalho de um único indivíduo-historiador, que em vida, mostra-se capaz de reagir à ignávia de dar cabo ao finito, posicionando-se no embate social como a personagem que não pediu licença para jogar, mas que, fazendo-o, busca derrubar as peças da memória afetiva coletiva, institucional e burocraticamente edificada” (PASSOS, 2021).
Feche-se este tópico com a menção ao Dia Nacional do Historiador, comemorado em 19 de Agosto, por força da Lei nº 12.130/2009 – promulgada pelo então vice-presidente em exercício José Alencar Gomes da Silva (1931-2011) –, escolhida para homenagear, ao lado dos profissionais da área, a memória de Joaquim Nabuco (NITAHARA, 2020).
1.1. A interface infraconstitucional e constitucional
Após o projeto do senador Paulo Paim, do Estado do Rio Grande do Sul, ter sido integralmente vetado pelo presidente da república Jair Bolsonaro – basicamente sob o argumento de nele haver restrição ao livre exercício profissional –, o veto foi derrubado pelo Congresso Nacional e a Lei nº 14.038, de 17 de Agosto de 2020, entrando em vigor, regulamentou a profissão de Historiador, concretizando anos de reivindicações de muitos profissionais que militam na área. Seguiu-se, assim o iter legislativo procedimental nos moldes do § 5º do artigo 66 da Constituição Federal de 05 de Outubro de 1988 – na redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001 –, acerca da não manutenção de vetos do texto pelo presidente da República.
Trazendo o seu escopo, o artigo 1º nos informa que a Lei nº 14.038/2020 regulamenta a profissão de Historiador, estabelecendo requisitos para o seu exercício e registro em órgão competente.
O artigo 2º acrescenta que o exercício da profissão de Historiador é de livre exercício, desde que atendidas as qualificações e exigências na referida lei estabelecidas.
Já no artigo 3º e seus incisos, temos a garantia do exercício da profissão de Historiador aos seguintes profissionais: portadores de diploma em curso superior de História por instituição de ensino regular brasileira (inciso I); portadores de diploma revalidado no Brasil expedido por instituição estrangeira (inciso II); portadores do título de mestrado e doutorado em História por instituição brasileira ou estrangeira, com revalidação do diploma no Brasil (inciso III), e, mesmo, em programa de pós-graduação reconhecido pela Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) – agência governamental ligada ao Ministério da Educação voltada à garantia da qualidade de cursos de graduação e pós-graduação –, com linha de pesquisa dedicada à História (inciso IV), e; profissionais de outras áreas com exercício da profissão de Historiador há pelo menos cinco anos a contar da promulgação da presente lei.
Por sua vez, as atribuições dos Historiadores são elencadas nos incisos do artigo 4º: ensino de História no ensino médio e fundamental, desde que com a formação de licenciatura – basicamente, aquela para lecionar – exigida pela Lei nº 9394/1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) (inciso I); organização de informações para publicações, eventos e exposições que envolvam História (inciso II); direção de pesquisa histórica, contemplando implantação, organização e planejamento de serviços de pesquisa (inciso III), mais assessoramento e organização de serviços de documentação (inciso IV), ao lado de elaboração de pareceres, relatórios, planos, projetos, laudos e trabalhos na área (inciso V), sendo que as entidades que mantiverem em seu quadro de pessoal esses profissionais deverão tê-los, sob contrato de trabalho ou contrato de prestação de serviços, historiadores legalmente habilitados, como se vê no artigo 6º.
No artigo 5º fala-se da exigência de registro profissional, e no artigo 7º perante a autoridade trabalhista competente, “in casu”, via Sistema Eletrônico de Informações de Registro Profissional da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego, estruturalmente alocado ao Ministério da Economia (que na função substituiu o Ministério do Trabalho) na área de circunscrição de atuação.
Em adendo, no texto da atual Constituição, em seu Título II, Dos Direitos e Garantias Fundamentais, cujo Capítulo I, Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, insculpe o rol exemplificativo do artigo 5º, e no inciso XIII, apontando que “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”. Observe-se, portanto, que temos aqui uma possibilidade ofertada ao cidadão e não um direito social, que tem algumas de suas menções e especificações contidas, respectivamente, no artigo 6º – na redação dada pela Emenda Constitucional nº 90/2015 – e artigo 7º, ambos da Carta Política.
Outrossim, a vocação de cada profissional é livre – tem-se aqui, portanto, um direito de natureza individual –, muito embora, como é sabido, por meio da lei, o Estado possa estabelecer tais requisitos de exercício de trabalho, ofício ou profissão visando o interesse público e a proteção de potenciais danos causados a terceiros, de forma que a liberdade de escolha não implica no livre exercício de atividade, havendo, em consequência, a necessidade de cumprimento de exigências legais e materializando um direito de natureza condicionado.
Aprofundando a nossa compreensão acerca da repercussão da questão constitucional, Ricardo Marques de Almeida (2013) adverte e esclarece que aqui
“Trata-se de uma reserva legal qualificada ao direito fundamental, que tolhe do legislador ordinário a discricionariedade para restringir o direito de forma diferente do que dispõe a fórmula “atendida as qualificações profissionais que a lei estabelecer” “[último par de aspas no original].
O autor ainda lembra que é justamente no risco potencial à coletividade que se encontra o limite do exercício profissional estabelecido pelo texto legal, a nos acrescentar que
“Está aí a linha divisória que separa as restrições lícitas das restrições ilícitas. Em todo o caso que não houver ameaça de risco à coletividade, a exemplo do exercício da profissão de jornalista, músico ou de “Disc jockey”, não haverá de se falar em restrições ao seu exercício” [par de aspas entre o texto no original].
Ademais, colacionando jurisprudência qualificada do Supremo Tribunal Federal sobre o tema, Almeida recorda o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) nº 603.583/RS, de lavra do ministro Marco Aurélio Mello, que trouxe o entendimento que em termos de qualificação profissional, estas são a “salvaguarda de que as profissões que representam serão limitadas, serão exercidas somente por aqueles indivíduos conhecedores da técnica”, acrescentando, no mesmo esteio, o RE nº 414.426/SC, de redação da ministra Ellen Gracie Northfleet, o qual, em exegese, agrega que
“ “o exercício profissional só está sujeito a limitações estabelecidas por lei e que tenham por finalidade preservar a sociedade contra danos provocados pelo mau exercício de atividades para as quais sejam indispensáveis conhecimentos técnicos ou científicos avançados” “ (ALMEIDA, 2013) [primeiro par de aspas no original].
Em linhas gerais, Ricardo Marques de Almeida, adicionando que a regulamentação de uma profissão pode ocorrer para melhorar a sua eficiência, a fundamentação de possível restrição pode ocorrer em favor da boa performance e desempenho do empregado ou daquele que se ocupa do cargo (em caso de servidores estatutários), com limitações previstas em contrato de trabalho que estabeleçam dedicação exclusiva e fixação de horário de início e término do trabalho, sem impedir, no entanto, o exercício da liberdade quando a possibilidade for viável e, fora daquele ambiente, de forma a alocar a sua atividade para outro tomador do serviço (ALMEIDA, 2013).
Neste tópico, cabe anotar, ainda, as disposições relacionadas ao trabalho do Historiador na condição de professor – assim como no caso do docente de quaisquer outros componentes curriculares –, contidas no Decreto-Lei nº 5452, de 1º de Maio de 1943, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) –, na qual relembramos o artigo 317, na redação dada pela Lei nº 7855/1989, estabelecendo que “o exercício remunerado do magistério, em estabelecimentos particulares de ensino, exigirá apenas habilitação legal e registro no Ministério da Educação”, ao passo que o artigo 318, na redação dada pela Lei nº 13.415/2017, dispõe que “o professor poderá lecionar em um mesmo estabelecimento por mais de um turno, desde que não ultrapasse a jornada de trabalho semanal estabelecida legalmente, assegurado e não computado o intervalo para refeição”, enquanto o artigo 319 – que chegou a ser revogado pela Medida Provisória nº 905/2019, revogada por outra Medida Provisória, a de nº 955/2020, e esta com vigência encerrada –, acrescenta que “aos professores é vedado, aos domingos, a regência de aulas e o trabalho em exames”, muito embora seja corrente a atividade não formal no dia inicial de folga da semana para que este profissional consiga enfrentar todas as exigências e tarefas, algo possibilitado pela popularização das ferramentas e “softwares” conectados à rede mundial de computadores – a Internet – que funcionam em computadores e dispositivos móveis.
Ainda em comento ao artigo 317 da CLT, na égide da redação dada pela Lei nº 7855/1989, Valentim Carrion (1932-2000) lembrava que professores estaduais, municipais ou de entes paraestatais – por óbvio, incluindo-se os de História –, não sendo funcionários públicos, estão protegidos pelo Direito do Trabalho, opinando pela vedação de contratação de docentes estaduais ou particulares no regime de autônomos, vez que a relação jurídica dos alunos não se dá com estes e sim com os estabelecimentos de ensino, que a dirigem, determinando horários e demais condições, desenvolvendo, então, atividade típica de empresa (CARRION, 1998, p. 228).
Ainda ao que diz respeito ao ensino de História, o “caput” do artigo 26 da LDB, na redação dada pela Lei nº 12.796/2013 –, prevê que os currículos da educação infantil, ensino fundamental e médio, levando em consideração a Base Nacional Curricular Comum – justamente o documento do Ministério da Educação que objetiva garantir as aprendizagens mínimas –, serão complementados por uma parte diversificada aos moldes das características regionais dos educandos, com o respectivo § 4º prevendo o ensino da História do Brasil com as contribuições de diferentes culturas e etnias, especialmente das matrizes indígena, africana e europeia.
Feitos rápidos apontamentos acerca da “quaestio juris”, com o intuito de alavancar maior compreensão sobre a Lei nº 14.038/2020, traremos ao debate o posicionamento de alguns historiadores.
“Ab initio”, Rodrigo Patto Sá Motta, professor da Universidade Federal de Minas Gerais, distanciando-se com propriedade das posições acaloradas, entende que de certa forma é um processo natural que as profissões busquem amparo legal, ainda que muitos teçam críticas à iniciativa, desconhecendo a existência de leis semelhantes para as profissões de químico e biólogo, por exemplo (MOTTA, s.d.). Nesse contexto, sem que de fato o país seja plenamente liberal – onde mesmo os que defendam tal sistema não abram mão de recursos do Estado –, a defesa da profissão passa pela regulamentação, em que órgãos diversos – como casas legislativas, tribunais, arquivos e museus –, incentivem jovens a buscar pela atividade de Historiador (MOTTA, s.d.). Segundo o autor, ainda foi importante manter na lei a possibilidade de atuação de profissionais com pós-graduação em nível de mestrado e doutorado em áreas de concentração dedicadas à História, uma vez que a ação valoriza e preserva espaços interdisciplinares de produção de conhecimentos com ela relacionados (MOTTA, s.d.).
Maria Thereza David João, doutora em História Social pela Universidade de São Paulo, por sua vez, lembrou que chegou-se a cogitar que a regulamentação seria uma tentativa de controle ideológico ou cerceamento da liberdade de expressão, acrescentando que a ação regulamentadora torna-se positiva na medida que atendendo à prescrição prevista em lei, o conhecimento histórico – levado a sério para não trazer danos à própria memória histórica –, não deve ficar à mercê de aventureiros e amadores, alicerçando-se, portanto, com padrões de investigação e patamares científicos estabelecidos e adotados pela comunidade acadêmica (DAVID, 2020).
Bruno Leal Pastor de Carvalho, professor na Universidade de Brasília, contudo, aduz existir um risco na regulamentação, o qual permitiria que pessoas apenas envolvidas com agendas políticas – alegando trabalharem como Historiadoras nos últimos cinco anos –, aleguem possuir autoridade e legitimidade na área (CARVALHO, 2020).
Francisco Marshall, formado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em texto de 2013, opinava que o centro da discussão se materializava pela dimensão da natureza e potência do conhecimento histórico, indagando se há apenas por meio da obtenção do diploma o aprendizado de um método para a produção de conteúdo histórico, com a consideração desse processo atribuído com exclusividade ao Historiador resultar em um bem social e, mesmo, se a investigação histórica poderia ser retirada do restante da sociedade não diplomada na área (MARSHALL, 2013).
Ademais, sintetizando algumas críticas contra o projeto que se converteu em lei, em exemplo dos nomes que mencionamos supra, falou-se da tentativa de criação de uma possível reserva de mercado – em viés corporativista – para a profissão de Historiador, em um país em que grandes nomes da produção historiográfica não possuíam diploma de graduação em História.
Considerações finais.
Feitas as ponderações legais e colacionados alguns depoimentos sobre a regulamentação da profissão de Historiador, temos em exercício de síntese as considerações finais.
Acerca da lei que regulamentou a profissão de Historiador, opina Akemi Nitahara que a Lei nº 14.038/2020 apenas regula parte deste mercado de trabalho, abrindo exceções para a docência em âmbito superior e não restringindo a produção de conhecimento de cunho histórico (NITAHARA, 2020).
A luta pela regulamentação remonta de forma mais substanciosa ao ano de 1968, e a promulgação da Lei nº 14.038, de 17 de Agosto de 2020 pode representar incentivo para que jovens e novos profissionais sintam-se estimulados a adentrar e permanecer na carreira, somadas a abertura de possibilidades – inclusive com consultoria para empresas privadas – e com melhores condições de trabalho. Ademais, supõe-se que o fortalecimento da carreira repercuta positivamente nos aspectos teóricos, metodológicos e didáticos envolvidos na formação do Historiador.
A presença dos Historiadores nos concursos públicos também é algo muito esperado pelos profissionais da área, ansiosos por uma melhor visualização e sistematização da carreira no setor.
Acerca da liberdade de expressão, entendemos que essa não se encontrará restrita, podendo continuar sendo exercida nos termos da lei e da Constituição Federal de 1988, em especial, tomando os cânones inseridos nos incisos IV e IX de seu artigo 5º, que respectivamente dispõe ser “livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”, e que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.
Permanece, entrementes, a questão relacionada à formação de professores no país, sempre pressionada pelo mercado de trabalho ávido por formações mais curtas e ágeis, e, no mesmo sentido, a débil situação econômica e social de muitas famílias de estudantes, com notórias repercussões no ambiente de aprendizado.
Como visto acima, muitos Historiadores vieram de outras áreas, como o Direito – especialmente porque este, a partir da Lei de 11 de Agosto de 1827, constituiu uma formação pioneira no país enunciando quadros para diferentes áreas das humanidades e ciências sociais –, no que o curso superior em História teve sua estruturação primeira na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, em 1934, em um movimento felizmente contínuo e contemplador do entendimento que a trans e interdisciplinaridade é algo deveras positivo e benvindo, uma vez que trazendo especificidades acerca de seu conhecimento de atuação, pode permitir maior apreensão global dos (des)feitos humanos e, evidentemente, melhor compreensão deles. Mesmo porque os fenômenos podem ser capturados em diferentes perspectivas e abordagens, e, sendo a História uma área metodológica e epistemologicamente ampla, pode alicerçar os conhecimentos estruturais e antecedentes da exposição de quaisquer áreas do saber, como, inclusive, foi mencionado na própria área do Direito pelo jurista José Cretella Júnior (1920-2015), citando frase clássica de Ortolan – seria o jurista francês Joseph Louis Elzéar Ortolan (1802-1873)? –, que dizia “com muito acêrto (sic) que todo historiador deveria ser jurisconsulto e todo jurisconsulto historiador” (CRETELLA JÚNIOR, 1967, p. 74).
Essa interface ampla, ao contemplar Direito, Biologia, Química, Física, Religião, Geografia, Artes, Matemática, Música, Filosofia, Psicologia, Sociologia, Educação Física e estudo de línguas, revela novas possibilidades pela disponibilidade do estudo e exame de fontes diversas na Internet, ao lado também de riscos de objeto cognoscível não fidedigno e eticamente duvidoso.
Porém, como acrescentam Luís César Amad Costa e Leonel Ituassu Almeida Mello, na identificação da História, jamais se deve negar a importância do trabalho na evolução da condição animal rumo à hominização do ser humano, repleta de contradições e consequências no estudo da disciplina, pois, se de um lado traz progresso em favor da humanidade, por outro, o labor coloca-se como fardo de ordem insuportável para muitos indivíduos, com tintas trágicas em países jovens como o Brasil; a História materializa-se, assim, como um processo em que todos participam, conscientemente ou não, de forma que tentamos nos capacitar para iluminar o presente e edificar o futuro (COSTA; MELLO, 1990, p. 01).
A disputa acerca de fatos e leituras continuará existindo dentro da História, e no que tange ao ensino no sistema formal de educação, permeado de problemas diversos, necessita que seu enfrentamento se opere com motivação e a disposição daqueles que se dispuseram a assumir a condição de educadores, em um contexto global social profundamente agravado pela pandemia da Covid-19 – assim declarada pela Organização Mundial de Saúde em 11 de Março de 2020, que trouxe isolamento social, longos períodos de ensino remoto pela Internet e evasão escolar –, em diagnóstico de problemas e crise no aspecto emocional e cognitivo do indivíduo já detectado e explicitado no passado pelo professor e filósofo brasileiro José Herculano Pires (1914-1979):
“[…] Os pais e os mestres não são domesticadores de animais selvagens, mas condutores do desenvolvimento de consciências que vão operar no futuro. O profissionalismo educacional da nossa civilização transformou a maioria dos mestres em funcionários frios que não se preocupam com o educando, mas com esquemas técnicos e os problemas disciplinares e administrativos. As novas gerações se rebelam contra o pragmatismo aviltante e a conseqüência (sic) dessa rebeldia gera crises escolares e crises futuras no plano social. Onde falta a luz da consciência esclarecida e o poder do amor no coração abnegado a educação fenece e se abastarda” (PIRES, 1983, p. 70).
Que nossa reflexão seja permanente. E que nossos esforços impulsionem o conhecimento enquanto fator de adiantamento e progresso do ser humano.
Referências
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CARRION, Valentim. Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho: legislação complementar, jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 23ª ed., 1998, 1169 p.
CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. Regulamentação da profissão de historiador no Brasil: muitas oportunidades e um risco considerável. Café História – história feita com cliques. Brasília, ed. 24 Fev. 2020.
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COSTA, Luís César Amad; MELLO, Leonel Ituassu Almeida. História do Brasil. São Paulo: Scipione, 1990, 335 p.
CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de Filosofia do Direito. São Paulo: José Bushatsky, 1967, 137 p.
FERREIRA, João Paulo Mesquita Hidalgo; FERNANDES, Luiz Estevam de Oliveira. Nova História Integrada. Campinas: Companhia da Escola, 1ª ed., 577 p., 2005.
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PASSOS, Rogério Duarte Fernandes dos. Aprendizagem por pares: experiências para o ensino da disciplina de História a partir de dados apontados pelo Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA). Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. São Paulo, ano 06, ed. 07, vol. 09, p. 50-67, Jul. 2021. Disponível na rede mundial de computadores (Internet) no endereço eletrônico <https://www.nucleodoconhecimento.com.br/educacao/programa-internacional>. Acesso em 01 Fev. 2022.
PIRES, José Herculano. Pesquisa sobre o amor. Santos: DICESP, 1ª ed., 1983, 144 p.
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