Mariana Silva Utsch Carnevalli
Resumo: O formato bicameral do Poder Legislativo no Brasil é uma tradição histórica, tendo sido adotado desde a Constituição do Império, de 1824. Inicialmente, o modelo brasileiro se inspirou no inovador Parlamento Inglês, fundador do bicameralismo, criando duas casas legislativas (House of Lords e House of Commons), que surgiram com o objetivo primordial de representar os estratos político-sociais daquela Nação, os quais postulavam frente ao trono seus respectivos direitos e privilégios. Com a proclamação da República, a tradição inglesa cedeu espaço à vanguardista influência do federalismo norte-americano. Ao longo da história, cientistas políticos e juristas ao redor do mundo se posicionaram quanto à adoção do sistema bicameral, cujas conotações fundamentais serão avaliadas neste trabalho. No entanto, o que se nota é que o Congresso Nacional brasileiro, notadamente o Senado Federal, ainda possui arraigado nas suas características o aspecto conservador que a segunda câmara obteve historicamente, até mesmo pela sua responsabilidade precípua de manter o equilíbrio federal. Assim, o presente artigo propõe medidas que possam aperfeiçoar a atuação do Senado, tornando-o não somente mais eficiente quanto à produção legislativa, mas transformando a estrutura federativa brasileira mais ágil, moderna e capaz de atender aos comandos de sua população de modo mais eficaz.
Palavras-chaves: Direito constitucional. Direito político. Bicameralismo. Unicameralismo. Federalismo. Federação. Parlamento inglês. Congresso Nacional. Senado Federal. Câmara dos Deputados.
Abstract: In Brazil, the bicameral format of the Legislative Power is a historical tradition, adopted since the Imperial Constitution of 1824. Initially, the Brazilian model was inspired by the innovative English Parliament, founder of bicameralism, that created two legislative houses, House of Lords and House of Commons, which emerged with the primary objective of representing political and social classes of that Nation, to their respective rights and privileges. With the proclamation of the Republic, the English tradition gave way to the avant-garde influence of American federalism. Throughout history, political scientists and jurists around the world have positioned themselves on the adoption of the bicameral system, whose fundamental connotations will be evaluated in this work. However, what is noticeable is that the Brazilian National Congress, notably the Federal Senate, still has in its characteristics the conservative aspect that the second chamber historically obtained, even by its primary responsibility to maintain the federal balance. Thus, this article proposes measures that can improve the performance of the Senate, making it not only more efficient in terms of legislative production but also making the Brazilian federal structure more agile, modern and capable of responding to the commands of its population more effectively .
Keywords: Constitutional right. Political law. Bicameralism. Unicameralism. Federalism. Federation. Parliament. National Congress. Federal Senate. Chamber of Deputies.
Sumário: Introdução; 1. Conceito e surgimento do bicameralismo no mundo; 2. Ponderações sobre a adoção do sistema bicameral; 3. Bicameralismo no Brasil; 4. Como tornar o Senado Brasileiro mais eficiente e adequado às necessidades do País?; 5. Conclusão; 6. Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo estudar e debater acerca do modelo bicameralista de Poder Legislativo adotado no Brasil, notadamente quanto ao trabalho atualmente desenvolvido pelo Senado Federal, a segunda casa legislativa do país, e propor, ao final, mudanças na atuação deste, a fim de otimizar sua participação no processo legislativo e político brasileiro.
Denota destacar que não há, aqui, a pretensão de se exaurir por completo a complexidade da matéria, mas apenas trazer à comunidade acadêmica novas abordagens e concepções do sistema bicameral, adaptadas às novas necessidades e demandas do mundo contemporâneo.
Assim, para a completa análise do problema central tratado neste artigo, o direito constitucional comparado é um instrumento imprescindível. Portanto, para que se entenda e critique o modelo de bicameralismo adotado atualmente no Brasil e seus desdobramentos, faz-se necessário antes analisar como o sistema legislativo bicameral surgiu no mundo, assim como suas características genuínas, as críticas e mudanças sofridas ao longo da história e sua essencial e estrutural relação com o modelo federativo de Estado.
Dessarte, o que este trabalho propõe demonstrar é a importância de se estudar e debater sobre a atuação e a dinâmica de funcionamento do Poder Legislativo pátrio, sobretudo tendo em vista que o Brasil vive um momento de transformações sócio-econômicas, tornando-se, pois, imprescindível o advento de mudanças que ensejem a melhoria e evolução do seu campo político, com o fulcro de se atender ao fim último de uma república federativa, que é proporcionar as melhores condições de vida e desenvolvimento à sua população.
Historicamente, o sistema legislativo bicameral surgiu na Inglaterra do século XIV, de forma espontânea e precursora, quando se entendeu necessária uma divisão do inovador Parlamento Inglês, criado no século anterior.
Produto de circunstâncias sociais ainda advindas da Idade Média, o bicameralismo surgiu da necessidade de se distinguir ou separar as representações das classes que postulavam seus direitos e privilégios políticos. Com uma estrutura social composta pela alta nobreza, clero e burguesia, emergiu na Inglaterra a necessidade de se especificar as representações de tais estratos político-sociais, os quais postulavam frente ao trono, ainda voltado para o absolutismo, seus respectivos direitos e privilégios.
Nas palavras de Paulo Bonavides:
Oferece o Parlamento inglês o modelo por excelência dessa divisão bicameral, oriunda, pois, da desigualdade e do divórcio ocorrido no seio da aristocracia. Na Câmara Baixa ficou a representação da pequena e média aristocracia, aliada a uma burguesia emergente ou em formação, ao passo que na Câmara Alta tinham assento os grandes senhores, barões e cavaleiros, que foram na história parlamentar e representativa da Europa ocidental os primeiros a impugnarem a autoridade monárquica absoluta. Com o correr dos tempos, acabaram por aproximar-se da realeza, de quem se mostraram fiés aliados, contrapondo-se de início à burguesia e depois às classes obreiras, principalmente quando estas, a datar do século passado, ingressaram, pelo sufrágio universal, na cena da participação política militante.[1]
Desta forma, o primeiro modelo de bicameralismo da história ocidental, que compôs o Parlamento Inglês, foi formado pela Câmara dos Lordes, do inglês House of Lords, constituída da nobreza e do clero, e pela Câmara dos Comuns, do inglês House of Commons, composta pela burguesia.
Denota destacar que, ainda devido à constituição social da época, a Câmara dos Lordes, chamada pelas ciências políticas de câmara alta, detinha vasto poder frente à nomeada câmara baixa, que representava uma camada mais popular da sociedade inglesa. Aliás, até a reforma eleitoral de 1832, a Câmara dos Lordes desempenhou papel preponderante na política inglesa, vindo a perder espaço somente ao longo do século XIX, com o incontestável enfraquecimento da aristocracia, o desenvolvimento do espírito democrático e as sucessivas ampliações do corpo eleitoral inglês.
Nesta toada, é fácil vislumbrar que a referida câmara alta muito evoluiu desde sua criação, a despeito de ainda conservar seu caráter hereditário, tendo se transformado em uma espécie de câmara de reflexão, consoante observa Laferrière (1947), no sentido de que os ingleses houveram por bem conservar a Câmara dos Lordes, sobretudo por respeito à tradição, por afeição a uma instituição vulnerável, e também por dificuldade de a reorganizar sobre bases novas. Mas, ao conservá-la, eles lhe reduziram consideravelmente a importância e o papel da vida política.
Além do precurssor e fortuito modelo de bicameralismo inglês, imprescindível mencionar o modelo bicameral norte-americano, que nasceu no século XVIII, inspirado naquele que à esta altura já havia se consolidado na Inglaterra, mas que mudou o rumo da história do bicameralismo e culminou por ser copiado no resto do mundo nos séculos seguintes.
Isto porque, o sistema bicameral norte-americano surge num contexto político absolutamente diverso e extremamente significativo, isto é, a segunda câmara, que posteriormente veio a ser nomeada Senado, adveio do plano federal e nasceu antes mesmo da primeira câmara. Trocando em miúdos, não é demais afirmar que, na experiência norte-americana, o Senado fundou a nação.
Como é sabido, quando as treze colônias se uniram na luta contra o absolutismo inglês fundou-se o Congresso Continental, posteriormente chamado de Senado, composto por representantes de todas as colônias, vindo a governá-las durante e nos anos que seguiram a independência das mesmas, até a formação da Confederação.
O Senado sobreviveu e se consagrou nas alterações políticas que se sucederam, com a formação do Estado Federal e a Câmara dos Representantes do Povo, ou dos Deputados, que foi criada com o advento da Constituição Federal de 1789, quando o modelo bicameral norte-americano efetivamente nasceu.
Vale dizer que o bicameralismo na Federação norte-americana se estabeleceu não somente por uma evidente exigência da forma federativa de Estado, mas também em decorrência de uma herança e tradição irrefutáveis, como muito bem lembra Alaor Barbosa:
A experiência bicameral que vinha do período colonial em todos os estados, certamente condicionou e mesmo determinou que se considerasse indispensável uma assembleia de representantes desses estados na Federação estruturada pela nova Constituição federal.[2]
A fim de ilustrar o contexto em que nasceu e se estabeleceu a experiência bicameral norte-americana, Madison, um dos pais da mencionada Constituição Federal dos Estados Unidos, em suas reflexões sobre república e Senado notavelmente concluiu o seguinte: “Nenhuma república sem senado teve vida longa“.
Ante todo o exposto, emerge insofismável que o termo bicameralismo preceitua os sistemas legislativos compostos por duas casas legislativas, que juntas são responsáveis, resguardadas as particularidades de cada Estado, pela elaboração e deliberação das leis e fiscalização das atividades administrativas estatais.
Nada obstante, além das funções comuns, cada uma das casas assume também prerrogativas próprias, sendo fundamental, neste ponto, o equilíbrio de atribuições e poder para que se atinja o que a doutrina política nomeia de “bicameralismo simétrico”.
Além da simetria, ao analisar a eficiência e funcionalidade de um sistema bicameral, é imprescindível que se verifique o nível de incongruência das casas, isto é, se cada uma das casas legislativas possuem suas próprias particularidades e características, tais como, tempo de mandato, número de cadeiras, sistema eleitoral, dentre outros. Entende-se que quanto mais incongruente o modelo, mais fomentada será a pluralidade legislativa e mais eficientes serão as decisões políticas tomadas pelas casas, seja separada ou conjuntamente.
À guisa de ilustração, podemos afirmar que o Congresso Nacional brasileiro é simétrico, uma vez que Senado e Câmara dos Deputados detém poderes equilibrados e proporcionais, e incongruente, tendo em mira que, conforme preconizado na Constituição Federal de 1988, cada uma das casas legislativas possuem características formais específicas, destacando-se o sistema eleitoral adotado por cada uma (majoritário para o Senado e proporcional para a Câmara dos Deputados), a duração do mandato (oito anos para senadores e quatro anos para deputados) e o número de cadeiras (oitenta e uma cadeiras no Senado e quinhentas e trinta e uma cadeiras da Câmara dos Deputados).
Superada a contextualização histórica do surgimento do bicameralismo no mundo e sua conceituação, importante trazer à baila a perspectiva funcional do bicameralismo, analisada por Money e Tsebelis (1992), que reduziram as funções do sistema bicameral a duas precípuas: função de eficiência e função política.
A chamada função de eficiência diz respeito aos esforços convergentes das duas câmaras em desenvolver políticas adequadas e mais eficientes à solução dos problemas por elas debatidos. Assim, os doutrinadores supracitados entenderam que referida função enseja um debate mais maduro na elaboração das leis e decisões menos sujeitas a equívocos.
Por sua vez, a função política denota que as câmaras, enquanto instituições autônomas e independentes, possuem a tendência de defender direitos não somente distintos, mas, muitas vezes, conflitantes entre si. Assim, na efetiva tomada de decisões em conjunto as câmaras passam a depender de concessões e acordos a serem estabelecidos pelos agentes parlamentares, momento em que as convicções e alianças políticas estabelecidas por cada um deles passam a ser determinantes para as decisões tomadas conjuntamente, de modo que o posicionamento político dos componentes de cada câmara passa a ter especial relevância para o cenário jurídico e legal do país.
As questões acima expostas nos levam à fatal conclusão de que no campo doutrinário, juristas e cientistas políticos tem bipolarizado a discussão sobre a real eficiência e necessidade de adoção de um sistema legislativo bicameral pelas mais diversas nações, cujos entendimentos pró e contra passaremos a analisar no tópico seguinte, antes de adentrarmos especificamente as questões atinentes ao bicameralismo no Brasil.
Ao iniciar seus estudos sobre as formas de organização dos parlamentos, no seu livro Manual de Direito Constitucional (1947), Julien Laferrière questiona: “o órgão legislativo deve ser constituído por uma câmara única ou por duas Assembleias? Uni ou bicameralismo? Tal é o primeiro problema que coloca a existência dos parlamentos”.[3]
Ainda como lembrou o referido jurista, o bicameralismo é atualmente encontrado nos mais diversos sistemas políticos, notadamente nas repúblicas, monarquias e, principalmente, nos estados federais. No entanto, referido sistema ainda recebe críticas ao redor de todo mundo, o que tornou a doutrina sobre o tema dividida entre aqueles pró-unicameralismo e contra bicameralismo.
É importante notar que as críticas ao bicameralismo surgiram quase que juntamente ao seu nascimento, na Inglaterra do século XIV, que, conforme dito alhures, inovou ao criar a Câmara dos Lordes, modelo e paradigma de câmara alta, e considerada por muitos, notadamente devido à sua origem e composição, um órgão politicamente conservador e, até mesmo reacionário. De fato, a própria denominação de uma das câmaras do Poder Legislativo como “alta” revela sua inconteste origem aristocrática e, por mero raciocínio lógico, meio de resistência à democracia.
Dentre os juristas que, ao longo da história, defenderam o sistema unicameral em contraponto ao ora debatido modelo bicameral, vale mencionar Carl Schimitt, cujo entendimento era no sentido de que numa democracia não há espaço para o bicameralismo, “pois a democracia se baseia no suposto da identidade do povo unitário” e “uma segunda câmara, independente de toda a significação política, poria em perigo o caráter unitário do povo todo”.
Existem, ainda, outros argumentos difundidos na doutrina em favor do unicameralismo, merecendo destaque aquele no sentido de que a câmara única atua de forma mais célere e dinâmica, assim como é mais econômica a progressista. À título de ilustração, vale lembrar a notável comparação feita por Benjamin Franklin: “um corpo legislativo dividido em duas câmaras é como um carro puxado por dois cavalos em direções opostas”[4].
Especificamente no que pertine ao Senado brasileiro, faz-se mister ressaltar que os críticos ao mesmo atribuem seu caráter iminentemente conservador a três características precípuas, quais sejam: o mandato de seus membros, que é de oito anos, o dobro do mandato dos deputados federais, que compõem a outra casa legislativa no país; a forma de renovação destes mandatos, que ocorre de forma alternada e não total a cada eleições; e a sua competência legislativa, constitucionalmente prevista, no sentido de que, via de regra, todas as matérias devem ser votadas nas duas casas legislativas, separadamente.
Noutro giro, por óbvio, boa parte da doutrina tem entendido que a visão aristocrata da câmara alta restou superada ao longo dos anos e com a evolução do modelo bicameral. Isto porque entende-se que os juristas que atribuíram e atribuem este caráter conservador, de resistência à democracia, ao bicameralismo, o fazem sob a ótica europeia, onde os elementos aristocráticos acabaram por se enraizar nas instituições políticas e judiciárias.
E é exatamente neste sentido o entendimento de Bonavides:
Onde a câmara alta sobreviveu, manifesta ela de último tendência inversa; aportou-se gradativamente de seu teor aristocrático até se converter numa duplicação da câmara baixa. Desfez-se assim o bicameralismo daquelas conotações reacionárias mais flagrantes, de modo que a instituição de uma segunda casa legislativa se tornou expediente neutro de convivência sobretudo técnica, com que atender primeiro a um determinado aprimoramento do processo de elaboração das leis, mais racional e mais eficaz do que propriamente a uma receita política destinada a resguardar interesses e necessidades profundas de representação de classes ou grupos sociais. Nunca, porém, se logrou afastar por inteiro o arraigado ponto de vista de que a segunda câmara é órgão de controle da representação popular e portanto deve sempre existir para contra balançar os poderes da câmara baixa.[5]
Desta feita, esta segunda parte da doutrina entende que o bicameralismo consolida a opinião parlamentar, assegurando que a representação da opinião pública se dê de forma mais completa e ponderada.
Esta dualidade permite maior reflexão e serenidade na confecção legislativa e, por conseguinte, confere mais estabilidade à retromencionada opinião popular, tão cara à democracia. Em outras palavras, este dualismo é uma garantia de maturidade das leis a serem elaboradas, uma vez que fomenta o debate e exame de cada tema criando, inclusive, barreira a reformas apressadas e prematuras.
Outrossim, é certo, ainda, que o sistema legislativo bicameral é uma garantia à um eventual despotismo do parlamento unicameral, mitigando conflitos entre os poderes Executivo e Legislativo, salvaguardando a ideia de divisão de poderes.
Nesse sentido assevera Laferrière:
Se o parlamento é composto de uma única assembleia, o perigo é que o desacordo entre esses dois poderes, teoricamente iguais e independentes, seja insolúvel pacificamente e que a solução venha por meios violentos: golpe de força do Executivo ou golpe de força da assembleia. Isso é o que aconteceu com as nossas constituições de sistema unicameral. Com duas câmaras, ao contrário, a solução violenta dos conflitos entre o parlamento e o Executivo é menos temível. O mais frequente é que o conflito ocorra entre o Executivo e uma das assembleias. A outra assembleia servirá de árbitro.[6]
Expostas, portanto, as principais nuances, vantagens e desvantagens do sistema bicameral, passemos à análise do caso brasileiro, tema principal deste trabalho.
Pode-se dizer que o bicameralismo é uma tradição da politica brasileira. Isto porque, o Senado, como nomeamos nossa segunda câmara, foi instituído em 1824, pela Constituição do Império, sob influência do modelo inglês.
Com a proclamação da República, em 1889, a tradição inglesa cedeu espaço à vanguardista influência do federalismo norte-americano, fazendo com que a Constituição de 1891 aumentasse consideravelmente a força do Senado, que passou a desempenhar a representação política e controle constitucional dos demais poderes.
O sistema bicameral culminou por se manter durante toda a história política do país, persistindo mesmo em momentos de crise da democracia e em regimes totalitários, como na Constituição de 1937, tendo atingido seu ápice na atual Constituição de 1988, cujo texto garante ao Senado vasto conjunto de recursos para o exercício do controle das autoridades e produção legislativa, no âmbito federal.
Para entendermos melhor o funcionamento do sistema legislativo brasileiro, é preciso repassarmos dois conceitos, intrínsecos ao bicameralismo, como explanado anteriormente: o de incongruência e o de simetria, que somados são capazes de mensurar o potencial da segunda câmara em intervir na formulação dos projetos em tramitação bicameral.
Em apertada síntese, a simetria se relaciona ao nível de poder de uma casa legislativa frente às decisões da outra, de modo que tal poder advém da distribuição formal de prerrogativas e funções de cada casa dentro do sistema bicameral. Sendo assim, quanto mais equilibrada a distribuição formal do poder político entre as duas câmaras, maior a simetria e, via de consequência, maior a força daquele sistema bicameral.
No Brasil, a Câmara dos Deputados, como é comum nos sistemas bicamerais ao redor do mundo, ganha destaque devido a suas atribuições voltadas para a produção legislativa, notadamente aquelas cujas matérias são de interesse direto do governo.
Por sua vez, o Senado, como também é típico do bicameralismo, ganha relevância pela presença nas funções de autorizar nomeações efetuadas pelo Poder Executivo, investigar e julgar autoridades e, sobretudo, participar de decisões que envolvem a soberania e os interesses nacionais em questões de ordem internacional.
Porém, a despeito de a Constituição de 1988 assegurar aos senadores amplos poderes e autonomia política para controlar a atuação das demais instâncias decisórias, o sistema bicameral brasileiro é considerado simétrico pela doutrina majoritária.
Por outro lado, a incongruência do modelo bicameral se refere à configuração da representação política de cada casa legislativa, de modo que se possa avaliar a disposição de uma casa para contribuir de forma diferenciada das decisões legislativas. Para tanto, é necessário analisar as regras de acesso a cada uma das casas, de modo que quanto mais estas divergirem, mais incongruente será o sistema e, consequentemente, mais fomentada será a contribuição de cada uma das casas para as decisões políticas de sua responsabilidade.
Vejamos a análise de Paulo Magalhães Araújo quanto aos fatores de incongruência do sistema bicameral brasileiro:
O modelo de representação parlamentar é um dos principais fundamentos da força do federalismo existente no Brasil. A Câmara dos Deputados abriga a força de clivagens sociais que perpassam a sociedade nacional e se constitui por eleições proporcionais, com lista aberta; o Senado, por sua vez, acolhe os interesses dos estados federados, signatários do pacto federativo, e se constitui por eleições majoritárias, com candidatos por partido, equivalentes ao número de vagas em disputa.[7]
Posteriormente, Araújo conclui:
Em suma, consideradas em conjunto, as regras para a composição da representação bicameral brasileira fomentam a incongruência entre as casas. Nos termos do referencial analítico aqui adotado, significa reconhecer o grande potencial do Senado para intervir nas decisões políticas federais.[8]
Combinadas todas as características do Senado brasileiro, dentre elas seu método de constituição e suas atribuições constitucionais, dúvidas não sobejam de que a Casa detém recursos e estímulos suficientes para exercer influência nas decisões tanto da Câmara dos Deputados, quanto do Poder Executivo.
É exatamente esta nuance, coligida com os impactos do modelo bicameral nas decisões políticas, que tem gerado controvérsia na doutrina pátria. Isto porque, apesar do inequívoco consenso, por toda a literatura especializada, de que o Senado brasileiro detém, sobretudo desde o advento da Constituição de 1988, grande poder político, questiona-se as consequências da concentração de tanto poder no processo decisório, tanto legislativo quanto executivo, no âmbito federal.
Outrossim, não se pode esquecer que, atualmente, o Brasil é um país em formação, donde o acúmulo de tanto poder e influência na Câmara Alta, tocando a essência das questões políticas, redistributivas e conflitivas, afeta diretamente o processo legislativo brasileiro e, até mesmo, a tomada de decisões cuja competência final é, ao menos em tese, exclusiva do Poder Executivo.
Isto porque, mesmo que superado o caráter aristocrata da referida Câmara, o Senado brasileiro ainda denota um incontestável aspecto conservador, até mesmo pela sua responsabilidade precípua de manter o equilíbrio federal.
Este atributo conservantista, ainda arraigado no Senado Federal manifesta-se notadamente em três momentos: no mandato dos seus membros; a forma de renovação dos mesmos; e na sua competência legislativa.
O parágrafo primeiro do artigo 46 da Constituição de 1988 determina que o mandato dos Senadores seja de oito anos, isto é, o dobro do mandato dos Deputados Federais (artigo 45 da CF/1988), de modo que a renovação do Senado é feita alternadamente em um terço e dois terços, a cada quatro anos, conforme dispõe o parágrafo segundo, também do artigo 46. Isto é, não há a possibilidade de renovação de todo o Senado Federal de uma vez só.
Além disso, a Constituição Federal traz um caráter limitador ao processo legislativo quando preconiza que, via de regra, todas as matérias deverão ser votadas nas suas casas legislativas – Câmara dos Deputados e Senado Federal – separadamente. Deste modo, mesmo aquelas matérias originárias da Câmara dos Deputados deverão ser debatidas e votadas pelos Senadores, sendo certo que, se não aprovadas por estes, ainda que aprovadas por aqueles, serão arquivadas; no caso de aprovação, o Senado tem a prerrogativa de impor quaisquer emendas ao projeto que entenderem necessárias, ainda que se altere o conteúdo principal do projeto.
Seguindo esta linha de raciocínio, e em crítica ao poder político, de certo modo, exacerbado concedido ao Senado pela Constituição de 1988, José Luiz Quadros de Magalhães explica:
O estabelecimento deste mecanismo implica na existência de casa legislativa, que poderá representar, em determinado momento político, barreira às transformações mais radicais, oriundas de uma Câmara dos Deputados totalmente renovada.[9]
E assevera:
Estas constatações no texto constitucional, levam-nos a concluir que o unicameralismo oferece uma dinâmica muito mais adequada a uma país em transformação. Entretanto, a adoção do unicameralismo poderá significar em uma federação, especialmente no Estado Federal Brasileiro, com disparidades populacionais sociais e econômicas tão graves, prejuízos sérios aos Estados menos populosos e em geral mais pobres.[10]
De fato, conforme vimos alhures, é cediço que o federalismo está intrinsecamente ligado ao modelo bicameral, de modo que a experiência histórica nos ensina que pensar federação é pensar em Poder Legislativo composto por duas câmaras.
Isto porque, como é sabido, a federação é composta por Estados, os quais necessitam, por mera decorrência lógica, de representação política. Todavia, tal representação não pode ser suprimida ou muito menos substituída pela representação do povo que, como vimos, se dá pela câmara baixa, in casu, pela Câmara dos Deputados. Exatamente por isso, nos modelos federativos de Estado, faz-se imprescindível a existência de uma segunda casa legislativa, que represente os interesses dos Estados-membros isolada e conjuntamente, o que no Brasil ocorre através do Senado.
Destarte, consoante ora exposto, apesar de que numa primeira e superficial avaliação do caso brasileiro, a adoção de um sistema legislativo unicameral possa parecer a melhor solução, numa análise mais acurada, onde consideramos as peculiaridades do Estado como um todo, percebe-se que a superação da problemática aqui apresentada deve ser feita de forma que se mantenha o modelo bicameral, atualmente adotado, podendo, contudo, inaugurar medidas que tornem o Senado Federal mais eficiente e adequado às necessidades atuais do Brasil.
O fim último deste trabalho é, em decorrência de uma análise do modelo legislativo bicameral e seus desdobramentos no Estado Federal brasileiro, a apresentação de medidas que possam otimizar a atuação do Senado Federal, tornando-o não somente mais eficiente no seu fim precípuo, o da produção legislativa, mas também e quiçá principalmente, transformando a estrutura federativa brasileira mais ágil, atualizada, moderna e capaz de responder os comandos e necessidades de sua população.
Nesta toada, Paulo Bonavides, no seu multicitado artigo, nos idos da década de 1970 também já entendia que a segunda Casa Legislativa brasileira merecia mudanças, nas suas palavras:
Há uma instituição cujos fundamentos devem justificadamente ser reexaminados. Essa instituição é, sem dúvida, o Senado. De sua forma poderá resultar um fortalecimento da ordem federativa.[11]
Portanto, a primeira mudança que aqui se propõe, diz respeito aos três fatores, elencados no capítulo anterior, responsáveis pelo caráter ainda conservantista do Senado e a concentração de competências no mesmo (o mandato dos senadores, sua forma de renovação e previsão de que todos os projetos devem ser votados pelas suas casas legislativas, separadamente).
Assim, o advento de uma Emenda Constitucional que visasse reduzir o mandato dos Senadores de oito para quatro anos e que previsse a renovação de todos os membros da segunda câmara simultaneamente, como já ocorre com a Câmara dos Deputados, traria ao Senado Federal conotação mais moderna e atualizada sem, contudo, causar qualquer abalo ao equilíbrio da federação.
No mesmo sentido, as competências das casas legislativas poderiam ser repartidas de modo a conceder à Câmara dos Deputados mais independência na confecção e aprovação de leis que não envolvem de forma direta os interesses dos Estados-membros, mas que causam impacto na vida do cidadão, representado pela referida casa. Em contrapartida, a autonomia do Senado Federal poderia ser consolidada com a sua competência exclusiva para legislar sobre temas cujo interesse basilar é dos Estados-membros, como é o caso, por exemplo, da matéria tributária.
Frise-se que tais alterações legislativas trariam ao processo legislativo brasileiro mais celeridade e atualidade, na medida em que ambas as casas teriam a oportunidade de trabalhar e consolidar, simultaneamente, assuntos distintos, mas que assegurariam o atendimento às necessidades, ainda que indiretas, da população, como um todo.
Concomitantemente, a essência conservadora e reacionária do Senado Federal, tão acentuada na fórmula atual de funcionamento do mesmo e do Congresso Nacional, de modo geral, daria espaço a uma segunda casa legislativa mais moderna e eficiente na outorga dos interesses dos Estados.
Ademais, as alterações acima propostas trariam a oportunidade de que as competências do Senado no âmbito da estrutura federativa, citadas no capítulo passado, fossem expandidas, preservando o sistema federativo de Estado e evitando exageros políticos provenientes da atual centralização de competências na União, notadamente no Poder Executivo e na pessoa de seu titular, o Presidente da República.
Assim, concedido maior espaço e autonomia à Câmara dos Deputados para a produção legislativa, o Senado teria espaço para desempenhar seu papel de instância deliberativa sem deixar de atuar, em se tratando de temas cuja relevância e interesse político sejam notórios, no seu essencial papel de câmara revisora.
Desta feita, as alterações ora propostas teriam o condão de garantir ao trabalho desempenhado pelas duas casas que compõem o Congresso Nacional brasileiro maior autenticidade e credibilidade, concedendo mais autonomia aos Estados-membros e, via de consequência, mais força ao órgão que lhes representa, o Senado Federal, impulsionando o fortalecimento do Estado Federal brasileiro.
Ante todo o exposto, este trabalho se pautou em teorias e entendimentos doutrinários exarados sobre o sistema bicameral por juristas e cientistas políticos ao redor do mundo e ao longo da história, assim como avaliou as peculiaridades e premissas constitucionais que subsidiam a adoção de tal modelo pelo sistema legislativo brasileiro, a fim de encontrar e propor, com a devida vênia e respeito ao trabalho dos nossos ilustres Senadores, medidas que visem tornar o trabalho desempenhado pelo Senado Federal mais eficiente e condizente à conjuntura política, social e econômica atual do país.
Nesse ínterim, é mister ressaltar a incontestável importância política do Senado junto ao cenário brasileiro, sobretudo tendo em vista que este é ator fundamental na manutenção do equilíbrio e, até mesmo, fortalecimento da estrutura federativa do Brasil.
Desta feita, em apertada síntese, o que se conclui é, a despeito das críticas e entendimentos divergentes, no caso brasileiro, o modelo bicameral é a melhor e mais adequada opção, considerando as dimensões do país, suas necessidades precípuas e momento de transição e amadurecimento político. No entanto, faz-se imprescindível que o Senado Federal abandone de vez suas remanescentes raízes conservadoras, a fim de se adotar medidas compatíveis com as demandas de uma sociedade contemporânea e em constante transformação e desenvolvimento, tornando seu trabalho não somente mais eficaz, mas também mais célere, moderno e arrojado.
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VERDÚ, Pablo Lucas. Curso de derecho político. 2ª ed. Madri, Editorial Tecnos, 1976.
[1] BONAVIDES, Paulo. O Senado e a Crise na Federação. Pág. 84.
[2] BARBOSA, Alaor. Bicameralismo ou Unicameralismo. Pág. 52/53.
[3] LAFERRIÈRE, Julien. Manuel de droit constitutionnel. Pág. 300.
[4] SCHMITT, Carl. Teoría de la Constitucíon. Pág. 146.
[5] BONAVIDES, Paulo. O Senado e a Crise na Federação. Pág. 85.
[6] LAFERRIÈRE, Julien. Manuel de droit constitutionnel. Pág. 302.
[7] ARAÚJO. P. M. O bicameralismo no Brasil: argumentos. Pág 97.
[8] Idem. Pág 102.
[9] MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Bicameralismo ou Unicameralismo. Pág. 157.
[10] MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Bicameralismo ou Unicameralismo. Pág 157.
[11] BONAVIDES, Paulo. O Senado e a Crise na Federação. Pág. 87.
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