Autor: Rodrigo Pellegrino – Mestrando em Direito pela Faculdade Autônoma do Direito de São Paulo. Pós-graduado em Direito Constitucional e Político pela Faculdade Metropolitana Unidas. Pós-graduado em Teologia pelo Centro Adventista de São Paulo. e-mail: prof.rodrigopellegrino@gmail.com.
Orientador: Rennan Thamay – Pós-Doutor pela Universidade de Lisboa. Doutor em Direito pela PUC/RS e Università degli Studi di Pavia. Mestre em Direito pela UNISINOS e pela PUC Minas. Especialista em Direito pela UFRGS. E-mail: rennan.thamay@hotmail.com
Resumo: A liberdade religiosa assim como as diversas ramificações do direito, teve sua construção ligada à um processo paulatino; por séculos podemos dizer que não houve, efetivamente, direito relativo à liberdade religiosa. O imperialismo, a concentração de poder, um ambiente onde a religião e o governo em diversos contextos se fundiam, as arbitrariedades deveras constante; tais fatores ocasionaram cerceamentos de direitos e até mesmo perseguições e mortes em grandes escalas para aqueles, “hereges”, que procuravam ter o direito de exercer seu culto, sua crença e externar sua consciência. Destarte, por meio de uma metodologia de revisão bibliografia, analisaremos conceitos e contextos históricos; o presente artigo tem como objetivo, inferir, refletir que em suas origens a common law foi um sistema jurídico mais propenso para a conquista da liberdade religiosa, criando um arcabouço para o direito público. pois nos primórdios da sistematização do direito não havia uma distinção entre o público e o privado, a tutela de direitos era focada na área privada, mormente na proteção da propriedade. A common law abriu precedentes para as liberdades individuais, possibilitando o progresso paulatino na conquista de direitos, fortalecendo a administração da coisa pública, abrindo campo para que a liberdade religiosa, de forma primordial, finalmente fosse conquistada no sistema jurídico da common law.
Palavras-chave: Common Law. Civil Law. Liberdade Religiosa.
Abstract: Religious freedom, as well as the various branches of law, had its construction linked to a gradual process; for centuries we can say that there was, in fact, no right regarding religious freedom. Imperialism, the concentration of power, an environment where religion and government in different contexts merged, the arbitrariness that was constant, such factors caused the restriction of rights and even persecution and death on a large scale for those, “heretics”, who they sought to have the right to exercise their worship, their belief and to express their conscience. Thus, through a bibliography review methodology, we will analyze historical concepts and contexts; this article aims to infer and reflect that in its origins common law was a legal system more prone to the conquest of religious freedom, creating a framework for public law. because in the beginning of the systematization of law there was no distinction between public and private, the protection of rights was focused on the private area, especially on the protection of property. Common law set precedents for individual freedoms, enabling gradual progress in the conquest of rights, strengthening the administration of public affairs, opening the way for religious freedom, in a primordial way, to finally be conquered in the common law legal system.
Keywords: Common Law. Civil Law. Religious freedom.
Sumário: Introdução. 1.Conceitos: Liberdade Religiosa, Common Law, Civil Law. 2. Panorama Histórico da Common Law. 2.1 Os quatro principais períodos históricos do direito inglês. 2.1.1 O período anglo-saxônico. 2.1.2 A formação da common law. 2.1.3 A rivalidade com a equity. 2.1.4 O período moderno. 3. A Influência da Religião Romana no Estado, na Jurisdição e na Sistematização do Direito. 3.1 O cerceamento da liberdade religiosa dentro de Roma Cristã. 4. Inglaterra: Berço da Common Law, um Campo Propício para a Liberdade Religiosa. 5. A Distinção entre o Direito Público e o Direito Privado. 5.1 O direito público da common law como precedência para a liberdade religiosa. Conclusão. Referências.
Introdução
O presente artigo visa analisar de que forma a common law pode ter favorecido o direito à liberdade religiosa; para análise do tema vamos pontuar aspectos históricos, e a estrutura base da common law, seu conceito e origem, para obtermos uma abordagem mais propicia sob o prisma da liberdade religiosa.
A metodologia que aplicamos é a revisão bibliográfica, analisando a temática pertinente ao foco de nosso estudo na pesquisa que já foi realizada por outros autores, partindo de generalidades do tema, de uma visão geral sobre o tema, até pautarmos o fulcro do assunto em tela.
Antes de adentrarmos ao cerne de nosso tema, é relevante destacarmos alguns conceitos atinentes a liberdade religiosa; o que envolve conceitualmente a liberdade religiosa.
O panorama histórico da common law é relevante, pois pretendemos fundamentar que as bases de tal sistema, comparado com a civil law, sofreu historicamente, um impacto bem menor do direito romano, direito este que em diversas oportunidades teve conexão com os postulados e ideais da igreja romana.
Poderemos influir que historicamente, o catolicismo, a religião que dominou por séculos o império romano e países afins, gerou interferência na política, na jurisdição, no direito e na liberdade religiosa.
“De todas as liberdades sociais nenhuma é tão congenial ao homem, e tão nobre, e tão frutificativa, e tão civilizadora, e tão pacífica, e tão filha do evangelho, como a liberdade religiosa” (BARBOSA, 1877, p. 01).
A expressão liberdade religiosa (ALTAFIN, 2007) é ampla e abrange outras três liberdades:
“Há confusão quando o Estado é teocrático como o Vaticano. Na união, Estado e religião estão ligados sob vários aspectos. Ocorre separação quando o Estado não tem nenhum vínculo especial com qualquer religião”
Common law e a civil law são sistemas jurídicos de caracteres distintos, um pela marcante positivação, o outro por um caráter mais pragmático.
A Civil Law para Reale (2002, p. 142), é marcada pelo procedimento legislativo, tendo um valor secundário as fontes do direito; destacou-se após a revolução francesa, memento em que a lei passou a ser considerada a única expressão da vontade geral (Contrato Social – Jean-Jacques Rousseau). Fora a Inglaterra, por exemplo; o restante da Europa e na nações latinas e latino-americanas, o direito se baliza principalmente em enunciados normativos através do legislativo.
Em Roma a consciência da jurisdição aparece de maneira clara e concreta, por esta cada vez mais vinculada a um sistema objetivo de regras. O chamado direito romano clássico não era um direito legislado, com depois foi o direito romano emanado por Justiniano e seus sucessores
Reale (2002, p. 143), no que tange a Common Law relata que esta é caracterizada pela tradição dos povos anglo-saxões, uso e costumes, jurisdição pelo trabalho abstrato e genérico dos parlamentos. A Common Law é um direito costumeiro e misto, marcado pela jurisprudência. Se os ingleses têm necessidade de saber o que é lícito em material civil, não há um texto codificado, um código civil elaborado por um processo legislativo.
Miguel Reale destaca se seria possível identificarmos qual sistema seria o melhor sistema – common law ou civil law, (2002, p. 142):
“A pretensão de saber qual sistema é o melhor, seria um absurdo, pois não há direito ideal. Na realidade os sistemas (common law e civil law) são expressões culturais diversas que, nos últimos anos, tem sido objeto de influências reciprocas. As normas ganham cada vez mais importância no sistema da common law e os precedentes judiciais desempenham cada vez mais relevância na civil law.”
O autor supradito, (2002, p. 143) nos traz luz na questão que o direito costumeiro é o mais longo da humanidade; abarcando milhares de anos onde as formas de vida religiosa e jurídica, ainda não se distinguiam uma das outras. No momento em que o ser humano começou a ter uma vaga noção da distinção entre direito e religião, o direito foi, durante milênios, pura e simplesmente uma junção de usos e costumes. Boa parte dos usos e costumes das sociedades mais primitivas está relacionada a religião; por exemplo a propriedade e o contrato estavam ligados a elementos de ordem religiosa.
Destacamos que o direito romano, base da civil law, é um direito mais primitivo, cujas bases e formação antecedem a da common law. A common law por sua vez teve influência da civil law, Anchieta afirma que ambos os sistemas passaram por uma ruptura e obteve elementos distintos (2014, p. 662).
“Durante todo o início da Idade Média até meados do século XII, era crível o reconhecimento da civil law e da common law como “pertencentes a uma família jurídica, germânica e feudal na substância e no processo”. Todavia, se a civil law for relacionada ao direito romano, certamente será considerada a mais antiga. Por outro lado, a formação da cultura jurídica na tradição da common law ocorreu na Inglaterra em meados do século XIII. As bases do sistema jurídico anglo-americano deitam suas raízes nos materiais germânicos, de tal modo que se pode afirmar que o direito inglês, na sua essência, é mais germânico que o próprio Direito da Alemanha, sendo possível visualizar uma ruptura histórica entre civil law e common law justamente em meados dos séculos XII e XIII, embora as diferenças rupturais estivessem já sendo estabelecidas nos séculos precedentes.”
Vamos explorar os quatros principais períodos históricos do direito inglês, direito este que é a base da common law. Por meio deste panorama podermos inferir que houve uma acentuada interferência religiosa no direito romano, pois a Igreja exercia ingerência no Estado, e este criava a normatização que dava base para a sistematização da civil law; isto não geraria um cenário favorável para que a civil law se tornasse o sistema germinativo das liberdades individuais, dando abertura para conquista da liberdade religiosa.
A common law em comparação com a civil law, passou por uma interferência menor da igreja; gerando um cenário, dentro da common law mais favorável para o erguimento da bandeira da liberdade religiosa.
2.1 Os quatro principais períodos históricos do direito inglês
2.1.1 – O período anglo-saxônico (DAVID, 2002, p.358):
Período anterior a conquista normanda de 1066. Este ano foi fundamental para a Inglaterra e para a Europa também, a Inglaterra é conquistada pelos normandos. O período que antecede esta data (1066) é chamado de anglo-saxônico, o domínio romano embora tenha durado quatro séculos na Inglaterra – do imperador Cláudio até o século V, não deixou mais vestígios na Inglaterra. Para os historiadores a história do direito inglês começa após a cessação do domínio romano, ocasião que diversas tribos de origem germânica – saxões, anglos, dinamarqueses – partilharam entre si a Inglaterra. O dominou romano foi consideravelmente pequeno na Inglaterra, levando em conta que a Igreja Romana exerceu governança eclesiástica e influência no mundo medieval, por mais de 1.000 anos. Cremos que a Inglaterra por ter passado um período menor de dominação romana, tenha se tornado o campo mais favorável para desenvolver um sistema legal, que passou por menos interferência de uma religião oficial, possibilitando campo para futuramente ser um sistema germinativo da liberdade religiosa.
2.1.2 – A formação da common law (1066 – 1485), (DAVID, 2002, p.363):
Vem a formação de um direito novo, comum a todo o reino que desenvolve e substitui os costumes locais. A conquista normanda traz um acontecimento determinante na história do direito inglês, traz um poder forte, centralizado, rico de uma experiencia administrativa; a época tribal desaparece e o feudalismo instala-se na Inglaterra. O desenvolvimento da common law está atrelado a competência dos tribunais reais. O rei exercia a “alta justiça”, litígios em casos excepcionais: se a paz do reino fosse ameaçada, casos que a justiça não pudesse ser praticada por outros meios. No período da formação da common law, como veremos mais adiante, no ano 1215 é consagrado na Inglaterra, o prenuncio, ainda que remoto de uma liberdade que despontaria o campo para a solidificação da liberdade religiosa. A common law como descrito no período supracitado, sofreu interferência da Igreja Romana, esta ação foi pequena comparada com o tempo que a igreja exerceu seu poder, mas é inegável que houve marcas da igreja no processo de formação da common law.
David (2002, p.356), destaca que as jurisdições eclesiásticas instituídas depois da conquista normanda na Inglaterra, aplicam o direito canônico comum a toda a cristandade, excetuando as questões de finanças reais, propriedade imobiliária, posse e graves crimes que se relacionavam com a paz do reino, os demais litígios, que são diversos eram resolvidos fora das jurisdições reais, pelas Hundred ou County Courts (seria assembleia dos homens livres, aplica costumes locais, meios de prova sem pretensão racional).
A presença e influência da igreja é inegável, pois é fato que as jurisdições eclesiásticas, teriam ainda que de forma tardia competência e o privilégio de administrar a justiça. A igreja e o rei tinham um poder distinto, pois só eles poderiam obrigar os seus súditos a prestar juramento. Nos primórdios do desenvolvimento do direito inglês, por volta do século XIII, os contratos são de matéria das jurisdições eclesiásticas, municipais ou comerciais.”
Destarte, apesar da presença eclesiástica, a elaboração da common law, direito inglês comum a toda a Inglaterra, será obra exclusiva dos Tribunais Reais de Justiça.
2.1.3 – A rivalidade com a equity (1485 – 1832) (DAVID,).
No final da idade média, pelo menos no que tange a Inglaterra, David (2002, p.365) nos relata que durante a formação da common law, as jurisdições eclesiásticas passam apenas a preceituar sobre litígios que envolvam o sacramento do casamento ou à disciplina do clero. No caminhar histórico a força jurisdicional e até normativa da igreja estava perdendo força na nação berço da common law.
O que aconteceu no final da Idade média? Ocorre o fato que o papa perde a supremacia no poder, o mundo passou pela revolução francesa, e a história da igreja inclina-se para um novo rumo, durante o processo de consolidação da common law (RUSSOMANO, 2016, p.177):
Em 1796 Napoleão Bonaparte ocupou Milão, mas o Papa Pio VI continuava a rejeitar os pedidos franceses visando a anular a condenação pronunciada contra a Constituição e a Revolução. Quando Napoleão invadiu os Estados pontifícios, o Papa Pio VI teve que aceitar duras condições de paz: um vultoso tributo de guerra, a entrega de preciosos manuscritos e obras de arte e a cessão de vastos territórios de seus estados (paz de Tolentino, 19 de fevereiro de 1797). Quando o general francês Duphot foi assassinado durante um motim em Roma, o Diretório ordenou uma nova ocupação dos estados pontifícios. Aos 15 de fevereiro de 1798 o general Berthier entrou em Roma, proclamou a República Romana e, deposto o pontífice (considerado como um Chefe de Estado), o forçou a retirar-se na Toscana; por alguns meses o Papa viveu na Cartuxa de Florência. Para evitar qualquer tentativa de libertação, foi transferido de Florência, passando por Turim e os Alpes, a Briançon e depois a Valence. Pio VI morreu prisioneiro na cidadela de Valence aos 29 de agosto de 1799.
Aviando, a igreja somente em 1798, tem sua influência política e jurisdicional minimizada, após o papa Pio VI ser aprisionado pelo general de Napoleão Bonaparte, e Roma é proclamada república. A religião católica apostólica romana, perde a maximização de sua força política e jurídica a partir do contexto da revolução francesa.
Este período foi marcado pelo desenvolvimento da common law ao lado de um sistema complementar e às vezes rival, que se manifesta nas “regras de equidade”.
Os Tribunais Reais se tornaram “jurisdições de direito comum” no século XIX. As jurisdições municipais ou comerciais só apreciam questões de pouca importância; a igreja, a jurisdição eclesiástica fica com seu poder de ação minimizado e estas são as causas pelas quais os Tribunais Reais são os únicos a administrar a justiça no fim da idade média. Ao final da idade média, após o aprisionamento do papa, o direito e a jurisdição eclesiástica perdem força; e uma nova fase desponta no tear jurídico.
2.1.4 – O período moderno
Começa em 1832, e David (2002, p.368) que continua nos dias de hoje, no qual a common law deve fazer face a um desenvolvimento sem precedentes da lei e apetar-se a uma sociedade cada vez mais dirigida pela administração.
A partir do período moderno, como veremos a seguir, a liberdade religiosa passa ser tutelada de forma expressa, e isto não aconteceu na Inglaterra, nação berço do nascedouro da common law, mas ocorreu em uma nova nação que aderiu à common law na estruturação de seu sistema jurídico, tida como terra da liberdade.
Um argumento pelo qual inferimos que a common law, foi mais propícia do que a civil law, para criar um cenário mais favorável aos diretos atrelados as liberdades e abrir campo em tempos futuros para liberdade religiosa, (não em sua origem, não nas fases inicias de sistematização, pois em principio como já citamos, esta foi influenciada pela civil law do direito romano-germânico); é o fato da igreja ter influência e interferência ativa nas questões atreladas ao Estado, Bruce Shelley destaca com primazia (2018, p.46):
Chamamos os anos de 70 a 312, de época do cristianismo católico) , porque esse pensamento dominou a história cristã no período que vai desde a morte dos apóstolos até o surgimento de imperadores cristãos. … neste período, o cristianismo difundiu-se por todo o Império Romano e provavelmente pelo leste até a Índia. Os cristãos perceberam que eram parte de um movimento em rápida expansão e o chamaram de católico, termo que sugere que o cristianismo desse período é um movimento universal. O cristianismo católico, portanto, foi marcado por visão universal, crenças ortodoxas e governo eclesiástico episcopal. A Igreja estendeu-se por todas as direções, tanto geográficas quanto sociais. Já o segundo e o terceiro séculos forneceram o canal para esse poder.
Hodgkin (1896) relata que a partir da queda do Império Romano que ocorreu no ano 476 de nossa era, o domínio de Roma sempre esteve nas mãos de um rei ariano. Roma foi dominada pelos hérulos até a ocasião que orei Odoacro foi assassinado por Teodorico em 493. Notamos que Roma Império perdeu sua supremacia de fato no ano de 476.
Um questionamento relevante; como podemos vislumbrar a ascensão religiosa?, como a igreja assumi o controle das questões atinentes a gestão do Estado? Timm nos destaca um registro histórico que corrobora com este questionamento (2005):
No tempo de Constantino, o Cristianismo obteve liberdade de culto, tornando-se uma das religiões oficiais do Estado. Os imperadores subsequentes avançaram mais e mais na direção de transformar o Cristianismo na religião exclusiva do Estado. Após o saque de Roma pelos visigodos em 410, Agostinho escreveu sua famosa obra A Cidade de Deus, na qual ele expôs “o ideal católico de uma igreja universal em controle de um estado universal”, provendo “a base teocrática para o papado medieval”. A conversão de Clóvis, rei dos francos, foi um evento muito significativo em prover a unificação da Europa Ocidental para apoiar o papado durante a primeira metade da Idade Média. E a guerra de Clóvis contra os visigodos arianos e sua vitória sobre eles em 508, representa um passo importante em prover um exército efetivo para a Igreja Católica Romana punir os “hereges”.
A despeito do fato de o Papa Símaco ser fortemente acusado e ter de se submeter ao julgamento do herético rei ariano Teodorico, ele se considerava superior ao governante secular e foi chamado até mesmo de “juiz em lugar de Deus” e “subgerente do Altíssimo”. Já em 533, Justiniano, imperador do Império Bizantino, reconheceu a supremacia eclesiástica do papa quando o chamou de “a cabeça de todas as Sagradas Igrejas”, e, no ano seguinte (534), esse status foi legalizado oficialmente na segunda edição do Codex. Mas foi somente em 538 que a cidade de Roma acabou sendo libertada do domínio de um “herético” reino ariano, e a Igreja Romana foi capaz de desenvolver mais efetivamente sua supremacia eclesiástica.
Destarte, de acordo com Timm (2005) o bispo de Roma estava se tornando, desta maneira, o primata indisputável da Itália, e exercendo uma função de liderança na Igreja universal, ele começou a se envolver em questões temporais, não apenas em Roma, mas também no Império, e mesmo entre os reinos bárbaros. Até o sexto século, todos os papas são declarados santos, após este período os papas, cada vez mais estão envolvidos em assuntos temporais, temas que não pertenciam apenas à Igreja; eles são homens de Estado, e, então, governantes do Estado.
Na propagação dos poderes da igreja sobre o Estado, Shelley (2018, p.122) menciona a importância do Imperador Constantino neste processo; o cristianismo iniciou-se como uma pequena ramificação do judaísmo. Três séculos depois, transforma-se na religião favorecida e oficial de todo o Império Romano, apesar do empenho para eliminar a nova fé, ela sobrevive e cresce. Na gestão do imperador Constantino (312-337), o primeiro imperador cristão, havia igrejas em todas as grandes cidades do império e em locais distantes uns dos outros, como Bretanha, Cartago e Pérsia.
O catolicismo tornou-se religião universal; nos primeiros três séculos da era cristã, a igreja apostólica foi perseguida pelo Estado, Roma Estado perseguia os cristãos, mas houve uma reviravolta com Constantino, e este, se “converteu” ao cristianismo católico por questões políticas, obtendo apoio dos cristãos, consegue se estabelecer no império, e a religião católica apostólica romana, passa a ter prioridade e se torna oficial no Império, dando abertura para o direito ser fortemente influenciado pela igreja, Bruce ainda relata (2018, p.123):
Na primavera do ano 312, Constantino, filho de Constâncio Cloro, cruzou os Alpes procurando expulsar da Itália seu rival, Massêncio, e tentando capturar Roma, o que foi uma iniciativa ousada. Quando encontrou o inimigo militarmente superior na ponte Mílvio, bem à frente das muralhas de Roma, ele recebeu auxílio do Deus dos cristãos e, em um sonho, viu uma cruz no céu e as palavras: “Por este sinal, conquiste”. Isso o convenceu a avançar e, em 28 de outubro de 312, ao obter sua brilhante vitória sobre as tropas de Massêncio, Constantino considerou seu sucesso uma prova do poder de Cristo e da superioridade da religião cristã. Alguns historiadores consideram a “conversão” de Constantino uma manobra puramente política, até porque muitas coisas do paganismo foram mantidas em sua vida: ele conspirou, assassinou e até mesmo reteve seu título de Pontifex Maximus, que indicava sua posição de líder do culto religioso do Estado.
Não podemos cogitar que a civil law do direito romano, poderia proporcionar, pelo menos em seu início, em sua fase de sistematização, ser um sistema favorável a liberdade religiosa, sendo que havia uma religião oficial que atuava de forma ativa nas questões do estado; não há campo, como já vimos, para a temática das liberdades individuais e muito menos se cogitar que futuramente seria o primeiro sistema jurídico a dar margem para a liberdade religiosa.
Montesquieu destaca a forma que a igreja influenciou na sistematização do direito e como o estado outorgou poderes a igreja (2003, p. 640):
As igrejas adquiriram bens bastante consideráveis. Vemos que os reis lhes concederam grandes feudos; e encontramos primeiro nos domínios da igreja as justiças estabelecidas. O direito que tiveram as igrejas de administrar a justiça em seu território foi chamado de “imunidade. As igrejas exerciam, por conseguinte, a justiça, mesmo sobre os homens livres, e realizavam os seus pleitos desde os primeiros tempos da monarquia.
Enquanto uma religião oficial é adota, por um estado dominante, mormente que remonta a um poder imperialista, não há como se pensar em liberdade religiosa. O catolicismo foi há época do império a religião dominante, que firmou governos, influenciou o poder e elaborou leis.
Não só durante o Império Romano, a religião influenciou fortemente o direito. Reale destaca este fato ao mencionar (2002, p.146):
[…] grande parte dos usos e costumes das sociedades primitivas está ligada a religião; a propriedade e o contrato estavam ligados a elementos de ordem religiosa. Os costumes como fonte para regras jurídicas: as regras jurídicas se desprenderam paulatinamente dos costumes primitivos. O direito foi, em primeiro lugar, um fato social bem pouco diferençado, confuso com elementos de natureza religiosa; nas sociedades primitivas o direito é um processo de ordem costumeira.
Não podemos deixar de observar que o direito canônico também obteve influência do direito romano, pelo menos no que tange sua estruturação, de forma que o direito eclesiástico e o direito romano tinham uma conexão peculiar; ambos os direitos em diversas fases do período medieval, eram vigentes na jurisdição e na esfera política também.
David (2002, p.39) relembra o fato que nas trevas Alta Idade Média a sociedade regressou a um estado mais primitivo. O ideal de uma sociedade garantista de é deixado de lado. O direito novo fundado sobre a justiça do século XII é uma revolução, que é reproduzida no século XVIII, é abominável para as relações civis o apelo ao sobrenatural, procura trocar a regra do poder pessoal pela democracia.
O direito romano, se estendera do mediterrâneo até o Mar do Norte, de Bizâncio à Bretanha, direito o qual a Igreja vivera e sobre o qual o direito canônico se fundará, evocava no espírito dos contemporâneos, com nostalgia a unidade perdida da Cristandade. A sociedade civil deve ser fundada sobre o direito, a eclosão do sistema romano-germânico, que se produz nos séculos XII e XIII; […] os esforços do papado ou do Império não bastarão para reconstruir, num plano político, a unidade do Império Romano. (DAVID, 2002, p. 40)
A civil law foi suscetível a religiosidade em sua sistematização, deveras o que já foi analisado, notamos que o catolicismo interferiu na vida política do estado; Altafim (2007, p.71) menciona o fato de que se averiguarmos o cristianismo, começando pela antiguidade, principalmente na Idade Média, notaremos que, substituindo o culto pagão politeísta pelo monoteísmo cristão, diversas vezes, ele se identificava com o Estado, influindo não apenas na parte religiosa, mas também na política.
Para arrematarmos este tópico, gostaríamos de mencionar (MONTESQUIEU, 2003) o fluxo e refluxo da jurisdição eclesiástica dentro do Estado; esta jurisdição se expandia cada vez mais, todavia, a jurisdição real começou a restringir pouco a pouco a jurisdição eclesiástica, verificou-se os diversos abusos cometidos dentro da jurisdição a qual a igreja exercia, e a jurisdição real logrou condições de corrigir tais abusos, como por exemplo se algum homem morresse sem deixar bens para a igreja era tido como inconfesso, era privado da comunhão e da sepultura.
Diante o exposto, é evidente a influência da religião na sistematização do direito, a civil law por preceder a common law, e por influenciar diversas nações, e até mesmo por ser um fator de unificação das nações da Europa, firmou os ideais religiosos defendidos pela Igreja Romana na estruturação do direito. No processo de sistematização do direito, em seus primórdios, tanto na civil law como na common law, não era possível se falar em liberdade religiosa, pois até mesmo a tutela genérica de liberdade, praticamente, não existia.
3.1 O cerceamento da liberdade religiosa dentro de Roma Cristã
Destacamos aqui Roma Cristã, pois neste momento, conforme já supracitado, o catolicismo se tornou a religião oficial do império e se estendeu pelos cantos da terra; a igreja que antes fora perseguida pelo estado, agora em união com este impõe dogmas oficiais, não havendo dentro da nação, berço da civil law, possibilidade de se cogitar liberdade religiosa, vejamos o que Shelley salienta (2018, p.46):
“Ao final do segundo século, o termo católico era amplamente utilizado para se referir à Igreja no sentido de que a Igreja católica era universal — em oposição a congregações locais — e ortodoxa — em oposição a grupos heréticos.”
Se de forma contemporânea, em estados modernos, onde se destaca a prevalência de direitos humanos, vislumbramos dificuldades no exercido da liberdade religiosa, quanto mais se pensar em tal liberdade, ainda que de forma rudimentar em um estado eclesiástico, cujo poder estava atrelado a pujança de uma única religião, e a uma única forma de fé.
A idade média foi o período em que a igreja imperou, diversas ações foram interpostas pela igreja a fim de coibir pessoas; demonstrando seu domínio no Estado, entre estas medidas podemos citar por exemplo as cruzadas, a inquisição e até o fato de subjugar reis; o estado era submisso ao poder eclesiástico, o direito canônico era firme e impositivo.
O exemplo a seguir é destacado por White, tal citação demonstra claramente o grande poder que a igreja passou a ter nas questões de estado, gerando cerceamento à liberdade e interferência direita na forma de governo (2020, p.33):
“Reis e imperadores curvavam-se aos decretos do pontífice romano. Durante séculos, as doutrinas de Roma foram aceitas. O papa Gregório VII proclamou que a igreja jamais havia errado, e nem mesmo poderia errar, …o pontífice reivindicava também o poder de depor imperadores. Uma ilustração do caráter tirânico foi o tratamento que dispensou ao imperador alemão, Henrique IV. Por haver supostamente desprezado a autoridade papal, esse monarca foi excomungado e destronado. Seus próprios príncipes foram encorajados, por mandado do papa, a rebelar-se contra ele. Henrique sentiu a necessidade de fazer as pazes com Roma. Em companhia da esposa e de um servo fiel, atravessou os Alpes em pleno inverno, a fim de humilhar-se perante o papa. Chegando ao castelo do Papa Gregório, foi conduzido a um pátio externo. Ali, no rigoroso frio do inverno, com a cabeça descoberta e pés descalços, esperou a permissão do papa a fim de comparecer à presença deste. Só depois de três dias de jejum e confissão, o pontífice concedeu-lhe o perdão. E ainda com a condição de que o imperador esperasse a autorização do papa antes de reassumir as insígnias ou exercer o poder da realeza.”
Não é possível se falar de liberdade religiosa, em nações, em territórios que são influenciados e guiados por uma religião oficial estabelecida em um império que ao longo dos séculos se estendeu sua marca, ideais e filosofia nas diversas nações que decidiram professar uma outra base de crença.
O cerceamento à liberdade no decorrer da idade média foi intenso, como pensar em tal liberdade religiosa dentro de um cenário tão hostil, White ainda salienta (2020, p.43-44):
Disse o chefe romano (papa): Se não receberem os irmãos que lhes trazem paz, terão de receber os inimigos que lhes trarão a guerra. Muitos cristãos, fugindo da perseguição na Inglaterra, encontraram refúgio na Escócia. Daí a verdade foi levada à Irlanda, e nesses países foi recebida com alegria. Quando os saxões invadiram a Bretanha, o paganismo conseguiu o predomínio, e os cristãos foram obrigados a retirar-se para as montanhas.[1]A igreja se opôs a todos aqueles que se levanta e decidia escolher um outro credo, uma outra convicção religiosa, exemplo disto ocorreu com os valdenses. Começaram então as mais terríveis cruzadas; colocaram se inquisidores em busca deles. Repetidas vezes foram devastadas as suas férteis terras e destruídas as suas habitações e capelas. Nenhuma acusação poderia ser levantada contra o caráter moral do grupo banido. Seu grande crime era o de não querer adorar a Deus segundo a vontade do papa. Por tal “crime”, todo insulto e tortura que seres humanos ou demônios pudessem inventar, acumulavam-se sobre eles. Determinando-se Roma a exterminar a odiada seita, um decreto foi promulgado pelo papa, condenando-os como hereges e entregando-os ao morticínio. Eram perseguidos todos que ousavam reivindicar liberdade para a fé religiosa.”
A ação da igreja no Estado era demasiadamente intensa, onde até os suplícios foram instrumentos para colocar os cidadãos, em conformidade com os dogmas e preceitos religiosos impostos pela religião dominante. Cesare Beccaria, publicou sua obra Dos delitos e das penas em 1764, perto do fim da supremacia eclesiástica, e destaca a ingerência da igreja em questões atreladas a liberdade religiosa, cerceando avidamente esta liberdade (1993, p. 91):
“Seria demasiado longo, igualmente, mostras que, para reunir todos os cidadãos de um Estado numa perfeita conformidade de opiniões religiosas, é preciso tiranizar os espíritos e constrangê-los avergar sob o jugo da força, embora essa violência se oponha à razão e à autoridade que mais respeitamos (evangelho), que nos recomenda a doçura e o amor dos nossos irmãos, embora seja evidente que a força só faz hipócritas e, portanto, almas vis.”
Traçando uma conexão com o que ora já tratamos no tópico anterior a respeito de como a igreja assumiu a gestão do Estado, Timm (2005) faz referência ao fato de que poucos imperadores da Roma antiga tiveram tanto poder como o Papa durante a Idade Média; o reconhecimento na supremacia eclesiástica do papado se consolida com a queda do último rei ariano dos ostrogodos, somente após o domínio dos godos ter sido quebrado que o papado teve liberdade para desenvolver plenamente o seu poder. Em 538, pela primeira, a cidade de Roma estava livre do domínio de um reino ariano. Naquele ano, o reino dos ostrogodos recebeu o seu golpe mortal.
Com o papado assumindo o controle político, tendo nas mãos a gestão do Estado, não havia cenário para se cogitar, que o sistema da civil law, galgado no direito romano, teria algum espaço para tutelar a liberdade religiosa, sendo que a única religião oficial, era a que ditava a regras de comando, as regras do poder.
Para dar ênfase ao argumento, destacamos o fato de que até o século XIX, isto é o século passado, a igreja influenciou notadamente o Estado, podemos ilustrar este fato no Estado brasileiro.
No início do século XIX “a religião católica pareceu aos integrantes de nossa elite política como um elemento indispensável à legitimação das instituições estatais e à manutenção da ordem social” (PEREIRA, 2007, p. 99).
Em padrões imperialistas, é notório a ausência de liberdade religiosa, assim foi no império romano, como também ocorreu no Brasil Império, seguindo a tradição portuguesa, adepta a civil law.
O Brasil “na constituição de 1824 continuou adotando a religião católica como a religião do império. A rigor, no Império, não havia liberdade religiosa em toda a sua extensão” (ALTAFIN, 2007, p. 13)
No cenário da common law, em seu nascedouro, na Inglaterra, ocorreu que o aludido sistema começa ganhar independência da influência do direito romano-germânico, e passa a ter bases próprias, propiciando um cenário propício para a conquista de liberdades, dando uma abertura para que a liberdade religiosa pudesse ser alcançada.
O trecho a seguir, extraído da obra do professor Altafim, destaca com como a common law foi o ambiente que propiciou as liberdades individuais, abrindo campo para liberdade religiosa (2007, p. 7):
“Foi redigida em latim a Magna Carta Libertatum. Na clausula 1, já a Igreja aparece no texto fundamental, quando o documento reconhece a liberdade eclesiástica, antes mesmo da declaração de garantia a liberdades que indica: “ João, pela graça de Deus, rei da Inglaterra, senhor da Irlanda, duque da Normandia e da Aquitânia e conde de Anjou, aos os arcebispos, bispos, abades, barões, juízes, e a todos os seus fieis súditos… 1. Em primeiro lugar, garantimos perante Deus e confirmarmos pela presente Carta, em nosso nome e no de nossos herdeiros para sempre, que a Igreja da Inglaterra será livre e intocadas; e é nossa vontade que assim seja observado: o que é evidente pelo fato de que, antes de principiar a atual querela garantimos e pela nossa carta confirmamos a liberdade de escolha, a qual é reconhecida como da maior importância e verdadeiramente essencial para a Igreja inglesa, e obtivermos confirmação disto de parte do Senhor Papa Inocêncio III; […].
A declaração sobredita, além de instituir a separação dos poderes do Estado, que é uma garantia institucional com reflexos na proteção dos direitos fundamentais do homem, outros direitos também foram declarados, sendo posteriormente adotados por constituições de outros países, como a do Brasil.
É de conhecimento comum, que as duas grandes nações, Inglaterra e Estados Unidos, adeptas a common law, são consideradas como terras da liberdade, deu fomento a separação dos poderes.
A divisão de poderes, legislativo, executivo e judiciário, correspondentes a três momentos diversos do processo normativo: formação, aplicação e execução das leis. Tal separação representaria o resultado histórico da luta contra o absolutismo dos reis, em nome dos direitos do povo, de modo que só a vontade geral poderia produzir regras vinculantes para todos, por meio do Parlamento. Os juízes, não tendo investidura popular, não seriam representantes do povo, não teriam assim, poder legislativo. Seriam, apenas, a boca da lei e a sua decisão seria meramente silogística (AMARAL, 2003, p. 70).
A reforma que John Wycliffe trouxe para a Inglaterra, foi um elemento primordial para que no berço da common law, a liberdade religiosa pudesse despontar no horizonte, White menciona (2020, p. 47):
“No décimo quarto século, surgiu na Inglaterra a “estrela da manhã da Reforma”. John Wycliffe se distinguira na universidade pela fervorosa piedade, tanto quanto por seu profundo preparo intelectual. Educado na filosofia escolástica, nos cânones da igreja e nas leis civis, estava preparado para entrar na grande batalha pela liberdade civil e religiosa.”
A terra da common law, abriu caminho para a conquista da liberdade religiosa, não só por ter deixado exemplo no ramo do direito público, que deu primazia as liberdades individuais em comparação com a civil law, mas também por outros fatores que permite se desvencilhar do poderio da igreja romana, minimizando o poder de influência da religião oficial do império romano.
A Inglaterra, mormente no que tange a carta do rei João sem-terra em 1215, como veremos adiante, trouxe os alicerces para tecer o campo da liberdade religiosa, mas foi nos Estados Unidos, nação influenciada pela direito inglês, que também adotou a sistematização da common law, que a bandeira da liberdade religiosa foi, efetivamente, pela primeira vez tutelada em preceitos normativos de maior concretude.
É válido fazermos uma análise sobre a distinção do direito público e privado, pois na civil law, base de sistematização do direito romano-germânico, não havia em sua origem, pelo menos no aspecto prático uma preocupação com o direito público, pelo menos no sentido de se tutelar as liberdades individuais.
O Estado possuía uma religião oficial, não há como se falar em liberdade religiosa num sistema onde a religião oficial é imposta, edita normas e regulamentos, impõe decreto e até hostiliza e pressiona monarcas a seguir os seus primados e ideais.
No direito romano, o direito privado determinava a interpretação do direito público, mas não o contrário, até mesmo por não existir entre eles o conceito de constitucionalismo e de hierarquia de normas como nós conhecemos. Atentemos o destaque de Ferraz (1998, p. 127-128):
A esfera privada compreendia o reino da necessidade, a atividade humana cujo objetivo era atender às exigências da condição animal no homem: alimentar-se, repousar, procriar etc. A necessidade coage o homem e obriga a exercer um tipo de atividade para sobreviver. Esta atividade é o labor. O labor distinguia-se do trabalho. Labor tinha a ver com o processo ininterrupto de produção de bens de consumo (alimento, por exemplo), isto é, aqueles bens que eram integrados no corpo após sua produção e que não tinham uma permanência no mundo: eram bens que pereciam. A produção destes bens exigia instrumentos que se confundiam com o próprio corpo […] O lugar do labor era a casa […] e a atividade correspondente constituía a economia […]. A casa era a sede da família e as relações familiares eram baseadas nas diferenças: relação de comando e de obediência, donde a ideia do pater famílias, do pai, senhor de sua mulher, de seus filhos e de seus escravos. Isto constituía a esfera privada. A palavra privado tinha aqui o sentido de privus, do que é próprio, daquele âmbito em que o homem, submetido às necessidades da natureza, buscava sua utilidade no sentido de meios de sobrevivência. Neste espaço não havia liberdade, pois todos, inclusive o senhor, estavam sob a coação da necessidade. Libertar-se desta condição era privilégio de alguns: os cidadãos (cives).
Os primeiros registros da delimitação entre o público e privado no Ocidente teriam ocorrido na Grécia, (MACHADO, 2019) cerca de 1.000 anos antes de Cristo. Neste período, o domínio privado era atinente ao domicílio e à família, e ao predomínio da necessidade (carência e vontade), o privado era considerado um fenômeno pré-político no qual se destacava a labuta e o trabalho e prevalecia a força e a violência. Já o público era o domínio da liberdade, também considerado o espaço de aparição onde ocorria a prevalência da ação e do discurso (palavras e persuasão).
Preocuparam-se também os romanos em dividir o direito. A primeira classificação (OLIVERIA, 1998) foi apresentada pelo jurisconsulto Ulpiano, que o separou em dois grandes ramos diferenciados pelo critério finalístico ou teleológico, isto é, pelo fim a que se destinam as normas de uma e de outra espécie. Ensina Ulpiano: ‘Neste estudo, duas são as posições: a do público e a do privado. O direito público é o que diz respeito à organização do Estado romano; o privado é o que interessa aos particulares’.
Para Rocha (2004) Roma entendia o privado como o ambiente onde se desenvolviam relações entre os que não eram cidadãos, como os comerciantes, as mulheres e os escravos. Era a sociedade dos desiguais.
Como supracitado, a distinção entre o direito público e o direito privado, antecede os romanos, vem dos gregos. Roma também possuía sua diferenciação entre tais ramos do direito. Desde o período de dominação dos gregos, a liberdade já era uma temática atrelada ao direito público, todavia esta distinção entre o público e o privado não perpetuou ao longo do tempo.
Quando o Império Romano adota uma religião oficial e a figura papal entra em cena e figura como parte integrante do poder, a ramificação do direito público perde a identidade, perde sua força, e os ideais de liberdade se perdem no decorrer do tempo.
O direito privado, foi muito forte em Roma, direto este que se tornou base para o desenvolvimento da civil law, e tal ramo do direito não se ateve a questões de liberdades individuais, não se podia conceber dentro da sistematização a civil law de base romano-germânico, um terreno fértil para iniciar em eras vindouras a tutela a liberdade religiosa.
Procuramos destacar que a construção do sistema da civil law, não foi propício, ao menos em suas bases de formação, apto para criar um ambiente favorável as liberdades individuais e desta galgar a abertura para a liberdade religiosa. Para dar concretude a questão em destaque mencionamos o destaque que Bobbio dá ao fato de Roma dar primazia ao direito privado, deixando o público, e mormente a tutela ás liberdades fora de bojo, (BOBBIO, 2007, p. 21):
O primado do direito privado firma através da difusão e da recepção do direito romano no Ocidente: o direito assim chamado das Pandette é em grande parte direito privado, cujos institutos principais são a família, a propriedade, o contrato e os testamentos…. o direito privado romano cuja validade esta fundada sobre a “natureza das coisas”.
5.1 O direito público da common law como precedência para a liberdade religiosa
Por vários séculos na Idade Média os homens viveram sob a tutela de regimes absolutistas, nenhum limite poderia ser imposto aos governantes, os soberanos eram tidos como enviados de Deus para cumprir a função de comandar o povo e todo o aparelho estatal, suas decisões eram consideradas acima das leis, seus atos não eram submetidos a qualquer controle jurídico. Tavares (2007, p. 77) destaca que o direito inglês da common law teve sua ligação com direito francês; a ideia de uma lei fundamental para colocar limites no poder dos soberanos veio ser salientada particularmente pelos franceses, todavia foi na Inglaterra, a égide do nascedouro da common law, que o constitucionalismo reaparece como movimento de conquista de liberdades individuais, nasce os primeiros diplomas constitucionais.
Podemos destacar que a common law é um sistema que da primazia as liberdades, por tratar destas, ao ponto que o direito romano da civil law, influenciado por uma religião oficial, em sua base de formação, não se preocupa com o direito privado, muito menos com as liberdades individuais.
Destarte, a base de formação da civil law, está atrelada a um estado que não é laico, trata mais do privado, deixando de lado as liberdades individuas; o professor René David destaca (2002, p. 47):
Em matéria de direito público o direito romano não deixou exemplo. Os modelos conforme à razão são, em larga escala, inspirados no exemplo inglês porque, se a common law não chegou em matéria de direito privado, a igualar a perfeição do direito romano, o direito inglês concilia melhor que nenhum outro, as necessidades da administração e da polícia e a liberdades dos indivíduos; as leis romanas não se ocupou de um direito público consagrando os direitos naturais do homem, garantindo as liberdades da pessoa humana.
O Estado brasileiro no que tange a liberdade religiosa foi preponderantemente influenciado mais pelos pais adeptos a common law, no caso Inglaterra e Estados Unidos.
A liberdade religiosa foi consagrada como direito fundamental que pacificou conflitos sociais e serviu de ponto de partida na luta por todas as liberdades individuais, naqueles países que foram modelo e inspiração para os liberais brasileiros do século XIX: Inglaterra, França e Estados Unidos (PEREIRA,2007, p.99).
O exemplo supracitado é um outro fator que nos leva a inferir que a common law é o sistema mais propicio a propagação das liberdades individuais, criando o cenário mais favorável para a liberdade religiosa, lembrando, evidentemente que não é o único sistema, de forma hodierna, que tutela esta liberdade, a civil law hoje também o faz.
O que é relevante salientarmos, através da base história e origem dos aludidos sistemas, podemos inferir que a common law, sistema oriundo do direito inglês favorece mais o cenário para as primeiras conquistas da liberdade religiosa, Altafim enfatiza este pensamento (2007, p. 12):
A expressão “direitos públicos individuais”, também denominados “direitos humanos”, significa que são direitos de individuo, subjetivos, oponíveis ao próprio Estado, que faz a lei, mas também a ela se submete. Historicamente, nesse sentido, a magna carta de 1215 é um marco importante. Não se concebia igualdade democrática na sociedade medieval, no confronto levado a efeito no dia 15 de junho de 1215, pelos barões ingleses contra João Sem-Terra, a magna carta foi um marco importante na evolução dos direitos humanos.
Foi no berço da common law, por meio dos direitos públicos individuais que a liberdade começou a ser alicerçada.
A liberdade religiosa alcançou sua maior conquista de modo expresso, não foi na Inglaterra, berço da common law, mas sim nos Estados Unidos, pais que também adotara a sistematização jurídica da common law.
A primeira vez que a liberdade religiosa foi tutelada expressamente, foi em uma nação adepta a common law, isto ocorreu somente com a revolução inspirada pelo racionalismo anglo-franco, ocasião em que tal liberdade foi declarada de forma expressa no art. 18 da declaração de Virginia de 1776, ao afirmar que “… todo home deve gozar inteira liberdade na forma do culto ditado por sua consciência, e não deve ser embaraçado nem punido pelo magistrado, a menos que, sob pretexto de religião, ele perturbe a paz ou a segurança da sociedade” (ALTAFIN, 2007, p. 13).
No país que propagou a common law para o novo mundo, no continente americano a liberdade religiosa despontava nos Estados Unidos, como um luz precursora para que este direito fundamental proliferasse de forma efetiva nos ordenamentos jurídicos de diversas nações, durante a modernidade; findamos este tópico com a citação esclarecedora de White (2020, p.173-174):
… Através do mar uma terra em que poderiam fundar para si uma nação e deixar para seus filhos a preciosa herança da liberdade religiosa, seguiram em frente, guiados por Deus. A perseguição e o exílio estavam abrindo caminho para a liberdade. O desejo de liberdade de consciência inspirou os peregrinos a cruzar o mar, a suportar as dificuldades de lugares isolados e a lançar os alicerces de uma nova nação. Entretanto, os próprios peregrinos não compreendiam o princípio da liberdade religiosa. Não estavam dispostos a conceder aos outros a liberdade por cuja obtenção tanto se haviam sacrificado. O ensino de que Deus confiou à igreja o direito de dominar a consciência e de definir e punir a heresia é um dos erros papais mais profundamente disseminados. Os reformadores não estavam inteiramente livres do espírito de intolerância de Roma. Tal como os primeiros peregrinos, Roger Williams foi ao Novo Mundo para desfrutar de liberdade religiosa. Mas, divergindo deles, viu o que tão poucos haviam visto: que essa liberdade é direito inalienável de todos. Williams foi a primeira pessoa do cristianismo moderno a estabelecer o governo civil sobre o ensino da liberdade de consciência. O público ou os magistrados podem decidir”, afirmou ele, o que é devido de pessoa para pessoa. Ninguém deveria ser obrigado a prestar culto. Ele lançou os fundamentos do primeiro Estado dos tempos modernos que reconheceu o direito de “que toda pessoa deve ter liberdade para adorar a Deus segundo sua consciência. Seu o pequeno estado, Rhode Island, cresceu e prosperou até que seus princípios básicos – a liberdade civil e religiosa – se tornaram as pedras angulares da República dos Estados Unidos.
CONCLUSÃO
É notório que a liberdade religiosa foi um processo de longa conquista, e tal conquista ainda está em andamento. A liberdade em epígrafe também foi alcançada em estados que adotaram a civil law. Todavia, o que ressaltamos, é o fato que a common law deixou exemplo na área de direito público, em uma fase mais amadurecida, por ter dado primazia as liberdades individuais, coisa que a civil law do direito romano germânico, não o fez, o direito consuetudinário abriu cenário mais favorável, em princípio, para a liberdade religiosa, pois a Inglaterra foi se desvencilhando do poderio romano.
Nosso foco não foi distorcer e taxar que a civil law não tutela a liberdade religiosa; evidentemente hoje, na modernidade, é notória tal proteção, e esta é positivada e respaldada pelos ordenamentos jurídicos que tem como base de sua formação os dois sistemas, tanto a common law como a civil law.
Podemos inferir que no contexto da idade média, o direito romano, foi base para sistematizar na maior parte das nações do mundo o sistema da civil law; sistema que, em suas origens, influenciado por uma religião oficial, ofuscou a liberdade religiosa, pois a religiosidade que poderia ser exercida, era uma só, era os dogmas e crenças da igreja apostólica romana.
O elemento a ser percebido é a impossibilidade da civil law ter sido o berço para possibilitar em tempos vindouros, um ambiente favorável para a conquista da liberdade religiosa; pois o direito romano foi o elemento embrionário da civil law, e Roma adotou o catolicismo como religião oficial do Império, e a aludida religião avançou praticamente doze séculos (538 a 1798), exercendo através de seu principal líder, a supremacia religiosa e deveras interferência política e até mesmo jurídica em diversas nações.
No berço da common law, a Inglaterra, sobretudo em 1215, na época do Rei João sem-terra, possibilitou o cenário jurídico favorável para que a liberdade religiosa começasse a ganhar visão até ganhar efetividade em séculos futuro.
A revolução francesa deixou uma marca relevante, ao minimizar os poderes da igreja, exilando o líder supremo do mundo religioso no ano de 1798. Os reformadores protestantes ao redor do mundo, em busca da conquista de liberdade religiosa, visando lograr êxito na liberdade de crença, culto e consciência, desenvolveram um papel primordial em diversos países, precipuamente para as nações que aderiram à common law.
Destarte, a liberdade religiosa foi tutelada, de maneira expressa, pela primeira vez, em 1776 no estado da Virginia; no país tido como a nação da liberdade, nos Estados Unidos, contempla-se no ordenamento jurídico alicerçado na common law a aludida liberdade.
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