1. Introdução
A atual crise política brasileira tem exigido, mais uma vez, a atuação efetiva do Congresso Nacional no exercício de seu poder/dever de fiscalizar, por intermédio das Comissões Parlamentares de Inquérito.
Em episódio ocorrido em um passado recente, uma das Comissões, no transcorrer das investigações, determinou a condução coercitiva de testemunha que, intimada, não compareceu à sessão designada para sua oitiva.
De tal proceder decorre a inquietação que constitui objeto do presente trabalho e que visa buscar saber se as Comissões têm poderes para determinar a condução forçada daquele que deixar de comparecer voluntariamente.
2. Poderes constitucionais das Comissões Parlamentares de Inquérito
O fiel desempenho da salutar missão constitucional incumbida às Comissões representa uma garantia do Estado Democrático de Direito e corolário da independência e harmonia entre os Poderes da República.
Para obtenção dos resultados colimados pela carta política, as Comissões Parlamentares de Inquérito foram dotadas de poderes instrutórios, visando à apuração de fatos delimitados, objeto de investigação.
Segundo o parágrafo 3º, do artigo 58, da Constituição Federal, as Comissões Parlamentares de Inquérito têm poderes de investigação próprios das autoridades judiciárias, além de outros previstos nos regimentos das respectivas casas. Dentre os poderes enfeixados nas mãos das Comissões, inclui-se a possibilidade de intimar e ouvir testemunha.
Conforme Julio Fabbrini Mirabete, “a pessoa arrolada como testemunha está obrigada a comparecer a juízo no local e na hora designados para o depoimento, em qualquer ação penal. Salvo as hipóteses previstas em lei (artigos. 207, 220, 221, 252, II, 258 e 564, I, do CPP), se a testemunha regularmente notificada deixar de comparecer sem motivo justificado, o juiz poderá requisitar à autoridade policial sua apresentação, ou determinar seja ela conduzida por oficial de justiça, que poderá solicitar auxílio da força pública”.[1]
Disso decorre que a testemunha regularmente intimada tem o dever legal de comparecer à sessão realizada pela Comissão Parlamentar de Inquérito e responder aos questionamentos que lhe forem dirigidos, ressalvadas as exceções legais. Caso não compareça espontaneamente, poderá ser determinada sua apresentação mediante condução coercitiva.
3. Possibilidade jurídica de condução coercitiva de testemunha determinada por CPI
Verificada a ausência da testemunha, indaga-se: as Comissões Parlamentares de Inquérito têm poder jurídico para determinar diretamente a condução coercitiva da testemunha ausente ou necessita socorrer-se do Poder Judiciário para que esse órgão verifique se ocorreu hipótese legal de cabimento da medida extrema?
O tema foi inicialmente regrado pela Lei n. 1.579/52, que dispõe sobre normas gerais das Comissões Parlamentares de Inquérito. O artigo 3º do referido diploma legal dispõe: “Indiciados e testemunhas serão intimados de acordo com as prescrições estabelecidas na legislação penal”.
O seu parágrafo único estabelece que, “em caso de não comparecimento da testemunha sem motivo justificado, a sua intimação será solicitada ao juiz criminal da localidade em que resida ou se encontre, na forma do artigo 218 do Código de Processo Penal”.
Após, a Constituição Federal de 1988 dispôs no parágrafo 3º do artigo 58 que as Comissões Parlamentares de Inquérito terão os mesmos poderes instrutórios das autoridades judiciais.
Daí a questão: a Lei n. 1.579/52 foi ou não recepcionada pela nova ordem constitucional? Em outras palavras, dentro dos “poderes instrutórios” conferidos pela Carta Magna às Comissões Parlamentares de Inquérito, está incluída a possibilidade de determinar diretamente a condução coercitiva da testemunha faltante?
Sobre o tema, existem dois posicionamentos.
Para alguns, o mencionado dispositivo legal não foi recepcionado pela atual Constituição uma vez que esta conferiu poderes para a CPI realizar diretamente suas atividades, sendo dispensável socorrer-se do Judiciário para tal desiderato. Por adotar esse entendimento, Alexandre de Moraes[2] inclui dentre os poderes da CPI a possibilidade de determinar a condução coercitiva de testemunha.
Seguindo essa orientação, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo reconheceu a ausência de interesse de agir em pedido de condução coercitiva de testemunha formulado, em jurisdição voluntária, pelo presidente de CPI instalada na esfera municipal, fundamentando que a Constituição Federal “concedeu poderes de investigação próprios das autoridades judiciais às comissões parlamentares de inquérito, pelo que não se vislumbra necessidade na prestação jurisdicional almejada” (Apelação Cível n° 308.048-5/2-00, 5ª Câmara de Direito Público, rel. Des. Ricardo Anafe, j. 4-9-2003).
O Supremo Tribunal Federal sinalizou para a possibilidade de condução coercitiva pela CPI, ao conceder, em caráter preventivo, ordem de habeas corpus contra ameaça de constrangimento à liberdade de locomoção, materializada na “intimação do paciente para depor em CPI, que contém em si a possibilidade de condução coercitiva da testemunha que se recuse a comparecer” (HC 71.261, Tribunal Pleno, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 11-5-1994, DJ de 24-6-1994).
Para outros, e dentre eles Cássio Juvenal Faria,[3] a Lei n. 1.579/52, nesse particular, permanece em vigor, competindo ao Poder Judiciário aferir a legalidade e determinar a condução coercitiva, se for o caso, por se tratar de medida que afeta direitos fundamentais e, dessa forma, incluída entre as atribuições precípuas da função jurisdicional.
Registre-se que está em tramitação no Congresso Nacional o Projeto de Lei n. 2.266/2007, que dispõe sobre a possiblidade de condução coercitiva de testemunhas e indiciados determinada por Comissão Parlamentar de Inquérito, dando nova redação à Lei n. 1.579/1952.
4. Conclusão
A relevância do papel jurídico-constitucional conferido pela Carta Magna às Comissões Parlamentares de Inquérito demanda sejam elas dotadas de instrumentos eficientes no desempenho de suas atividades.
Sob esse prisma, é de se admitir que, respeitados os limites impostos pelo ordenamento jurídico, são amplos os poderes investigatórios das Comissões.
Assim sendo, a possibilidade de determinar condução coercitiva diretamente, sem intervenção do órgão jurisdicional, é inerente às atribuições constitucionalmente outorgadas às Comissões, como forma de garantir a celeridade e efetividade das investigações e, consequentemente, da atividade fiscalizatória atrelada ao Poder Legislativo. Nessa seara, não incide o princípio constitucional da “reserva de jurisdição”. Fica resguardado, todavia, o direito daquele que se sentir lesado, de buscar junto ao Poder Judiciário, instituição estatal imparcial e que tem como função precípua aplicar o direito ao caso concreto, apreciar eventual ameaça ou lesão a direito.
Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito. Professor convidado no curso de pós-graduação em Ciências Criminais da Rede Luiz Flávio Gomes e em cursos de pós-graduação em diversas Escolas Superiores do Ministério Público e da Magistratura. Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP. Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP). Membro Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), do Instituto de Ciências Penais (ICP) e do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP).
Magistrado no Estado de São Paulo. Integrante do Colégio Recursal da 28ª Circunscrição Judiciária. Professor Universitário.
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