Monique Rodrigues do Prado[2]
Rendendo-me as lives produzidas em tempos de confinamento, assistia as reflexões tecidas pelo filósofo Rodrigo Petronio no canal do Youtube da Casa do saber. Em tom lúcido, ele dizia que a crise estabelecida pelo COVID-19 não será suficiente para alterar a narrativa do capitalismo, visto que esse é um dos sistemas mais sofisticados e complexos de domesticação humana.
Do ponto de vista econômico, o capitalismo amplia a concorrência de forma que permite a coordenação do mercado. Entretanto, sob a ótica das relações humanas o que temos visto são acumuladores de capital que lucram com essa engrenagem em face de uma massa de trabalhadores com recursos parcos e condições comprometidas para a sua própria existência.
Nesses tempos de crise fica evidente que a saúde é um produto, pois são os planos de saúde e a indústria farmacêutica que direcionam qual é a vida que tem prioridade.
O COVID19 não escolhe classe social atingindo de bilionário a miserável, mas revela as contradições acentuadas desse sistema econômico-social, sobretudo porque a engrenagem não pode parar. É isso que leva a autoridade máxima do nosso país vir a público e em rede nacional criminosamente promover discursos que façam as pessoas voltarem às ruas justificando que “O Brasil não pode parar”, ignorando completamente as recomendações de isolamento da Organização Mundial da Saúde e do próprio governo, por meio do Ministério da Saúde.
Na mentalidade desse pseudopolítico a economia da financeirização e dos bancos de investimento é mais importante que a vida e por isso nem a vida é suficiente para a declaração oficial de calamidade pública.
Entretanto, não podemos esquecer que a saúde é uma conquista histórica dos trabalhadores que, pelo menos em tese, é direito de todos. Entretanto, na perspectiva liberal a saúde só pode ser viabilizada se tornada mercadoria virando verdadeiro produto na mão da iniciativa privada.
O pouco investimento no setor da saúde e da ciência é algo que precisa de eco, pois é fundamental denunciar um desgoverno que só está preocupado com o eleitorado de 2022, mas muito pouco preocupado com cenários de caos e quebra da ordem social. Senão fosse assim, o Presidente não gastaria 4,8 milhões para a sua ordinária campanha publicitária “o Brasil não pode parar” e investiria esse mesmo valor em testes de massa para tentar diminuir uma catástrofe social ou pelo menos em mais leitos, respiradores e equipamentos para profissionais da saúde que estão na linha de frente.
Afinal, para que investir em pesquisa ou desenvolver algo que não possa virar produto e ser instantaneamente precificado? É nesse sentido que nos provoca o médico americano de medicina preventiva Dr. James Hamblin, professor da Escola de Saúde Pública de Yale: “Os investimentos governamentais de longo prazo são importantes para criação de vacinas, medicamentos antivirais e outras ferramentas vitais requerem décadas de sérios investimentos, mesmo quando a demanda é baixa. As economias baseadas no mercado geralmente não se interessam em desenvolver um produto para o qual não há demanda imediata…”.
A cena dos médicos cubanos chegando a países desenvolvidos revela a como um modelo que prioriza: a vida, a saúde e a educação coloca em cheque o desenvolvimentismo seletivo daqueles países que inflou os seus cofres de bancos de investimento, mas ainda depende de uma país terceiro-mundista para operar a força de trabalho.
Em uma análise contemporânea da ordem regida pelo capital, vimos que os indivíduos passam a ser vistos pelo seu poder de compra de modo que todos nós viramos consumidores, ou seja, não importa mais o nosso nome, importa se o sujeito tem CPF ou “nome limpo”.
Assim, com a ascensão das políticas neoliberais reduzindo bruscamente a participação do Estado nesses serviços básicos, o cidadão cada vez mais é visto como “cliente”, onde certamente deverá passar pelo crivo da análise de crédito (score) antes da contração de qualquer bem ou serviço, de modo que o acesso à moradia, à educação e à saúde viram produtos.
Mesmo a recente aprovada renda mínima é absurda, pois quem consegue fazer mercado, pagar contas de energia, água e telefone, aluguel e medicamentos com R$ 600,00? A pergunta que pode levar a uma resposta sintomática de que é possível sim viver com esse valor joga luz novamente ao hiato social. Minha provocação não poderia ser outra senão convidar os nossos senadores e deputados, representantes do povo, a viverem nesse tempo de quarentena com o referido valor.
Mais uma vez a provocação serviu para denunciar a perversidade do capitalismo, onde uns têm R$ 600,00 e outros, como os nossos representantes da classe política auferem só de rendimentos valor mensal de 33.000,00. É rezar para que o cidadão não contraia COVID-19 com R$ 600,00.
Outra discussão é a criação do imposto sobre grandes fortunas (IGF) que tem previsão no art. 153, VII desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, mas jamais chegou a ser instaurado para tributar os ricos no Brasil. Talvez, após essa crise podemos ver uma reforma fiscal tendo pautado esse imposto e não a repetição de reformas que compromete o trabalhador.
Essa engrenagem de CPF’s retira o medo dos multimilionários em tempos de crise sanitária, já que não demonstram qualquer zelo a vir a público e comentar que 12 mil mortos não é nada ou que é histeria ou ainda que é um viruzinho, como disse Roberto Justus. Tem ainda o dono do Madero, Luiz Durski Junior que afirma que o país não pode parar se 05 ou 07 mil pessoas morrerem.
Para aqueles que insistem em dizer que as pessoas não vão morrer do vírus, mas morrerão de fome, mais uma vez é flagrante a contradição do sistema econômico vigente, pois é inadmissível que um país que já chegou a 09ª posição do ranking mundial econômico, não dê conta de parar por dois ou três meses para cuidar da saúde dos seus cidadãos.
Enquanto isso, os pobres da classe trabalhadora, esses que sustentam o pilar do capitalismo agressivo se mantém esperançosos de que a burocracia não se estenda por muito tempo para que eles possam acessar o mais rápido os prometidos R$ 600,00 e, na medida do possível, mantenham-se atendendo as recomendações de quarentena em suas casas que, muitas vezes, não têm sequer janela cujo amontoamento é realidade.
O Estado do bem estar social vira cortina de fumaça ficando apenas na promessa.
Fato é que somos uma sociedade cansada de um modelo que atende aos interesses de um grupo ínfimo que prega o individualismo como Deus e a financeirização como Jesus Cristo.
O capitalismo foi capaz de se amoldar as mais diversas culturas e, portanto, encontra-se universalizado. Entretanto, não podemos aceitá-lo como plano estático. É preciso viabilizar a solidariedade sistêmica como elemento estrutural de caráter global.
A formação de uma nova mentalidade coletiva exige coragem, pois maximizar uma sociedade comunitária pressupõe que os interesses públicos estejam alinhados com essa proposta que certamente, sobretudo nesse momento, apresenta-se como uma demanda social urgente para além do espectro da esquerda ou da direita. Essa crise escancara para nós que o sentido da vida não é a produção. Estabelecer um novo eixo implica compreender o valor da vida humana.
[2] Advogada especialista na área médica. Integrante da Comissão de Direitos Humanos da OAB – Subseção Osasco. Participa do Comitê de Igualdade Racial do Grupo Mulheres do Brasil e da Educafro.
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