*Alfredo Bernardini Neto, consultor jurídico há mais de 15 anos no mercado, membro associado da Instituto Brasileiro de Direito Tributário, especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários, especialista em Direito Processual Tributário pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário, sócio do escritório Bernardini, Martins & Ferras Advogados.
Nós, do mundo jurídico, recebemos recentemente a notícia sobre a decisão[1] proferida pelo presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, desembargador Geraldo Pinheiro Franco, que suspendeu várias liminares que haviam sido concedidas por Juízes de Primeiro Grau, os quais, em razão das dificuldades financeiras advindas da Pandemia do Covid-19, entenderam por bem e por cautela prorrogar os pagamentos de impostos estaduais (em especial o ICMS), dando um fôlego aos empresários neste momento tão crítico.
Ainda que todas as decisões dos Juízes tenham sido proferidas com relevantes fundamentos jurídicos para justificar e validar os deferimentos das prorrogações dos pagamentos dos impostos, o presidente do TJ-SP por entender que a concessão de moratória tributária – em meio à pandemia do novo coronavírus – teria potencial de risco à ordem administrativa, comprometendo inclusive as ações de enfrentamento à doença, suspendeu as diversas liminares concedidas sob fundamento de grave lesão à ordem, à economia e à segurança pública.
Entretanto, é imperioso destacar que essa medida adotada é altamente questionada no meio jurídico por tratar-se nitidamente de uma ferramenta de alto grau político.
Vale relembrar que Suspensão de Liminar e Sentença (SLS) teve seu surgimento no ordenamento jurídico, mesmo que de forma acanhada, no ano de 1936, com a edição da Lei nº 191.
Entretanto, no ano de 1964, durante plena vigência do Regime Militar é que referido instituto fora implementado de forma mais proeminente, com a edição da Lei nº 4.348, de 26 de junho de 1964, que estabelecia normas processuais relativas ao remédio processual do mandado de segurança.
Em um contexto político/legislativo totalmente diferente do nosso atual, referido instituto jurídico fora criado à aquela época como medida eminentemente política, criada num período de estado de exceção – Golpe Militar de 1964 – que ocasionou a supressão dos direitos e garantias constitucionais, em que a independência dos poderes sofria restrições, para atendimento às necessidades do Poder Executivo.
Isto porque naquela época, diferentemente de tempos atuais, não havia em nosso ordenamento jurídico a possibilidade de interposição de qualquer tipo de recurso dotado de efeito suspensivo, o que impossibilitava o governo de combater de imediato as decisões que lhe eram desfavoráveis.
Não obstante, referido instituto tenha sido introduzido no contexto político do regime militar, a SLS foi posteriormente reproduzida seus termos na Lei nº 8.437/92, e em sequência, na Lei nº 12.016/09, que disciplina o mandado de segurança, mantidos atualmente os mesmos requisitos para o seu processamento e deferimento.
Entretanto, os tempos atuais são antagônicos aos regimes de exceção do passado, e as garantias constitucionais e processuais são plenas atualmente, havendo hoje em nosso ordenamento jurídico previsão de interposição de diversos recursos imediatos dotados de efeito suspensivo, situação completamente diferente de um passado remoto.
Não é crível em tempos atuais acreditarmos que uma ferramenta do passado, que teve sua origem em um regime de exceção, possa ser usada em dias atuais, em plena vigência de um estado democrático de direito.
E lembremos que: O Estado democrático de direito é um conceito que designa qualquer Estado que se aplica a garantir o respeito das liberdades civis, ou seja, o respeito pelos direitos humanos e pelas garantias fundamentais, através do estabelecimento de uma proteção jurídica.
O Brasil adota como composição dos poderes a teoria da tripartição de poderes, inaugurada pelas teorias de Aristóteles e efetivamente criada e instituída por Montesquieu. Assim, esse mecanismo institucional assegura que nenhum poder irá sobrepor-se ao outro, trazendo uma independência harmônica nas relações de governança.
E no caso em questão: como falarmos em “proteção jurídica” se é facultado ao Poder Judicante, em dias atuais, atuar como Agente Político e não como Agente Jurídico???
Quando não havia direito ou previsão legal de recursos com efeito suspensivo, contra as decisões dos Juízes de primeira instância, até poderíamos entender ou aceitar de alguma forma esse tipo de intervenção ou ação, mas no atual estado democrático de direito em que vivemos, essa ferramenta não cabe mais em nosso ordenamento jurídico.
Ou seja: ao se possibilitar que o Presidente do Tribunal de Justiça conceda uma decisão ao Estado somente invocando abertamente motivações políticas e não jurídicas não nos parece que estamos vivenciando uma independência efetiva dos poderes, mas transparece que o Poder Judiciário está ao dispor dos interesses do Executivo. Vejamos alguns trechos da decisão que demonstram o cunho político da decisão:
“Isto porque decisão judicial não pode substituir o critério de conveniência e oportunidade da Administração, mormente em tempos de crise e calamidade, porque o Poder Judiciário não dispõe de elementos técnicos suficientes para a tomada de decisão equilibrada e harmônica.”
…
Embora estejam pautadas em efetiva preocupação com o atual cenário mundial, as decisões desconsideraram que a redução na arrecadação dos impostos pelo Estado interfere diretamente na execução das medidas necessárias à contenção da pandemia de COVID-19. Também deixaram de considerar que, com relação ao recolhimento regular de ICMS, o cumprimento da obrigação mantém exata correspondência com o ritmo de vendas. Por incidir somente quando se aperfeiçoa o fato gerador, o ICMS é devido na mesma intensidade da atividade econômica do contribuinte: a redução da atividade econômica resulta em corresponde redução do valor do ICMS devido.
…
É importante dizer: não foram poucas as providências adotadas pelo Governo do Estado de São Paulo para mitigação de danos provocados pela pandemia de COVID-19, tudo com vistas a evitar o contágio, a preservação da vida e da economia, ameaçadas de continuidade caso mantidas as liminares deferidas.
…
Neste momento de enfrentamento de crise sanitária mundial, considerando todos os esforços envidados hora a hora pelo Estado, decisões isoladas, que caracterizam redução drástica na arrecadação do Estado, têm o potencial de promover a desorganização administrativa, obstaculizando o pronto combate à pandemia.
…
A despeito da induvidosa seriedade do momento atual, devastador e intranquilo, não há mínima indicação de que o Estado esteja sendo omisso quanto ao combate à pandemia de coronavírus. Por estar munido de conhecimento técnico abalizado e deter o controle do erário, o Estado de São Paulo, pelo Poder Executivo, tem as melhores condições e os melhores critérios para deliberar acerca do tema, de forma coerente com a capacidade contributiva de cada empresa segundo seu âmbito de atuação.”
A decisão supra proferida pelo presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo desestabiliza a teoria da tripartição dos poderes, não assegurando que nenhum poder irá sobrepor-se ao outro, e não garantindo uma independência harmônica nas relações de governança.
E mais: como cassar decisões que foram proferidas em processos individuais, com particularidades individuais de cada empresário através de uma decisão política?
Estamos falando de uma pequena minoria que ingressou no Poder Judiciário para resguardar direitos e preservar a manutenção de seus negócios, requerendo uma prorrogação do pagamento de seus impostos, como uma forma de minimizar os efeitos negativos que o próprio Estado trouxe ao contribuinte.
A decretação do estado de calamidade traz aos Estados e Municípios dezenas de benesses que garantem aos entes públicos facilidades para passarem esse momento de dificuldade e no caso dos empresários nenhuma benesse pelo Estado lhe foi dada para minimizar os impactos econômicos!
Temos algumas ações isoladas do Governo Federal em trazer alguns pacotes muito singelos para minimizar os impactos dos empresários, entretanto, os Estados e Municípios não têm feito nada nesse sentido.
Questiona-se? O que o Estado de São Paulo fez em prol dos contribuintes e empresários paulistas para minimizar os impactos negativos econômicos? Houve alguma desoneração? Fora editada alguma anistia?Tivemos a instituição de algum benefício fiscal ?
Em contrapartida, o Estado de São Paulo ao decretar o estado de calamidade pública conseguiu, dentre outros benefícios: (i) se esquivar das obrigações e regras da Lei de Responsabilidade Fiscal, flexibilizando as prestações de contas e regras de teto de gastos; (ii) teve a seu favor liberação de recursos extras do Governo Federal os quais irão implementar seu caixa;(iii) possibilidade de licitar com maior flexibilidade e menor fiscalização.
E o pior contrassenso que vem desbancar e mostrar a incongruência do quanto abordado: o Estado de São Paulo foi ao judiciário – Supremo Tribunal Federal – para pleitear a suspensão do pagamento de sua dívida com a União, tendo sido deferido pela Suprema Corte tal moratória.
Ou seja: o Poder Judiciário pode conceder ao Estado moratória de suas dívidas para minimizar os impactos do Covid-19, mas aos empresários, contribuintes e cidadãos brasileiros não lhes são facultados a possibilidade de levar ao Judiciário casos individuais e particulares para que sejam analisados por um Juiz e decidido com um bom senso?
Novamente reiteramos: não estamos falando que todos os empresários paulistas irão deixar de pagar seus impostos, mas estamos falando de casos pontuais em que contribuintes mostram ao Juiz a necessidade extrema de uma moratória em detrimento de não fechar seus negócios e demitir funcionários.
Mas nem mesmo nestes casos pontuais em que os empresários demonstraram a necessidade extrema de uma pequena moratória houve um respeito aos direitos e garantias constitucionais, pois foram adotados dois pesos e duas medidas em nosso estado democrático de direito.
Esperamos que os Juízes Singulares e Desembargadores mantenham suas autonomias funcionais e suas convicções que lhes foram garantidas quando da investidura do cargo público e vamos lutar, no campo das ideias e doutrina, contra atos contraditórios e que não respeitem os direitos individuais dos empresários, contribuintes e cidadãos brasileiros.
Legislativo cria leis, Executivo administra o Estado e Judiciário aplica as leis e princípios vigentes.
Caso essa ordem e regra não seja cumprida e implementada estaremos à beira de um colapso e de uma esquizofrenia jurídica.
[1] Processo n. 2066138-17.2020.8.26.0000
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