Nome do autor: Matheus Coelho Alves. E-mail:matheuscoelhoalvesgpi@gmail.com. Acadêmico do curso de Direito na Universidade UNIRG. Gurupi/TO.
Nome do orientador: José Carlos Ribeiro da Silva. E-mail: 13karllos@gmail.com Profº. M.e No curso de Direito na Universidade UNIRG, Gurupi/TO
Resumo: O presente estudo tem como objetivo analisar se é viável a teoria da desconsideração da personalidade jurídica ser aplicada na seara administrativa, mais especificamente na fase de habilitação de um certame licitatório, por ato da Administração Pública, quando restar comprovada a verificação de que um dos licitantes agiu com inidoneidade ou for impedido de licitar mediante a utilização de uma nova pessoa jurídica para continuar contratando juntamente ao Poder Público. O método de estudo utilizado no presente estudo foi o bibliográfico-documental e o procedimento utilizado foi o exploratório. Através dessa pesquisa, foi possível constatar que a legislação brasileira não dispõe de previsão legal no sentido de se desconsiderar a pessoa jurídica por ato administrativo, contudo, em caso de a prática do sócio implicar em desvio de finalidade da pessoa jurídica e confrontar diretamente os princípios da licitação, busca-se, através dos entendimentos jurisprudenciais e doutrinários conhecer os procedimentos defendidos com vistas a conferir maior efetividade às sanções administrativas entendendo-se ao final pela possibilidade de desconsiderar a personalidade jurídica das empresas constituídas com a finalidade de burlar as licitações.
Palavras-chave: Desconsideração da Personalidade Jurídica. Abuso de direito. Fraude.
Abstract: This study aims to analyze whether it is feasible for the theory of disregard for legal personality to be applied in the administrative field, more specifically in the qualification phase of a bidding contest, by an act of Public Administration, when the verification that one of the bidders is proven acted with disqualification or is prevented from bidding through the use of a new legal entity to continue contracting with the Government. The study method used in the present study was the bibliographic-documental and the procedure used was exploratory. Through this research, it was possible to verify that the Brazilian legislation does not have a legal provision in the sense of disregarding the legal entity by administrative act, however, if the partner’s practice implies a deviation from the legal entity’s purpose and directly confront the principles of the bidding process, it is sought, through the jurisprudential and doctrinal understandings, to know the procedures defended with a view to giving greater effectiveness to the administrative sanctions, understanding at the end of the possibility of disregarding the legal personality of the companies set up in order to circumvent the bids.
Keywords: Disregard of the Legal Personality; Abuse of rights; Fraud.
Sumário: Introdução. 1. Da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. 1.1. Breve histórico e conceito. 1.2.Positivação no ordenamento jurídico nacional. 2. Das licitações. 2.1. Príncipios norteadores. 2.2. Fraudes no processo licitatório. 2.3. Sanções administrativas, crimes e penas dispostos na Lei nº 8.666/93. 3.Da possibilidade de utilização da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito administrativo. 3.1. Dos requisitos para a aplicação do instituto no Direito Administrativo. 3.2. Do abuso de direito e da impunidade. 3.3. Da ofensa aos princípios da licitação. Conclusão. Referências
Introdução
Desde os primórdios da humanidade, o indivíduo é tido como um ser altamente sociável, tendo em vista que sempre buscou agrupar-se a coletividade com a finalidade de superar limitações e, dessa forma, alcançar seus propósitos. Com o notável desenvolvimento social e as inúmeras complexidades vislumbradas nas relações humanas, ocorreu a necessidade de aferir a personalidade jurídica a estas relações, para que estas pudessem se desenvolver como verdadeiros sujeitos de direito independente de seus participantes. Assim, a partir desse ponto, é que se observa a origem da atual acepção de pessoa jurídica.
Assim, por meio da criação da pessoa jurídica, observou-se um elevado desenvolvimento de atividades econômicas que demandam investimentos de alto risco, tendo em vista a limitação de responsabilidades promovidas aos sócios por meio do princípio da autonomia patrimonial. Essa acepção, tida como um dos principais efeitos da personalização verifica a separação existente entre o patrimônio social e o patrimônio de seus membros. Como consequência deste fato, é possível observar a responsabilidade patrimonial pelas obrigações da sociedade empresária permeia apenas ao seu próprio acervo de bens, sem atingir os sócios.
Para tanto, embora o referido princípio compreenda uma evolução social, este, acaba por facilitar a utilização de sociedades empresárias como ferramenta para burlar o Poder Público, por meio de fraudes ou abusos de direito. Assim, vale dizer que há pessoas que se aproveitam da distinção patrimonial, utilizando a pessoa jurídica como instrumento para a consagração de tais práticas, se compreendendo em um obstáculo na correta imputação de responsabilidade e, principalmente, prejudicando terceiros e credores idôneos.
Feitos estes esclarecimentos iniciais, o presente estudo tem como objetivo geral analisar a possibilidade de aplicação da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica no campo administrativo, sendo esmiuçada a efetividade das sanções administrativas no procedimento licitatório.
Para atingi-lo elegeram-se os seguintes objetivos específicos: explicar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica e sua positivação no ordenamento jurídico brasileiro; discutir as fraudes no processo licitatório discutindo as sanções administrativas, crimes e penas dispostos na Lei n° 8.666/93; e analisar a possibilidade de utilização da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito administrativo em caso de abuso de direito e ofensa aos princípios da licitação.
A relevância pessoal no presente estudo se compreende em detrimento à intensa observação do autor deste trabalho mediante as comissões de licitações, onde é possível analisar frequentemente, durante a fase de habilitação, inúmeras documentações dispostas pelas empresas que identificam sócios que constituíram nova empresa na tentativa de defraudar uma penalidade administrativa. Isto é, a referida prática compreende em abandonar uma empresa que foi inibida de licitar e constituir outra, com o mesmo objetivo e domicílio, mesmos sócios e, posteriormente, a mesma sanção administrativa aferida na primeira.
Dessa forma, a situação em comento gera intensa relevância social, principalmente no âmbito empresarial, mediante o questionamento se a Administração Pública deve inabilitar a empresa e afastá-la do certame licitatório, ou nada impede que esta seja devidamente habilitada, uma vez que sobre a personalidade jurídica desta não reincide nenhuma sanção. Desta feita, a desconsideração da personalidade jurídica originou-se no Direito Privado com o objetivo de atingir o patrimônio dos sócios que usavam a pessoa jurídica como respaldo para se afastarem de suas obrigações.
Para tanto, o estudo justifica-se em razão da importância do tema a ser debatido, tendo em vista que o número de empresas que utilizam desta manobra é bastante elevado. Assim, mediante a evolução dos recursos administrativos, resta cada vez mais nítida a identificação deste tipo de prática, contudo tais recursos acabam por não suprir todos os anseios que permeiam a segurança jurídica na tomada de decisão. Portanto, por não existir norma específica que discorra sobre a conduta do administrador, a omissão no tocante a estes casos pode incorrer em impunidade das empresas que buscam trapacear a legislação e tornar ineficazes as sanções dispostas no artigo 87, III da Lei 8.666/93.
1 Da teoria da desconsideração da personalidade jurídica
Esta seção explica a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, apresentando um breve histórico do instituto, conceito, bem como sua positivação no direito brasileiro.
1.1 Breve histórico e conceito
A pessoa jurídica compreende a unidade de pessoas naturais ou de patrimônios que almejam a consecução de determinados fins, sendo reconhecida pelo sistema jurídico como sujeito de direitos e obrigações. Assim, o dispositivo 1.024 do Código Civil brasileiro dispõe sobre a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas, ou seja, o referido instrumento jurídico busca apresentar a atividade econômica e o progresso nacional, uma vez que o texto constitucional vigente aderiu-se ao regime capitalista de mercado.
Assim sendo, a doutrina de Gonçalves (2014, p. 78) elucida sobre a desconsideração da personalidade jurídica:
“Diante desse fenômeno histórico, surge a necessidade de dotar o grupo de personalidade, permitindo que atue em nome próprio, da mesma forma que as pessoas naturais. A pessoa jurídica, portanto, consiste num conjunto de pessoas e bens, constituídos na forma da lei e que busca alcançar determinado objetivo na sociedade.”
Desse modo, Marçal Justen Filho (2019, p. 269) explica o reconhecimento da personalidade às pessoas jurídicas como “uma sanção positiva através da qual o ordenamento jurídico busca incentivar os cidadãos a desempenharem determinadas atividades de interesse particular e estatal”. Apesar dos ensinamentos pautados por Justen Filho (2019) denotarem um viés positivo, vale ressaltar que o uso abusivo contra credores e a utilização desse instrumento em desrespeito ao interesse público, a fim de burlar obrigações e sanções a serem cumpridas representa uma realidade cada vez mais frequente observada no Brasil.
A abordagem histórica, imprescindível no estudo de qualquer instituto, embora possa não ser a mais agradável é, sem sombra de dúvidas, a que possibilita o mais amplo entendimento da matéria que constitui seu objeto, de maneira que, através deste expediente é possível conhecer as circunstâncias que deram causa ao surgimento e que nortearam a evolução do instituto em análise, no caso em pauta, a desconsideração da personalidade jurídica.
Não obstante tenha nascido a Teoria da Desconsideração nos Estados Unidos da América, foi no direito da Inglaterra que a doutrina teve sua inauguração. Os registros datam do ano de 1897, e o caso ficou conhecido como Salomon vs. Salomon &Co., que assim se resume:
“Um comerciante chamado Aaron Salomon constituiu, juntamente com mais seis pessoas de sua família […] uma company, recebendo em função da cessão de seu fundo de comércio, vinte mil ações; para os demais componentes restaram seis ações, exatamente uma para cada um. Salomon, então, concedeu empréstimo à sociedade, obtendo garantia real. Pouco tempo depois, a companhia começou a dar visíveis sinais de enfraquecimento, passando a saldar impontualmente seus débitos, quando, espertamente, Salomon exerceu seu direito de debenturista contra a empresa, deixando a sociedade impossibilitada de pagar aos devedores quirografários, ou seja, aqueles que não têm garantia real, pois seus bens eram insuficientes. Inevitável a liquidação. ”
“Em defesa dos credores quirografários, foi alegado que a atividade da companhia era a atividade pessoal de Salomon e que, por isso, seu crédito não poderia ser privilegiado. A decisão do Juiz de primeira instância foi exatamente neste sentido. O empresário, inconformado, recorreu à Casa dos Lordes, que entendendo presentes todos os requisitos legais para a constituição da sociedade, julgou inatingível a distinção de patrimônios, isentando-o de qualquer ressarcimento aos credores (KOURY, 2011, p.35).”
A Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica, como já dito, nasceu no direito norte-americano, importada para nosso sistema jurídico de maneira integral, não obstante a diferença entre os sistemas da Common Law e da Civil Law.
Nos Estados Unidos, a principal causa da construção teórica a respeito da desconsideração da personalidade foi o surgimento de um capitalismo industrial até então desconhecido e que gerou a utilização indevida das chamadas corporations. Essa utilização indevida traduz-se pela consecução de fins ilegítimos por meio da proteção dada pelo direito à pessoa jurídica. Entretanto, mesmo em seu berço, a desconsideração era aplicada apenas excepcionalmente, quando comprovada a fraude à legislação, ao contrato ou aos credores.
Posteriormente, no entanto, a necessidade de tutela dos interesses lesados pela utilização indébita das pessoas jurídicas acabou por tornar mais maleável a interpretação dos tribunais americanos, de modo que, atualmente, o conceito de fraude foi estendido para abranger também as hipóteses de abuso de direito. E mais, a mesma teoria é aplicada quando, pela utilização da norma vigente sobrevier resultado injusto, o que permite uma maior subjetividade ao julgador.
Outra particularidade da Teoria da Desconsideração nos Estados Unidos da América diz respeito à sua aplicação, que está frequentemente voltada para os casos de sociedades unipessoais, pois muito fácil o desenvolvimento de interesses ilegítimos do sócio, como também a confusão patrimonial.
A incipiente doutrina, que, baseada na equity atua no sentido de desconsiderar a personalidade jurídica para atingir os sócios que dela se utilizam indevidamente, foi denominada sob várias formas, dentre as mais comuns, disregard doctrine, cracking open the corporate shell, disregard of legal entity, nos Direitos inglês e americano, superamento della personalità giuridica, na Itália, teoria de La penetración ou desestimación de La personalidad, na Argentina. Para os brasileiros: desestimação, descaracterização da personalidade jurídica, descerramento do véu corporativo; mas a designação correntemente adotada em nossas literatura e legislação é desconsideração da personalidade jurídica.
Nas breves palavras do ilustre, além de pioneiro no assunto, doutrinador paranaense Requião, a Disregard Doctrine é:
[…] caso de declaração de ineficácia especial da personalidade jurídica para determinados efeitos, prosseguindo, todavia, a mesma incólume para seus outros fins legítimos. […] a disregard doctrine não visa anular a personalidade jurídica, mas somente objetiva desconsiderar no caso concreto, dentro de seus limites, a pessoa jurídica, em relação às pessoas ou bens que atrás dela se escondem (REQUIÃO, 2015, p.14).
É provável que este seja o ponto mais importante da teoria depois de seu fundamento básico, qual seja, a desconsideração em si, pois não se pode falar em desconsideração ou desestimação da personalidade jurídica sem que se tenha em mente que a personalidade jurídica é desconsiderada apenas para o caso concreto, atingindo em nada mais a estrutura da pessoa jurídica, tanto que esta, para suas demais finalidades, continua perfeitamente presente e atuante no mundo jurídico.
A Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica apresenta marcos literários de sua concepção em vários países e, embora nascida nos Estados Unidos, os primeiros trabalhos de vulto apareceram nas literaturas italiana e alemã. Na Itália, o Professor Verrucoli, docente da Universidade de Piza, publicou uma monografia entitulada Il Superamento della Personalità Giuridica delle Società di Capitalinell “Common Law” e nelle “Civil Law”, obra seguida pela tese de concurso apresentada pelo também professor, Serick, na Universidade de Tübingem, Alemanha, em 1955. Inicialmente traduzida para o direito espanhol, sob o título Aparencia y Realidade las Sociedades Mercantiles – El Abuso de Derecho por Medio de la Persona JurídicaI, foi essa tese posteriormente absorvida pelo direito de diversos outros países (KOURY, 2011).
Teve o Professor Serick o mérito de pioneiramente sistematizar a Teoria da Penetração – como é conhecida na Alemanha -, por meio de comparações entre os julgados norte-americanos e as decisões dos tribunais germânicos (KOURY, 2011).
Investiga-se na sequência a introdução da personalidade jurídica no Brasil.
1.2 Positivação no ordenamento jurídico nacional
Até 1990 não existia previsão legal expressa sobre a desconsideração da personalidade jurídica no Brasil. Assim sendo, como expõe Janczeski (2017), o fundamento utilizado para a aplicação da teoria era o artigo 20 do Diploma Civil de 1916, que já reconhecia a diferença entre a personalidade societária e a dos sócios.
No Brasil, o primeiro jurista a tratar do assunto foi Rubens Requião. O doutrinador apresentou um histórico da teoria, citando os casos que deram início ao seu desenvolvimento e enumerando obras sobre o tema, além de indicar os pressupostos.
De suma importância é que se ressalte que desde 1970 já era aplicasa a desconsideração da personalidade jurídica pelos tribunais brasileiros, ainda que de forma tímida, talvez melhor dizer, muito tímida (JANCZESKI, 2017). A legislação, contudo, manteve-se inerte até a expressa acolhida da teoria pelo CDC de 1990, em seu art. 28. Pela primeira vez, num texto legal brasileiro foi inserida a Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica; e o CDC foi seguido pela denominada Legislação Antitruste, Lei 8.884/94 e a nova Lei Ambiental, Lei 9.605/98.
Já a Lei nº 9.605/98, a nova Lei Ambiental, assim dispõe a respeito da Disregard Doctrine[1] “art. 4º. Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente” (BRASIL, 1988, s.p).
Importa tecer observação quanto à parte do dispositivo que fala em desconsideração da pessoa e não da personalidade. Não obstante a diferença de tratamento dada tanto pela Lei nº 9.605/98, quanto pela Lei nº 8.884/94 e pelo CDC, querem tais diplomas legais abraçar a Disregard Theory.
Finalmente, o próprio projeto do novo Código Civil de 2002 teve inserido no texto do seu artigo 50 a previsão do IDPJ da personalidade jurídica, o que denota a importância da Teoria da Desconsideração e os benefícios que dela podem advir.
O referido artigo sofreu uma emenda do relator do projeto, o Senador Josaphat Marinho, atendendo sugestões de juristas. A razão da emenda foi o desrespeito a um princípio básico da Disregard Doctrine, que é a preservação da pessoa jurídica em tudo aquilo que não esteja ligado ao ilícito praticado[2].
Como ventilado nas recentes linhas anteriores, a parte do texto que motivou a alteração do dispositivo, vai totalmente de encontro a um dos princípios teóricos originais da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica, qual seja, a continuidade da pessoa jurídica para todo o universo de relações por ela mantido, e que não contraria a lei.
Assim, Taddei (1998, p.31) cita que: “a desconsideração não prevê nulidade, extinção ou dissolução da pessoa jurídica, determinada apenas a sua suspensão para o caso concreto em que foi utilizada com fraude ou abuso de direito” mesmo porque, frente à importância das empresas na economia, a aplicação do texto do art. 50 poderia gerar consequências nefastas.
A alteração feita pelo relator do projeto conseguiu, de maneira precisa, assegurar a finalidade da teoria, pois eliminou a possibilidade de dissolução da pessoa jurídica prevista anteriormente, e justificando a modificação, seguiu Requião (2015) diferenciando perfeita e conscientemente a despersonalização e a desconsideração, enfatizando que no IDPJ “subsiste o princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, que é afastada, provisoriamente e tão-só para o caso concreto”, ao passo que na despersonalização a personalidade jurídica é anulada, ou seja, deixa de existir, o que não ocorre com o IDPJ, em que a pessoa jurídica continua a existir para todos os demais atos. Julga-se totalmente esclarecidos os fatos que ensejaram a reforma do dispositivo, motivo pelo qual, agora, transcreve-se o artigo com seu texto atual:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, o juiz pode decidir, a requerimento da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidas aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica (BRASIL, 2002, s.p).
Percebe-se, com facilidade, a substancial alteração trazida pela emenda, e que adequou perfeitamente o artigo aos fundamentos da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica.
Por fim, o atual CPC foi a primeira legislação processual brasileira que previu o incidente da desconsideração da personalidade jurídica (IDPJ) e a desconsideração inversa, cuja instrumentalização já existia nas várias legislações referidas. Assim, segundo Silveira (2017), a novel legislação conseguiu suprir uma antiga carência, pois, o ordenamento jurídico brasileiro realmente precisava de uma legislação que regulamentasse especificamente a disregard doctrine.
A regra do novo CPC, a exemplo do que já ocorria na legislação anterior, permanece sendo a de que o patrimônio privado é intangível (art. 795, caput), logo, o IDPJ ainda é tratado como uma medida excepcional, que deve ser utilizado apenas nas hipóteses que se encontram previstas no art. 133, § 1º do novo CPC.
O atual CPC trata do IDPJ e da desconsideração inversa nos arts. 133 a 137, como espécies de intervenção de terceiros, sendo que as duas hipóteses de desconsideração, nos termos do art. 133, § 2º do novo CPC irão observar o mesmo procedimento.
2 Das licitações públicas
Para que a Administração Pública possa funcionar, é preciso que sejam adquiridos bens e efetivada a contratação de serviços, ou seja, o Estado tem a necessidade de realizar contratações e estas contratações normalmente são feitas por meio de licitação.
Conceitua-se licitação como um procedimento administrativo destinado a realizar a seleção da proposta mais benéfica para a contratação efetuada pela Administração Pública, com observância ao preconizado pelo princípio da isonomia. Desse modo, vale ressaltar que a ideologia constante de que a licitação tem o propósito de adquirir bem com melhor preço para a administração apresenta contrariedade ao escopo da essência do processo licitatório. O objetivo de fato da licitação consiste na escolha de proposta mais vantajosa, que, por acaso pode calhar de apresentar o menor valor de percepção (NÓBREGA, 2013).
Ressalte-se, ainda, que a licitação representa um procedimento administrativo, portanto, tem a compreensão de um somatório de atos administrativos concatenados. Logo, vários são os atos que integram os procedimentos do processo licitatório como o edital, julgamento, classificação, entre outros (NÓBREGA, 2013).
O art. 37, inc. XXI da CF/1988 dispõe sobre os pontos mais relevantes para o entendimento da licitação. Tem-se em vista que um dos fins da licitação é a garantia de tratamento igualitário para os licitantes, logo, é vedado a admissão de licitação com direção para empresa ou licitante específico. Ademais, como expõe Nóbrega (2013), a licitação precisa trazer em seu instrumento convocatório as exigências referentes à qualificação técnica e econômica de caráter indispensável para assegurar o cumprimento das obrigações vinculadas ao objeto do processo licitatório, atendendo também ao princípio da razoabilidade.
Meirelles (2016) aduz que licitação é o procedimento administrativo ao qual a Administração Pública efetua a seleção de proposta que se mostra mais vantajosa ao contrato objeto de interesse. Tem a destinação de proporcionar iguais oportunidades a quem deseja realizar contrato com o Estado, dentro dos padrões estabelecidos em caráter prévio pela Administração. O autor ainda aduz que para assegurar a moralidade e eficiência dos negócios administrativos, a licitação busca selecionar a melhor proposta.
Nos dizeres de França (2008), a licitação é o meio mais transparente para que a Administração Pública possa adquirir os bens e serviços que necessita, visando sempre o seu melhor interesse.
No mesmo teor, o art. 3º da Lei 8.666/93 cita os objetivos da licitação, a saber: assegurar a observância do princípio da isonomia, a escolha da proposta que se mostra mais proveitosa para a Administração Pública e promover o desenvolvimento nacional sustentável.
Ademais, a licitação deve respeitar os princípios previstos no art. 37, caput da CF/1988, aplicáveis à administração pública, bem como os princípios descritos conforme o art. 3º da Lei 8.666/93, conforme será visto na próxima seção.
2.1 Princípios norteadores
Princípios são formas de orientação para todo e qualquer comportamento, bem como para as normas jurídicas dispostas no ordenamento pátrio. São guias básicos que expressam o “DNA” daquilo que se pretende alcançar (FRANÇA, 2008). Para Ari Sundfeld (apud FRANÇA, 2008, p. 12), “são as ideias centrais de um sistema, ao qual dão sentido lógico, harmonioso, racional, permitindo a compreensão de seu modo de organizar-se”.
A Lei n° 8.666/93, em seu dispositivo 3°, elucida os princípios básicos que devem pautar o processo licitatório, sendo eles: legalidade, impessoalidade, moralidade, probidade administrativa, publicidade, igualdade, vinculação ao instrumento convocatório e, por fim, o julgamento objetivo.
Esses princípios se entrelaçam como os elos de uma corrente, e o rompimento de qualquer um deles provoca a nulidade do ato administrativo, com a consequente responsabilização do agente que houver dado causa a essa irregularidade, nos termos do art. 11 da Lei 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa) (TOLOSA FILHO, 2019).
O caput do art. 3º da Lei n° 8.666/93 expõe que o objetivo da licitação é selecionar a proposta que se mostrar mais proveitosa à Administração, porém, vincula essa escolha à anterior observação dos princípios dispostos na Constituição referentes à Administração Pública. Dito de outra forma, não se considera a proposta vantajosa se na contratação não forem observados os seguintes princípios: “legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência e de probidade administrativa” (TOLOSA FILHO, 2019, p.112).
Os atos administrativos em geral estão atrelados ao princípio de legalidade, isto é, a Administração Pública, através de seus agentes, somente pode realizar o que a lei expressamente autorizar (Tolosa Filho, 2019).
O princípio da legalidade, previsto no artigo 37 da CF/1988 e no artigo 3º da Lei 8.666/93, é o princípio fundamental da Administração Pública. Segundo esse princípio, os operadores públicos somente poderão realizar seus atos com base na lei, não sendo permitido se valer de arbitrariedades ou de vontades pessoais para realizarem seus atos. segundo Barros (2009, p. 81) “a Administração Pública, em toda a sua atividade, está vinculada aos mandamentos da lei, ou seja, só pode agir quando e como a lei autoriza, ao contrário do particular, que pode fazer tudo o que a lei permite e não proíbe”.
No que diz respeito à licitação, os agentes do processo licitatório, tais como o pregoeiro e demais membros da comissão, devem cumprir o disposto nas Leis às quais o determinado certame esteja vinculado e especialmente ao instrumento convocatório (edital).
O princípio da impessoalidade se caracteriza no ajuste ao princípio da isonomia, na medida em que, através da formulação de um instrumento convocatório que se restrinja ao permitido pela lei (princípio da legalidade), o objeto da contratação se conforme às demandas sociais e estritamente dentro da premissa de utilidade pública ou administrativa (princípios da moralidade e da eficiência) e se balize por um julgamento objetivo (TOLOSA FILHO, 2019).
Assim como o da legalidade, este princípio também está previsto no art. 37 da Constituição Federal de 1988, bem como no art. 3º da Lei 8.666/93. Esse princípio é responsável por determinar a vedação ao administrador público agir de qualquer maneira que favoreça ou crie vantagens a alguém.
Os princípios da legalidade e da moralidade estão interligados e o primeiro, também referido como princípio da probidade administrativa, rege que toda conduta do agente público que deve ser pautada em valores éticos e morais. Para Justen Filho (2019), em nenhum momento a conduta da Administração ou do particular poderá violar valores fundamentais consagrados pelo ordenamento jurídico.
No caso das licitações pode-se observar que caso o agente público agisse com pessoalidade em determinada conduta, visando o favorecimento de terceiro, ele estaria no mesmo ato desrespeitando tanto o princípio da impessoalidade como o da moralidade/probidade administrativa.
O princípio da publicidade se refere à transparência quanto aos atos da Administração Pública. Ressalvados os casos em que a lei exija o sigilo, todos os demais atos devem ocorrer de maneira aberta e divulgados o mais amplamente possível. Durante o procedimento licitatório o único momento em que se deve prezar pelo sigilo total é na fase antecedente à abertura dos envelopes, em especial ao da proposta, uma vez que o não conhecimento do conteúdo da proposta entre os licitantes é fator primordial para que o certame ocorra de maneira eficiente e dentre da legalidade (MELLO, 2017).
Inclusive, o conhecimento prévio da proposta por parte de outros concorrentes acarretaria em fraude a licitação, ferindo gravemente a competitividade do certame e os princípios da moralidade, impessoalidade e igualdade.
Também, no procedimento licitatório tem-se que é o princípio da igualdade que assegura a observância da isonomia constitucional exigida em todos os atos de tratamento impessoal. A aplicação desse princípio deixa claro que o Administrador Público está proibido de discriminar os participantes no certame licitatório e que seja oportunizada a todos os interessados, desde que tenham condições de assegurar o cumprimento do contrato a ser realizado entre ele e a Administração, a participação no processo (Bonesso, 2014).
O princípio da igualdade é, certamente, fundamental para que o processo licitatório se desenvolva de maneira correta e justa. Este princípio não é aplicado tão somente às licitações, mas fundamental para todo o ordenamento jurídico.
Já o princípio da vinculação ao instrumento convocatório é basicamente a obrigação por parte dos licitantes e especialmente da administração pública, em respeitar tudo aquilo que o ato convocatório prevê. Este princípio está disposto no art. 41 da Lei 8.666/93, e muito se assemelha ao princípio da legalidade, no sentido de que assim como no tocante à legalidade o administrador público deve pautar-se apenas por aquilo que consta na lei, o princípio da vinculação ao instrumento convocatório limita o agente público a tão somente agir baseado no edital.
O princípio do julgamento objetivo tem embutido em seu DNA os princípios da legalidade, impessoalidade e o da vinculação ao instrumento convocatório. Este princípio obriga que o agente público, no ato de julgamento de determinada fase da licitação, o faça estritamente vinculado aos parâmetros estabelecidos pelo edital (RIGOLIN; BOTTINO, 2009).
Trata-se de princípio previsto no art. 45 da Lei 8.666/93, que preceitua que o julgamento das propostas deverá pautar-se na objetividade, sendo que a comissão de licitação ou o responsável pelo convite deverá operacionalizá-lo em consonância com as modalidades de licitação em uso, os critérios estabelecidos no ato convocatório e consoante os fatores nele referidos com exclusividade, de forma a tornar possível que os licitantes e órgãos de controle procedam à sua aferição.
2.2 Fraudes no processo licitatório
Nos processos licitatórios, as possibilidades de fraudes são muitas. A Secretaria de Direito Econômico (SDE), vinculada ao Ministério da Justiça, disponibilizou em seu endereço eletrônico (www.portal.mj.gov.br/sde) um extenso material sobre práticas anticompetitivas nas licitações públicas, como, por exemplo, a Cartilha de Combate a Cartéis em Licitações.
As fraudes praticadas nos processos de contratações públicas não se esgotam nas práticas lesivas cometidas pelas empresas no mercado. Elas podem ocorrer de diversas formas.
A seguir, no quadro 1 serão detalhados alguns exemplos de fraudes em licitações, de forma a mostrar como essas ocorrências podem comprometer a atuação da Administração Pública e gerar desperdício de recursos.
Ressalta-se que os administradores públicos responsáveis pelo planejamento de uma licitação não devem poupar esforços para evitar que essas práticas lesivas ocorram nos processos de contratação pública.
As medidas preventivas para as fraudes perpassam a realização de controle interno das licitações pelo Tribunal de Contas, fiscalização e controle jurisdicional.
A fiscalização do contrato administrativo é prerrogativa da Administração conferida pelo inciso III do art. 58 da Lei 8.666/1993, a qual lhe permite acompanhar de perto tudo o quanto se relacione à execução do contrato, tomando as providências cabíveis para garantir o bom andamento dos trabalhos. Há, portanto, uma intervenção e uma ingerência direta da Administração contratante na execução, ao ensejo de garantir sua adequação. Mais do que prerrogativa, a fiscalização da execução contratual é um dever da Administração, intransferível e irrenunciável, competindo-lhe zelar para que o fim público seja alcançado.
É importante deixar claro que o dever de fiscalizar pertence à Administração Pública. Gestor e fiscal de contrato são os agentes detentores das funções que possibilitam materialmente a observância desse dever, mas apenas poderão exercê-las nas condições proporcionadas pela própria Administração. Portanto, a autoridade superior deve prover aos agentes públicos designados como gestores e fiscais de contratos a necessária condição de exercer com eficiência tais funções (PÉRCIO, 2017). Essa premissa é fundamental para a aferição da medida da responsabilidade de cada um em caso de prejuízos gerados aos cofres públicos por falhas na gestão e na fiscalização de contratos.
2.3 Sanções administrativas, crimes e penas dispostos na Lei n° 8.666/93
Os contratos administrativos, em razão de interesse público, caracterizam-se pela existência de cláusulas exorbitantes as quais seriam consideradas ilícitas em um contrato privado pelo tratamento desigual das partes, sempre visando a supremacia da Administração e do interesse público. No entanto, nos contratos administrativos, além de lícitas (Lei n. 8.666/1993, art. 58, inc. IV e art. 87, caput), elas são essenciais para a validade da avença.
As sanções administrativas por inadimplemento total ou parcial do objeto do contrato, pela recusa injustificada em assinar o instrumento contratual ou retirar o documento equivalente no prazo fixado pela Administração, ou ainda, por mora na execução do contrato, estão elencadas nos arts. 86, 87 e 88 da Lei 8.666/1993 envolvendo advertências, multas, suspensão temporária para participar de licitação e declaração de inidoneidade impedindo aquele que cometeu a fraude possa licitar ou firmar contratos com a Administração Pública.
Tolosa Filho (2019) ressalta que a aplicação das sanções previstas tanto no edital ou convite, como no instrumento contratual, não gravita na órbita do poder discricionário do administrador público por se tratar de ato vinculado, portanto, devem ser adotadas sob pena de apuração de responsabilidade. Assim, as sanções somente podem ser aplicadas desde que garantido o princípio da ampla defesa. Uma vez constatado o inadimplemento total ou parcial, bem como, o atraso no cumprimento do objeto do contrato, o contratado deverá ser notificado a apresentar, querendo, no prazo de cinco dias úteis, defesa prévia.
O inc. II do art. 87 da Lei 8.666/1993 prevê a sanção de multa, embora não defina o seu valor, circunstância que deverá estar prevista obrigatoriamente no instrumento convocatório e no instrumento de contrato. A imprevisão dos valores ou percentuais relativos à multa impede sua aplicação, mas não a adoção das demais sanções previstas no art. 87 da Lei 8.666/1993 e no art. 7º da Lei 10.520/2002.
Além das sanções previstas na Lei 8.666/1993, o art. 7º da Lei 10.520/2002 (Lei do Pregão) e o § 2º do art. 43 da LC 123/2006 (Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte) prevêem sanções administrativas.
A LC 123/2006 concede às microempresas e às empresas de pequeno porte a possibilidade de regularizarem a documentação referente à regularidade fiscal, quando em procedimento licitatório as certidões de regularidade apresentarem alguma restrição. Porém, o § 2º do art. 43 deste diploma legal prevê que a não regularização no prazo concedido, implica a decadência do direito à contratação e enseja a aplicação das sanções elencadas no art. 81 da Lei 8.666/1993.
Na verdade o art. 81 da Lei 8.666/1993 não prevê nenhuma punição, mas dispõe que a recusa sem justificativa do adjudicatário no que tange à assinatura do contrato, aceite ou retirada do instrumento correspondente, no prazo estipulado pela Administração é suficiente para caracterizar o completo descumprimento da obrigação assumida, sujeitando os responsável às penas estabelecidas em lei.
As sanções estão estabelecidas no art. 87 da Lei 8.666/1993, o que induz à interpretação de que o legislador teve a intenção de afirmar que a não regularização da documentação no prazo estabelecido, caracteriza descumprimento total da obrigação assumida. Portanto, na hipótese de descumprimento por parte da microempresa ou da empresa de pequeno porte da regularização no prazo concedido, o agente público deve iniciar procedimento administrativo com o objetivo de aplicar as sanções previstas.
Por seu turno, o art. 7º da Lei do Pregão, além de repetir parte dos atos tipificados como passíveis de sanção estabelecidos pelo art. 87 da Lei 8.666/1993, amplia o leque ao prever como sancionável a conduta dos licitantes que deixam de entregar ou entregam documentação falsa ou ensejam o retardamento da licitação, dilatando, ainda, a suspensão do direito de licitar e firmar contratos com a Administração Pública pelo prazo de até 5 anos.
A Lei 8.666/93 traz nos arts. 89 a 98 os tipos penais que constituem ilícitos penais contra a licitação e, têm como sujeitos ativos os servidores públicos, pessoas a eles vinculadas e os licitantes. O art. 89 dispõe sobre a dispensa e inexigibilidade ilegais de licitação; o ilícito do art. 90 refere-se a frustrar e/ou fraudar certames licitatórios; o art. 91 refere-se ao patrocínio a interesses privados; o art. 92 dispõe sobre a modificação ou oferecimento de vantagem contratual em fase executória; o art. 93 fala em atentar contra atos inerentes ao procedimento licitatório; o art. 94 refere-se à devassa de proposta sigilosa; o art. 95 refere-se ao ato de afastar ou à tentativa de afastar licitantes do certame fazendo uso de meios ilegais; o art. 96 refere-se às fraudes à licitação; o art. 97 dispõe sobre as licitações realizadas com licitantes inidôneos; e por fim, o art. 98 fala sobre frustrar a participação de licitantes em certames licitatórios.
3 DA POSSIBILIDADE DE UTILIZAÇÃO DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO ÂMBITO ADMINISTRATIVO
Nesta seção será discutida a possibilidade de fazer uso do IDPJ no âmbito administrativo. Assim, inicia-se discutindo sobre os requisitos para aplicar o citado instituto em caso de violação aos princípios da administração pública.
3.1 Dos requisitos para a aplicação do instituto no Direito Administrativo
Entende-se que os requisitos para a aplicação do IDPJ no Direito Administrativo são os mesmos que se aplicam aos demais ramos do Direito.
Gagliano e Pamplona Filho (2010), explicam que os elementos que devem estar presente para que o magistrado aplique o IDPJ, são o desvio de finalidade e a confusão patrimonial. No que tange ao primeiro elemento, ao serem perseguidos fins não previstos em contrato, é desrespeitada também a função social que deve ser exercida pela pessoa jurídica. No que tange ao segundo elemento, concretiza-se a confusão patrimonial quando o patrimônio da pessoa jurídica se mescla ao patrimônio dos sócios ou gestores.
Referente ao desvio de finalidade Souza (2015) explica que a pessoa jurídica é constituída com certas finalidades, estipuladas no estatuto e no contrato social. Ou seja, após sua constituição, para que apresente atuação regular, não poderá se afastar da finalidade para a qual foi criada e que foi estipulada no estatuto. Do contrário, haverá desvio de finalidade, fato que autoriza a desconsideração.
Com perspicácia Gladston Mamede (2020) ensina que, quando se estiver diante do desvio de finalidade, esse ato não pode ser vinculado à pessoa jurídica (arts. 115 a 120 do Código Civil), devendo esse ato ser compreendido como ultra vires (art. 47 do Código Civil), e, desse modo, quem o executou e não a pessoa jurídica. Eis a hipótese de desconsideração da personalidade jurídica, tendo em vista o abuso da personalidade do ente, caracterizado pelo desvio de personalidade.
Mamede (2020) ainda leciona que o terceiro prejudicado poderá solicitar que seja desconsiderada a personalidade da pessoa jurídica, a fim conseguir a declaração de que o terceiro, responsável pelo ato desviado, está obrigado a ressarcir prejuízos contratuais ou extracontratuais, advindos da sua conduta ilícita. Contudo, se não houver desconsideração e a sociedade tiver que ressarcir terceiros de seus prejuízos, poderá ela regressar contra o agente que praticou o desvio de finalidade e ser indenizada pelos prejuízos que sofreu.
Em suma, vale destacar que o art. 50 do Código Civil autoriza a desconsideração da personalidade, sempre que ocorrer o desvio de finalidade, o qual se revela por meio do mau uso da pessoa jurídica. Isso implica afirmar que não é qualquer disfunção da pessoa jurídica que autoriza a desconsideração, mas apenas, quando ela se afastar das suas finalidades estatutárias e sociais, causando prejuízo a terceiros.
Outra hipótese autorizadora da desconsideração da personalidade jurídica, segundo Souza (2015) é a confusão patrimonial, situação em que não se consegue distinguir o patrimônio pessoal dos sócios e o da sociedade.
O art. 50 do Código Civil prevê, de maneira expressa, a possibilidade de afastar a personalidade jurídica da empresa sempre que houver abuso da personalidade da pessoa jurídica, por meio da confusão patrimonial.
A personificação da sociedade produz vários efeitos, quais sejam: autonomia negocial, autonomia processual e a autonomia patrimonial, disposta em lei no art. 20 do Código Civil, a qual estabelece a separação entre o patrimônio da sociedade e o patrimônio pessoal dos sócios. Porém, por vezes, os sócios deixam de observar essa premissa, dando causa à confusão patrimonial, bem como, à responsabilidade ilimitada daqueles que não observaram a separação patrimonial, estipulada em lei.
Sem dúvida, a confusão patrimonial decorre do mau uso da personalidade jurídica, caracterizada pela confusão realizada pelos sócios ao gerirem os negócios da pessoa jurídica sem a observância da autonomia patrimonial da pessoa jurídica. Diante desse quadro, autorizada está a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, a fim de atribuir responsabilidade ao sócio, administrador ou a sociedade coligada de fato ou de direito, conforme o já citado art. 50 do Código Civil.
Por fim, Mamede (2020) alerta que a mera confusão patrimonial, por si só, não é capaz de autorizar a desconsideração da personalidade jurídica da empresa, sendo imprescindível que a confusão patrimonial esteja relacionada ao abuso na utilização da pessoa jurídica, ou seja, quando houver embaralhamento de obrigações e direitos da sociedade com os da pessoa dos sócios, com a intenção de causar prejuízos a terceiros envolvidos com a pessoa jurídica.
3.2 Do abuso de direito e da impunidade
Inegável a familiaridade e proximidade entre a já apresentada teoria do abuso do direito e a estudada teoria da desconsideração da personalidade jurídica, tendo em vista que ambas são oriundas de elaboração jurisprudencial e reconhecidas como instrumentos de solução de conflitos gerados em torno da noção de ato ilícito. O abuso é detectado e a desconsideração da personalidade é realizada, sempre que o sócio/administrador se exceder em suas atribuições e finalidades sociais e econômicas, à boa-fé e aos bons costumes ou desviar os propósitos funcionais da pessoa jurídica, estabelecidos no Estatuto Social.
Sobre a teoria do abuso de direito, Pedro Baptista Martins (2002, p.168) defendia que:
A teoria do abuso do direito pode ser construída e considerada como categoria autônoma. Ela tem, inquestionavelmente, certas afinidades com a teoria da culpa, com a qual, todavia, não se confunde, pois que entre os caracteres de diferenciação destacam-se o seu acentuado cunho objetivista e, principalmente, a circunstância de serem noções incoadunáveis a de culpa e a de exercício de um direito.
As situações autorizadoras da desconsideração da personalidade jurídica são caracterizadas por abuso da forma e não propriamente, pelo abuso do direito, tendo em vista que a personalidade jurídica não é considerada direito, mas técnica jurídica. Assim, em que pese a desconsideração apresentar-se como um desvio funcional da pessoa jurídica (abuso da forma), não é caso de reparação civil, uma vez que não se confirma o desvirtuamento por excesso no exercício de direito por conduta omissiva ou comissiva que cause dano a alguém, mas desvio por excesso na destinação da forma de organização jurídica que compõe, ampara, justifica e legitima o exercício do direito de realização do alcance e interesse social.
Vale esclarecer que o abuso de forma no direito, ocasionado por desvio de função, é passível de ser atribuído ao sujeito, que pode ser a própria pessoa jurídica, o sócio ou administrador cuja responsabilidade gera como consequência, a observância do dever legal que lhe é imposto, seja pela legislação ou pelo Estatuto Social. Assim, a situação de abuso é autorizadora para a aplicação do IDPJ.
Em harmonia com o que fora explanado, pode-se concluir que, sempre que houver situações (a exemplo das fraudes em contratos de licitação) em que o sócio ou o administrador se afastarem do princípio da boa-fé ou do fim social e econômico, que sustentem a empresa, comentem abuso de direito, o que, em defesa da empresa, autoriza a desconsideração da personalidade jurídica.
3.3 Da ofensa aos princípios da licitação
Pode-se dizer que comete fraude aquele que viola aos princípios da licitação.
Segundo Souza (2015), como o próprio nome indica, fraudar é enganar, ludibriar os contornos da lei. Por vezes, o agente frauda com a intenção de se esquivar de sanções que o ordenamento jurídico lhe impõe, ou mesmo, quando a lei lhe impõe restrições e o agente não as aceita, burlando a legislação e utilizando para isso a pessoa jurídica como se fosse um escudo, a fim de não ser alcançado.
Contudo, sabiamente Losso (2017) bem aponta que não há como falar de fraude sem dolo, sem a intenção de transgredir o ordenamento legal, a fim obter vantagens, uma vez que a fraude naturalmente advém da intenção de prejudicar terceiros, ou no caso das fraudes à licitação, lesar a Administração Pública. O dolo presente na fraude está disciplinado no art. 186 do Código Civil, o qual dispõe que, para a caracterização da fraude, é importante que haja a intenção deliberada ou consciência de produzir o dano. Pode-se entender, portanto, como requisitos da fraude a má-fé, a malícia e a intenção de gerar prejuízo a outrem.
Por fim, em que pese o Código Civil, no art. 50 não disciplinar a fraude de maneira explícita, pode-se compreender que tal instituto se faz presente de modo implícito. Assim, a fraude se apresenta como uma das hipóteses autorizadoras da desconsideração da pessoa jurídica, a fim de que se alcance e responsabilize o autor da fraude. Tem-se que aplicada às licitações, a fraude nada mais é do que uma das formas de os agentes praticarem abuso e mau uso da pessoa jurídica, com a intenção de lesar a Administração Pública e obter vantagens ilícitas.
Aquele que frauda licitações, não raro é premiado com a impunidade em razão da dificuldade encontrada nos tribunais para desconsiderar a personalidade jurídica do fraudador, que permanece lesando a Administração Pública, ao constituir novas empresas e, portanto, mesmo tendo sanções aplicadas à outra empresa, continua participando de licitações e dando origem a um círculo vicioso de fraudes, em caso de sua personalidade jurídica não ser descaracterizada (MOSCON, 2011). Assim entende-se que o IDPJ serve como meio para conferir efetividade às sanções administrativas posto que em uma primeira análise a desconsideração administrativa parece não poder ser aplicada por não existir previsão legal.
A criação de nova empresa oriunda da que sofreu sanção, mesmo indo contra aos princípios da licitação citados, permite um novo cadastro com documentação renovada. Porém, será constituída uma fraude, afrontando os princípios do Direito Administrativo e frustrando o interesse público, já que as sanções impingidas às empresas não surtirão nenhum efeito.
Defendendo a aplicação do IDPJ no Direito Administrativo mesmo não havendo previsão em lei, Soares (2010) alerta que há várias situações em que é patente a necessidade de aplicar a despersonalização, sem que se fique limitado aos ramos do direito que já prevêem expressamente a possibilidade de aplicar o IDPJ.
Defendendo o IDPJ na esfera administrativa, acentua Gasparini (2008) que a ausência de lei específica não pode ser impedimento para que prevaleça o interesse público e a moralidade administrativa, tendo em vista não ser possível que todo ato da administração pública esteja formalmente previsto em lei.
Assim, frente à inércia da Administração Pública ante às referidas manobras operacionalizadas por empresas de fachada, expõe-se a risco o princípio da moralidade, o qual é integralmente aplicado aos processos licitatórios.
Desta feita, embora exista uma lacuna legal, é possível que o IDPJ seja suportado por outros pilares jurídicos, a exemplo dos princípios da moralidade, legalidade e do interesse público. Nesse sentido, se pronunciou o Tribunal de Justiça de Santa Catarina:
ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. LICITAÇÃO. PREGÃO PRESENCIAL. DESCLASSIFICAÇÃO MOTIVADA PELA EXTENSÃO DOS EFEITOS DE PUNIÇÃO APLICADA A EMPRESA DO MESMO GRUPO ECONÔMICO. SUSPENSÃO DO DIREITO DE LICITAR. POSSIBILIDADE NO CASO. INCIDÊNCIA DO INSTITUTO DA DESCONSIDERAÇÃO EXPANSIVA DA PERSONALIDADE JURÍDICA. PESSOAS JURÍDICAS QUE SE CONFUNDEM, MORMENTE QUANTO AOS SÓCIOS, PROCURADORES E ENDEREÇO. PRINCÍPIOS DA MORALIDADE E DA INDISPONIBILIDADE DOS INTERESSES PÚBLICOS. ENTENDIMENTO FIRMADO PELO GRUPO DE CÂMARAS DE DIREITO PÚBLICO EM OUTRO FEITO ENVOLVENDO A EMPRESA IMPETRANTE. DIREITO AO CONTRADITÓRIO E À AMPLA DEFESA. VIOLAÇÃO NÃO CONFIGURADA. CONHECIMENTO SOBRE AS IRREGULARIDADES APURADAS E A IMINÊNCIA DA PUNIÇÃO. OPORTUNIDADE DE MANIFESTAR-SE NA VIA ADMINISTRATIVA. INÉRCIA DA INTERESSADA. PUNIÇÃO QUE SE REVELA CORRETAMENTE APLICADA EM RAZÃO DA GRAVIDADE DAS FALTAS APURADAS NO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO. EXEGESE DO ARTIGO 87, III, DA LEI N. 8.666/1993. SEGURANÇA DENEGADA[3].
Esta decisão refere-se a um mandado de segurança que foi impetrado pela empresa White Martins Gases Industriais LTDA após ter sido desclassificada em Pregão Presencial em razão de lhes terem sido estendidos os efeitos das sanções aplicadas a outra pessoa jurídica pertencente ao mesmo grupo econômico. A empresa possuía não apenas os mesmos sócios em comum, como também a sede no mesmo Estado (Santa Catarina), os mesmos advogados de defesa e os mesmos diretores.
Frente a essas similaridades, o Egrégio Tribunal concluiu que a impetrante tinha conhecimento sobre as irregularidades bem como da punição a que fora submetida e que havia evidências de que a forma como as empresas foram constituídas tornou possível burlar a competitividade dos certames licitatórios, valendo-se de manobras jurídicas, tendo em vista que empresas do mesmo grupo participavam alternadamente dos certames. Assim, o TJSC autorizou o IDPJ operado na via administrativa, estendendo-se a proibição de participar da licitação também à empresa que integrava o mesmo grupo econômico, em homenagem ao princípio da moralidade e da indisponibilidade dos interesses públicos em tutela.
Conclusão
A teoria da desconsideração da personalidade jurídica, já muito ovacionada na seara privada, não encontra o mesmo respaldo nem tampouco uma ampla jurisprudência capaz de estabelecer de modo claro as hipóteses para sua aplicabilidade na esfera administrativa. Nesse contexto, os estudos que englobam o tema geralmente têm como foco a aplicabilidade nas relações privadas. Assim, mesmo possuindo expressa previsão legal para a desconsideração da personalidade jurídica como, por exemplo, na Lei de defesa da Concorrência (LDC) e na Lei Anticorrupção, ainda permanece a incerteza no tocante às hipóteses que permitiriam sua incidência.
Nesse contexto, as licitações tem se tornado uma excelente opção de negócio aos empresários de inúmeros ramos, uma vez que, durante o exercício financeiro, ocorre a deflagração de diversos procedimentos licitatórios pela administração pública, a fim de contratar uma diversa gama de produtos e serviços essenciais à sua existência. Desse modo, por ser um procedimento formal, sendo sempre precedido de dotação orçamentária, que promove determinada garantia de que a Administração Pública irá realizar todos os seus compromissos, o procedimento em comento vem conseguindo cada vez mais adeptos.
Assim, com a elevação do interesse pelas licitações, originou-se no mercado, empresas constituídas e especializadas apenas em participação de licitações, a fim de contratar com o Poder Público. Por essa razão, foram observados diversos casos onde os empresários descumprem as disposições contidas no artigo 87, inciso III da Lei 8.666/93.
Contudo, em observância ao artigo supracitado, vale dizer que as sanções dispostas na lei não estão sendo efetivas para combater os licitantes sem idoneidade. Dessa forma, conforme foi visto neste estudo, uma prática que se tornou corriqueira entre os empresários é a constituição de uma nova pessoa jurídica com os mesmos sócios, orçamento e finalidade, a fim de defraudar a legislação para continuar participando normalmente das licitações que envolvam a contração com a Administração Pública.
Pela pesquisa realizada foi possível perceber que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica encontra-se frequentemente confrontada com os princípios que norteiam o exercício da função administrativa, assim como os princípios que orientam o processo administrativo, sendo constantemente levantada a hipótese de aplicação do IDPJ, cujas normas se encontram dispostas no CPC de 2015.
Foi demonstrado que já houve o reconhecimento da possibilidade da Administração Pública desconsiderar a personalidade jurídica em relação às empresas, mediante a fraude comprovada por meio de demanda administrativa, sendo devidamente assegurado o direito ao contraditório e à ampla defesa. Do exposto concluiu-se que o instituto em comento mostra-se essencial à Administração Pública por ser um instrumento com a finalidade de afastar a impunidade de empresas que promovem o abuso de direito, elegendo uma nova pessoa jurídica para continuar firmando contratos com o Poder Público.
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[1] Doutrina da desconsideração.
[2] O texto original do art. 50 assim propunha: “Art. 50. A pessoa jurídica não pode ser desviada dos fins que determinaram a sua constituição, para servir de instrumento ou cobertura à prática de atos ilícitos, ou abusivos, caso em que caberá ao juiz, a requerimento do lesado ou Ministério Público, decretar-lhe a dissolução. […]”.
[3] TJSC, Mandado de Segurança n. 2013.053581-9, da Capital, rel. Des. Stanley da Silva Braga, j. 11-06-2014)
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