Resumo: no texto aborda-se a discussão sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, segundo entendimento condensado de Sarlet (2001), verificando-se alguns pontos de contato desta compreensão com o problema da antropologia filosófica, pela óptica de Penna (2004) e Marías (1971; 1975), buscando-se demonstrar a centralidade do potencial hermenêutico da “dignidade da pessoa humana” em termos jurídicos e em termos de reflexão histórica sobre o homem, mais precisamente do homem tutelado pelo Direito, donde se encontra respaldo na teoria concretista da interpretação constitucional, segundo teorias de Hesse (1991), Häberle (2002) e Müller (2009), como propostas que compatibilizam abstrações e apreciações de realidades segundo valorações modalizadas pelo texto constitucional, robustecidas pelo direito supraconstitucional, conforme Mazzuoli e Gomes (2010).
Palavras-chave: dignidade da pessoa humana; antropologia filosófica; direitos fundamentais; concretismo constitucional; direito supraconstitucional.
Dignidade: “merecimento, valor, nobreza”. O significado imediato do termo aponta sentidos que a palavra dignidade comporta na linguagem comum, e ajuda a se ter uma imagem muito desfocada dos objetos reais em relações humanas e sociais a que se refere e qualifica.
A mais precisa definição da dignidade e sua contextualização nos campos do saber é um árduo trabalho e ética e direito, principalmente, são convocados para esta missão de tornar palpável tão vibrante, rico e necessário conceito.
Um conceito que envolve valor, apreço, reconhecimento; que aparentemente implica juízo de merecimento a partir de uma conjuntura de situações, e que termina em um reconhecimento universal; mas, mais importante do que isso, um marco civilizatório, uma passagem e irreversível assentamento de mentalidade.
O direito enquanto ciência e instituição tem o poder de conferir as dimensões de identificação e tutela desta característica humana, que mais do que um qualificativo, consolidou-se enquanto elemento ôntico indeclinável.
Tanto assim que, como magistralmente entendeu Ingo Wolfgang Sarlet (2001, p. 27) o objeto “dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais” representa um “casamento feliz – mas nem por isto imune a crises e tensões”.
Do estudo da argumentação empregada pelo autor avulta-se o objetivo reflexivo-filosófico da perquirição do assunto e que culmina nos recortes do direito positivo.
Da natureza do problema, pois, tem-se que a antropologia filosófica, tão bem investigada por autores como Bernard Groethyusen (conforme exalta PENNA, 2004) e Julían Marías (1971; 1975), apresenta-se enquanto campo de pensamento pertinente para se ver alguns caminhos e significados da experiência humana e, então, formular pontos de contato com a teoria jurídica, donde se pode formular visão de mundo que contribua para a consecução dos fins do ordenamento jurídico enquanto instância protetiva.
A antropologia filosófica representa abordagem teórica em que o homem é objeto de um estudo, mas não de um estudo etnográfico ou de uma sociedade especificamente considerada em seus fundamentos e relações, nem tampouco sob o ponto de vista das ciências humanas ou sociais.
Trata-se de um corpo difuso de conhecimentos dispersos nas especulações filosóficas e que, assim, coadunam explicações, inferências e possibilidades cognitivas e interpretativas da vida e da existência humanas.
Pode-se afirmar que a antropologia filosófica fornece cenário, ambiente, clima de pré-compreensão favorável ao complexo conceito jurídico do princípio da dignidade da pessoa humana, e é tendo em vista esta utilidade teórica, da qual podem advir facilidades compreensivas, que se firma a hipótese central da pertinência à cognição jurídica das relações humanas. Progressivamente, portanto, adentra-se aos meandros do direito positivo.
A obra de Sarlet “Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais” (2001), revela esta pertinência temática e metodológica quando o autor demonstra larga discussão a partir do clássico filósofo alemão Max Scheler, dentre outros.
Com forte premissa da antropologia filosófica, o jurista brasileiro estabiliza o conteúdo e o significado da noção de dignidade da pessoa humana tanto no desenrolar do pensamento ocidental quanto em seus delineamentos propriamente jurídico-constitucionais, assim como verifica as características da dignidade da pessoa humana enquanto norma (nas modalidades de princípio e de valor) fundamental no ordenamento jurídico brasileiro. Por fim, traça pontos de contato dos direitos fundamentais com a dignidade da pessoa humana.
Desta leitura, se pode estender a discussão para visualizar o quanto a “dignidade da pessoa humana” tem sido conceito aplaudido e atacado; noção a que se tem apegado desmedidamente ou cujo potencial se tem esvaído pela descrença de uma fixação de seu conteúdo mais especializado; locução que se tem barateado de boa ou de má-fé no cotidiano comunicativo.
O erro em se condenar aprioristicamente o princípio, e, ademais, o estado a que anima, de espírito e de disposição para apreender e compreender o mundo e o outro, é o de se prescindir de profunda conquista civilizacional que, se não teve, por ora, o poder de tudo mudar e adequar aos seus mais nobres pressupostos, ao menos (o que já parece suficiente para sua valoração positiva) apresenta imenso potencial para adequar condutas, procedimentos e trocas sociais em face de seu complexo finalístico e protetivo.
O reconhecimento, a defesa e a séria adesão ao “princípio da dignidade da pessoa humana” em muito têm a contribuir com o desenho da realidade por meio dos eixos ínsitos ao parâmetro, eis que a locução comporta uma série de significados coerentes entre si enquanto percepção de mundo: pressupostos cognitivos e disposição de atitudes.
Cada pessoa que se desenvolve e, ao longo da existência própria escreve sua vida, não começa com um destino pré-determinado. Nenhum homem nasce esmiuçado em manual e, por isso mesmo, é homem. As pessoas não têm um conceito claro de si mesmas, não são um texto encerrado e definitivo e, nem por isso, perdem a crença em suas vidas. E nem por isso os conteúdos de suas definições são arbitrários ou inválidos por não apresentarem uma clareza instantânea.
Os laços mais profundos de tradição social, de constituição da personalidade, de domínio lingüístico, permitem às pessoas a identificação de indícios dos conteúdos que lhes são coerentes, acessíveis, realizáveis.
Além dessas diretrizes, o caminho se perfaz com surpresas, com acasos, com entrechoques típicos dos sistemas complexos. Mesmo assim, as pessoas não perdem a fé, a crença, e a disposição para suas vidas — na maior parte das vezes; aliás, esse lapso de incerteza pode servir mesmo como motivação, como expectativa, como sabor da vida.
O mesmo raciocínio vale para a dignidade da pessoa humana. Se o seu conteúdo não é abarcável em um conceito reproduzível em duas ou três linhas, se o seu uso semântico pode ser apontado como instável, se se quiser discorrer sobre as maravilhas e as atrocidades cometidas sob o seu pálio de forma lingüística aberta; fato é que — se as palavras podem assumir imensa polissemia, e as locuções ainda mais, quando qualificadas — nem por isso se necessitará dispensar a forma, eis que ela só tem sido um instrumento de muitos usos.
O trabalho de contemporaneizar essa grande forma da “dignidade da pessoa humana”, apontando-a para as necessidades e demandas de hoje, os pleitos sociais e tudo aquilo que exige do direito um posicionamento e uma ação; tudo isso tem a ganhar por meio do respeito pela expressão como guia e rumo de uma busca incessante por quais os significados que se podem encaixar e entender de modo relacional na expressão (donde o campo magnético da dignidade alinha as limalhas dos instrumentos jurídicos de mais alto status ético).
As conquistas e resultados do trabalho da historiografia, as experiências sociais e pessoais, as obras de arte, os preceitos jurídicos, todo o trabalho transdisciplinar voltado às manifestações multiculturais humanas podem apontar os anseios e os sentidos das experiências humanas.
E se a via positiva acima proposta não for suficiente, o recurso à negativa poderá ser fonte útil de questionamentos. Despir-se das máscaras sociais recebidas e das conquistadas, livrar-se do verniz das relações sociais e das expectativas e desejo de status e encarar-se enquanto ser humano “nu no mundo” podem ajudar a vislumbrar o que poderia ser a “dignidade” justamente pelo seu mais imediato contrário de “indignidade”, de falta, de ausência, de vácuo material. A despeito dessa tentativa de imaginação de privações — a qual a imaginação é débil para alcançar — ainda assim, nesse exercício, subsistirá, no fundo, a consciência de que ao fim se “voltará para casa”; suspender esta consciência por um instante pode dar a dimensão do drama.
Durante a produção deste artigo, em sucessivo caminhar pelas ruas com os livros de referência nas mãos e as idéias deles na cabeça, para estudo durante os trajetos, soou um tanto mais inquietante e profundo (mais significativo, ou mais bem estruturado conceitualmente) o confronto com cenas sociais cotidianas da urbe (pessoas abandonadas pelas calçadas ou olvidadas em suas casas, amarradas por processos custosos e morosos). Pareceu meio obsceno estar na posse de tais livros defronte tamanhas situações de pessoas em penúria, como se houvesse uma cobrança velada entre o que se diz e o que se vê ou não feito – a miséria é sempre vergonhosa ante a sofisticação institucional que se possui.
Ao compasso, havia o sentimento (e um verdadeiro ato de fé) de que por meio daquele corpo de significados nasceria a solução possível para o contexto. O método concretista de interpretação constitucional (HESSE (1991), HÄBERLE (2002) e MÜLLER (2009)) são teorias inafastáveis para se pensar e explicar como o Direito pode, deve e é capaz de solucionar a dor e sofrimento cotidianos, desde que assim se vinculem os seus operadores, teleologicamente orientados pela Constituição.
O apego social, da sociedade civil, acompanhado do apreço dos operadores à axiologia constitucional e à internalização da ponderação dos bens constitucionais, avolumados pelos preceitos da supraconstitucionalidade na proteção dos direitos humanos (MAZZUOLI; GOMES, 2010), como meio de acesso ao problema do homem que redunda nas relações jurídicas, são meios necessários para se contemporizar e contemporaneizar tantas situações de perplexidade oriundas das violações dos mais basilares princípios e direitos.
A atualização histórica e concreta da dignidade, sempre reverberando novas conquistas de direitos e necessidades da vida, tem muito a dizer sobre o seu tempo e nas linhas dele prosseguir. A dignidade não cessa seu pleito, e o Direito não esgota seu objeto; os intérpretes devem assumir o desafio, se não quiserem se reduzir à mera obtusa palavra de poder, incompatível com um Estado Democrático e Social de Direito, destinado ao Bem-Estar, e vinculado ao contexto da proteção dos direitos humanos.
advogado em Curitiba, especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná e mestrando em Direitos Humanos e Democracia pela UFPR
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