Direito de superfície: escorço histórico

Resumo: Este estudo objetiva realizar um breve histórico sobre o Direito de Superfície, reinserido recentemente no ordenamento jurídico brasileiro. Este instituto tem raízes no direito romano e, ao longo do tempo, ganhou contornos que a converteram em instrumento de opressão e abusos no período do direito intermediário. No Brasil, a legislação portuguesa sobre o direito de superfície vigorou até meados do século XIX, quando este instituto foi eliminado do nosso ordenamento jurídico, sendo restaurado apenas no século XXI com o Estatuto da Cidade e o CC de 2002, agora revestido de direito real, buscando atingir a adequação da ciência jurídica às exigências sociais contemporâneas.

Palavras-chave: Direito de Superfície. Direito Civil. Direitos Reais.

Resumen: Este estudio pretiende realizar una breve historia sobre el derecho de superficie, recientemente reinsertar en el sistema jurídico brasileño. Este instituto tiene sus raíces en el derecho romano y, con el tiempo, ganó contornos que se convirtió en un instrumento de opresión y el abuso en el período del derecho intermedio. En Brasil, la legislación portuguesa sobre el derecho de superficie se prolongó hasta mediados del siglo XIX, cuando el instituto fue eliminado de nuestro sistema legal, y sólo restaurada en el siglo XXI con el Estatuto de la Ciudad y el Codigo Civil de 2002, ahora como derecho reale, buscando llegar a la adecuación de la ciencia jurídica a las demandas sociales contemporáneas.

Palabras-clave: Derecho de Superficie. Derecho Civil. Derecho Reale

Sumário: Introdução. 1. Raízes Romanas. 2. A superfície e o Direito Intermediário. 3. O Direito de Superfície no Brasil. 3.1 Da colônia até o Código Civil de 1916. 3.2 A restauração do Direito de Superfície no Ordenamento Jurídico Brasileiro. Considerações Finais. Referências Bibliográficas.

Introdução

O presente estudo tem como objetivo realizar um breve histórico sobre o instituto do Direito de Superfície que voltou a ser contemplado no ordenamento jurídico pátrio em substituição à enfiteuse, que foi banida pelo Código Civil de 2002. Tal medida se mostrou, à primeira vista, bem mais vantajosa, posto que, o Direito de Superfície tem o condão de propiciar de forma melhor e mais ampla que a enfiteuse, a utilização da propriedade.

Para o grande civilista Caio Mário da Silva Pereira (2014, p. 218) “o ‘direito de superfície’ é um desses institutos que os sistemas jurídicos modernos retiram das cinzas do passado, quando não encontram fórmulas novas para disciplinar relações jurídicas impostas pelas necessidades econômicas ou sociais”.

Como o Direito de Superfície possui contornos muito próprios, decorrentes das mutações e ajustes ocorridos desde o seu surgimento, importante se faz essa breve incursão nos registros históricos mais relevantes deste instituto.

1. Raízes Romanas

Há imensa discussão sobre a origem histórica do Direito de Superfície tanto entre os doutrinadores brasileiros quanto entre os estrangeiros. No entanto, a linha doutrinária mais sedimentada argumenta que sua origem remonta ao direito romano. Ponce (1985), estudioso chileno radicado no México, ao tratar desse impasse, afirma que alguns autores defendem a origem desse direito na concessão de solo realizada para a construção de Cartago, nove séculos antes da Era Cristã. Outros ainda que remonta a Lex Icilia de Aventino, que permitiu a divisão do Monte Aventino para a edificação de habitações coletivas pela plebe. Contudo, o autor destaca que “Según la opinión mayoritaria, el verdadero origen del derecho de superficie se encontraría en las concesiones que los pretores romanos otorgaban a los particulares para la edificación de viviendas en suelos públicos” (op cit, p. 128).

Nesse sentido Mazzei (2007), estudioso brasileiro, ainda destaca que a figura do Direito de Superfície surgiu inicialmente no direito público por ocasião das concessões a particulares para edificar o solo estatal e das cidades, mediante o pagamento de anuidade. Essas concessões foram seguidas pelos municípios e pelos particulares, ampliando-se inclusive para terrenos privados. No entanto, tal situação configurava-se ainda como mero vínculo pessoal e foi adquirindo natureza de direito real na medida em que foi surgindo a necessidade de uma tutela mais eficaz para este direito. Este autor continua sua abordagem afirmando que:

“(…) é no período do Direito Justinianeo que o instituto veio a ganhar autonomia como direito real a partir da outorga, pelo pretor, ao superficiário, de mecanismos maiores de proteção de seu direito, tendo sido enquadrado entre os direitos sobre coisa alheia, mitigando-se, no particular, o clássico princípio superficies solo cedit” (grifo do autor) (op cit, p. 31).

As bases do Direito de Superfície instituídas pelo direito romano sofreram modificações em momento histórico seguinte, na Europa medieval.

2. A superfície e o Direito Intermediário

No direito intermediário, já na época medieval, ocorre um conflito entre o princípio do trabalho, abrigado no direito germânico, e o princípio superficies solo cedit (o que constrói ou planta em solo alheio é proprietário da construção), advindo do direito romano. Nesse embate, o direito de superfície abandona, sob influência do direito germânico, a natureza de ius in re aliena do direito romano e passa a ser concebido como propriedade paralela à propriedade do solo.

Destaca-se que é também nesse período que o Direito de Superfície alcançou de forma efetiva as plantações, criando com isso novos elementos para a formação do instituto e ampliando sua aplicação para além do que fora delimitado durante o direito romano.

Destarte, as modificações introduzidas pelo direito intermediário, em especial pelo sistema feudal, converteram o direito de superfície em um instrumento de opressão e abusos – como escravidão dos homens às terras e preço elevado pelo uso da superfície. O entendimento sobre o presente instituto somente veio a mudar com a Revolução Francesa, que baniu tanto a enfiteuse quanto a superfície, restaurando a concepção da unidade da superfície ao proprietário do solo (TEIXEIRA, 1993).

Assim, já no direito moderno, o Direito de Superfície deixou de ser consagrado expressamente nas primeiras grandes codificações do século XIX, a exemplo do Código Napoleônico, do Código Civil Italiano de 1865 e do Código Espanhol de 1889 (LIRA, 1979).

3. O Direito de Superfície no Brasil

3.1. Da colônia até o Código Civil de 1916

No Brasil, ainda no período colonial, inicialmente o Direito de Superfície foi recepcionado em função do direito português vigente à época, situação que perdurou mesmo após a independência política em 1822. Assim, a legislação portuguesa sobre o Direito de Superfície vigorou no Brasil até meados do século XIX quando – por força da Lei 1.237 de 1864 que não previu o direito de superfície no seu artigo 6º, que tratava do rol dos Direitos Reais – houve a eliminação desse instituto de nosso sistema jurídico.

Quando da elaboração do Código Civil de 1916, o Direito de Superfície também não foi elencado como direito real. Sobre o exposto, Derbly (2003, s/p) preleciona que:

[…] o prestigioso Teixeira de Freitas, […] autor do primeiro esboço do código civil brasileiro, também não contemplou a superfície entre os direitos reais.

Por sua vez, o imortal Clóvis Bevilaqua, ao apresentar seu ‘Projecto de Código Civil Brazileiro’ em 1900, o qual mais tarde se transformaria no vigente Código Civil Brasileiro, manteve-se fiel à velha e clássica regra romana de que superfícies solo cedit. […]

Assim, fiel à determinação de seu idealizador – Clóvis Bevilaqua – o código civil foi promulgado em 01 de janeiro de 1916, por meio da Lei 3.071 sem elencar no rol dos direitos reais o direito de superfície”.    

3.2. A restauração do Direito de Superfície no Ordenamento Jurídico Brasileiro

Ao tratar das inovações do Novo Código Civil, Reale (2000, s/p) denomina a superfície de "direito restaurado", apresentando sua inserção no novo codex como uma exceção às novidades por ele trazidas.

“É difícil enumerar todas as inovações trazidas pelo projeto, (…) merece especial menção a distinção fundamental entre Direito pessoal e Direito real de Família, ou, então, as disposições sobre condomínio edilício (denominação a princípio criticada, e que já é de uso corrente) ou a restauração do antigo direito de superfície sob novas vestes, o que demonstra que não nos dominou o desejo de só oferecer novidades” (grifos nossos).

É compreensível o uso do termo “restauração”, posto que, o Direito de Superfície era instituto já existente no nosso ordenamento jurídico, voltando a ser recepcionado pelo nosso Código Civil de 2002 após o seu banimento pela Lei 1.237 de 1864 e o longo prazo de silêncio atribuído pelo Código Civil de 1916.

Gonçalves (2012, p. 308) afirma “que a reintegração em nosso ordenamento dessa modalidade de direito real, com nova roupagem, atende a razões de ordem sociológica, cujas origens encontram-se na Constituição Federal, que define a exigência dos fins sociais da propriedade”.

Este autor ainda destaca que no novo codex civil aboliu-se a enfiteuse, substituindo-a pelo Direito de Superfície e considera a substituição vantajosa porque este último permite melhor e mais ampla utilização da coisa. Nesse sentido, Tartuce (2014, p. 342) destaca algumas diferenças marcantes entre os dois institutos:

Primeiro, porque a superfície pode ser gratuita ou onerosa, enquanto a enfiteuse era sempre onerosa. Segundo, pois a superfície é temporária ou não, enquanto a enfiteuse é necessariamente perpétua, o que era uma grande desvantagem, pois a perpetuidade não é mais marca dos novos tempos. Terceiro, porque na enfiteuse havia a condenável figura do laudêmio, não presente na superfície” (grifos do autor).

Ainda cabe destacar que foi o Estatuto da Cidade, instrumento de política de desenvolvimento urbano, em 2001, quem primeiro reinseriu o direito de superfície no ordenamento jurídico brasileiro, todavia, tal instituto somente passou a ser elencado no rol taxativo dos direitos reais com o Código Civil de 2002.

A superfície é o instituto real por meio do qual o proprietário concede a outrem, o direito de construir ou plantar em seu terreno, de forma gratuita ou onerosa, por tempo determinado ou indeterminado. Tal direito real de gozo ou fruição recai sempre sobre bens imóveis, mediante escritura pública, devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis (art. 1.369 e 1.370 do Código Civil de 2002).

É justamente ao se revestir de direito real – sem este caráter seria não mais que um arrendamento – que o instituto do Direito de Superfície consegue atingir a adequação da ciência jurídica às exigências sociais contemporâneas, possibilitando que imóveis não utilizados ou subutilizados tenham boa destinação.

Assim, tal instituto pode auxiliar na resolução de problemas habitacionais no solo urbano e do aproveitamento inadequado dos solos urbano e rural, como uma tentativa de se pôr em prática a concepção da função social da propriedade, esculpida em nossa Constituição Federal.

Considerações Finais

Diante do exposto pode-se inferir que o Direito de Superfície, na atualidade, relaciona-se com o Direito de Superfície romano tão somente pela significação histórica que traz deste, visto que, as transformações pelas quais passou ao longo do tempo nos diversos ordenamentos jurídicos, deram-lhe novos contornos.

Atualmente, o Direito de Superfície traz características voltadas para a consolidação das finalidades propostas pelo Estado Democrático de Direito, de tal que, ao se analisar os seus aspectos técnicos pode-se perceber que o instituto pode, ao mesmo tempo, propiciar moradia adequada, ofertar segurança jurídica da posse e propriedade formal e, por conseguinte, um amplo espaço de inclusão social que alcança a função social da propriedade.

Referências
BRASIL. Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm> Acesso em: 12 de outubro de 2015.
DERBLY, Rogério José Pereira. Direito de superfície. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, VI, nº 13, maio 2003. Disponível em: <https://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=3588>. Acesso em: 15 de setembro de 2015.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, volume 5: Direito das Coisas. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 307-314.
LIRA, Ricardo César Pereira. O Moderno Direito de Superfície (Tese apresentada em junho de 1979 à Congregação da Faculdade de Direito da UERJ).
MAZZEI, Rodrigo Reis. O Direito de Superfície no Ordenamento Jurídico Brasileiro. São Paulo, 2007. Dissertação (Mestrado em Direito das Relações Sociais) – Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais – PUC. São Paulo: 2007.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Vol IV – 22ª ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 218-222.
PONCE, Lisandro Cruz. El Derecho de Superficie. Un siglo de derecho civil mexicano. Memoria del II Coloquio Nacional de Derecho Civil. México: 1985. p. 127-143. Disponível em: < http://biblio.juridicas.unam.mx/libros/1/371/12.pdf> Acesso em: 12 de setembro de 2015.
REALE, Miguel. Visão geral do Projeto de Código Civil. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 5, n. 40, 1 mar. 2000. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/509>. Acesso em: 23 out. 2015.
TARTUCE, Flávio. Direito civil, vol. 4: Direito das Coisas. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014, p. 342-354.
TEIXEIRA, José Guilherme Braga. O direito real de superfície: origem e desenvolvimento da superfície. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993.

Informações Sobre os Autores

Julia Maria de Santana e Brito

Acadêmica de Direito na Faculdade Estácio de Sergipe

Samira dos Santos Daud

Advogada; Professora do curso de Direito da Faculdade Estácio de Sergipe; Mestre em Direito pela Universidade Federal de Sergipe


Equipe Âmbito Jurídico

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