Dimitri Alexandre Bezerra Acioly, graduado em Comunicação Social/Jornalismo e em Direito, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), pós-graduação em Penal e Processo Penal pela Escola Judicial do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE).
Resumo: O artigo emprega o conceito de direito penal do inimigo elaborado Jakobs Günther, testando a aplicação numa democracia e instrumentalizando a teoria para a realidade local. O direito penal no Brasil é rico em institutos que protegem o cidadão da arbitrariedade estatal. Investiga-se, então, como este direito convive com a aplicação de uma prática majoritariamente coercitiva, incorporada, por exemplo, nas prisões em massa sem trânsito em julgado da sentença. Apresenta-se a hipótese do presidiário tido por “inimigo”, enquanto alteridade interna. O abismo visto como intransponível entre o eu e o outro poderia justificar tratamentos diferenciados para cidadão interpretados diferenciadamente pelos aplicadores do direito, sem a fratura da ordem jurídica constitucional.
Palavras-chave: Direito penal do inimigo. Alteridade. Prisão preventiva.
Abstract: The paper is based on criminal law concept of the enemy developed by Jakobs Günther, testes its application in a democracy and instrumentalizes the theory for the local reality. The criminal law in Brazil has many institutes that protect the citizen from state arbitrariness. It is investigated, then, how this right coexists with the application of a practice mostly coercive, incorporated, for example, in mass prisons without res judicata of the sentence. The study approaches the hypothesis of the prisoner considered by enemy, as internal alterity. The abyss seen as insurmountable between the self and the other could justify differentiated treatments for citizens interpreted differently by law enforcers, without the fracture of the Constitutional legal order.
Keywords: Criminal law of the enemy. Otherness. Pre-trial detention.
Sumário: Introdução. 1. Direito Penal do Inimigo, um conceito possível? 2. Tratamento punitivo diferenciado e expansão do direito penal. 3. Punição simbólica e reais efeitos. 4. Direito Penal e Alteridade. Conclusão. Referências.
Introdução
O presente estudo introduz o conceito de “direito penal do inimigo” proposto por Jakobs Günther, em contraposição ao “direito penal cidadão”, encartado nas leis penais e na Constituição da República. Além de investigar se é plausível a tese de que há duas esferas funcionando de modo relativamente diverso no seio do direito penal, expõe-se como o autor do fato ilícito se situa frente a cada uma delas.
Apresentam-se, ainda, críticas à teoria do direito penal do inimigo, sopesando se se existem coerência e utilidade na aplicação desta doutrina ao direito penal positivo, mormente no seio da democracia representativa. Serão analisados exemplos na legislação brasileira da verificação dos conceitos referidos, bem como o possível viés político para instrumentalização do direito penal do inimigo.
Ademais, numa tentativa de adaptação da teoria suscitada à realidade brasileira, enquadra-se o ideário do inimigo como alteridade interna, ou seja, como grupo social concreto ao qual nós não pertencemos. Neste “nós” poderiam ser incluídos os aplicadores do direito e demais cidadãos que pertencem ao mesmo ambiente social. Os “outros” seriam as pessoas que são presas sem os rigores do direito penal em sua plenitude.
Por fim, o objetivo geral do estudo é se aproximar da figura do inimigo no direito penal enquanto um outro, para a melhor compreensão da grande fratura na aplicação da norma penal no Brasil. Entender, enfim, porque: 1) só alguns têm direito às garantias clássicas do direito penal liberal, enquanto uma parcela significativa da população carcerária é meramente coagida e separada do corpo social sem as mesmas justificações; 2) investigar como isso se opera dentro do Estado de Direito, sem a fratura da ordem jurídica Constitucional.
O estudante de direito no Brasil inicia suas reflexões sobre o direito penal provavelmente estudando o surgimento deste campo jurídico como limitação ao poder de punir do Estado, seus princípios norteadores, as garantias constitucionais, a conformação do crime enquanto fato típico, antijurídico e culpável. Enfim, via de regra, passa-se a compreender melhor os institutos da Parte Geral do Código Penal Brasileiro. É comum a reação de perplexidade ante a comparação do que está insculpido na base do direito penal para com a realidade carcerária no país. O aluno mais crítico pode se questionar por que razões são previstas tantas garantias na lei sem cumprimento pelo Estado enquanto juiz e administrador. A doutrina penal tão bela, a realidade nas prisões tão miserável.
Jakobs Günther (2007. p. 30) responde a este questionamento hipotético referindo que existem dois tipos de direito penal. O direito penal do cidadão, que aplica todo o aparato teórico de um direito penal liberal, contra uma conduta condenável do cidadão e aplica a pena, mantendo a vigência da norma. Ao lado deste, o direito penal do inimigo, que apenas combate perigos, uma vez que a medida executada contra o inimigo não significa nada, só coage. Tratam-se, certamente, de tipos ideais, ocorrendo múltiplas formas intermediárias. O Estado não precisaria excluir o inimigo de todos os direitos, apenas daqueles necessários para fazer cessar a ameaça social.
“A pena é coação; é coação – aqui será abordada de maneira setorial – de diversas classes, mescladas em íntima combinação. Em primeiro lugar, a coação é portadora de um significado, portadora da resposta ao fato: o fato, como ato de uma pessoa racional, significa algo, significa uma desautorização da norma, um ataque a sua vigência, e a pena também significa algo; significa que a afirmação do autor é irrelevante e que a norma segue vigente sem modificações, mantendo-se, portanto, a configuração da sociedade. Nesta medida, tanto o fato como a coação penal são meios de interação simbólica, e o autor é considerado, seriamente, como pessoa; pois se fosse incapaz, não seria necessário negar seu ato. Entretanto, a pena não só significa algo, mas também produz fisicamente algo. Assim, por exemplo, o preso não pode cometer delitos fora da penitenciária: uma prevenção especial segura durante o lapso efetivo da pena privativa de liberdade. É possível pensar que é improvável que a pena privativa de liberdade se converta na reação habitual frente a fatos de certa gravidade se ela não contivesse este efeito de segurança. (Ibid., p. 20)”
Primeiro a colocar o assunto nesses termos, em 1985, o penalista alemão intenta, através do par conceitual direito penal do cidadão e direito penal do inimigo, estabelecer limites materiais para criminalizações no estado prévio à lesão do bem jurídico. Em Günther, a caracterização do direito penal se dá consoante a imagem de autor que a legislação aplica. Caso o direito veja no autor uma pessoa que dispõe de esfera privada livre de perseguição jurídica, trata-se de um cidadão. Logo, o direito só estaria autorizado a intervir quando o comportamento do autor representasse uma perturbação exterior.
De outro modo, sendo o autor enxergado enquanto inimigo, poderia ele sofrer responsabilização até mesmo por seus mais íntimos pensamentos, ao não dispor de qualquer esfera privada. O inimigo é fonte de perigo para os bens a serem protegidos. O direito penal do inimigo optimiza proteção de bens jurídicos. Já o direito penal cidadão optimiza esferas de liberdade (GRECO, 2005, p. 214).
Sob este prisma, do respeito à esfera privada do cidadão, apenas caberiam criminalizações a atos que perturbassem objetivamente, ou externamente, a realidade social, ultrapassando a esfera privada do agente. No mais, os comportamentos seriam penalmente irrelevantes. Destarte, precisando-se valer de dados subjetivos ou internos para alcançar a dimensão perturbadora do comportamento, a punição não teria validade para um cidadão. O comportamento externamente inofensivo, questionado a partir de nosso conhecimento do que pensa ou deseja o agente, viola o princípio de que não se podem punir pensamentos: cogitationis poenam nemo patitur (ibid., p. 215).
Severas críticas têm sido direcionadas ao pensamento de Jakobs Günther, principalmente no sentido de que, a partir do ataque terrorista de 11 de setembro às Torres Gêmeas de Nova York, sua teoria teria evoluído para a legitimação do direito penal do inimigo, como parte possível do Estado de Direito. Jakobs passa a afirmar que, ao lado do direito penal, o direito penal do inimigo seria justificável quando não sabemos minimamente o que esperar do outro, quando este não apresenta qualquer garantia de que se comportará conforme o direito. Tem-se o terrorista como caso clássico.
Nesse viés, o professor Luís Greco (ibid., p. 246) assevera: “Com isso chegamos ao resultado de que o conceito de direito penal do inimigo não pode pretender um lugar na ciência do direito penal. Ele não serve nem para justificar um determinado dispositivo, nem para descrevê-lo, nem para criticá-lo. Como conceito legitimador-afirmativo, ele é nocivo; como conceito descritivo, inimaginável; como conceito crítico, na melhor das hipóteses desnecessário.”
Polêmicas à parte, que não interessam ao presente estudo, parece adequada a advertência de Cancio Meliá, que escreveu com Jakobs Günther o livro Direito Penal do inimigo: noções e críticas, tendo cada um dos autores se dedicado a um artigo diferente na publicação. O coautor refere no prefácio que, apesar das críticas, “neste caso, tem importância chamar as coisas por seu nome.” Argumenta que são muitas as medidas de repressão que se dizem “Direito Penal”, um rótulo ainda legitimante no sistema jurídico-político. O fenômeno expansivo poderia alterar estruturalmente o sistema normativo do direito penal, transformando-o em algo novo, e pior do que é hoje (CANCIO MELIÁ, 2007, p. 14).
Adverte também que os agentes políticos impulsionadores destas medidas alegam que tudo ocorre dentro da “normalidade constitucional”, aumentando os riscos que, por contágio, ameaçam de perto o Direito penal em seu conjunto. Quando noticia esta pretensa normalidade se refere à Europa, mas estende-se aqui a aplicação do conceito para o Brasil.
Que a teoria se apresente nociva como rótulo legitimante, concorda-se com o professor Greco, mas que seja dispensável enquanto viés crítico, podendo sem prejuízo ser substituído pelo cotejo de princípios constitucionais, quer-se, com a devida venia, desafiar nesta abordagem. Os princípios constitucionais resguardam o cidadão enquanto ser humano em geral; o direito penal do inimigo aponta para incoerências de tratamento entre diferentes tipos de cidadão, consoante se pretende demonstrar.
Numa abordagem histórica do direito penal, Zaffaroni (2007, p. 11) afirma que para alguns seres humanos sempre se conferiu um tratamento punitivo não correspondente à condição de pessoas, pois o poder punitivo sempre discriminou considerando-os tão somente como entes perigosos ou daninhos. Marcados como inimigos da sociedade, nega-se lhes o direito de terem suas infrações sancionadas dentro dos limites do direito penal liberal, ou seja, no escopo dos direitos humanos regional e universalmente estabelecidos.
Acrescenta o ilustre penalista que, na teoria política, o tratamento distinto de seres humanos despojados do caráter de pessoas é incito ao Estado absoluto, que, por sua essência, não aceitaria nuanças. Incompatível, assim, com a teoria política do Estado de Direito. Dessa forma, a doutrina jurídico-penal que admite e legitima o conceito de inimigo contradiz-se constantemente com os princípios constitucionais internacionais do Estado de direito (com sua teoria política).
Em paradigma semelhante, Meliá (op. cit., p. 37) defende a tese de que o conceito de direito penal do inimigo supõe um instrumento idôneo para descrever um certo setor do desenvolvimento das ordens jurídicos-penais contemporâneas. No entanto, como direito positivo, o direito penal do inimigo só integraria nominalmente o sistema jurídico-penal real: “direito penal do cidadão” cuida-se de pleonasmo; “direito penal do inimigo”, de uma contradição em seus termos.
Jesus María Silva Sánchez (2013, p. 29) anota uma tendência, a seu ver claramente dominante nas legislações atuais, à introdução de novos tipos penais, bem como do agravamento dos tipos existentes, que se adequaria no marco legal da restrição, ou da “reinterpretação” das garantias clássicas do Direito Penal substantivo e do Direito Processual Penal. Da mesma forma, observa a criação de novos “bens jurídicos-penais”, ampliação dos espaços de riscos jurídico-penalmente relevantes, flexibilização das regras de imputação e relativização dos princípios político-criminais de garantia não seriam mais do que aspectos dessa tendência geral.
Não sem razão, o autor se dedica à expansão do direito penal, explicando como novos fenômenos contribuem para o inchaço dessa seara jurídica. Encontra-se com facilidade elementos sociais novos que anseiam por alargamento da legislação penal: terrorismo, tráfico de drogas, as demandas de proteção por parte da sociedade e de setores específico, como o grupo organizado de feministas e de direitos étnicos, o problema ambiental, entre outros.
“Nos encontramos aqui ante causas mais profundas, que fundam suas raízes no modelo social que vem se configurando no decorrer, pelo menos, das duas últimas décadas, na consequente mudança da expectativa que amplas camadas sociais têm em relação ao papel que cabe ao Direito Penal. Realçar esse último aspecto me parece essencial. Com efeito, dificilmente poderá interpretar a situação de modo correto e, em consequência, fixar as bases da melhor solução possível dos problemas que suscita, se desconhece a existência no nosso âmbito cultural de uma verdadeira demanda por mais proteção. A partir daí, questão distinta é que desde a sociedade se canalize tal pretensão em termos mais ou menos irracionais como demanda de punição” (ibid., p. 28).
A expansão do direito penal e o próprio direito penal do inimigo estão intimamente relacionados com o uso instrumental simbólico do direito penal. Em outros termos, os agentes políticos se valem de mudanças na lei penal objetivando passar para a sociedade a impressão de um legislador atuante, que reage aos problemas sociais da ordem do dia, que oferece resposta aos desafios apresentados na mídia.
A função simbólica secundária da pena de advertir a sociedade para os riscos de cometer aquele crime transforma-se no objetivo primeiro, mais importante mesmo do que a manifesta função de sancionar quem violou a norma (CANCIO MELIÁ, op. cit., p. 56/57).
“Como tem assinalado Hassemer, desde o princípio desta discussão, quem relaciona o ordenamento penal com elementos “simbólicos” pode criar a suspeita de que não considera a dureza muito real e nada simbólica das vivências de quem se vê submetido à persecução penal, detido, processado, acusado, condenado, encarcerado. Isto é, aqui surge, imediatamente, a ideia de que se inflige um dano concreto com a pena, para obter efeitos um pouco mais que simbólicos.” (Ibid., p. 59).
A Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad); prescreveu medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabeleceu normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; e definiu os crimes relacionados aos entorpecentes.
Traça-se, destarte, uma breve análise dos artigos 28 e 33 da Lei, na parte dos crimes, que dizem respeito respectivamente ao consumo e tráfico de entorpecentes, tendo como paradigma os que até então se discutiu:
“Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I – advertência sobre os efeitos das drogas; II – prestação de serviços à comunidade; III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. § 1o Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica. § 2o Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente. § 3o As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses. § 4o Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses. § 5o A prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas. § 6o Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a: I – admoestação verbal; II – multa. § 7o O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado.
Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena – reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa. § 1o Nas mesmas penas incorre quem: I – importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda, oferece, fornece, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas; II – semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, de plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas; III – utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, para o tráfico ilícito de drogas.”
De um breve cotejo entre os dois artigos, percebe-se um tratamento bem diferenciado entre a pessoa que “consome” drogas e aquela que “trafica”. Esta última pratica fato típico tão vasto na definição do legislador, que gera dificuldade de compreender quem se qualifica como “traficante”. Por isso, é necessário o § 2º, do art. 28, esclarecer que “Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.”
Na prática, paira a indeterminação do conceito, pois não existe critério objetivo para diferenciar consumidor de traficante. Se alguém for encontrado com alguma quantidade de “crack”, por exemplo, numa revista realizada na favela, a autoridade policial pode interpretar que a pessoa perfaz o tipo do art. 33 ao “trazer consigo” a droga para fins de tráfico. Na verdade, o policial vai ser uma espécie de primeiro juiz, pois se ele der início ao procedimento investigatório entendendo que se trata de um traficante, dificilmente a tese será derrubada. Há, inclusive, jurisprudência pacífica acerca do peso da palavra do policial nestas circunstâncias como meio de prova idôneo.[1]
Ao consumidor, coube um direito penal liberal. Cabe rememorar aqui que, em relação à lei anterior, o usuário não é mais penalizado por um problema que, em tese, diz respeito à sua saúde. Assim, o direito recua na punição sobre a atividade da esfera privada do cidadão, que tem a pena bastante abrandada. Todavia, se o Estado benevolente oferece tratamento médico para quem consome a droga, o Estado linha dura pune com reclusão de cinco a quinze anos quem trafica.
Pode-se, então, traçar uma analogia entre o traficante e o inimigo interno da nação. Já que este, o inimigo, sofre responsabilização por seus meros pensamentos, não se lhe respeitando a esfera privada. Aquele, por seu lado, se pune por preparar a droga, adquirir, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar e mesmo prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar.
Percebe-se uma antecipação na tutela penal em determinados verbos do tipo. O comportamento ainda não atingiu o mundo exterior stricto sensu, ou seja, quem dispõe da droga não repassou para quem consome a droga. Interpreta-se legislativamente que aquela droga que o sujeito porta “era para vender”, de acordo com a conduta do agente que parecer, aos olhos do agente policial, perigoso. Ora, evidencia-se a ampliação dos espaços de riscos jurídico-penalmente relevantes, flexibilização das regras de imputação e relativização dos princípios político-criminais de garantia.
A Lei nº 11.343/06 se presta ainda a ilustrar a atitude simbólica do legislador que introduz um diploma radicalmente punitivista em relação ao tráfico de drogas, passando a mensagem de intolerância aos entorpecentes, reinterpretados como fator primordial da violência urbana. Desta feita, o legislador anuncia que qualquer tráfico será severamente punido; só que esta publicidade não surte efeito, porque a demanda por droga não sofre interrupção. Portanto, às autoridades policias e judiciárias compete recolher na prisão aqueles que satisfazem o pedido do usuário, que agora flui com mais facilidade, pois sequer sofre maiores temores.
O simbolismo não surte efeito, mas o punitivismo sim. A punição não se destina ao usuário, mas a quem lhe socorre, este é o “outro” do ponto de vista de quem faz e aplica a lei, o “inimigo” de onde provem o perigo. Entretanto, o problema da violência não se resolve com o recolhimento às prisões, nem sequer o tráfico deixa de acontecer.
“Dito com toda brevidade: o Direito penal simbólico não só identifica um determinado “fato”, mas também (ou: sobretudo) um específico tipo de autor, que é definido não como igual, mas como outro. Isto é, a existência da norma penal — deixando de lado as estratégias técnico-mercantilistas, a curto prazo, dos agentes políticos — persegue a construção de uma determinada imagem da identidade social, mediante a definição dos autores como “outros”. E parece claro, por outro lado, que para isso também são necessários os traços vigorosos de um punitivismo exacerbado, em escala, especialmente, quando a conduta em questão já está apenada.”, (CANCIO MELIÁ, op. cit., p. 65).
A perspectiva do inimigo como outro, construído socialmente, importa sobremaneira ao presente estudo, pois ajuda a entender como podem conviver no mesmo espaço concreto: as garantias clássicas nos livros de dogmática penal e as prisões em que se ignora o que sejam direitos humanos. Talvez seja ousado adiantar que o estudante de direito não está perdendo tempo com algo inócuo, que não funciona. Apenas, “aquelas normas” dos manuais não se destinam “àqueles homens”, pois são tidos por parcela dirigente da sociedade como menos de que seres humanos. Seria necessário, no entanto, mais do que estas linhas para aprofundar a questão. Limitar-se-á, por ora, a esboçar superficialmente a existência do inimigo no direito penal brasileiro, e a sua condição, que se apresenta na pele de um “outro”.
Tzvetan Todorov (1983, p. 07/08), filósofo e linguista búlgaro radicado em Paris, dedicou-se profundamente ao tema alteridade. No livro A Conquista da América, Todorov descreve o que talvez tenha sido o maior encontro com o outro na história, quando os espanhóis aportaram nas terras indígenas do “Novo Mundo”. Como cediço, o episódio terminou em sangue, atrocidades, escravidão indígena e degradação cultural daqueles homens que eram reconhecidos como inferiores, pelos conquistadores:
“Quero falar da descoberta que o eu faz do outro. O assunto é imenso. Mal acabamos de formulá-lo em linhas gerais já o vemos subdividir-se em categorias e direções múltiplas, infinitas. Podem-se descobrir os outros em si mesmo, e perceber que não se é uma substância homogênea, e radicalmente diferente de tudo o que não é si mesmo; eu é um outro. Mas cada um dos outros é um eu também, sujeito como eu. Somente meu ponto de vista, segundo o qual todos estão lá e eu estou só aqui, pode realmente separá-los e distingui-los de mim. Posso conceber os outros como uma abstração, como uma instância da configuração psíquica de todo indivíduo, como o Outro, outro ou outrem em relação a mim. Ou então como um grupo social concreto ao qual nós não pertencemos. Este grupo, por sua vez, pode estar contido numa sociedade: as mulheres para os homens, os loucos para os “normais”. Ou pode ser exterior a ela, uma outra sociedade que, dependendo do caso, será próxima ou longínqua: seres que em tudo se aproximam de nós, no plano cultural, moral e histórico, ou desconhecidos, estrangeiros cuja língua e costumes não compreendo, tão estrangeiros que chego a hesitar em reconhecer que pertencemos a uma mesma espécie.”
Enquanto dedica-se Todorov à problemática do outro exterior, cabe a estas linhas discernir o outro interior, o “grupo social concreto ao qual nós não pertencemos”. Os presos em relação aos “cidadãos de bem”. Um ponto observado pelo filósofo na atitude de Colombo para com os índios chama a atenção, pois continua presente num contexto tão diverso.
“Ou ele pensa que os índios (apesar de não utilizar estes termos) são seres completamente humanos com os mesmos direitos que ele, e aí considera-os não somente iguais, mas idênticos, e este comportamento desemboca no assimilacionismo, na projeção de seus próprios valores sobre os outros, ou então parte da diferença, que é imediatamente traduzida em termos de superioridade e inferioridade (no caso, obviamente, são os índios inferiores): recusa a existência de uma substância humana realmente outra, que possa não ser meramente um estado imperfeito de si mesmo. Estas duas figuras básicas da experiência da alteridade baseiam-se no egocentrismo, na identificação de seus próprios valores com os valores em geral, de seu eu com o universo; na convicção de que o mundo é um.” (Ibid., p. 58/59)
Boa fatia da sociedade brasileira, com apoio de políticos eleitos, renega qualquer direito à pessoa encarcerada e alguns mesmo se regozijam nas redes sociais quando ocorrem carnificinas nas unidades prisionais. Assim, partem da diferença; do presidiário enquanto menos merecedor ser tratado consoante a dignidade humana. Por outro lado, quando esta mesma sociedade, oferecendo pouca ou muitas vezes nenhuma educação de base, nenhuma oportunidade de crescimento, cobra que este cidadão aja conforme a moral de alguém que teve todas as chances na vida (e não aproveitou), considera-os não somente iguais, mas idênticos, projetando nos presos um valor de outra camada social.
A legislação antidrogas e dos crimes contra o patrimônio são fatores da superlotação dos presídios. O Brasil prende com rigor quem porta pouca droga para venda e quem rouba um celular. Por lesões ao bem jurídico de baixa monta, expõe, na realidade, a risco a vida destas pessoas, haja vista a precariedade do sistema carcerário. A prisão cautelar dá o suporte jurídico para que essas incongruências no sistema se perpetuem. [2]
Com acuidade, Zaffaroni (op. cit., p. 19) observa que a principal característica do poder punitivo latino-americano é o fato de que a maioria dos presos está submetida a medidas de contenção: “são processados não condenados. Apelida a prática de “autoritarismo cool na America Latina”. Do ponto de vista formal, isso constitui uma inversão do sistema penal, porém, segundo a realidade percebida e descrita pela criminologia, trata-se de um poder punitivo que há muitas décadas preferiu operar mediante a prisão preventiva ou por medida de contenção provisória transformada definitivamente em prática. “Falando mais claramente: quase todo o poder punitivo latino-americano é exercido sob a forma de medidas, ou seja, tudo se converteu em privação de liberdade sem sentença firme, apenas por presunção de periculosidade.”[3]
“A medida cautelar é pena cautelar, ou seja, por precaução, o poder punitivo é exercido condenando-se materialmente todos os acusados a uma medida e revisando-se com grande parcimônia essas condenações, num processo que se arrasta por anos a fio, com o intuito de verificar se corresponde a uma pena formal. O desencarceramento ou a cessação da prisão preventiva ou provisional representa uma absolvição, pois corresponde a quase todos os seus efeitos.” (Ibid., p. 70)
No Brasil, a prisão preventiva insere-se no âmbito das medidas cautelares previstas no Código de Processo Penal. Estas medidas se justificam, do ponto de vista processual penal, para instrumentalizar, quando necessário, o exercício da jurisdição, posto que, segundo o processo penal, seria extremamente comum a ocorrência de situações em que essas providências urgentes se tornam imperiosas. Renato Brasileiro de Lima (2016, p. 1105) cita razões de aplicação das cautelares, exemplificando: para assegurar a correta aplicação do fato delituoso, a futura e possível execução da sanção, a proteção da própria coletividade, ameaçada pelo risco de reiteração da conduta delituosa, ou, ainda, o ressarcimento do dano causado pelo delito.
Como observa Moacyr Amaral dos Santos (1971, p. 218), o processo cautelar visa providência urgente e provisória, tendente a assegurar os efeitos de uma providência principal, em perigo por eventual demora. Nesse diapasão, escreve Francesco Carnelutti (2000, p. 488):
“O processo cautelar não conduz nem à coisa julgada nem à restituição forçada: à coisa julgada, porque sua finalidade não consiste em lhe dar a razão ou em se negá-la a um ou outro dos litigantes; à restituição forçada, porque não tem por finalidade remediar a lesão de uma pretensão; pelo contrário, por meio dele se trata de criar um estado jurídico provisório, que dure até que se efetue o processo jurisdicional ou o processo executivo. Em virtude do processo cautelar, a res não é, pois, iudicata, e sim composta de modo que possa esperar-se o juízo; e a esta composição, cujo conceito se esclarece comparando-a com o curativo de uma ferida, dá-se-lhe o nome de medida cautelar, a qual, por sua vez, pressupõe o provimento cautelar, ou seja, o ato por meio do qual o órgão judicial dispõe a composição provisória do litígio.”
A lógica da medida cautelar, bem capturada pelos processualistas civis acima, não difere no processo penal. Deveria assegurar o adequado provimento final, entretanto a prisão preventiva comumente converte-se na coisa em si enquanto a sentença não transita em julgado, transforma-se na própria pena, no provimento definitivo que ela pretende resguardar. Na maioria das vezes, o preso receberá alvará de soltura antes que a decisão de primeiro grau esgote os trâmites e transite em julgado. Assim, o cidadão permanece meses, e mesmo anos, de sua vida preso por supostamente ter cometido um ato, que deveria ser julgado consoante a legislação, jurisprudência e doutrina penal; todavia não se trata de assegurar processo algum, e sim de antecipar a pena por critérios judiciários amparados numa legislação processual. Como finamente referido por Jakobs Günther, pena que não significa, apenas coage.
Toda medida cautelar, em nosso ordenamento processual penal, exige, para a sua aplicação, a presença de dois elementos em conjunto: o fumus boni juris e o periculum in mora. No caso da prisão preventiva, o primeiro requisito se reveste do fumus comissi delicti e o segudo do periculum libertatis. Ademais, com o advento da Lei nº 12.403/11, faz-se necessário comprovar a ineficácia, ou impossibilidade, da aplicação de qualquer outra cautelar, nos termos do art. 282, §6º, II, do CPP.[4] Em tese, portanto, a prisão preventiva deveria ser aplicada como ultima ratio.
Sobre a preventiva, dispõe o art. 312 do CPP:
“Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria. Parágrafo único. A prisão preventiva também poderá ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares (art. 282, § 4o).”
O final do artigo “quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria”, se refere ao do fumus comissi delicti. Deve, por conseguinte, o juízo demonstrar a autoria ao menos por indícios[5] e comprovar a materialidade do crime. “É indispensável, portanto, que o juiz verifique que a conduta supostamente praticada pelo agente é típica, ilícita e culpável, apontando as provas em que se apoia sua convicção”.
No que tange ao periculum libertatis, fica por conta das circunstâncias referidas no corpo do artigo: “garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal”. Basta uma das situações, somada aos indícios de autoria e prova da materialidade, para decretação da prisão preventiva. Já que as circunstâncias são evidentemente genéricas, a doutrina e a jurisprudência constroem entendimentos do que sejam cada uma delas.
Pelo exposto, ao sujeito que se encontra “acautelado” nos presídios importa bem mais a interpretação do Capítulo III do Código de Processo Penal (“Da Prisão Preventiva”, em que se inclui o art. 312) pelo Juiz de primeiro grau, pelos tribunais e por acadêmicos do que as garantias previstas na parte geral e especial do Código penal. Mesmo após sentenciado, antes do trânsito em julgado da decisão, a Justiça mantém a prisão preventiva com a permanência dos requisitos.
Quando ocorrer a dosimetria definitiva da pena, é comum que tenha cumprido mais tempo de reclusão do que seria necessário, e mesmo que já esteja em liberdade. Resta evidente a inversão do sistema penal, a contenção provisória transformada em definitiva, por presunção de periculosidade. A medida cautelar por precaução representa o papel de pena cautelar; e sua revogação representa a absolvição.
A teoria política deve ao conservador Carl Schmitt o resgate do ideário de inimigo desde os romanos até meados do século XX, que tem se mostrado atual seja do ponto de vista da política externa (o ataque as torres gêmeas, os atentados de Paris, e a respectiva reação dos Estados), como da política interna (com a repressão acentuada ao terrorismo, à criminalidade, aos movimentos sociais). As ideias do pensador contribuíram para a construção da doutrina nazista, tendo ele chegado a desempenhar o papel de eminência parda dentro dos círculos do partido, mas depois perdido importância com o desenrolar do governo de Hitler.
O inimigo em Schmitt (1992, p. 52) é exatamente o outro, o estrangeiro — aquele contra quem, em caso de conflito, “não podem ser decididos mediante uma normatização geral previamente estipulada, nem veredito de um terceiro ‘desinteressado’, e, portanto ‘imparcial’”. Há a possibilidade do reconhecimento e do entendimento, mas, na situação extrema, cada uma das partes precisa decidir por si mesma, se aquela alteridade, no caso concreto da contraposição, enseja a negação de sua própria maneira de existir, devendo ser repelido e combatido, para a conservação deste modo de ser.
“O inimigo, portanto, não é o concorrente ou o adversário em geral. O inimigo também não é o adversário particular, que odiamos por sentimento de antipatia. Inimigo é um conjunto de homens, pelo menos eventualmente, isto é, segundo a possibilidade real, combatente, que se contrapõe a um conjunto semelhante. Inimigo é apenas o inimigo público, pois tudo que refere a tal conjunto de homens, especialmente a um povo inteiro, torna-se, por isto, público. Inimigo é hostis, e não inimicus no sentido lato: polémios, não ekhthrós.” (ibid., p. 55).
As pessoas que detêm uma forma de ser análoga, englobando sua educação, cultura, etiqueta, modo de se relacionar em grupo, forma de falar, objetos de consumo, de desejo, medos, moral, etc., se apreendem enquanto um grupo de “semelhantes”, ou iguais. Esta concepção de Schmitt encontra-se bastante difundida na sociedade, mesmo que não explicitada publicamente por quem a concebe.
O inimigo é aquele indesejável, porque questiona, ou pode vir a questionar, com seus atos, a maneira como se vive. A forma com que cada sociedade trata os inimigos vai variar no contexto histórico. Cumpre não confundir o indesejável com o dissidente, a pessoa com o mesmo modus vivendi dos “semelhantes”, entretanto que questiona, em maior ou menor medida, a justiça daquela ordem social. Partindo deste panorama, Zaffaroni (op. cit., p. 71) traça um quadro elucidativo da situação como a América Latina trata os infratores da lei:
“Nos casos de delitos graves, a prisão preventiva é seguida por reclusões perpétuas ou penas absurdamente prolongadas, que em muitos casos superam a possibilidade de vida das pessoas; os indesejáveis continuam sendo eliminados por meio de medidas administrativas, penas desproporcionais (para reincidentes) e internação em cárceres marcados por altíssimos índices de violência, de mortalidade hétero e auto-agressiva e de morbidade, ou seja, alta probabilidade de eliminação física, paralelamente às execuções policiais e para-policiais sem processo. Na maioria das vezes, porém, não se configura um sistema penal subterrâneo, devido ao fato de que essas execuções não são sistemáticas, embora, em certos casos, a frequências dessas ações leve à suspeita do perigoso reaparecimento da lógica da segurança nacional dos anos setenta do século passado. De qualquer forma, cabe observar que os indesejáveis não sofrem pena formal, porque cumprem a prisão cautelar. Os dissidentes são mais tolerados, ainda que a repressão ao protesto social dos excluídos do sistema produtivo tenha aumentado, mediante a aplicação extensiva de tipos penais e a interpretação restringida de causas de justificação ou de exculpação. Finalmente, os iguais, cada vez mais reduzidos em função da polarização de riqueza e da degradação das velhas camadas médias, costumam gozar dos benefícios e garantias dos manuais, nos poucos casos em que são criminalizados.”
Sabe-se que a aplicação de qualquer medida cautelar em sede de processo penal cuida de uma mitigação na presunção de inocência do réu. Entretanto, a aplicação sistemática e em larga escala da prisão preventiva degrada a dignidade da pessoa humana, que, não por acaso, está protegida no primeiro artigo da Constituição Federal, como um dos fundamentos da República, no inciso III.
Basicamente, esta ofensa se deve a dois fatores: a) a cautelar com aplicação distorcida fere de morte a consagração do princípio da presunção de Inocência (art. 5º, LVII); e b) desenha-se num ambiente político-jurídico em que apenas uma parte do corpo social tem direito às garantias do direito penal liberal, enquanto a outra amarga contra si a análise perfunctória do fumus boni juris e do periculum in mora acerca do fato.
Com todo o exposto, não há exagero em afirmar que, por via judiciária, cedendo aos apelos de parte da sociedade brasileira, a aplicação do Código de Processo Penal na prisão cautelar generalizada atropela a Carta da República, valendo-se da soberania nacional para atuar como um organizador do espaço público. Ao decretar a preventiva sem que haja conveniência processual, e mantê-la por um determinado período, o magistrado não apenas diz o direito, mas ele diz qual o direito penal que será aplicado naquele caso.
Conclusão
O artigo trabalhou o conceito cunhado por Jakobs Günther de direito penal do inimigo, enquanto aquela normativa que combate perigos, uma vez que a medida executada contra o inimigo não significa nada, apenas coage. Elencou-se, ao lado deste, o direito penal do cidadão, que aplica todo o aparato teórico de um direito penal liberal contra uma conduta condenável do cidadão e aplica a pena, mantendo a vigência da norma.
Conclui-se pela plausibilidade da divisão, apesar de se compreender que o direito penal do inimigo não coaduna com o estado democrático de direito. Entretanto, o aparato teórico apresentado serve exatamente de contraste para apontar onde, apesar das normas constitucionais vigentes, parcela dos cidadãos são tratados diferentemente, vistos como um outro intraduzível na realidade social, inadministrável do ponto de vista jurídico, senão por trás das grades.
Cuidou o estudo de demonstrar o direito penal atuando quando está em face do que percebe ser um cidadão, respeitando sua esfera de privacidade, só analisando as condutas que se exteriorizam na negação da liberdade alheia. Ao seu lado, viu-se que, quando em face de um pretenso inimigo, o direito não espera o agente exteriorizar a vontade para coagir, antecipando-se devido ao perigo que representa.
Aproximou-se a ideia do inimigo enquanto alteridade interna, ou seja, como grupo social concreto ao qual nós não pertencemos. Essa alteridade, por vezes intransponível, pode justificar tratamentos diferenciados para cidadão interpretados como diferenciados.
Traçou-se um paralelo entre o direito penal liberal aplicado com todos os rigores garantistas para quem pode pagar por ele e o direito processual cautelar reservado ao inimigo no Brasil. O inimigo é intuído como um outro que deve ser coagido e afastado da sociedade. A percepção deste outro como um ser humano de menor dignidade permite a fratura do direito penal brasileiro em dois, sem que o sistema constitucional entre em colapso.
Referências
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal, 19 ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
CARNELUTTI, Francesco. Sistema de Direito Processual Civil. São Paulo: Classic Book, 2000, v. 1.
GRECO, Luís. Sobre o chamado Direito Penal do Inimigo. Revista da Faculdade de Direito de Campos, Rio de Janeiro, Ano VI, n.º 7, p.211-247, dez.2005.
GÜNTER, Jakobs; CANCIO MELIÁ, Manuel. Direito Penal do inimigo: noções e críticas. Org e trad. André Luís Callegari, Nereu José Giacomolli. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2007.
LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único. 4 ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016.
SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil. São Paulo: Max Limonad, 1971, v. 1.
SCHMITT, Carl. O conceito do político. Trad. Alvaro Valls. Petrópolis: Vozes, 1992.
SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Trad. Luiz Otávio de Oliveira Rocha, 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.
TODOROV, Tzevetan. A conquista da América: a questão do outro. Trad. Beatriz Perrone-Moisés, 3 ed. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1983.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no Direito Penal. 2ªed. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
[1] APELAÇÃO CRIME. TRÁFICO DE DROGAS. SENTENÇA ABSOLUTÓRIA REFORMADA. Demonstrada a prática do delito tipificado pelo art. 33, caput, da Lei 11.343/06 por parte do réu. Foram feitas denúncias aos policiais de que o réu estaria traficando entorpecentes no local do fato. Autoria e materialidade comprovadas através dos depoimentos dos policiais que receberam a denúncia de que um indivíduo com o nome do acusado estaria traficando entorpecentes no local, e, ao procederem à averiguação da mesma, verificaram que o mesmo estava foragido e se dirigiram ao endereço. O réu, na ocasião, correu para dentro de casa, mas foi flagrado com maconha e uma pedra grande de crack, incompatível com o tamanho usual para consumo, conforme relato dos próprios policiais. Desnecessário o flagrante no ato do comércio de drogas, pois o art. 33, da Lei nº 11.343/06, apresenta diversas condutas que caracterizam o crime de tráfico de entorpecentes. RECURSO MINISTERIAL PROVIDO. (TJRS, Apelação Crime Nº 70080118912, Segunda Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rosaura Marques Borba, Julgado em 25/04/2019); “O depoimento de policiais pode ser meio de prova idôneo para embasar a condenação, principalmente quando tomados em juízo, sob o crivo do contraditório. Precedentes do STF e desta Corte.” (STJ – HC nº 40.162 – 5ª T. – Rel. Min. Gilson Dipp – DJU de 28.03.2005).
[2] “Some-se a este quadro o pernicioso uso indiscriminado da prisão provisória pelo Poder Judiciário nacional. Não é de hoje que advogados, defensores, juízes, promotores, organizações da sociedade civil e autoridades comprometidas com a melhoria do sistema de justiça criminal vêm alertando para o uso abusivo da prisão processual, cuja excepcionalidade deveria ser observada: do total de 607.731 presos no sistema penitenciário nacional, 250.213 (41%) são provisórios. Há para estes presos provisórios 115.656 vagas em unidades prisionais do país.” Informativo Rede Justiça Criminal, nº 8, Jan/2016, disponível em http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/02/b948337bc7690673a39cb5cdb10994f8.pdf.
[3] O CNJ e os Tribunais Superiores reconhecem o problema e implementam medidas para restringir o uso indiscriminado da prisão preventiva, a exemplo das audiências de custódia, mas enfrentam resistência da sociedade e no próprio poder Judiciário. “Dados fornecidos pelos tribunais até junho de 2016 mostram que, entre as 93,4 mil audiências de custódia realizadas, 47,46% resultaram em liberdade, com ou sem a imposição de medidas cautelares. Já a taxa de conversão de prisão em flagrante em prisão preventiva ficou em 52,54% (50 mil casos)”. Disponível em http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/82713-audiencias-de-custodia-ja-evitaram-45-mil-prisoes-desnecessarias-2”.
[4] Art. 282. (…) § 6o A prisão preventiva será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar (art. 319). (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
[5] Ensina o professor Capez (2012, p. 466) que indício “é toda circunstância conhecida e provada, a partir da qual, mediante raciocínio lógico, pelo método indutivo, obtém-se a conclusão sobre um outro fato. A indução parte do particular e chega ao geral”.
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