Cristina Menezes da Silva – Mestranda em Direito Processual pela PUC-SP. Bacharel em direito pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas. Servidora do Tribunal de Justiça de São Paulo. Email: cristinamds@tjsp.jus.br
Barbara Della Torre Sproesser – Mestranda em Direitos Humanos pela PUC-SP. Pós Graduada em Direito Militar pela Faculdade de Tecnologia IPPEO – Instituto Venturo. Bacharel em direito pela PUC-SP. Advogada. E-mail: bdts.mail@gmail.com
Resumo: O presente trabalho foi desenvolvido com o escopo de demonstrar a relação existente entre a construção, o desenvolvimento, o reconhecimento e a afirmação dos direitos humanos em conjunto com os instrumentos processuais gerados para efetivar a concretização desses direitos conquistados ao longo da nossa história. Apontando o cerne de todos os direitos, bem como a ligação entre seus titulares e o responsável pela sua defesa, procurou-se mostrar o caminho percorrido para garantir o equilibro nessa relação por meio do direito positivado. A partir de contextos históricos, considerações teóricas e jurisprudências demonstrar-se a defesa do paradigma de uma jurisdição efetiva que proporcione apoio real ao desenvolvimento e concretização dos direitos conquistados.
Palavras-chave: Direitos humanos. Processo. Devido processo legal.
Abstract: The present work was developed under the scope of demonstrating the relationship between the construction, development, recognition and affirmation of human rights along the procedural instruments generated in order to promote effectiveness to the materialization of these rights which were won throughout our history. Pointing out the core of all rights, as well as the link between their holders and the ones responsible for their defence, we sought to demonstrate the path taken to ensure the balance beneath this bond throughout positive law. From historical contexts, theoretical considerations and jurisprudence, it was attempted to demonstrate the defence of the paradigm of an effective jurisdiction that provides real support to the development and realization of the rights conquered.
Keywords: Human rights. Process. Due process of law
Sumário: Introdução. 1. Dos direitos humanos e sua construção a partir de instrumentos processuais relacionados à limitação de poder do Estado e garantia de liberdade 2. O devido processo legal como o mecanismo de proteção e construção dos direitos fundamentais. Conclusão. Referências.
Introdução
Tendo em vista a amplitude que a proposta traz, buscou-se trazer considerações relacionando a teoria do direito, a praxis processual e os direitos humanos como resultado também dos conflitos humanos individuais e sociais.
De maneira objetiva, colocou-se a identificação da essência de todos os direitos e também a necessária relação de proteção tanto da sua observação quanto na limitação do Poder hábil a efetivá-los.
Acompanhando a evolução dos direitos humanos através da nossa história foram desenvolvidos e aprimorados mecanismos de defesa e concretização de importantes garantias em oposição aos excessos que ao longo do tempo justificaram tanto o desenvolvimento de cada dimensão dos direitos humanos quanto sua devida proteção. Nota-se a constante evolução tanto dos aqui mencionados direitos humanos como ainda do direito processual, sendo sensível a correlação apontada.
Assim dado um alargamento da jurisdição e seus mecanismos, com sua solidificação, parece inevitável que também os direitos humanos adiram tal movimento.
1. Dos direitos humanos e sua construção a partir de instrumentos processuais relacionados à limitação de poder do Estado e garantia de liberdade
Muitos são os desafios para a compreensão dos direitos humanos. Como bem ressalta Sidney Guerra (2003, p. 31), “em razão do uso excessivo e por vezes indiscriminado dessa expressão, ela acaba por incorrer em certa vagueza e imprecisão”. Além disso, a variedade de terminologias empregadas ora como sinônimas, ora como termos distintos, pouco colabora para um entendimento claro e objetivo: empregam-se “direitos humanos”, “direitos fundamentais”, “direitos naturais”, “direitos individuais”, “liberdades públicas”, entre outras – fato que não passa desapercebido aos estudiosos, como Cláudio Jesús Santagati (2009, p. 50), o qual reconhece os inconvenientes decorrentes da ambiguidade do termo direitos humanos, mas o defende como o mais apropriado dentre os existentes.
Assim, qual critério poderia melhor representar o âmago do que pode ser considerado direitos humanos? Afinal, sua amplitude e generalidade, bem como sua constante evolução e ampliação tornam difícil a delimitação do que seriam tais direitos fundamentais, cujo processo de afirmação e consolidação tem sido longo e repleto de agruras, sendo mesmo possível formular teorias das mais variadas sobre eles, até porque a teoria geral dos direitos fundamentais expressa um ideal teórico.
Em apertada síntese, esse ideal de direitos humanos pode ser definido como o conjunto de liberdades fundamentais, concebidas tanto como o poder de autodeterminar-se como também o de expressar-se conforme sua vontade e de direitos de que todo indivíduo é, necessariamente, titular, o que implica na afirmação da imposição de deveres de toda uma coletividade para com ele. E não sem razão tal ideal permanece teórico, uma vez que o objetivo de proteção ao indivíduo deve transcender as capacidades imaginativas daqueles cujos esforços se dão em imaginar situações limite.
Também é atraente a ideia de se considerar direitos humanos e direitos individuais como sinônimos por conta do raciocínio segundo o qual os indivíduos possuem certos direitos justamente por serem criaturas dotadas de moral e de características e capacidades, as quais necessitam de proteção satisfatória e que são inerentes a todos os humanos: raciocínio que conduz a essa concepção sinonímica à qual estamos acostumados desde meados do século XX.
Nessa linha de concepção, estaríamos diante dos ideais e propósitos mais elevados dos direitos humanos, os quais, para Andrew Fagan (2010. p. 11), seriam a dignidade humana, a liberdade individual e a equidade entre as pessoas1. Contudo, durante a maior parte da história política dos direitos individuais tal correlação inexistia: indivíduos, repetidamente, embasavam seus direitos no fato de serem agentes moral e politicamente plenamente desenvolvidos, ao passo em que negavam tal status e tais direitos a outros seres humanos (REUS-SMIT, 2013, p. 06)2. Na verdade, as lutas por reconhecimento e por proteção desses direitos têm um papel significativo no desenvolvimento do sistema jurídico-político internacional (REUS-SMIT, 2013, p. 01-02). Não é sem motivo que a primeira concepção do direito de liberdade vem atrelada a uma limitação ao Poder Soberano, por meio de um devido processo legal.
Cabe, a este ponto, uma explicação. Historicamente, temos uma primeira dimensão, que compreende as liberdades ditas clássicas, notadamente as liberdades civis e políticas, as quais serviram de base para o reconhecimento de uma liberdade positiva, através do reconhecimento dos direitos sociais e econômicos, norteados pelo princípio de igualdade (a segunda dimensão), culminando nos direitos que materializam poderes de titularidade coletiva de atribuição difusa, sob o princípio da solidariedade (terceira dimensão). E, nesse processo histórico, já se afirmam direitos inteligíveis como valores fundamentais, uma quarta dimensão de direitos humanos, tais como o direito ao desenvolvimento e o direito à paz.
Sem adentrar na celeuma da universalidade vs. relativismo dos direitos humanos, temos que tais direitos fundamentais são constantes e inalienáveis, podendo sim serem compreendidos como universais no sentido de que cada indivíduo é deles titular, não podendo serem relativizados por qualquer sistema político, jurídico ou religioso_ no máximo sopesados em busca de uma equidade, e apenas em um caso concreto de conflito de direitos humanos. E tendo-se em mente todo o constante processo de afirmação e consolidação desses direitos, é preciso reconhece-los como dinâmicos diante das transformações político-econômico-sociais, diante dos saltos tecnológicos e das interações geopolíticas nacionais e transnacionais. E, assim, importa atentar ao que seria o cerne desses direitos, qual liame os relaciona.
Para Alberto Nogueira (1997, p.11), o núcleo comum das diversas expressões empregadas seria precisamente a liberdade3. Tal autor não se encontra isolado em seu entendimento, sendo um pressuposto da forma jurídica do common law de que a lei existe, em parte, para proteger o indivíduo do poder arbitrário. Sobre tal entendimento, incorporado na Declaração de Direitos de 1689, os direitos humanos devem ser entendidos como liberdades (SCRUTON. 2015. p. 84.).
Uma das primeiras considerações que se impõem encontra-se em definir o que pode ser, então, compreendido por liberdade. Como bem exprime Scruton (2015. p. 84.), “podemos entender, em parte, as liberdades fundamentais como direitos por compreendermos o dever recíproco de respeitá-las. Meu direito à vida envolve o seu dever de não me matar: e os deveres de não violação e de não inflição de sofrimento são naturalmente acolhidos pela moralidade e facilmente impostos pela lei”.
Não obstante, o mesmo autor reconhece que este conceito é complementado por outras liberdades (positivas), de origem teórica jusnaturalista, visando justamente promover a dignidade humana e a equidade entre as pessoas, em complementariedade às liberdades individuais (negativas).
Mas importa refletir quanto à titularidade dessas liberdades e a quem devem ser oponíveis, adotando para tal os escritos de Habermas (1929. p. 171), ao tratar do nascimento dos direitos positivados (primeiro passo para assegurar-se eficácia), atentando-se ao fato de que este autor referia-se a uma “coletividade limitada no espaço e no tempo” ao retomar o conceito de povo4, atribuindo ao Estado o poder-dever de implementar essas liberdades acordadas pelos cidadãos, dispondo “de meios para o emprego legítimo da coerção” contra quaisquer que ameacem tais liberdades, estejam estes inseridos na ordem interna (nacionais ou estrangeiros residentes em seu território) ou, mais expressivamente, externa (povos estrangeiros), haja visto sua “capacidade para a organização e auto-organização destinada a manter, tanto para fora como para dentro, a identidade da convivência juridicamente organizada”.
Assim, sob a ótica deste primeiro argumento trazido pela obra de Habermas, a liberdade primeiro é definida pelos indivíduos que integram determinado povo e em determinado tempo, oponível erga omnes, tendo o Estado por seu legítimo garantidor.
Ocorre que, com a existência de um ente dotado de poder, surge a necessidade de limitá-lo. Esse limite é estabelecido, circunscrito, pela Lei. Além disso, importa fazer com que o Estado reconheça esses limites impostos, furtando-se de tolher as liberdades individuais já estabelecidas. E é assim que surge, historicamente, o instrumento do habeas corpus, acompanhando a criação da exigência de um devido processo legal, servindo de instrumento fundamental para a salvaguarda das liberdades individuais contra ações arbitrárias e ilegais do Estado5.
Ambos, habeas corpus e devido processo legal, têm origem primária no common Law, por meio da Magna Charta Libertatatum (1215), abrindo caminho para a contenção do poder real. Essas garantias são reforçadas em 1679, por meio do Habeas Corpus Act, ato que formaliza o instituto do habeas corpus, positivando-o (TORON, 2017. p. 37). Assim, agora também o Estado estava sujeito aos efeitos de um instrumento jurídico de inspirado no direito romano, o libero homine exhibendo6.
E, em se tratando de conjunto de liberdades e direitos fundamentais, vale relembrar a definição do writ de habeas corpus trazido pela Constituição Brasileira de 1891, pós proclamação da República, a qual entendia as liberdades como sendo as mais amplas possíveis, uma vez que no seu artigo 172, §22, garantia o writ a qualquer indivíduo que sofresse ou se achasse em iminente perigo de sofrer violência, ou coação, por ilegalidade ou por abuso de poder. Tal amplitude remete justamente às liberdades positivas e negativas tratadas há pouco.
2. O devido processo legal como o mecanismo de proteção e construção dos direitos fundamentais
Após o panorama apresentado, vamos partir para a análise do devido processo legal em razão da sua importância não apenas como um dos direitos fundamentais, mas principalmente como instrumento capaz de reunir garantias processuais que proporcionam efetividade aos direitos reconhecidos no processo de internacionalização e constitucionalização dos direitos humanos.
Nessa linha, conforme já mencionado, diversas garantias vêm sendo reunidas para reconhecer direitos contra o soberano ou o Estado, moldando o poder antes concentrado nas mãos do monarca, sem qualquer tipo de limitação, aprimorando as ideias de liberdades dos cidadãos. O devido processo legal foi o primeiro instrumento capaz de tornar esse ideal mais próximo da realidade o que justifica percorrer brevemente as origens da sua conquista, seu desenvolvimento histórico e, por fim, as duas dimensões que atualmente ele possui.
O devido processo legal nasceu como cláusula de proteção contra a tirania do Rei e foi com ele que pela primeira vez na história a ideia de que mesmo o Imperador está submetido às leis se consolidou (DIDIER JR., 2017, p.4). Sua consagração e documentação normativa se efetivou na Magna Charta de João Sem-terra, no ano de 1215, na Inglaterra, com a expressão per legem terre, que pode ser compreendida como lei da terra, e consubstanciava-se na declaração de direitos da nobreza que deveriam ser observados pelo Rei.
Em 1.354, a lei inglesa denominada Statute of Westminster of the Liberties of London utilizou pela primeira vez o termo conhecido até nossos dias: due process of law. Termo esse que foi levado para os Estados Unidos, sempre com o propósito de defender o direito à liberdade, e fez parte de diversas constituições estaduais americanas até ser previsto pela Constituição Federal nas famosas Emenda V e Emenda XIV. E mesmo após isso, a garantia do devido processo legal serviu de pedra angular para a afirmação dos direitos civis e políticos dos cidadãos, inclusive da população afroamericana e das minorias étnicas que compunham o povo norteamericano.
A partir da construção jurisprudencial norteamericana se formou o entendimento doutrinário de devido processo legal que passou a ser aplicado no Brasil, sendo consagrado na Constituição Federal em 1988, no seu art. 5º, inciso LIV, garantindo a proteção da liberdade e dos bens, no espírito de redemocratização e de proteção aos direitos humanos em que esta constituição foi promulgada, que tal direito fundamental passou a integrar a ordem jurídica positivada brasileira_ e em seu núcleo central, como cláusula pétrea.
O devido processo legal, então, se tornou a exigência de que ninguém será privado de seus bens sem um processo que observe as formalidade e garantias previstas em lei.
Com esse espírito, a doutrina e os juristas nacionais transformaram esse direito fundamental em uma sequência de garantias constitucionais como o contraditório e a ampla defesa (art. 5º, LV), proibição de provas ilícitas (art. 5, LVI), publicidade processual (art. 5º, LX), juiz natural (art. 5º, XXXVII), razoável duração (art. 5º, LXXVIII), acesso à justiça (art. 5º, XXXV) que devem ser observadas para a concretização do devido processo legal. Embora as garantias expostas demonstrem a complexidade desse princípio, elas apenas compõem seu conteúdo mínimo. Isso porque, elas são insuficientes para a concretização do direito fundamental ao devido processo legal pois além de um processo adequado, esse direito busca a solução jurídica justa, ou seja, a solução jurídica mais adequada (DIDIER JR, 2017, p. 76-77).
E para tanto a história utilizou a cláusula aberta de seu texto normativo para adaptá-lo às variadas questões enfrentadas pelo poder judiciário, preservando-o como fonte de proteção dos direitos fundamentais. Nas palavras de Winston Churchill (apud DIDIER JR, 2017, p. 77) sobre a Magna Carta e a proteção do devido processo legal: “E quando, nas ideias subsequentes, o Estado, dilatado com sua própria autoridade, tentou impor sua tirania sobre os direitos ou liberdades dos súditos, foi a essa doutrina que vezes e vezes se dirigiam apelos, nunca até hoje sem resultados”.
Amparado nessa indeterminação conceitual, na capacidade de se adequar às necessidades do sistema jurídico e, ainda, na certeza de que sua “função é criar elementos necessários à promoção do ideal de protetividade” (ÁVILA, 2008, p. 57), a jurisprudência americana ampliou a ideia do principio para transformá-lo no substantive due process of law. No Brasil esse conceito recebeu o nome de “devido processo legal substancial” e sua função pode ser é permitir que o devido processo legal avance para se tornar o instrumento capaz de produzir decisões jurídicas substancialmente devidas.
Esse aspecto do devido processo legal não possui conceito unanime na doutrina motivo pelo qual, para compreender o seu real sentido e significado é necessário percorrer, brevemente, seu desenvolvimento na história do direito americano.
O primeiro caso em que a Suprema Corte aplicou o substantive due process of law foi o famoso Dred Scott vs. Sandford, em 1857, antes da abolição da escravatura. Nele a Corte americana julgou inconstitucional norma estadual que privasse o indivíduo do direito de propriedade sobre seus escravos sem o devido processo. Podemos verificar que a intenção era claramente de proteger a liberdade e a propriedade, como podemos observar no voto do justice Taney: “Uma lei do Congresso que priva um cidadão dos Estados Unidos de sua liberdade ou propriedade, só porque ele veio ou transitou com sua propriedade em um determinado território dos Estados Unidos, sem que houvesse cometido qualquer ofensa às leis, dificilmente poderia ser dignificada em nome do devido processo legal. (…)”7
Outro exemplo paradigmático, pode-se mencionar o famoso caso Griswold vs. Connecticut, na década de 1960, em que a Suprema Corte Norteamericana julgou inconstitucional lei que proibia a utilização de métodos contraceptivos, restando cunhada a expressão substantive due processo of law. Ainda no mesmo sentido, no caso Roe vs. Wade, prevaleceu o entendimento de que a lei que pune criminalmente prática abortiva é inconstitucional por desprezar as diversas nuances de uma situação tão complexa. De decisões como estas, restou demonstrado como o emprego deste direito fundamental serve como verdadeira baliza, sendo o substantive due process of law uma garantia contra os arbítrios do legislador e do administrador.
Conforme podemos perceber pelos casos apresentados, o princípio evoluiu para consagrar-se hoje tanto um instrumento afirmativo, que permite dar efetividade aos direitos reconhecidos, como um instrumento construcionista, na perspectiva de que através do devido processo legal os demais direitos fundamentais ganharam corpo e delimitação.
Isso porque, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, a aplicação do princípio do devido processo legal remete à ideia de justiça, norteada por valores como igualdade, ética, efetividade, cooperação e, principalmente, proteção do indivíduo que, de outro modo, restaria impotente diante do poder estatal e diante das forças econômicas que sobre ele incidem.
Melhor explicando esse duplo papel, é preciso esclarecer que o primeiro sentido, o formal, pode ser compreendido como forte apelo protetivo de direito processual, cujo foco restaria direcionado à produção normativa, à produção de códigos processuais, regimentos internos de tribunais no tocante ao andamento dos processos, cujo conjunto produz diretrizes voltadas para a realização de um processo que é, simultaneamente baseado na necessidade de resguardar os direitos fundamentais como também fundado na necessidade social de trazer solução pacificadora aos conflitos inerentes à interação humana.
Já no tocante ao segundo sentido, temos que é a partir do ambiente formado pela discussão segundo os moldes do devido processo legal que muitos dos direitos fundamentais_ notadamente os direitos civis e políticos e os de solidariedade (da terceira dimensão) foram compreendidos e delimitados. É por meio do devido processo legal que se torna factível trazer à realidade jurídica aspectos de equidade, razoabilidade e proporcionalidade, por vezes, suplantando aspectos francamente injustos da legislação.
E se o conceito indefinido do princípio do devido processo legal possibilitou a evolução do instituto na Suprema Corte Norteamericana, no Brasil a dimensão substancial do princípio do devido processo legal adquiriu um aspecto peculiar: ele passou a ser o fundamento constitucional para a aplicação dos deveres da proporcionalidade e da razoabilidade.
Não se pretende enredar pela discussão teórica e doutrinaria de renomados juristas como Humberto Ávila (2008, p. 56), que avaliam se essa é a medida mais adequada para usar esse instituto, o fato é que a relação entre devido processo legal, proporcionalidade e razoabilidade faz parte das decisões da nossa Corte superior o que pode ser observado em diversos casos.
Como exemplo dessa aplicação, podemos citar o informativo do STF n. 381 que tornou pública a decisão proferida pelo Ministro Celso de Mello, no RE n. 374.981, onde ao analisar lei de matéria tributária percebe e coíbe o abuso Estatal na produção legislativa, com fundamento no princípio do devido processo legal, aplica os princípios da razoabilidade e proporcionalidade. 8
Diante do exposto, podemos afirmar que o devido processo legal, seja em sua vertente formal ou substancial é, na ordem jurídica brasileira, um dos mais importante mecanismo de controle da efetivação dos direitos humanos, ratificados e em vigor no País, que se consubstanciaram em parâmetro de convencionalidade e identificação das leis contrárias e menos benéficas.
Conclusão
A história demonstra que nem mesmo os mais excelentes mecanismos internos constituem meios hábeis a fazerem-se valer essas liberdades. Como exemplos, podem-se mencionar as atrocidades do Holocausto, o genocídio do povo Armênio pelas autoridades turcas, o Holodomor soviético. De forma menos dramática e sob o pretexto de assegurar a segurança coletiva e, indiretamente, as liberdades individuais do povo, é possível citar a política estadunidense de 2002 que negava aos membros da Al Qaeda as proteções asseguradas pelo Direito Internacional Hunanitário9, o Military Commissions Act of 2009 (assinado por Obama, então presidente dos EUA, segundo o qual se proibia a tortura como meio de obtenção de provas, permitindo, contudo, que sua Secretaria de Defesa adotasse exceções a essa regra)10, dentre outros.
Contudo, se hodiernamente discute-se a ampliação dos direitos humanos a uma quarta dimensão, se atualmente as ações afirmativas ganharam corpo e o espírito de solidariedade tem impulsionado gerações na tentativa de construir uma sociedade cada vez mais justa, igualitária e segura para todos; não obstante tudo isso, é possível perceber que, ainda nos dias atuais, são constantes os ataques justamente às liberdades, à própria ideia de limitação de poder, em uma corrente quase maquiavélica movida pelo anseio de proteger diligente e eficientemente.
Apenas a título de exemplo, é notável o quanto a liberdade de administrar riscos, contraposta ao dever geral de cuidado, é ignorada_ a ponto de obrigar-se por lei afixar plaquetas de advertência a usuários de elevador (alertando a estes para que verifiquem se o elevador encontra-se parado no andar, antes de tentarem nele adentrar ). Outro exemplo está nas leis que regulam o FGTS, impedindo ao cidadão a liberdade de administrar o recurso da forma que lhe parecer mais sábia, mas a título de resguardar-lhe a dignidade em caso de desemprego. É possível perceber até mesmo um index prohibitorum aplicável ao léxico para combater conceitos potencialmente preconceituosos (tolhendo liberdade de expressão).
E se for o Estado a desrespeitar tais liberdades, caberá então à comunidade internacional o dever de reafirmar esses direitos-liberdades, por pressão política, Tribunais Internacionais, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos e, em situações ainda mais extremas, submissão do caso e seus responsáveis diretos à Jurisdição do Tribunal Penal Internacional, conduzindo à ideia de um controle jurisdicional supranacional de direitos humanos.
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1 “The most prominent values and ideals for the purposes of human rights are human dignity, individual liberty and personal equality. We might refer to these as the secular Trinity of the human rights corpus.”
2 “In the twentieth century we became accustomed to thinking of individual rights and human rights as synonymous – individuals have certain rights because they are moral beings with certain capacities that need protecting or satisfying, and since all human beings (regardless of class, sex, or race) have these qualities, individual and human rights are taken to be one and the same thing. Yet for most of the political history of individual rights, no such association has existed. Individuals have repeatedly asserted rights on the grounds that they are fully developed moral and political agents while simultaneously denying such status and rights to other human beings.”
3 “As expressões Direitos do Homem, Direitos Fundamentais e Liberdades Públicas têm sido, equivocadamente, usadas indistintamente como sinônimos. Em verdade, guardam entre si, de rigor, apenas um núcleo comum, a liberdade”.
4 “O direito a iguais liberdades subjetivas de ação concretiza-se nos direitos fundamentais, os quais, enquanto direitos positivos, revestem-se de ameaças de sanções, podendo ser usados contra interesses opostos ou transgressões das normas. Nesta medida, eles pressupõem o poder de sanção de uma organização, a qual dispõe de meios para o emprego legítimo da coerção, a fim de impor o respeito às normas jurídicas. Neste ponto, surge o Estado, que mantém como reserva um poder militar, a fim de ‘garantir” seu poder de comando. A pretensão a iguais direitos, numa associação espontânea de membros do direito, pressupõe uma coletividade limitada no espaço e no tempo, com a qual os membros se identificam e à qual eles podem imputar suas ações como partes do mesmo contexto de interação. A fim de constituir-se como comunidade de direito, tal coletividade precisa dispor de uma instância central autorizada a agir em nome do todo. Isso atinge o aspecto da auto-afirmação sob o qual o Estado instaura sua capacidade para a organização e auto-organização destinada a manter, tanto para fora como para dentro, a identidade da convivência juridicamente organizada.” (HABERMAS, 1929. p. 171).
5 “It is “the fundamental instrument for safeguarding individual freedom against arbitrary and lawless state action.”.”, FEDERMAN (2006. p. 1) ao citar Harris v. Nelson, 394 U.S. 286, 290–92 (1969).
6 – “No período clássico romano (27 a.C. a 284 d.C.), qualquer cidadão podia se valer de uma ação chamada interdictum de libero homine exhibendo para exigir a exibição pública do homem livre que estivesse ilegalmente preso, assim considerado quando o sequestrador agia com dolus malus. A medida impunha ao detentor a obrigação de exibir materialmente a pessoa detida diante do pretor, “de maneira que pudesse ser visto e tocado”. O interdicto romano, contudo, só era efetivo contra ações de particulares, não contra o poder de império do Estado.” (TORON, 2017. p. 37).
7 No original: “(…) And an act of Congress which deprives a citizen of the United States of his liberty or property, without due process of law, merely because he came himself or brought his property into a particular Territory of the United States, and who had committed no offense against the laws, could hardly be dignified with the name of due process of law. *Human and civil rights : essential primary sources / K. Lee and Brenda Wilmoth Lerner, editors. United States of America. ISBN 1-4144-1262-2 p. 299
8 Não se pode perder de perspectiva, neste ponto, em face do conteúdo evidentemente arbitrário da exigência estatal ora questionada na presente sede recursal, o fato de que, especialmente quando se tratar de matéria tributária, impõe-se, ao Estado, no processo de elaboração das leis, a observância do necessário coeficiente de razoabilidade, pois, como se sabe, todas as normas emanadas do Poder Público devem ajustar-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do “substantive due process of law” (CF, art. 5º, LIV), eis que, no tema em questão, o postulado da proporcionalidade qualifica-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais, consoante tem proclamado a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RTJ 160/140-141 – RTJ 178/22-24, v.g.):
“O Estado não pode legislar abusivamente. A atividade legislativa está necessariamente sujeita à rígida observância de diretriz fundamental, que, encontrando suporte teórico no princípio da proporcionalidade, veda os excessos normativos e as prescrições irrazoáveis do Poder Público.
O princípio da proporcionalidade – que extrai a sua justificação dogmática de diversas cláusulas constitucionais, notadamente daquela que veicula a garantia do substantive due process of law – acha-se vocacionado a inibir e a neutralizar os abusos do Poder Público no exercício de suas funções, qualificando-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais.
A norma estatal, que não veicula qualquer conteúdo de irrazoabilidade, presta obséquio ao postulado da proporcionalidade, ajustando-se à cláusula que consagra, em sua dimensão material, o princípio do substantive due process of law (CF, art. 5º, LIV). (Acesso em: http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo381.htm)
9 “In early 2002, the administration struggled within itself over the Geneva Conventions and alien detainees. The State Department favored adhering to the treaty, whereas the Defense Department and, most likely, the CIA argued against this approach. On January 9, 2002, the Defense Department general counsel, William J. Haynes II, received a memo from Deputy Assistant Attorney General John Yoo and Justice Department special counsel Robert J. Delahunty, which read that “It is clear . . . that members of the al Qaeda terrorist organization do not receive the protections of the laws of war. . . . Taliban militia detainees also do not receive the protections of the laws of war because the Taliban was not the de facto government of Afghanistan.” Although Afghanistan was a signatory since 1946, the Conventions did not apply to the Taliban, a “failed state.” White House Counsel Alberto Gonzales soon echoed this line. A White House memo in February 2002, kept secret until June 2004, insisted that the president could suspend the Geneva Conventions and that Taliban detainees were “unlawful combatants.” In January 2002, Gonzales provided a memo to President Bush reassuring him that the Third Geneva Convention did not apply to war with al Qaeda. Gonzales found arguments for adhering to Geneva “unpersuasive” in this “new kind of warfare.” On the day Guant´anamo opened, Rumsfeld said publicly, “Technically, unlawful combatants do not have any rights under the Geneva Convention.” He did offer some weak assurances that on its own good graces the administration would practice restraint: “We have indicated that we plan to, for the most part, treat them in a manner that is reasonably consistent with the Geneva Conventions, to the extent they are appropriate.” Throughout 2002, the administration’s lawyers and advisers exchanged memos that went even further in upholding nearly unlimited presidential authority, including the power to override all laws and treaties, the effective exemption of all CIA interrogators from any anti-torture laws, and the notion that during the “asymmetrical” war on terror, other branches must defer to the executive.” (GREGORY, 2013. p.203).
10 Warren Richey, “Obama Endorses Military Commissions for Guant´anamo Detainees,” The Christian Science Monitor, October 29, 2009. – “In October, Obama signed the Military Commissions Act of 2009 into law, providing for military commissions for terror suspects at Guant´anamo Bay. As with the Bush administration, Obama effectively reasserted his executive authority against the court system, purporting to legalize a system that stood on shaky constitutional ground. The law excluded the use of evidence obtained through torture, although a loophole allowed the secretary of defense to make exceptions. Jameel Jaffer, director of the ACLU’s National Security Project, remarked that “the new law addresses some of the defects of the military commissions [but] fails to bring the tribunals in line with the Constitution and the Geneva Conventions.” (GREGORY, 2013. p. 261.)
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