Rick Leal Frazão
Resumo: Trata da desnecessidade da audiência de ratificação nos processos de divórcio consensual após a entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil. Confrontou-se a evolução histórica do divórcio com o regramento constitucional e legal vigentes, notadamente a máxima efetividade da Emenda Constitucional nº 66/2010, o princípio da legalidade, a razoável duração do processo, a economia processual, a executividade dos documentos referendados pelos advogados das partes e a possibilidade de supressão por negócio jurídico processual, associados à jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Concluiu-se que o ato é dispensável, salvo quando o juiz observar nos autos suspeita de vício da vontade ou outra questão concernente à legalidade do ato.
Palavras-chave: Divórcio Consensual. Audiência de Ratificação. Novo Código de Processo Civil.
Abstract: Treats about the need of the ratification hearing in the consensual divorce proceedings after the entry into force of the New Code of Civil Procedure. The historical evolution of divorce was confronted with the current constitutional and legal rules, notably the maximum effectiveness of Constitutional Amendment nº 66/2010, the principle of legality, the reasonable length of the process, the procedural economy, the compliance of the documents subsigned by lawyers of the parties and the possibility of supression by legal deals, associated with the jurisprudence of the Superior Court of Justice. It was concluded that the act is dispensable, except when the judge observes in the records suspected of a vice of the volition or other question concerning the legality of the act.
Keywords: Consensual Divorce. Ratification Hearing. New Code of Civil Procedure.
Sumário: Introdução. 1. Breve histórico do divórcio no Brasil. 2. Divórcio consensual x divórcio litigioso. 3. Desnecessidade da audiência de ratificação. 3.1. Ausência de previsão legal. 3.2. Impossibilidade de regulamentação via norma infralegal. 3.3. Máxima efetividade do art. 226, §6º, da Constituição Federal. 3.4. Razoável duração do processo e economia dos atos processuais. 3.5. Juízo de conveniência e oportunidade x juízo de legalidade. 3.6. Objetivo da audiência de ratificação no processo de divórcio. 3.7. A executividade do instrumento de transação referendado pelos advogados das partes. 3.8. Participação do Ministério Público e jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. 3.9. Exclusão da audiência de ratificação via negócio jurídico processual. 4. Possibilidade de designação excepcional de audiência de ratificação. Conclusão.
Introdução
O Código de Processo Civil de 1973 (BRASIL) continha previsão de obrigatoriedade da audiência de ratificação no rito da separação consensual, a qual era utilizada analogicamente para reger os casos de divórcio consensual.
O Novo Código de Processo Civil (BRASIL, 2015), por sua vez, não trouxe previsão do referido ato, mas, por outro lado, o texto não fez questão de expressamente repudiar a sua prática.
Diante disso, foi verificada a ocorrência de celeuma processual, visto que alguns juízes designam audiência de ratificação e outros não, o que viola a segurança jurídica e a previsibilidade dos atos judiciais.
As repercussões da permanência ou expurgo desse ato em termos de tempo e dinheiro podem ser enormes, tanto para o Poder Judiciário quanto para as partes envolvidas no processo.
Dito isso, o presente trabalho tem por objetivo investigar se ainda existem fundamentos jurídicos que subsidiem a manutenção das audiências de ratificação nos processos de divórcio consensual.
Para este fim, foi realizada análise histórica das normas em confronto com o arcabouço normativo constitucional e infraconstitucional ora vigente, tendo como referenciais teóricos a Teoria Tridimensional Realiana, a Teoria Dworkiniana quanto à natureza do Direito e o seu modelo de regras, a Crítica Hermenêutica do Direito de Streck, a nova principiologia processual civil esclarecida por Didier e as tendências jurisprudenciais do Superior Tribunal de Justiça.
1 Breve histórico do divórcio no Brasil
Para falar de divórcio, em primeiro lugar, é imprescindível entender que o Brasil foi uma colônia de exploração portuguesa, o que significa que como qualquer colônia dessa espécie o ordenamento jurídico brasileiro inicialmente foi importado de sua metrópole.
O Direito Português da época era composto por sucessivos compêndios legais denominados ordenações, primeiro as Afonsinas, depois as Manuelinas e por último as Filipinas. Maciel (2006) assevera que estas últimas eram na verdade um grande apanhado legislativo que continha a transcrição das ordenações anteriores e das leis extravagantes vigentes à época.
As leis portuguesas sofreram grande influência não só do Direito Romano, que foi a base para os ordenamentos jurídicos da maior parte dos países europeus, mas também do Direito Canônico, que inclusive era fonte subsidiária do Direito Português, tendo primazia naquilo que dizia respeito ao pecado (SILVA, 1991, p. 275).
No Brasil, estes intrincados estatutos legais vigeram durante largo período e, mesmo depois da independência, permaneceram influindo de modo contundente no Direito do Brasil Imperial.
Diante da forte influência católica, o casamento, visto como sacramento e não como instituto jurídico secularizado, permaneceu indissolúvel até a promulgação da Emenda Constitucional n. 09 de 1977 (DELGADO, 2017).
Antes disso, o avanço das legislações sobre o tema foi paulatino, incluindo, segundo o IBDFAM (2007), a apreciação da nulidade do casamento e da dispensa dos impedimentos matrimoniais pela autoridade civil (Decreto 1.144/1861) e a possibilidade de separação de corpos nos casos de adultério, sevícia, injúria grave, abandono voluntário do domicílio conjugal ou mútuo consentimento dos cônjuges, se fossem casados há mais de dois anos (Decreto 521/1890).
Apesar da separação formal do Estado e da Igreja ocorrida com a Proclamação da República, a influência eclesiástica e religiosa ainda prevaleceu durante muito tempo e, mesmo com a possibilidade legal do divórcio, na prática ele restava dificultado pela necessidade de prévia separação judicial, a qual perdurou até a promulgação da Emenda n. 66/2010 (BRASIL), já sob a égide da Constituição Federal de 1988 (BRASIL).
Desde 2010, o divórcio constitui direito potestativo do cônjuge, ou seja, para que se proceda ao divórcio basta a simples vontade declarada de fazê-lo, prescindindo da implementação de quaisquer outras condições (OSORIO, 2011, p. 21).
2 Divórcio consensual x divórcio litigioso
Tanto sob o Código de Processo Civil de 1973 (BRASIL) quanto sob o de 2015, o divórcio poderia ser realizado de duas formas: consensual ou litigiosa, a primeira ocorre quando há pleno acordo entre os cônjuges sobre os termos do divórcio e a segunda quando há discordância em pelo menos um dos pontos.
A diferença é grande, pois o divórcio consensual é procedimento que se submete aos ditames da jurisdição voluntária, ao passo que o litigioso é decidido no bojo da jurisdição contenciosa.
O Estado, ao assumir o monopólio do uso legítimo da força (WEBER, 1919), tomou para si a função de pacificar os conflitos surgidos entre seus cidadãos, o que em um Estado de Direito se dá nos termos da lei, ou seja, ao Estado cabe, diante de uma lide perante ele deduzida, dizer o Direito no caso concreto (CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, 2012, p. 32). Esta é a jurisdição contenciosa.
Entretanto, não obstante inexista conflito a pacificar (PRATA, 1979, p. 11), a lei determina que em certos casos a relevância dos direitos tutelados é tão grande que se faz necessária a atuação do Poder Judiciário como órgão homologador. O divórcio, que trata de direitos da personalidade e não raro inclui menores, é um desses casos.
Apesar disso, desde o advento da Lei n. 11.441/2007 (BRASIL) é possível realizar o divórcio consensual em cartório por escritura pública, nos casos em que não houver filhos menores ou incapazes. O Novo Código de Processo Civil (BRASIL, 2015) manteve essa possibilidade, acrescentando o requisito de que não haja nascituro (art. 733).
O art. 1.122 do Código de Processo Civil de 1973 (BRASIL), que fala sobre a separação judicial, mas era aplicado ao divórcio consensual por força do art. 34, caput, da Lei do Divórcio (BRASIL), estabelecia como parte integrante e obrigatória do procedimento a chamada audiência de ratificação:
“Art. 1.122. Apresentada a petição ao juiz, este verificará se ela preenche os requisitos exigidos nos dois artigos antecedentes; em seguida, ouvirá os cônjuges sobre os motivos da separação consensual, esclarecendo-lhes as conseqüências da manifestação de vontade. § 1º Convencendo-se o juiz de que ambos, livremente e sem hesitações, desejam a separação consensual, mandará reduzir a termo as declarações e, depois de ouvir o Ministério Público no prazo de 5 (cinco) dias, o homologará; em caso contrário, marcar-lhes-á dia e hora, com 15 (quinze) a 30 (trinta) dias de intervalo, para que voltem a fim de ratificar o pedido de separação consensual. § 2º Se qualquer dos cônjuges não comparecer à audiência designada ou não ratificar o pedido, o juiz mandará autuar a petição e documentos e arquivar o processo”
O Novo Código de Processo Civil (BRASIL, 2015), contudo, não trouxe a previsão desta audiência, limitando-se a dizer o seguinte:
“Art. 731. A homologação do divórcio ou da separação consensuais, observados os requisitos legais, poderá ser requerida em petição assinada por ambos os cônjuges, da qual constarão: I – as disposições relativas à descrição e à partilha dos bens comuns; II – as disposições relativas à pensão alimentícia entre os cônjuges; III – o acordo relativo à guarda dos filhos incapazes e ao regime de visitas; e IV – o valor da contribuição para criar e educar os filhos. Parágrafo único. Se os cônjuges não acordarem sobre a partilha dos bens, far-se-á esta depois de homologado o divórcio, na forma estabelecida nos arts. 647 a 658”
Como o novo código não se pronunciou expressamente sobre a inexistência do referido ato, alguns juízes ainda seguem marcando e realizando audiências de ratificação.
O presente trabalho tem por objetivo verificar se há justificativa jurídica plausível para que este ato processual permaneça ocorrendo, o que se fará analisando o texto legal vigente, a partir do cotejo entre a evolução histórica do instituto e o arcabouço principiológico instituído pela nova sistemática processual civil.
3 Desnecessidade da audiência de ratificação
Antes de se iniciar a análise quanto à necessidade da realização da referida audiência, é importante frisar que Direito é uma questão de princípios (DWORKIN, 2010), isto é, argumentos de ordem política, moral ou teleológica não se prestam a fundamentar decisão que determine a ocorrência do referido ato.
O cidadão ao buscar o Poder Judiciário, ainda que no âmbito da jurisdição voluntária, espera um provimento judicial cujo conteúdo seja deontológico e não axiológico (STRECK, 2013), em outras palavras, não se quer saber o que o juiz acha, se é bom ou ruim, justo ou injusto, certo ou errado, o que interessa é saber se é proibido, permitido ou obrigatório, nos termos do que prevê o ordenamento jurídico.
Em um Estado Democrático de Direito o que impera é a lei, a qual é forjada no âmbito do Parlamento e por isso se reveste da mais profunda legitimidade democrática, ao passo que a jurisdição se legitima apenas de modo indireto, à medida em que se demonstra de forma lógica e racional que o provimento judicial, no caso concreto, decorre hermeneuticamente da lei (STRECK, 2015).
Por isso, a necessidade ou desnecessidade da audiência de ratificação só pode ser aferida a partir de parâmetros jurídicos, os quais se passa a perscrutar.
3.1 Ausência de previsão legal
Antes de 18 de março de 2016, por força do princípio da especialidade, previsto no art. 2º, §2º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB (BRASIL) as questões relativas ao divórcio eram disciplinadas pela lei mais específica, qual seja, a Lei 6.515 de 1977, mais conhecida como Lei do Divórcio.
Até então, o art. 34 da Lei do Divórcio (BRASIL) previa que nos casos de separação judicial consensual se aplicavam os arts. 1.120 a 1.124 do Código de Processo Civil de 1973 (BRASIL). Como inexistia dispositivo específico que tratasse do divórcio consensual, os intérpretes lançavam mão deste dispositivo analogicamente para aplicá-lo ao divórcio.
Com a entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil (BRASIL, 2015) em 18 de março de 2016, o divórcio consensual passou a ser integralmente disciplinado nos arts 731 a 734 do novo código.
O Código de Processo Civil de 1973 (BRASIL) foi integral e expressamente revogado pelo art. 1.046 do Novo Código de Processo Civil (BRASIL, 2015), o que deixaria o art. 34 da Lei do Divórcio (BRASIL) sem ter norma a qual se remeter.
Além disso, como a matéria foi inteiramente disciplinada pelo novo código, o art. 2º, §1º, da LINDB (BRASIL) conduz à conclusão de que a Lei do Divórcio (BRASIL) também foi revogada, ao menos no que diz respeito à matéria processual.
O princípio da legalidade, previsto nos arts. 5º, II e 37, caput, da Constituição Federal (BRASIL), possui aplicações diversas quando se trata do cidadão e do Estado, pois enquanto aquele não é obrigado a fazer ou deixar de fazer o que quer que seja senão em virtude de lei, este só pode fazer aquilo que a lei permite (RANGEL, 2013).
Nada mais acertado, visto que os direitos fundamentais de primeira dimensão surgiram com um nítido propósito de pôr limites à atuação estatal, resguardando o cidadão (PUCCINELLI JUNIOR, 2012, p. 22).
Ora, se o Estado não pode agir senão nas hipóteses autorizadas por lei, eis que inexiste autorização legal para designar audiência de ratificação, ficando o referido ato prejudicado pela aplicação do princípio da legalidade estrita.
Perscrutando o Novo Código de Processo Civil (BRASIL, 2015) pelo menos dois dispositivos poderiam ser invocados para subsidiar a obrigatoriedade ou ao menos a possibilidade de se designar a audiência de ratificação:
“Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: […] V – promover, a qualquer tempo, a autocomposição, preferencialmente com auxílio de conciliadores e mediadores judiciais; […] VIII – determinar, a qualquer tempo, o comparecimento pessoal das partes, para inquiri-las sobre os fatos da causa, hipótese em que não incidirá a pena de confesso”
Antes de analisar detidamente cada dispositivo, é preciso ter em conta que este artigo trata dos poderes e deveres do juiz e que a maioria esmagadora dos dispositivos do código dizem respeito à jurisdição contenciosa, por isso nem tudo poderá ser aplicado a ferro e fogo na jurisdição voluntária.
O primeiro dispositivo (art. 139, V) prevê o dever de promover a conciliação, que é parte essencial do espírito do novo código e inclusive passou a integrar sistematicamente o rito comum e o rito especial das ações de família.
Ocorre que a autocomposição, enquanto meio de resolução de conflitos, só é necessária quando há um conflito a dirimir e a inexistência de dissensão é o pressuposto básico para o divórcio consensual, o que torna esse dispositivo inaplicável ao caso concreto.
Mas, alguém poderia perguntar: Só há divórcio porque há conflito! Então como não seria admissível a autocomposição? A resposta para essa pergunta se encontra no item 4.6, onde se analisa o objetivo da audiência de ratificação.
Quanto ao art. 139, VIII, do Novo Código de Processo Civil (BRASIL, 2015), o texto ao falar sobre “confissão”, deixa claro que ele se refere a um procedimento no qual há interesses contrapostos. Afinal, uma parte só busca provocar a confissão da outra, quando isso lhe interessa sob o aspecto probatório. Ainda assim, no item 5 se analisará a possibilidade de aplicação excepcional deste dispositivo para fins de designação da audiência.
Diante do exposto fica claro que sem base legal, é impossível determinar a ocorrência do ato ora discutido.
3.2 Impossibilidade de regulamentação via norma infralegal
Diante da inexistência de base legal, surge a questão: seria possível o Juiz ou o Tribunal regulamentar via Portaria ou Resolução a audiência de ratificação? Não é o que se depreende do ordenamento jurídico!
Na República Federativa do Brasil, que segue a divisão clássica de Montesquieu, o Legislativo produz as leis e o Judiciário as aplica ao caso concreto.
Como é cediço, Portarias e Resoluções não podem inovar na ordem jurídica (MELLO, 2008, p. 351), sob pena de violar a separação de poderes, prevista no art. 2º da Constituição Federal (BRASIL).
A competência para legislar sobre Direito Processual é do Congresso Nacional, na forma do art. 22, I, da Constituição Federal (BRASIL) e a competência para legislar sobre procedimento é comum ao Congresso, à Assembleia Legislativa e à Câmara Municipal em suas respectivas esferas, conforme art. 24, XI, da Constituição Federal (BRASIL).
A liberdade, aqui aplicada ao divórcio, e a razoável duração do processo são direitos fundamentais não limitáveis por norma infralegal (PAULINO FILHO, 2018), pior ainda se essa norma exceder o poder regulamentar ou normativo delegado pela legislação ordinária.
Aos juízes compete cumprir a lei, nos termos do art. 35, I, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional – LOMAN (BRASIL), e eventual norma administrativa nesse sentido constitui usurpação da função legiferante do Poder Legislativo, podendo ser atacada por Mandado de Segurança ou Procedimento de Controle Administrativo no Conselho Nacional de Justiça.
Muitas vezes, mesmo com a vigência de lei nova, os juízes passam a aplicar o novo pela perspectiva do velho, em uma clara resistência à mudança, ainda que tal mudança seja salutar.
3.3 Máxima efetividade do art. 226, §6º, da Constituição Federal
Antes da Lei do Divórcio (BRASIL), o “divórcio” existia, mas apenas em termos e isto porque ele era considerado hipótese de extinção da sociedade conjugal (aspecto patrimonial da união), mas inexistia o chamado divórcio vincular (que permitiria novas núpcias).
Após a Emenda n. 66/2010 (BRASIL), o art. 226, §6º, da Constituição Federal (BRASIL) passou a consagrar o divórcio como direito potestativo.
Reale (2002) em sua Teoria Tridimensional demonstra que o Direito é Fato, Valor e Norma e a evolução histórica, bem como a virada paradigmática introduzida pela Emenda n. 66/2010 (BRASIL), demonstram que as mudanças sociais alteraram a carga axiológica que justificava os inúmeros óbices ao divórcio.
A norma, nessa toada, não pode ser interpretada sem considerar os novos valores albergados no texto constitucional para fins de redefinir o tratamento jurídico que se dava aos fatos.
Aqui não se utiliza a ponderação como standard retórico e nem se lança mão de argumentos de autoridade para assentar as premissas, mas sim se verifica que, Vossa Excelência, o texto, determina de modo cristalino que o divórcio é direto.
O princípio hermenêutico da máxima efetividade da norma constitucional prevê que deve ser adotada a interpretação que dê à norma a maior repercussão possível no mundo fático (SARMENTO, 2012, p. 358), o que significa que a audiência de ratificação, por ser etapa dispensável, constitui óbice inconstitucional ao divórcio direto, na medida em que burocratiza e atrasa o procedimento.
Entender pela obrigatoriedade da audiência de ratificação seria retroceder no tempo, repristinando um dispositivo de artificialidade ímpar, tal como era a obrigatoriedade de 2 anos de separação antes do divórcio. Como se uma audiência de alguns minutos perante juiz togado e em meio à austeridade dos tribunais pudesse reconstituir um vínculo familiar muitas vezes ferido de morte há anos.
Por isso é que a audiência de ratificação é incompatível com o novo tratamento constitucional dado ao divórcio desde 2010.
3.4 Razoável duração do processo e economia dos atos processuais
Atendendo ao que já dizia Rui Barbosa (2004, p. 47), segundo o qual “justiça tardia não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”, o poder constituinte derivado produziu norma, albergando no art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal (BRASIL) o princípio da razoável duração do processo.
Trata-se de norma de eficácia imediata, cujo conteúdo compreende uma duração que não seja tão célere a ponto de comprometer os fins do processo e nem tão lenta a ponto de prejudicar a entrega da prestação jurisdicional (DIDIER JUNIOR, 2015, p. 93-96).
É fato notório que, na prática, a efetividade desta norma encontra maior resistência em relação a celeridade dos feitos, haja vista o histórico problema da morosidade do Judiciário.
Ao mesmo tempo, o Judiciário também se encontra vinculado pelo princípio da economia processual, que prevê o exercício da atividade jurisdicional com o melhor custo benefício, ou seja, mais resultados com o mínimo esforço, evitando gastos desnecessários de tempo e dinheiro (DIDIER JUNIOR, 2015, p. 101-102).
Diante desses imperativos constitucionais, pergunta-se: seria a audiência de ratificação um ato processual econômico que realmente confere razoabilidade ao tempo de duração do processo?
Ao que parece, a sua manutenção no ordenamento apenas onera o orçamento do Judiciário e as próprias partes, além de abarrotar as já assoberbadas pautas de audiência, retardando a entrega efetiva da prestação jurisdicional.
3.5 Juízo de conveniência e oportunidade x juízo de legalidade
A doutrina é unânime ao dizer que o divórcio é um direito potestativo, ou seja, é incontroverso e não admite contestação, podendo a parte exercê-lo quando quiser (FÜHER, 2010).
Isso significa que mesmo nos processos de divórcio contencioso, o que se discute não é o direito ao divórcio em si, mas os reflexos jurídicos e patrimoniais do exercício desse direito, tais como meação, guarda dos filhos e pensão alimentícia.
A jusfundamentalidade do direito ao divórcio tem suas raízes no direito à liberdade, entendido em sua acepção mais ampla, afinal, ninguém pode ser obrigado a permanecer em um relacionamento com outra pessoa se assim não desejar.
O direito ao divórcio reveste-se, nesses termos, de jusfundamentalidade e de caráter potestativo, na medida em que atende à autonomia da vontade privada.
Seria possível traçar um paralelo com o que ocorre no Direito Administrativo quanto aos atos discricionários, nos quais a conveniência e a oportunidade, ou seja, o mérito do ato administrativo não podem ser objeto de modificação nem mesmo pelo Judiciário, dada a separação de poderes (DI PIETRO, 2013, p. 226).
Por semelhante modo, o direito potestativo ao divórcio confere ao seu detentor a discricionariedade quanto ao seu exercício, em outras palavras, compete ao casado e exclusivamente a ele decidir se e quando quer se divorciar, não podendo o Estado-juiz interferir no mérito dessa decisão, sob pena de infringir o núcleo intangível deste direito fundamental.
Nesse quesito, tendo em vista o grau de intimidade da situação fática disciplinada pela norma, há de se ter em conta o parâmetro da intervenção estatal mínima nas relações privadas.
Não se pode olvidar que as normas que limitam direitos fundamentais devem ser interpretadas de modo restritivo, sendo dessa maneira impossível fazer intepretação extensiva para fins de fundamentar a designação de audiência ratificatória.
No mesmo sentido, não se pode lançar mão da analogia, porque ela é um mecanismo integrativo e não interpretativo, logo imprescinde de lacuna normativa para que possa ser utilizada, o que não é o caso, uma vez que o Novo Código de Processo Civil (BRASIL, 2015), seguindo as balizas fincadas pela Emenda n. 66/2010 (BRASIL), suprimiu propositadamente a audiência de ratificação.
O Judiciário, nesses termos, possui competência apenas para controlar a legalidade do divórcio, à semelhança do que ocorre na disciplina dos contratos, em que o juiz só pode alterar as disposições contratuais atendendo a normas cogentes de ordem pública que operem sob o manto de um imperativo constitucional.
3.6 Objetivo da audiência de ratificação no processo de divórcio
O princípio da instrumentalidade das formas deixa claro que o processo e o procedimento não são fins em si mesmos, mas se voltam ao propósito de dar cumprimento à legislação substantiva.
Ora, se não cabe ao Poder Judiciário fazer juízo de conveniência e oportunidade do divórcio, então para que serve a audiência de ratificação? Serviria o processo de divórcio para garantir a pacificação social ou para promover a continuidade do matrimônio?
Diante das mudanças normativas ocorridas de 2010 até a presente data, bem como as viradas paradigmáticas e doutrinárias, conclui-se que o casamento já não é mais visto, ao menos pela perspectiva do Direito, sob a ótica sacramental, mas sim enquanto instituto jurídico secularizado no âmbito de um Estado laico.
Logo, entender que a audiência de ratificação se presta a promover a manutenção do matrimônio ou reatar o relacionamento entre as partes é uma concepção historicamente anacrônica (GOMES, 2009), além de pragmaticamente inútil.
Mais que isso, é de uma inocência infantil, afinal, a despeito dos inúmeros conhecimentos adquiridos ao atuar na área de família, juízes, promotores e advogados não se confundem com psicólogos, terapeutas, padres ou pastores. Se o objetivo do legislador fosse manter o matrimônio, a lei determinaria procedimento com prévia passagem ou aconselhamento por estes profissionais.
O Poder Judiciário não dispõe de tempo e nem de recursos para esse tipo de aconselhamento, mesmo nas câmaras de mediação.
Diante disso, resta evidente que o propósito da audiência de ratificação, assim como o da própria jurisdição é, ao fim e ao cabo, promover a pacificação social e não promover valores religiosos, como o matrimônio.
Não se pode olvidar que nesse contexto uma audiência de ratificação, pode acabar reabrindo feridas, reacendendo discussões já superadas e acirrando os ânimos, pondo em xeque a autocomposição já obtida na seara extrajudicial.
3.7 A executividade do instrumento de transação referendado pelos advogados das partes
O art. 784, IV, do Novo Código de Processo Civil (BRASIL, 2015), determina que o instrumento de transação referendado pelos advogados dos transatores constitui título executivo judicial.
Assim como no artigo supra, o Novo Código de Processo Civil (BRASIL, 2015) em vários dispositivos prestigiou o advogado enquanto profissional.
Os advogados, essenciais à administração da justiça, nos termos do art. 133 da Constituição Federal (BRASIL), velam pelos direitos dos seus clientes, funcionando como os primeiros juízes da causa, ao avalizar a legalidade dos termos do acordo, no momento em que apõem suas assinaturas.
Logo, um acordo de divórcio devidamente firmado pelas partes e referendado por seus advogados constitui título executivo válido, cuja eficácia fica condicionada à homologação judicial.
3.8 Participação do Ministério Público e jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça
Sob a égide do Código de Processo Civil de 1973 (BRASIL), o Ministério Público obrigatoriamente participava e opinava nas audiências de ratificação, em especial se havia menores.
A necessária apresentação de parecer do Ministério Público não é argumento para a manutenção do ato ratificatório, visto que uma vez recebido o pedido de homologação, basta submetê-lo à análise do Ministério Público que opinará, protegendo os direitos indisponíveis, sem, contudo, intervir na conveniência e oportunidade do divórcio.
Apresentado o parecer, o juiz pode então, exercendo o juízo de legalidade, homologar o divórcio consensual sem qualquer necessidade de uma audiência de ratificação.
Mesmo antes da entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil (BRASIL, 2015), o Superior Tribunal de Justiça (BRASIL, 2015) já reconhecia reiteradamente em sua jurisprudência que, ressalvada a observância dos direitos dos menores, a ausência de audiência de ratificação não constitui causa de nulidade do divórcio consensual (BRASIL, 2017).
Tais precedentes se somam à nova redação do Código de Processo Civil para evidenciar a dispensabilidade do ato sob exame.
3.9 Exclusão da audiência de ratificação via negócio jurídico processual
A nova principiologia processual civil prevê necessária cooperação das partes envolvidas no processo e o respeito à sua autonomia, contemplando até mesmo a disposição sobre o procedimento (DIDIER JUNIOR, 2015, p. 120-131).
Avançando desde a clássica cláusula de eleição de foro, hoje, com base no art. 190 do Novo Código de Processo Civil (BRASIL, 2015), as possibilidades de negócio processual são inúmeras, tais como calendário processual, renúncia a recursos, distribuição do ônus da prova etc.
Há de se ressaltar que, embora os direitos discutidos na seara familiar não sejam de livre disposição, eles admitem autocomposição, pois de outro modo não seriam válidos os milhares de acordos diariamente celebrados e homologados na Justiça Comum.
Nesses termos, seria possível também com base no art. 190 do Novo Código de Processo Civil (BRASIL, 2015) que as partes acordassem entre si a dispensa da audiência de ratificação, reforçando os argumentos até aqui demonstrados no sentido de sua dispensabilidade.
4 Possibilidade de designação excepcional de audiência de ratificação
Diante de todo o exposto, estaria a audiência de ratificação inteiramente expurgada do ordenamento jurídico?
Entende-se que não e isso porque, embora o juiz não possa intervir no mérito do direito ao divórcio, pode e deve controlar a legalidade do ato, em especial no que concerne à livre manifestação da vontade.
Dito isso, verificadas circunstâncias excepcionais nos autos que conduzam à suspeita de vício da vontade, o juiz pode então, em caráter excepcional, designar audiência de ratificação com base no art. 139, VIII, do Novo Código de Processo Civil (BRASIL, 2015).
Aqui sim se admite analogia, pois a lei não previu hipótese em que no procedimento da jurisdição voluntária se identifiquem sinais de vício da vontade, o que permite o uso analógico do dispositivo concernente à jurisdição contenciosa para integrar a lacuna normativa.
Ressalte-se que esses sinais ou circunstâncias excepcionais devem ser necessariamente perceptíveis nos autos, pois o magistrado faz sempre juízo de verossimilhança dos fatos, uma vez que a verdade real não passa de uma categoria utópica que move a prática do possível em direção a um ideal ontologicamente estabelecido.
Assim, a decisão que designa a audiência de ratificação deve estar fundamentada, conforme os requisitos do art. 489, §1º, do Novo Código de Processo Civil (BRASIL, 2015) e demonstrar hermeneuticamente as peculiaridades do caso concreto que justifiquem a audiência.
Mesmo nos casos em que o Ministério Público opinar pela não homologação, o Parquet, ante o dever de fundamentação analítica extensível a todos os sujeitos do processo, deve indicar os parâmetros que entende adequados e o juiz em vez de marcar audiência (que nesse caso seria de retificação e não de ratificação) deve, em obediência ao contraditório substancial e ao princípio da não surpresa, intimar as partes para que se manifestem, possibilitando assim a adaptação do acordo às exigências ministeriais.
Conclusão
A análise da evolução histórica do divórcio resultou na conclusão de que foi modificado o viés axiológico de sua estrutura tridimensional, passando a revestir-se de natureza potestativa com base no caráter jusfundamental do direito à liberdade.
Nesses termos, a manutenção da audiência de ratificação no ordenamento jurídico constituiria anacronismo, desprovido de base legal e contrário à norma constitucional interpretada em sua máxima efetividade.
Sabendo que o Estado-juiz não pode intervir na conveniência e oportunidade do divórcio, o referido ato tornou-se inútil e passou a violar o direito à razoável duração do processo e à economia processual, visto que a audiência de ratificação não se presta a reatar ou promover o matrimônio, mas sim a assegurar a pacificação social.
A executividade dos documentos referendados pelos advogados das partes e a possibilidade de dispensa do ato ratificatório por negócio jurídico processual, reforçam sua dispensabilidade, outrora já reconhecida por reiterada jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
Nesses termos, conclui-se que, via de regra, a audiência ratificatória é incompatível com o tratamento constitucional dado ao divórcio e com a principiologia do Direito Processual Civil, podendo ser excepcionalmente admitida, mediante fundamentação adequada, sempre que o juiz observar, com base em elementos dos autos, indícios que comprometam a legalidade do ato, tais como os vícios da vontade.
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