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Empresas estrangeiras devem cumprir ordens judiciais brasileiras para compartilhamento de dados, segundo STF

Artigo pelas advogadas Michele Hastreiter e Camila Camargo*

Em sessão de 23 de fevereiro de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) deu parcial provimento à Ação Declaratória de Constitucionalidade n° 51 (ADC 51), movida pela Federação das Associações das Empresas de Tecnologia da Informação (ASSESPRO), confirmando a constitucionalidade do Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal (Mutual Legal Assistance Treaty – MLAT) entre Brasil e EUA.

As Ações Declaratórias de Constitucionalidade têm por objetivo obter confirmação da compatibilidade de uma norma com a Constituição Federal. Contudo, no caso em tela, o objetivo não era apenas que o MLAT fosse declarado constitucional, até porque inexistia grande controvérsia jurídica a respeito. Na verdade, o que se pretendia com a ADC 51 era obter uma declaração do STF de que somente as medidas de cooperação jurídica internacional elencadas no MLAT fossem admitidas para solicitação de dados de grandes empresas de tecnologia estadunidenses.

Nesse sentido, segundo a tese defendida pelas empresas de tecnologia, se um juiz brasileiro quiser obter dados sobre um perfil do Facebook para a instrução probatória de um processo penal, por exemplo, deverá fazê-lo mediante uma carta rogatória ao amparo do MLAT, solicitando os dados, no âmbito da cooperação jurídica internacional, ao Poder Judiciário dos EUA. O juiz americano poderá, então, decidir sobre sua adequação, ordenando ou não o cumprimento pela empresa com sede nos EUA.

Na atualidade, a prática das cortes brasileiras tem sido solicitar diretamente às empresas americanas ou às suas subsidiárias locais o fornecimento de tais informações. O não atendimento da ordem tem ensejado medidas patrimoniais que afetam as subsidiárias locais, responsabilizam pessoalmente os representantes da empresa estrangeira no Brasil e/ou determinam o bloqueio da plataforma digital em território nacional.

A ADC 51 é uma das ações que, ainda que indiretamente, envolve o alcance da jurisdição brasileira sobre plataformas digitais e traz à tona o necessário debate sobre sua regulamentação. Há outros casos no STF aguardando julgamento, como o da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n° 403 e da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n° 5527, que questionam a interpretação de disposições do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) e sua utilização para ordenar o bloqueio de plataformas de mensagem instantânea, como é o caso do WhatsApp.

As discussões do tema no STF ganham força em meio a grandes polêmicas sobre os efeitos nefastos das plataformas digitais (em especial das redes sociais, que se enquadram no conceito de provedores de aplicação de internet, previsto no Marco Civil da Internet) e em seu papel em casos de promoção de discurso de ódio, notícias falsas, ameaças democráticas e corrosão de consensos fundamentais. Embora tenha confirmado a constitucionalidade do MLAT, o STF decidiu por unanimidade pela possibilidade de solicitação direta de dados e comunicações eletrônicas pelas autoridades nacionais às empresas de tecnologia tanto nacionais como estrangeiras, refutando a tese defendida por tais empresas – que contaram com o ex-Ministro do STF Ayres Britto como patrono da causa e o ex-Ministro do STF e ex-juiz da Corte Internacional de Justiça (CIJ) Francisco Rezek como parecerista técnico.

Entre os argumentos mencionados no voto do Ministro relator Gilmar Mendes, destacam-se os de natureza puramente pragmática: 1) ineficiência do MLAT como mecanismo de cooperação, 2) morosidade das respostas recebidas e 3) grande quantidade de casos em que as autoridades americanas se negaram a fornecer as informações, ancoradas em justificativas previstas na legislação estadunidense. Assim, visando garantir a soberania nacional e o respeito às leis brasileiras, o Ministro Gilmar Mendes apontou para a possibilidade de as exigências serem feitas de forma direta, ressalvando a necessidade de aperfeiçoamento do quadro legislativo, com a provável aprovação da Lei Geral de Proteção de Dados para Fins Penais (LGPD Penal) e a celebração de novos acordos internacionais de cooperação.

Na prática, porém, a decisão do STF fortalece a postura não cooperativa que tem marcado os debates jurisdicionais sobre a internet, não apenas no Brasil, mas no mundo todo. Após um período de inércia dos países frente à rede mundial de computadores, considerada inicialmente como uma “terra sem lei”, a internet contemporânea tornou-se a “terra de todas as leis”, procurando cada país impor as suas normas, muitas vezes com efeitos extraterritoriais.

Para empresas estrangeiras interessadas no mercado brasileiro, a decisão do STF evidencia que é necessário cumprir as leis e ordens judiciais locais, mesmo que isso implique revelar dados cujo tratamento seja de fato realizado no exterior. O descumprimento pode levar à imposição de restrições à subsidiária local, à responsabilização do representante da empresa estrangeira no país e/ou ao bloqueio da plataforma digital em território nacional.

Em termos práticos, a decisão do STF garante exequibilidade extraterritorial para a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018 –LGPD) e o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), que em seus artigos 3° e 11, respectivamente, já estabeleciam uma aplicação além do território brasileiro. Nesse contexto, vale a ressalva de que a LGPD determina que dados pessoais tratados para fins de atividades de investigação e repressão de infrações penais estão fora de seu escopo, devendo sua regulação ser objeto de lei específica. Atualmente, está em trâmite o anteprojeto de uma “LGPD Penal”, voltada à eficácia e segurança jurídica das ações de autoridades competentes pelas atividades de investigação e repressão de infrações penais, inclusive quanto à participação em mecanismos de cooperação internacional – como o estabelecido pelo MLAT. Enfim, a transferência internacional de dados pessoais para instituições públicas estrangeiras seria admitida para fins de persecução penal.

Não há dúvidas de que combater abusos na internet, inclusive aqueles praticados por empresas que controlam a maior parte de seu “território” e os meios de comunicação digitais (especialmente por intermédio de algoritmos controlados), é uma preocupação da comunidade global. Contudo, as posturas não cooperativas dos países em seus intentos regulatórios podem ser prejudiciais à liberdade nas redes e impedir a realização de transações úteis à promoção do bem-estar global, bem como afetar a capacidade da tecnologia de fomentar o diálogo intercultural. Portanto, a decisão do STF na ADC 51 aponta para a necessidade de criação de mecanismos internacionais de cooperação jurídica e regras uniformes para a definição das balizas jurisdicionais sobre a internet.

 

*Michele Hastreiter e Camila Camargo são advogadas da área empresarial na Andersen Ballão Advocacia.

Sobre a Andersen Ballão Advocacia – Fundado em 1979, o escritório atua na prestação de serviços jurídicos nas áreas do Direito Empresarial e Comercial Internacional. Também possui sólida experiência em outros segmentos incluindo o Direito Tributário, Trabalhista, Societário, Aduaneiro, Ambiental, Arbitragem, Contencioso, Marítimo e Portuário. Atende empresas brasileiras e estrangeiras dos setores Agronegócios, Automotivo, Comércio Exterior, Energias, Florestal, Óleo e Gás, TI, e Terceiro Setor, dentre outros. Com a maioria dos especialistas jurídicos fluente nos idiomas alemão, espanhol, francês, inglês e italiano, o escritório se destaca por uma orientação completa voltada para a ampla proteção dos interesses jurídicos de seus clientes e integra os rankings de melhores bancas Análise Advocacia 500 e Chambers & Partners.

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