Matheus de Padua Vale[1]
Marcos Antônio Duarte Silva[2]
Resumo: O presente artigo tem como tema central o Estupro de Vulnerável e a valoração da palavra da vítima como risco iminente a uma condenação injusta. O estupro de vulnerável se caracteriza como uma espécie de crime praticado na clandestinidade, é praticado às escuras, longe de testemunhas, e raramente deixa traços de sua ocorrência. Neste tipo de delito, as provas são poucas, e trabalha-se com o mínimo de elementos possíveis para formular a culpa. O crime de estupro de vulnerável se encontra tipificado no Código Penal Brasileiro dentro do Capítulo II em seu artigo 217-A, ele abrange além da conjunção carnal, também a possibilidade de outros atos libidinosos diversos, o que torna carente a produção de provas, tornando-se difícil o encontro de vestígios dessas ações lascivas.
Palavras-Chave: Estupro. Valoração. Provas. Riscos. Injusta.
Abstract: This article has as its main issue of the Rape of Vulnerable and the valuation of the victim’s moral as an imminent risk of unjust condemnation. The rape of vulnerable is characterized as a kind of crime practiced going underground, is practiced occultly, far from witness, and rarely leaves traces of its occurrence. In this type of crime, the evidence is few and works with as few as possible elements to formulate the guilt. The crime of rape of vulnerable is typified in the Brazilian Penal Code within Chapter II in its article 217-A, it covers not only the carnal conjunction, but also the possibility of other libidinous acts, which makes scant production of evidence, making it difficult to find traces of these lascivious actions..
Keywords: Rape. Valuation. Evidences. Risks. Unjust.
Sumário: Introdução. 1. A trajetória do estupro ao longo da Antiguidade. 1.1. A cultura do estupro nos dias de hoje. 2. A imprescritibilidade do crime de estupro. 3. A estrutura típica da vulnerabilidade. 3.1. Erro de tipo e de proibição. 4. Declarações de crianças e adolescentes, valor probatório e depoimento sem dano. Considerações Finais. Referências.
Introdução
No Brasil, existiam diferentes legislações sobre o estupro vigentes ao longo dos anos, quais foram incorporando os discursos mais recorrentes em cada época. A primeira lei que trouxe a tipificação do estupro foi o Código Penal do Império, que vigorou entre 1831 e 1891. Nele, o estupro era julgado a partir da “honestidade da mulher violada”, havendo uma relativização do crime quando a mulher era prostituta, e se dava o perdão ao violador caso ele se casasse com a vítima. Além disso, o estupro precisava causar dor ou ter alguma consequência física mutante aparente para a mulher.
O Código Penal da República, que vigorou até 1940, trouxe a diferença entre crime de estupro e atentado violento ao pudor. O estupro seria consumado quando houvesse conjunção carnal, entendida como a penetração do pênis de um homem na vagina de uma mulher ou menina. Ou seja, não existiria possibilidade dos homens serem estuprados, e práticas sexuais sem penetração vaginal não eram consideradas como estupro. O crime deixou, naquele momento, de ser condicionado à “honestidade” da mulher, mas continuou relacionado caso a vítima fosse uma “mulher pública” ou uma prostituta
O Código Penal de 1940 é o que se encontra vigente no Brasil. Analisando-se sobre o texto desse código, é possível apontar que o crime na perspectiva histórica do período em que o código fora escrito, passava a ser tratado como uma anormalidade social e individual e que determinados indivíduos vieram a ser compreendidos como potenciais criminosos. O estupro, que ainda era entendido como conjunção carnal, e também como o atentado violento ao pudor foram categorizados como “crimes contra os costumes”. Costumes é conceituado como o que era adequado na conduta sexual em termos de pudor público. Naquele momento, a relativização do crime contra as prostitutas caiu, contudo permaneceu a ideia de que para o estupro ou o atentado violento ao pudor fossem concretizados, era necessário que existisse a violência ou grave ameaça.
A Lei no 12.015, de 7 de agosto de 2009, abordou outro entendimento do estupro. Compreendeu-se que o crime é praticado contra a pessoa e não contra os costumes, eliminou assim a ideia de atentado violento ao pudor. Toda a tentativa de interação forçada, que se dê por meio de violência ou grave ameaça, em termos de sexo ficou caracterizada como estupro, não havendo gradações de penas quanto aos chamados “atos libidinosos”, que substituíram o atentado violento ao pudor. Além disso, a lei foi mais longe no intuito de punir o crime de estupro, e criou a categoria de “estupro de vulnerável”. No código anterior, entendia-se que estupro ou atentado violento ao pudor, praticados contra menores de 14 anos ou pessoas com distúrbios cognitivos, continham presunção de violência, mesmo que sem o emprego de violência observável, presumia-se que a condição vulnerável da vítima indicava a violência. Com a legislação de 2009, a presunção de violência fora retirada e o critério de idade ficou estabelecido como suficiente para considerar estupro como qualquer interação sexual com crianças.
Conforme documentado na literatura, existem graves consequências do estupro, que são de curto e longo prazo, e se estendem no campo físico, psicológico e até mesmo econômico. Além das lesões que a vítima pode sofrer nos órgãos genitais (principalmente nos casos envolvendo crianças), quando há o emprego de violência física, muitas vezes ocorrem também contusões e fraturas que, no limite, podem levar ao vítima ao óbito. O estupro também pode gerar gravidez indesejada e levar a vítima a contrair doenças sexualmente transmissíveis (DST). Em termos psicológicos, o estupro pode redundar em diversos transtornos, incluindo “depressão, fobias, ansiedade, uso de drogas ilícitas, tentativas de suicídio e síndrome de estresse pós-traumático. A conjunção das consequências físicas e psicológicas leva ainda à perda de produtividade para a vítima, mas também impõe uma externalidade negativa para a sociedade em geral.
Ressalta-se que, analisando a prática investigativa da polícia e sobre o julgamento de crimes de estupro, é possível revelar que muitos discursos são aventados no momento de categorizar um ato sexual como estupro e de realizar a interpretação da lei. O alto arquivamento dos casos de estupro relaciona-se com a dificuldade de gerar e interpretar as provas como cabais. Conclui-se ainda que, os estupros julgados atendem a um determinado perfil de criminosos, homens desconhecidos e que haviam anteriormente praticado outros delitos. Existe ainda um perfil de homens para o qual as consequências legais previstas não são aplicadas e, nesses casos, a palavra da vítima tende a ser ainda mais desacreditada. Seriam os homens classificados como “pais de família” ou “trabalhadores”.
Dando seguimento a esta linha, é existente a possibilidade de condenação por estupro baseada na palavra da vítima, devendo, porém, ser considerados todos os aspectos que vão constituir a personalidade da vítima, os seus hábitos rotineiros, como também o seu relacionamento com o agressor e demais fatores. Nesta lógica deve ser fundamental o confrontamento das declarações que foram prestadas pela vítima frente as demais provas presentes nos autos, visto que a aceitação isolada do testemunho da vítima pode ser perigo e pouco confiável, em função da certeza que se é exigida para a condenação. Ressalta-se que a prova testemunhal é o meio de prova mais utilizado no processo penal brasileiro e, ao mesmo tempo, é o mais perigoso, manipulável e pouco confiável.
Aprofundando-se dentro do crime de estupro praticado contra vulnerável, é de se constatar que o delito criminoso é praticado longe dos olhos de possíveis testemunhas, sendo rotineiramente feito na clandestinidade e ás escuras, tornando-se difícil o encontro de traços da ocorrência. Seguindo esta linha, o testemunho da provável vítima se reveste de vital importância, diante da dificuldade de identificação de outros elementos probatórios da consumação do delito criminoso, tornando-se a palavra da vítima prova basilar para a comprovação do fato criminoso.
Os profissionais de saúde são obrigados por lei a comunicar o Conselho Tutelar ou a Vara da Infância e da Juventude nos casos de suspeita ou de confirmação de violência sexual contra menores de 18 anos. O Ministério da Saúde instrui os médicos, que após o atendimento, encaminhem as vítimas à delegacia para lavrar o Boletim de Ocorrência Policial ou submeter-se ao exame de coleta de material biológico feito pelos peritos do IML. Ainda segundo o Ministério da Saúde, o laudo do IML pode ser feito de forma indireta, com base no prontuário médico, sendo prova basilar para que se resulte na condenação do indivíduo.
Sobre a égide das declarações prestadas por crianças e adolescentes deve-se buscar o denominado depoimento sem danos, método pelo qual ouve-se a criança, por meio de profissionais (psicólogos e psiquiátricos) sendo acompanhados do magistrado e das partes envolvidas no processo, sempre à distância. Importante ressaltar que o magistrado deve-se valer de cautela para extrair os fatos de maneira objetiva e simples quando inquiridos menores de 18 anos.
Destarte é cabível apontar que crianças fantasiam e também são facilmente manipuláveis por adultos, tal situação não enseja o completo descrédito das declarações infanto juvenis, porém sua integral credibilidade não é, igualmente uma realidade, dependendo do caso concreto. A composição dos fatos, conforme as provas que foram colhidas aos autos, resultaram com que o julgador forme o seu convencimento sobre estas.
A palavra da vítima, em crimes de estupro, mesmo que se trate de criança é constituída como elemento probatório, desde que seja apresentada de forma coerente com as demais provas dos autos, como as declarações de seus genitores/responsáveis, sendo estas declarações avaliadas através de laudo psicológico, médico e psiquiátrico feito por profissionais escolhidos judicialmente.
Nesta máxima, a análise percuciente dos testemunhos confrontados com as demais provas são mais do que suficientes para que se demonstre a materialidade e a autoria delitiva.
Analisando este ponto, é oportuno expor, se estaria o judiciário abandonando procedimentos determinantes para apuração deste fato criminoso, dando possibilidade de um crime de estupro ser aceito como consumado, sem que a suposta vítima passe por exame de corpo de delito, usando-se como prova única e basilar o testemunho desta suposta vítima.
Sendo assim, a presente pesquisa tem como objetivo identificar quais outros possíveis meios de provas que podem ser utilizados pelo Judiciário para que se retire a real comprovação de materialidade e autoria deste crime tão odioso, visto que muitas das vezes o Judiciário se afasta do procedimento legal previsto para a apuração e investigação deste crime, o que resulta-se em um grande e imperioso risco de se constituir uma sentença errônea ensejando uma condenação injusta.
É importante salientar que houve um tempo em que esta prática de “sexo forçado”, ou sem consentimento, não era considerado como crime, mas se adequava aos costumes da época, isso pode ser bem notado no Império grego e Império Romano; sem contar que fazia parte de táticas de guerra violentar, a ponto de engravidar as mulheres, para descaracterizar um povo, perder a identidade como povo.
O crime de estupro não é algo que podemos chamar de novo, ao longo dos anos são constatados vários casos desta conduta criminosa, principalmente na antiguidade, época dos grandes impérios. No decorrer do Império Romano é possível se identificar o amadurecimento dos casos de estupro, que ocorriam constantemente nos períodos de guerra.
Como observa Weeber:
[…] os atos violentos de cunho sexual não eram exclusivos apenas na sociedade romana, como comprovam-se através das obras literárias que desses fatos trazem referências. Naquela época eram comuns as obras literárias, onde muitas relatavam diversos crimes que eram cometidos. Na obra Metamorphoses, de Ovídio, é possível detectar 12 casos de violência sexual, ressalta-se aqui que naquela época era dado um grande destaque quanto ao estupro praticado contra jovens, que eram justificados em razão do incontido e insaciável desejo dos deuses de que fossem praticados tais atos. (2003, p. 431).
Ainda dentro da temática dos desejos incontidos dos deuses, podemos lembrar de Júpiter, o qual assumindo a forma de Diana, enganou uma virgem e depois de assumir a sua verdadeira identidade, a violentou. Bem como o caso da virtuosa ninfa Liríope qual foi violentamente estuprada por Céfiso. Além disso, há o caso de Leucotoe, qual Apolo era apaixonado por essa ninfa virgem. Com o desejo de possuí-la, esse deus assumiu o aspecto da mãe da jovem para adentrar no quarto desta, no final deste episódio, ele consegue violentá-la sem que ela protestasse forma de negação ou defesa. Clícia, como desejava insaciavelmente Apolo acusou Leucotoe, tomada pela inveja de ter cometido adultério, esta mesmo dizendo ao pai que não quisera o estupro, foi enterrada viva pelo próprio.
Seguindo no tocante da obra de Ovídio, ressalta-se o caso de Netuno que estuprou Medusa no templo de Minerva. Como já dito anteriormente, cabe lembrar que o estupro era uma relevante forma de atuação durante o período das guerras. É interessante lembrar que, em 387 a.C., quando Roma foi conquistada pelos gauleses e várias mulheres romanas correram o risco de ser vítimas desse “direito de guerra”, os romanos criaram o estratagema de enviar numerosas escravas ao acampamento dos inimigos (WEEBER, 2003, p. 431).
No que tange à guerra, é possível trazer à memória o lendário início de Roma com o rapto das sabinas, classificado como violência sexual de massa, legitimado nessa feita, por um contexto militar caracterizado como “medida de emergência” de Roma, em razão da carência de mulheres (WEEBER, 2003, p. 431). O rapto teria sido um passo essencial para assegurar a continuidade da população da nova cidade e, posteriormente, para que fosse consumada uma aliança com os sabinos.
A violência sexual precedeu a maior parte dos grandes eventos políticos. Supostamente, Marte estuprou a virgem vestal real Sílvia, gerando Rômulo, o fundador de Roma (WEEBER, 2003, p. 209).
Destaca-se aqui a forte ligação existente na literatura, entre política e estupro. Como exemplo a violência contra Lucrécia foi o ponto chave que derrubou a monarquia e estabeleceu a república. O rapto das prostitutas romanas pelos guerreiros sabinos desencadeou a imediata ditadura. Não obstante, o estupro de Virgínia ocasionou a dissolução do segundo decenvirato e o retorno da república.
O fato destas histórias mostrarem o estupro como um impulso relevante para a ocorrência de transformações políticas, contudo demonstra-se também um importante aspecto da cultura romana, que é a forte aversão pela prática da violência sexual, repulsa esta que se iniciava pelo próprio indivíduo atingido pela violência, depois pelos seus familiares e essa característica parece relevante pela própria sociedade, que deixando de ser uma simples espectadora das tragédias, passava a atuar ativamente para fosse reparado o mal causado. Podemos imaginar, que a sociedade romana exigia uma punição ao fato criminoso, uma repressão severa, coerente com a gravidade do crime cometido.
Destaca-se, dois casos cuja narração resulta em interessantes observações sobre a resposta social diante a violência carnal. Como observa Lucrezi (2004, p. 01), os mesmos fundamentos éticos, civis e políticos da libera res publica Romanorum estão ligados de forma profunda, à repulsa da violência sexual. A conquista da liberdade realizada através de uma árdua e inexorável antítese à tirania régia, encontrou importante manifestação formal no sacro juramento de Junius Brutus aos cidadãos, no sentido de combater os tiranos e não permitir, daquele momento em diante, que alguém tivesse um poder absoluto e centralizador em Roma.
Tal fato, para esse romanista, representou a recepção do pedido antes da sua morte da honesta Lucrécia, que era mulher de Tarquinius Collatinus. Lucrécia, que era mulher de um membro da família real, foi considerada uma mulher honesta e virtuosa. Para o seu destino trágico, Sextus Tarquinius filho do rei resolveu pedir a hospitalidade de sua casa para passar uma noite. Quando todos estavam dormindo, Tarquínio entrou no quarto de Lucrécia armado e com a intenção de estupra-la. Munida exclusivamente de sua virtude, ela resistiu ferozmente no primeiro momento.
O agressor com intuito de vencer a sua resistência, ameaçou gravemente a sua reputação, que se caso não se entregasse ele iria matá-la e colocar ao lado dela o corpo nu de um escravo, e ainda diria a toda sociedade que os encontrou num abraço adúltero e por isso, os matou no ato obsceno. Diante da ameaça, Lucrécia cedeu ao estupro forçadamente. Após relatar tal fato a seu pai e a seu marido, cumpriu a última providência qual lhe restava, e suicidou-se.
Lucrécia foi violentada por Sexto Tarquínio, filho do rei Tarquínio, o soberbo, e, dessa forma perdeu o seu mais precioso bem, a honra. Seu corpo foi constrangido mas a sua alma permaneceu-se intacta, graças à sua morte. Antes do fim, a virtuosa mulher ordenou ao marido, ao pai e aos demais companheiros destes, que todos prometessem solenemente, caso fossem verdadeiros homens, que não deixariam impune a desonra sofrida, e assim eles prometeram (LUCREZI, 2004, p. 02).
É interessante observar que, mesmo confirmando a sua inocência Lucrécia apunhalou uma faca em seu coração, numa injusta punição tomada mas com o intuito de que nenhuma mulher no futuro, pudesse viver desonrosamente usando o seu exemplo trágico. E foi sobre o sangue desta mulher, castíssimo antes da violência que a fora impugnada, que Bruto jurou libertar Roma da realeza e não permitir para sempre, que houvesse nenhuma forma de reinado, ninguém mais pelo seu juramento seria rei de Roma.
Assim, os cidadãos romanos vítimas coletivas do mencionado estupro empenharam-se em vingar o castissimus sanguis de Lucrécia, tendo essa luta coincidido com a defesa da república. Com tal fato, bem demonstra a aversão social contra o ato violento. Deste momento em diante, a palavra reino passou a estar intimamente ligada às noções de violência e tirania. Por outro lado, a negação do reino passou a exprimir um significado de virtude e honra, contudo ainda restaram traços de tirania.
Segundo Vandiver (1999, p. 217-8), as histórias de Lucrécia e do rapto das sabinas não expressavam simplesmente exemplos gerais para todas as mulheres. Em oposição, eram exemplos a serem aplicados por um grupo específico de pessoas e em relação a um tipo determinado de problema. Tais discursos dirigiam-se, àquelas mulheres romanas aristocratas, bem-criadas e que viviam em busca do luxo e do prazer, contrariando a já antiquada moral das matronas e do período pré-clássico.
Desta forma, entende-se que essa lenda apresenta um forte propósito moralizante, visto que já no início da história, Lucrécia era caracterizada com todos os atributos de uma mulher honesta e virtuosa, tendo os fatos na sequência, acabando por ressaltar com maior força este seu traço distintivo. Primeiro ela rejeita com grande repulsa Tarquínio, preferindo a morte, ou seja, mais valia a morte do que a desonra que sofreria. Contudo, a sua honra seria ameaçada e para evitar tal fato horrível, o estupro é consumado, a sua honra era mais valiosa que o seu corpo. Assim, após o relato dos acontecimentos aos seus familiares, ela comete o suicídio.
Seu corpo estava manchado, mas sua alma permaneceu pura, e é justamente com essa pureza e honradez que ela justifica seu ato: sua conduta devia influenciar moralmente as demais mulheres. Para evitar que a sua justificativa sobre a coação sofrida pudesse se transformar em mera desculpa para a prática de condutas proibidas, ela decide acabar com a própria vida.
A mensagem que Lucrécia quis deixar com o seu suicídio era evidente, que uma mulher honrada não deveria hesitar em sacrificar-se para manter a própria honra, a honra da família e de todas as mulheres. Afinal, Lucrécia com seu suicídio, quis evitar que outras mulheres utilizassem a violência sexual como desculpa para praticar atos imorais.
Fica clara a repugnância que o estupro gerava naquele ambiente social. Lucrécia exigiu a promessa solene de seus familiares, que a cruel violência sofrida fosse punida. A repressão era necessária e ainda, a punição como consequência da aversão referida ultrapassou a pessoa do agressor, atingindo a própria estrutura monárquica que foi eliminada.
1.1 A cultura do estupro nos dias de hoje
O estupro é a prática não consensual do sexo, que é imposta por violência ou ameaça de qualquer natureza. Qualquer forma de prática sexual sem consentimento de uma das partes, que envolva ou não penetração, configura-se como estupro.
No Brasil, chamou-se romanticamente de “miscigenação” e de “mestiçagem” o estupro sistemático de mulheres e meninas índias, negras e mestiças, iniciado a partir da chegada dos colonizadores portugueses e perpetuando-se por séculos de escravidão. A construção de uma ideia, imagem e discurso da sensualidade “natural” da mulher brasileira morena, prepara terreno para os ataques de todo tipo contra elas, ainda mais quando as mesmas são pobres e com menos acesso a direitos e ao sistema judicial.
Consentimento é um conceito-chave para que possamos compreender e admitir que existe uma gritante diferença entre sexo e estupro. O sexo é consensual, e se for adiante sem consentimento, deixa de ser sexo e passa a se configurar como estupro.
É preciso que se leve a sério a asserção de que qualquer ato sexual que ocorra sem o consentimento de uma das partes envolvidas, vira um estupro. Apenas o sexo que é praticado com o consentimento das partes envolvidas pode ser chamado de sexo.
A pessoa pode estar embriagada, vestida de uma forma sensual, pode já ter indicado querer sexo, pode estar nua e na cama e até mesmo já ter iniciado o ato sexual. Entretanto no momento em que ela declara não querer o sexo, ou querer interromper o ato, a ação deve parar instantaneamente, pois caso continue forçadamente sem o consentimento, automaticamente se caracteriza o crime de estupro. Vale ressaltar que a ação não deve nem começar se a pessoa não estiver em condições aptas para declarar seu consentimento. O ato sexual praticado sem o consentimento não é sexo, mas sim violência, estupro.
Ainda que a prática vitime tanto homens quanto mulheres, historicamente as mulheres são as maiores vítimas, e a permanência desta padronização é o que se entende por cultura do estupro. A cultura do estupro, é aquela que normaliza a violência sexual, onde as pessoas não são ensinadas a não estuprar, mas sim ensinadas a não serem estupradas.
Segundo o dicionário, cultura é o “complexo dos padrões de comportamento, das crenças, das instituições, das manifestações artísticas, intelectuais, etc., transmitidos coletivamente, e típicos de uma sociedade”. Tomando por base tal definição, é possível entender que seria a cultura do estupro um costume ensinado aos homens.
A cultura do estupro acontece quando se duvida da vítima quando ela relata ter sofrido uma violência sexual. É relativizar a violência por causa do passado da vítima ou então de sua vida sexual. É ser mais fácil acreditar em narrativas de uma suposta malícia que é inerente as mulheres do que lidarmos com o fato de que os homens cometem um estupro.
A cultura do estupro é visivelmente corriqueira nas imagens publicitárias quais objetificam o corpo da mulher. Nos livros, filmes, novelas e seriados que insistem em romantizam o perseguidor. No momento que se acata como normal recomendar às meninas e mulheres que não saiam de casa à noite, ou sozinhas, ou que usem roupas “recatadas”, é manter padronizado a cultura do estupro no cerne da sociedade, ensinar as mulheres a não serem estupradas ao invés de ensinar o estuprador a não cometer aquele crime. Essas ações tendem a normalizar que a responsabilidade pela violência sofrida é da vítima, e não do protagonista do estupro, o estuprador.
A violência de gênero é um reflexo diretamente ligado a ideologia patriarcal, que demarca explicitamente os papéis e as relações de poder entre os homens e as mulheres. Como um subproduto do patriarcalismo, a cultura do machismo, disseminada muitas vezes de forma implícita ou sub-reptícia, tende a colocar a mulher como um objeto de desejo e de propriedade do homem, o que termina legitimando e alimentando diversos tipos de violência, entre as principais o estupro.
A mulher violentada tende a se desmerecer, “a acreditar em todos os mitos acerca dos relacionamentos violentos e no estereótipo do papel sexual prescrito às mulheres, sente culpa e aceita responsabilidade pelas ações do agressor” (Walker, 1993, p.31). Ela sobretudo, sente-se amedrontada, com medo de ir trabalhar, medo de sair, de estudar, medo de se divertir com amigas, ela é comandada pelos assassinos do feminino. A partir dessa intimidação, de ameaças, da negação ou da minimização do abuso, do isolamento, da culpabilização, dominação, do controle econômico, da manipulação dos filhos e mais abuso sexual, a mulher acaba por aprender a “pedagogia da violência”, que tem como resultado respostas de depressão severa, culpa, passividade e uma baixa autoestima desenvolvidas pelas vítimas
De afirmação, já bem pontuada em estudos sobre a cultura do estupro, é que existe um universo simbólico e de práticas que explicam e justificam a ocorrência frequente de estupros e abusos de mulheres e crianças.
Assim entende Cerqueira (2014, p. 05),
Estima-se que a cada ano, no mínimo 527 mil pessoas são estupradas no Brasil. Desses casos, apenas 10% chegam ao conhecimento da polícia. A partir dos dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) e do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus), do Ministério da Saúde, de 2011, estima-se que 88,5% das vítimas de estupro são do sexo feminino e 51% dos casos ocorrem com pessoas de cor preta ou parda. De todos os estupros que chegam à rede de saúde, 70% vitimam crianças e adolescentes. Além disso, do número total de pessoas vitimadas, mais da metade possuía menos de 13 anos.
Ainda de acordo com os dados trabalhados por Cerqueira (2014, p. 05):
Entre as crianças estupradas, 81,2% eram meninas e 18,2% meninos. O estupro de meninos tem sido invisibilizado no debate público, apesar de ser consideravelmente recorrente. A campanha #primeiroassédio voltou a chamar atenção para tais abusos. Já quando se trata de adolescentes e mulheres adultas, o fenômeno afeta quase exclusivamente pessoas do sexo feminino. Entre vítimas adolescentes, 93,6% são meninas; já entre adultos, 97,5% são mulheres. Entre agressores, destaca-se que 15% dos estupros foram cometidos por mais de um agressor. A maioria dos algozes é do sexo masculino: 96,6% no caso de estupros contra adolescentes e adultos e 92,55% no caso de crianças. O maior número de mulheres na figura de agressoras se dá no caso de estupros de crianças, 1,8%. Ainda nesse tipo de estupro, 1,28% dos casos foi cometido por pessoas de ambos os sexos, e em 4,36% dos casos, a informação era desconhecida.
Já entre os principais algozes das crianças, Cerqueira (2014, p. 06) aborda:
Em 32,2% dos casos, o estupro foi cometido por amigos e conhecidos; em 12,3%, por padrastos; em 11,8%, pelos próprios pais; e em 12,6%, por desconhecidos. No caso dos principais algozes de adolescentes, 37,8% foram praticados por desconhecidos; 28% por amigos e conhecidos; 8,4% por padrastos; 8,2% por namorados; e 5,3% por pais. Quando se trata de adultos, 60,5% foram cometidos por desconhecidos; 15,4% por amigos e conhecidos; 9,3% por cônjuges; e 4,3% por ex-cônjuges.
Por fim, de suma importância ressaltar que a cultura do estupro não é uma novidade para a discussão dos estudos de gênero e para a política das mulheres. Existem anos de produção de dados e teorias explicativas para dar conta de explicar esse fenômeno. Contudo ainda assim, a persistência dos casos e a falta de um debate público ampliado que gere maiores consequências políticas, fazem com que ainda seja fundamental produzir, discutir e pautar o debate público voltado neste tema.
Em termos gerais, parece fundamental desmantelar imaginários e práticas, como consequência, entende-se que isso é viável a partir de reformas pedagógicas acerca do desejo, assim como as reformas relacionais que façam com que mulheres e meninas sejam respeitadas como sujeito de seus desejos, e que a não vontade de ter uma relação ou uma interação erótica sexual seja suficiente para definir o que é um abuso, ou violência sofrida.
Importante salientar que não é exagero afirmar que os rumos recentes do Estado tenham como consequência resultante, o fortalecimento da cultura do estupro. Projetos de lei que abordam até mesmo o que se pode ou não ensinar para meninas e meninos e sobre feminilidades e masculinidades parecem ser integrados numa campanha político-ideológica qual visa conservar a dinâmica social de relações entre gêneros, pela qual a cultura do estupro é reproduzida e se difunde dia após dia.
E é essa cultura, compreendida como um universo de práticas e símbolos compartilhados que justifica ou minimiza a gravidade e a dimensão social do estupro e de outras formas de abuso, possibilita a naturalização corriqueira de incontáveis violações e mortes de meninas e mulheres no país vítimas de estupro e abusos sexuais.
O estupro é um crime que deixa profundas e permanentes marcas nas vítimas. Além da violência do ato em si, a ferida psicológica deixada na pessoa estuprada dificilmente cicatriza, visto que sua alma também é violentada.
Ressalta-se que a subnotificação dos crimes de estupro ocorre devido ao receio de que as vítimas têm de sofrer preconceito, superexposição ou serem revitimizadas. Visto que é comum que a vítima seja responsabilizada pela violência sofrida, com desculpas pelo horário em que estava na rua, pela roupa que vestia, pela maneira que dançava, pelo fato de ter ingerido bebida alcoólica.
É importante observar que, todavia, a coragem para denunciar um estuprador, se é que um dia apareça, pode demorar anos. Diante desse quadro, foi proposta a PEC 64/2016 que busca a imprescritibilidade do crime de estupro.
Atualmente o tempo de prescrição varia de acordo com o tempo da pena, visto ser diferente em cada caso concreto. Nos casos do estupro, o tempo de prescrição pode ser estendido em até 20 anos, e no caso de vulnerável a contagem se inicia após a vítima completar maioridade, 18 anos. Contudo, há que se questionar em face do reflexo que a imprescritibilidade do crime de estupro perante a sociedade e ao sistema jurídico, pode resultar.
Destarte ser necessário que as punições que forem estabelecidas estejam de acordo com os preceitos legais do Estado Democrático de Direito na forma da Constituição da República de 1988, não a contrariando. Existem princípios fundamentais que são norteadores de todo o sistema jurídico brasileiro, que inclusive limitam o poder do próprio Estado, sendo estes de suma importância e que devem ser observados.
O Estado retém a si o poder-dever de aplicar punição, porém este poder não pode ser ilimitado nem mesmo irrazoável, sob pena de que se atropele direitos essenciais do submetido as sanções. O jus puniendi do Estado possui algumas limitações, uma delas é a prescrição penal, qual impossibilita que instaure-se a persecução penal ou execução de uma sanção penal a um indivíduo, mesmo pela perda da capacidade de produção de provas adequadas, eternamente, eternização da possibilidade.
Conforme analisado no texto da CF de 1988, é possível verificar-se que o constituinte originário estabeleceu expressamente somente dois casos de crimes imprescritíveis, o crime de racismo e de ações de grupos armados civis ou militares contra a ordem constitucional e o Estado Democrático de Direito (incisos XLII e XLIV do artigo 5º). Sendo assim, fica clara a adoção de regra geral de prescrição aos demais crimes, considerada implicitamente um direito fundamental do submetido, que é conferido pelo próprio Estado em face do poder punitivo qual lhe é inerente.
Seguindo a linha de raciocínio sobre a imprescritibilidade, ressalta-se que os casos estabelecidos pelo poder constituinte originário, não há que se falar em inconstitucionalidade destes, visto que foram descritos pelo próprio constituinte. Todavia, quando se houver movimento do constituinte derivado reformador no sentido que se estabeleça novas normas, através de emenda à Constituição, é de praxe que se faça uma análise acerca da sua constitucionalidade, para que não seja contra os princípios fundamentais cujo conteúdo é imutável.
No entanto, a própria Carta Magna traz limitações ao poder reformador do legislador, estabelecendo condições para que seja feita sua reforma. Desta maneira, temos as imutáveis cláusulas pétreas, que estão estabelecidas no artigo 60 parágrafo 4º da CF/88, estando a prescrição revestida de proteção conforme o inciso IV do artigo supracitado, tal tratando sobre os direitos fundamentais.
Aprofundando-se no texto da PEC 64/2016, constatasse que a pretensão vital é de tornar o crime de estupro imprescritível. Tal pretensão resultará na ampliação do espectro poder punitivo do Estado, lhe garantindo o direito de punição eterno em face do indivíduo. Em consequência de tal fato, retira-se o direito fundamental à prescrição penal, que é garantia do submetido. Enfatiza-se que, nos casos de estupro que se encontram no texto legal do artigo 213 do Código Penal, a ação vai ser pública condicionada à representação, exigindo a autorização da vítima para que se inicie a ação, sendo exceção os casos do texto legal do artigo 217-A do diploma penal, onde a ação vai ser publica incondicionada.
Assim, deverá a vítima, dentro do prazo de seis meses fazer ser exercido o seu direito de representação, manifestando o seu interesse na persecução penal contra o indivíduo, sobre pena de se arguir decadência. Entende-se assim, que de nada adianta o crime sofrer mutação e se tornar imprescritível se ainda persistir a regra da ação penal pública condicionada à representação, caso a vítima assim queira, não haverá então a punição do agente doloso.
No contexto supracitado, tem-se que mesmo que o crime se torne imprescritível, não suprirá efeitos práticos caso a vítima não exerça o seu direito de representação no tempo determinado. É evidente considerar equivocada a possibilidade de retirar o prazo para a representação, transformando-a em ação incondicionada, em que pese que apenas a vítima é quem poderá decidir se quer trazer a luz todos os momentos passados na fase da persecução penal.
Nesta senda cumpre verificar que, a PEC 64/2016 finda em abolir o direito fundamental da prescrição, uma vez que estabelece de maneira indefinida a possibilidade da aplicação de pena ao indivíduo em qualquer momento. Confrontando-se assim com princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito, como a dignidade da pessoa humana, a necessidade, proporcionalidade, intervenção mínima e, com o determinado no artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV, da CR/88, qual impede a deliberação, pelo poder constituinte derivado, acerca de matéria que seja tendenciosa a abolir direitos e garantias individuais no caso em tela, a própria prescrição penal.
Conclui-se assim que se trata no fundo, de uma manifestação do Direito Penal simbólico, muito mais como um fruto do populismo do que de enfrentamento sério da questão da violência contra a mulher e a criança. Entende-se que a imprescritibilidade isolada é desprovida de sentido prático.
Dentro do campo sexual, a tutela penal se estende com um grande zelo às pessoas incapazes de externar o seu consentimento seguro e racional de forma plena. Nestes tipos de situações, não pode-se estender a tipificação completa do modelo comum de estupro, qual objetiva ter a conjunção carnal ou a prática de outro ato libidinoso com uso de violência ou grave ameaça. Em que pese as pessoas incapazes se relacionarem sexualmente naturalmente sem qualquer tipo de coação física, ressalta-se a possibilidade de ocorrer uma coação psicológica, diante do estado de impossibilidade de compreender a seriedade do ato a ser realizado.
Assim sendo, sob a base da lei anterior, fora criada uma fórmula de presunção de violência, que vinha expressamente destacada no antigo artigo 224 CP, inciso 1 onde envolvia os menores de 14 anos de idade, os débeis mentais ou alienados e aqueles que por causa diversa não pudessem oferecer resistência frente ao ato. O crime de estupro ou atentado violento ao pudor tinha sua tipificação feita por extensão, combinando o artigo 213 CP com artigo 224 CP, desta forma, era considerado violenta a relação sexual com pessoa menor de 14 anos ou que portasse outra espécie de deficiência de consentimento.
Nesta linha, surgiu-se uma grande discussão frente a qualidade da presunção de violência. Se fosse absoluta não comportava prova em contrário, e se fosse relativa possibilitava provas em contrário. Curioso debate se dava, particularmente, no contexto da idade da vítima, pois em relação as pessoas com capacidade diminuída e os alienados em geral, maioria das vezes dependia-se de prova pericial. Assim, em suma se a pessoa menor de 14 anos de idade mantivesse relação sexual com um maior de 18 anos, a vítima teria sido estuprada necessariamente, na ótica da presunção absoluta a resposta seria positiva, já na da presunção relativa dependeria de prova para que se confirmasse o estupro.
Buscando-se a solução desta dubiedade, fora construído o tipo penal autônomo do artigo 217-A CP, qual intitulou-se estupro de vulnerável. Nesta máxima, o incapaz de consentir validamente para a realização do ato sexual obteve portanto, uma denominação própria, vulnerável, aquele que é despido de proteção e passível de lesão.
Desta forma, pretende-se inserir, tacitamente e não mais falar em presunção, visto que atuava contra os interesses do réu, a coação psicológica do tipo idealizado, como retrata Nucci (2014, p. 71-72):
Proíbe-se o relacionamento sexual do vulnerável, considerado o menor de 14 anos, o enfermo ou deficiente mental, sem discernimento para a prática do ato, bem como aquele que, por qualquer outra causa, não puder oferecer resistência. Em outros termos, reproduz-se o disposto no art. 224 no novo tipo penal do art. 217-A, sem mencionar a expressão violência presumida. Entretanto, não se vai apagar a própria etimologia do vocábulo estupro, que significa coito forçado, violação sexual com emprego de violência física ou moral. Ademais, a rubrica do tipo penal traz o termo estupro de vulnerável, representando uma violação forçada no campo sexual.
Dá-se assim a união no artigo 217-A CP do contexto dos atos sexuais, onde abrange tanto a conjunção carnal cópula do pênis na vagina, quanto a dos outros atos libidinosos, nos moldes já realizados com o estupro na forma do artigo 213 CP. Fora elevada a pena para reclusão de oito a quinze anos, assim resolve-se mais uma discussão, qual consistia na incidência do aumento de pena determinado pelo artigo 9º da Lei dos Crimes Hediondos. O estupro de vulnerável recebe então uma pena superior e autônoma ao do crime de estupro comum.
É de grande valia ressaltar que, a proteção que fora conferida aos menores de 14 anos considerados vulneráveis, ainda desperta debates jurisprudenciais e doutrinários. A celeuma dos debates é voltada ao nascimento do tipo penal inédito, que não preenche as lacunas acerca do caráter relativo ou absoluto da anteriormente presunção de violência, que agora é subsumida na figura da vulnerabilidade, onde pode-se tratar da mesma como sendo absoluta ou relativa.
Como bem menciona Nucci (2014, p. 72) “durante anos debateu-se, no Brasil, o caráter da presunção de violência se relativo ou absoluto, sem consenso, a bem da verdade, não será a criação de novo tipo penal o elemento extraordinário a fechar as portas para a vida real”. Ou seja, a lei não poderá jamais, modificar a realidade quem dirá afastar a aplicação do princípio da intervenção mínima e seu correlato princípio da ofensividade.
Neste elã é possível imaginar o seguinte quadro (NUCCI, 2014, p. 72):
É viável considerar o menor, com 13 anos, absolutamente vulnerável, a ponto de seu consentimento para a prática sexual ser completamente inoperante, ainda que tenha experiência sexual comprovada? Ou será possível considerar relativa a vulnerabilidade em alguns casos especiais, avaliando-se o grau de conscientização do menor para a prática sexual? A posição que nos parece acertada é a da vulnerabilidade relativa.
Embora a anterior redação do Código Penal mencionasse a presunção de violência, Renato de Mello Jorge Silveira faz uma análise apurada do tema:
a ponderação sobre a vertente da presunção absoluta tem como raízes, de um lado, o positivismo jurídico e, de outro, o arraigado moralismo reinante na esfera penal sexual. A simples menção da presunção criou uma ideia de que aquele postulado deve ser necessariamente seguido sem maiores considerações. Nenhuma consideração deve ser tida em algo místico e sagrado, como se mostram sexo e sexualidade, ainda mais quando menores de idade Aqui, cabem duas críticas. Primeiramente a escolha aleatória de uma idade como marco fronteiriço entre a possibilidade de consenso e a presunção de violência é algo por demais arbitrário, nunca podendo ser tido de forma absoluta (2008, p. 219-220).
Em todos os casos, menores de 14 anos enfermos ou deficientes mentais, sem discernimento, ou então que seja acometido de outra causa de redução da capacidade de oferecer resistência, é fundamental que seja feita a abrangência do dolo do agente. O agente do crime precisa ter plena ciência de que a relação sexual dar-se-á com pessoa prevista em qualquer das situações descritas no artigo 217-A CP. Se tal ciência não se der, ocorrerá o erro de tipo, sendo afastado o dolo e não mais sendo possível a sua punição, visto inexistir a forma culposa do crime de estupro.
Entretanto, infelizmente tem prevalecido nos tribunais, entendimento de ser caracterizada a vulnerabilidade absoluta. Ressalta-se que inexista explicação ou fundamentação detalhada para tal postura que é adotada, a não ser por si só a pressão que é sofrida por entidades de proteção infanto-juvenil, em especial as que são contrárias à prostituição.
Afinal, entende-se nesta celeuma que a simplória redação do artigo 217-A CP não está apto, não é capaz de alterar décadas de julgados quais sempre permitiram o debate acerca da presunção de violência, se é absoluta ou se é relativa.
Por outro lado, se firmada a posição de que a vulnerabilidade é e sempre absoluta, injustiças poderão ocorrer, visto que há adolescentes que namoram precocemente e que já mantêm relação sexual, se tiverem 12 ou 13 anos de idade podem levar o seu parceiro a vir sofrer alguma espécie de sanção jurídica, sem mencionar os casos das jovens mães com 14 anos de idade ou menos.
Sendo considerada a vulnerabilidade absoluta, resultará em processar e prender a pelo menos oito anos de reclusão os companheiros dessas jovens, pais de seus filhos, o que se afigura ilógico. No lugar de preservar a família que fora formada, ocupar-se-ia o direito penal de desagregá-la por inteiro.
Neste embate jurídico sobre o entendimento da aplicação da vulnerabilidade absoluta ou da vulnerabilidade relativa, apresenta-se um trecho de um julgado do TJSP sobre o caso pertinente:
Apelação. Estupro de vulnerável. Vítima, com 13 anos de idade, mantinha relação sexual com o recorrente, à época com 20 anos, mantendo, também, relação amorosa, consistente em namoro com o mesmo, possuindo um filho juntos. Vítimas maiores de 12 anos e menores de 14: imprescindível a análise de discernimento, não devendo o magistrado, de início, enquadrar a situação como vulnerabilidade absoluta. Realidade social reveladora de contexto diverso. Consentimento pleno da ofendida devidamente demonstrado. Conduta atípica. Absolvição. Provimento. (…) In casu, apesar de a vítima ter iniciado sua vida sexual com 13 anos de idade com um rapaz, à época contando com 20 anos, restou demonstrada nos autos a relação de namoro entre ambos, sendo que a vítima frequentava a residência do recorrente e boa parte da vizinhança tinha ciência de tal relacionamento. Tanto perante a autoridade policial quanto em juízo a vítima afirmou, por diversas vezes, ter consentido com a relação, demonstrando capacidade de entender o significado de uma relação sexual, mesmo porque suas amizades variavam entre meninas de 13 a 16 anos. Destarte, a sociedade não pode vendar-se à realidade social, pois meninas iniciam a vida sexual cada vez mais cedo, seja por serem estimuladas pelos programas televisivos, cuja qualidade educacional decai periodicamente, seja por amizades de variadas idades, ou por outros motivos igualmente relevantes. Assim, restando demonstrado o consentimento pleno e não viciado da vítima, forçosa a absolvição do recorrente, com escopo na atipicidade da conduta. Ela nada fez que não tivesse vontade a tanto; não se demonstrou ser menina ingênua, sem qualquer preparo para conhecer os meandros da vida sexual; engravidou e é mãe do filho do réu, descortinandose novas responsabilidades, incompatíveis com o grau de vulnerabilidade suposto pelo tipo incriminador” (Ap. 990.10.274966-5, 16.ª C.C., rel. Guilherme de Souza Nucci, v.u.).
Quanto aos casos da vítima ser portadora de enfermidade ou deficiência mental, em verdade o legislador fora além, e acabou inserindo fatores de relativização da incapacidade de consentimento para realização do ato sexual. Mencionou, que em relação ao enfermo ou o deficiente mental: “não tem o necessário discernimento para a prática do ato”. Quer-se dizer desta forma, a contrário sensu, ser possível a realização da prática sexual desde que, para tal fato, o enfermo ou o deficiente mental manifeste o seu consentimento pleno e válido.
Ademais, na lei anterior, expressamente no artigo 224, b, CP, mencionava-se unicamente ser a vítima “alienada ou débil mental”, sem atribuir qualquer aspecto de discernimento, como se tal fosse presunção absoluta. Assim, essa é mais uma razão para fortalecer o entendimento de que quanto à idade (menor de 14 anos), está-se diante de uma vulnerabilidade relativa e não absoluta.
Se for feita uma interpretação extremamente restritiva do sujeito, termina-se por cercear a todos os que padecem de enfermidade de índole mental uma vida sexual plena, direito inerente a todos os seres humanos (TENGA, 2013, p. 59)
O tema não é de fácil resolução, em particular à luz da recomendação feita pelo Instituto Interamericano de Direitos Humanos, advertindo que a tutela do incapaz não pode se converter em uma privação do seu direito de se relacionar afetiva e sexualmente. Na realidade crua, a incapacidade ou alienação intelectual não inibe que uma pessoa desfrute do gozo ou prazer da sexualidade e talvez seja até terapeuticamente recomendado.
Contribuindo para esta dicção, encontra-se o entendimento de Villada (2008, p. 59), que traz lampejos de como pode-se solucionar esta trama a respeito do desfrute sexual dos incapazes:
Assim, quanto à incapacidade de oferecer resistência, se deve ponderar igualmente o grau da vulnerabilidade, está se sendo relativa ou se sendo absoluta. A incapacidade relativa permite que seja feita a desclassificação da infração penal para a figura do artigo 215, CP. Já a incapacidade absoluta faz incidir-se o artigo 217-A, § 1, CP.
Conclui-se que nesta celeuma sobre a vulnerabilidade ser absoluta ou relativa, encontra-se um grande embate de jurisprudências e doutrinas, assim, elenca-se alguns julgados que confirmam tal fato.
Julgados que entendem ser cabível a vulnerabilidade absoluta:
STF: “1. A jurisprudência majoritária do Supremo Tribunal Federal reafirmou o caráter absoluto da presunção de violência no crime de estupro contra vítima menor de catorze anos (art. 213 c/c art. 224, ‘a’, do CP, com a redação anterior à Lei 12.015/2009), sendo irrelevantes, para tipificação do delito, o consentimento ou a compleição física da vítima. Precedentes” (RHC 97664 AgR/DF, 2.ª T., rel. Teori Zavascki, DJ 08.10.2013, v.u.).
STF: “O entendimento desta Corte pacificou-se quanto a ser absoluta a presunção de violência nos casos de estupro contra menor de catorze anos nos crimes cometidos antes da vigência da Lei 12.015/2009, a obstar a pretensa relativização da violência presumida. (…) 3. Não é possível qualificar a manutenção de relação sexual com criança de dez anos de idade como algo diferente de estupro ou entender que não seria inerente a ato da espécie a violência ou a ameaça por parte do algoz” (HC 105558/PR, 1.ª T., rel. Rosa Weber, 22.05.2012, v.u.).
STF: “O bem jurídico tutelado no crime de estupro contra menor de 14 (quatorze) anos é imaturidade psicológica, por isso que sendo a presunção de violência absoluta não pode ser elidida pela compleição física da vítima nem por sua anterior experiência em sexo. Precedentes: HC 93.263, rel. Min. Cármen Lúcia, 1.ª T., DJe 14.04.2008, RHC 79.788, rel. Min. Nelson Jobim, 2.ª T., DJ 17.08.2001 e HC 101.456, rel. Min. Eros Grau, DJe 30.04.2010)” (HC 109206/RS, 1.ª T., rel. Luiz Fux, 18.10.2011, m.v.).
STF: “Para a configuração do estupro ou do atentado violento ao pudor com violência presumida (previstos, respectivamente, nos arts. 213 e 214, c/c o art. 224, a, do Código Penal, na redação anterior à Lei 12.015/2009), é irrelevante o consentimento da ofendida menor de quatorze anos ou, mesmo, a sua eventual experiência anterior, já que a presunção de violência a que se refere a redação anterior da alínea a do art. 224 do Código Penal é de caráter absoluto. Precedentes (HC 94.818, rel. Min. Ellen Gracie, DJe 15.08.2008)” (HC 97052/PR, 1.ª T., rel. Dias Toffoli, 16.08.2011, m.v.).
STF: “Ambas as Turmas desta Corte pacificaram o entendimento de que a presunção de violência de que trata o artigo 224, alínea ‘a’ [hoje, art. 217-A] do Código Penal é absoluta. 2. A violência presumida foi eliminada pela Lei 12.015/2009. A simples conjunção carnal com menor de quatorze anos consubstancia crime de estupro. Não se há mais de perquirir se houve ou não violência. A lei consolidou de vez a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal” (HC 101456/MG, 2.ª T., rel. Eros Grau, 09.03.2010, v.u.).
STF: “Para a configuração do estupro ou do atentado violento ao pudor com violência presumida (previstos, respectivamente, nos arts. 213 e 214, c/c o art. 224, a, do Código Penal, na redação anterior à Lei 12.015/2009 [hoje, art. 217-A]), é irrelevante o consentimento da ofendida menor de quatorze anos ou, mesmo, a sua eventual experiência anterior, já que a presunção de violência a que se refere a redação anterior da alínea a do art. 224 do Código Penal é de caráter absoluto. Precedentes (HC 94.818, rel. Min. Ellen Gracie, DJe 15.08.2008)” (HC 99993/SP, 2.ª T., rel. Joaquim Barbosa, 24.11.2009, v.u.).
Julgados que entendem caber a vulnerabilidade relativa:
STJ: “2. O delito imputado ao recorrido teria sido em tese praticado anteriormente ao advento da Lei 12.015, de 7 de agosto de 2009, que implementou recentíssimas alterações no crime de estupro. O acórdão absolutório, objeto do presente recurso especial, entendeu ser insustentável que uma adolescente, com acesso aos modernos meios de comunicação, seja absolutamente incapaz de consentir relações sexuais, o que, no entender do Tribunal a quo, implicaria responsabilização objetiva ao réu, vedada no nosso ordenamento jurídico. 3. É inadmissível a manifesta contradição de punir o adolescente de 12 anos de idade por ato infracional, e aí válida sua vontade, e considerá-lo incapaz tal como um alienado mental, quando pratique ato libidinoso ou conjunção carnal. Precedente – HC 88.664/GO, julgado em 23.06.2009 pela 6.ª Turma desta Casa e divulgado no Informativo Jurídico 400 deste Superior Tribunal de Justiça. 4. No que diz respeito à conclusão do acórdão hostilizado, no sentido de estar bem caracterizada a prova acerca do consentimento da ofendida, é defeso a esta Corte o revolvimento fático probatório, conforme Sumula 07 deste Superior Tribunal de Justiça. 5. Recurso ao qual se nega provimento” (REsp 494792/SP, 6.ª T., rel. Celso Limongi, 02.02.2010, v.u.).
STJ: “1. O acórdão recorrido encontra-se em harmonia com a nova orientação da Sexta Turma desta Corte, no sentido de que a presunção de violência pela menoridade, anteriormente prevista no art. 224, ‘a’, do Código Penal (hoje revogado pela Lei 12.015/2009), deve ser relativizada conforme a situação do caso concreto, quando se tratar de vítima menor de quatorze e maior de doze anos de idade. Precedentes. 2. O Tribunal de origem, ao preservar o decisum absolutório de primeiro grau, fundou suas razões no fato de que a vítima, então com 13 anos de idade, mantinha um envolvimento amoroso de aproximadamente 2 meses com o acusado. Asseverou-se que a menor fugiu espontaneamente da casa dos pais para residir com o denunciado, ocasião em que teria consentido com os atos praticados, afirmando em suas declarações que pretendia, inclusive, casar-se com o Réu. 3. Acrescentou a Corte de origem, que a menor em nenhum momento demonstrou ter sido ludibriada pelo Réu, bem como não teria a inocência necessária nos moldes a caracterizar a hipótese prevista na alínea ‘a’ do art. 224 do Código Penal. 4. Diante da inexistência de comprovação de que tenha havido violência por parte do Réu, plausível o afastamento da alegação de violência presumida. 5. Ressalte-se que as conclusões acerca do consenso da vítima e demais circunstâncias fáticas da causa são imodificáveis, em sede de recurso especial, em razão do óbice da Súmula 7 desta Corte. 6. Recurso ao qual se nega provimento” (REsp 637361/SC, 6.ª T., rel. Og Fernandes, 01.06.2010, v.u.).
TJBA: “Inviável a condenação apenas com base na equivocada ideia de que a presunção de violência nos crimes sexuais seja absoluta. De plano, anoto não haver dúvida de que o réu e a vítima mantiveram ao menos uma relação sexual, o que é por ambos admitido em Juízo, fls. 60/66. Ainda no ponto, ressalto que a criança admite, desde a fase inquisitorial, de que antes da cópula com acusado já havia mantido relação sexual com outros parceiros. Caso em que a prova dos autos deixou claro que houve relação sexual consentida entre as partes, bem assim que a ofendida possuía maturidade suficiente para tanto. Contexto fático que não evidencia situação a configurar vulnerabilidade e ofensa a liberdade/dignidade sexual, não atraindo o interesse do Direito Penal. Apelo do Ministério Público desprovido” (Ap. 0315235-96.2012.8.05.0001, 1.ª C.C., rel. Luiz Fernando Lima, 21.01.2014, v.u.).
TJBA: “A presunção de violência contida no artigo 224, alínea a, do Código Penal, pode ser relativizada quando houver prova induvidosa do consentimento da vítima maior de 12 (doze) anos com a prática do ato sexual. II – A aquiescência do ofendido descaracteriza o crime de estupro, uma vez que não há, na hipótese, ofensa à liberdade sexual” (Ap. 019659258.2007.8.05.0001/BA, 2.ª T., 1.ª C.C., rel. Pedro Augusto Costa Guerra, 24.07.2012).
TJBA: “Reputa-se relativa a violência presumida disposta no inciso [alínea a] do art. 224 do Cód. Penal. 2. O principal fundamento da intervenção jurídico penal no domínio da sexualidade há de ser a proteção contra o abuso e contra a violência sexual de homem ou mulher, e não contra atos sexuais que se baseiem em vontade livre e consciente, ainda mais quando a suposta vítima com 13 (treze) anos e 10 (dez) meses de idade à época dos fatos se portava como se mulher fosse tendo pleno discernimento quanto à sua vontade de praticar relações sexuais com o apelante” (Ap. 15525-1/2003, 1.ª C.C. rel. Abelardo Virgilio de Carvalho, 09.03.2010).
3.1 Erro de tipo e de proibição
É de suma importância analisarmos que, nos relacionamentos sexuais que acontecem com o consentimento entre os envolvidos não é raro encontrarmos o problema de erro de tipo, afinal muitas das supostas vítimas, mesmo possuindo a idade inferior a 14 anos, se apresentam como maiores de 14. Especialmente, quando tratamos de pessoa prostituída, onde muitas das vezes podem carregar documento de identificação falsificado, e se produzem com vestimentas, maquiagens como se passassem por uma adolescente de 15, 16, 17 ou até mesmo maior que 18 anos.
Desta forma, dependendo-se da compleição física da vítima, torna-se crível para o agente, que tem o contato sexual com esta. Diante deste fato, conforme o caso concreto, nos moldes do artigo 20 do Código Penal, inexistindo dolo, deve-se sumariamente absolver o acusado.
Discorrendo sobre esse tema é de valia observar que há outro ponto importante a ser analisado na situação fática, que é caso do erro de proibição. Sabe-se que o conhecimento do ilícito, ou seja, do conteúdo da norma advém da informação, do relacionamento social, dos contatos naturais da vida em comunidade. Por isso, deve-se supor o conhecimento do ilícito em relação à vedação de relação sexual com menores de 14 anos de idade.
Desta forma, podemos citar sobre as campanhas de divulgação contra a pedofilia, e sobre os relacionamentos sexuais e conjugais com enfermos ou deficientes mentais (NUCCI, 2014, p. 76):
Aliás, nesse ponto, as medidas de divulgação contra a pedofilia têm servido de alerta. Porém, o relacionamento sexual consentido com enfermo ou deficiente mental, incluindo-se nesse cenário o retardado, desde que consentido, entre adultos, é questão problemática. Nem todo mundo tem exata noção da vedação posta em lei. O deficiente, em razão de síndrome de Down, por exemplo, apresenta retardamento mental e necessita de muitos cuidados durante a maior parte da vida. Estaria privado de ter relação sexual? Alguns chegam a conviver como companheiros, em união estável. O mesmo se diga de pessoa com deficiência mental que se una a outra, considerada normal. Dir-se-ia ter feito o tipo penal referência ao fato de o enfermo ou deficiente mental não possuir o necessário discernimento para a prática do ato. Em outros termos, então, a única interpretação que nos parece lógica e justa é conceber a possibilidade de divisão entre enfermos e deficientes mentais nesse campo. Há os que são completamente impossibilitados de apresentar consentimento válido no contexto sexual, de modo que a prática de qualquer ato libidinoso, em relação a eles, seria considerada violenta, logo ilícita, bem como existem os que apresentam deficiência mental, mas que não lhes retira o desejo sexual e a vontade de se unir a outra pessoa, buscando inclusive atenuar o seu sofrimento, procurando a cura.
As análises das duas modalidades de erro devem ser feitas em cada caso concreto a depender do tipo de características físicas da vítima, da enfermidade ou da deficiência mental desta. Conforme cada situação, é perfeitamente escusável o eventual erro de proibição ou o erro de tipo, devendo ser afastada sumariamente a culpabilidade do agente, nos termos do artigo 20 e 21 do Código Penal.
Já sabe-se que não são poucos os casos de crimes sexuais que são cometidos contra crianças e adolescentes, seja na modalidade de violência real ou na de violência presumida. O tipo penal do artigo 217-A, CP, cuidando da tutela do menor de 14 anos, criança e adolescente, envolve as duas formas de violência.
Há uma repulsa grande da sociedade quando se tem conhecimento da prática do crime de estupro contra crianças e adolescentes, por ser um crime tão odioso e violento, onde violenta não só o corpo bem como a alma, gerando danos imensuráveis a vida destas vítimas.
Não obstante as ocorrências dos casos de estupro maioria das vezes são praticadas dentro do âmbito familiar, onde na esfera familiar maioria dos autores são pais, padrastos, tios, avós, e conhecidos da vítima e da família. Nesta linha, pode-se dizer que o estupro é um crime negro, cometido longe de possíveis testemunhas, longe dos olhos, na escuridão, resultando na dificuldade da apuração do crime e da coleta de provas substanciais da prática deste.
Desta forma, a palavra da suposta vítima se reveste de vital valor, onde muitas das vezes se é a única prova da prática do delito criminoso. Neste embate, surge-se desconfianças e riscos de se usar apenas este testemunho como prova basilar para a apuração dos fatos, afinal a prova testemunhal não é um método tão confiante assim, visto ser de fácil manipulação, ainda mais quando a vítima é criança.
Aury Lopes Junior entende que a prova testemunhal gera grandes riscos ao judiciário por sua facilidade de manipulação (2014, disponível https://www.conjur.com.br acesso em 18.08.2018):
A prova testemunhal é o meio de prova mais utilizado no processo penal brasileiro (especialmente na criminalidade clássica) e, ao mesmo tempo, o mais perigoso, manipulável e pouco confiável. Esse grave paradoxo agudiza a crise de confiança existente em torno do processo penal e do próprio rito judiciário. O processo penal acaba por depender excessivamente da “memória” das testemunhas, desconsiderando o imenso perigo que isso encerra.
Diante de tal problemática sobre a não confiabilidade absoluta da prova testemunhal, é necessário que se faça a corroboração do confrontamento do depoimento da vítima com as demais provas apuradas sobre a consumação do delito criminoso.
Consequentemente não pode-se afirmar que a criança ou o adolescente estará sempre dizendo a real verdade dos fatos, ou que estará sempre mentindo diante as suas declarações. Aqui ressalta-se uma grande problemática referente a palavra da vítima como testemunho e o seu consequente valor probatório. Não se restam dúvidas que a declaração testemunhal da vítima vá influenciar da tomada de decisão do julgador, ainda mais quando se é a vítima uma criança, contudo este testemunho pessoal deve sempre ser corroborado com outros elementos probatórios e de convicção que são trazidos aos autos do caso.
O ponto de grande relevância deste tópico concentra-se na colheita das declarações de vítimas infanto-juvenis. Há vários elementos a se considerar: a) o grau de veracidade das declarações dadas; b) o trauma que é gerado à vítima pela própria colheita em juízo; c) o confronto entre a palavra da criança ou adolescente e a do réu adulto; d) a consideração de princípios constitucionais, nesse cenário como o da prevalência do interesse do acusado.
Em relação ao primeiro aspecto, é sabido que a criança costuma fantasiar e criar histórias, fruto natural do seu amadurecimento, motivo pelo qual eventualmente, pode encaixar a situação vivida com o acusado nesse contexto, aumentando e dando origem a fatos não ocorridos criando uma falsa memória onde a criança crê completa e fielmente naquilo que está dizendo, se considera uma afirmação confiável do seu inconsciente. Contudo ela pode estar também narrando com veracidade o acontecimento ocorrido. Discernir entre a realidade e a fantasia é uma tarefa complexa e, por vezes quase impossível de ser feita. Por isso, deve o magistrado considerar a declaração fornecida pelo infante como uma prova relativa, merecendo confrontá-la com as demais provas existentes nos autos, a fim de formar a sua livre convicção.
Ainda neste cenário, cita-se os casos em que os pais ou os responsáveis pela criança a induzem a narrar eventos fantasiosos e não ocorridos ou a apontar o réu como autor do crime sexual, quando a pura verdade, inexistiu-se malícia ou libidinagem entre eles. A criança para agradar o adulto, termina confirmando os fatos induzidos e fantasiosos, embora não corresponda à realidade nua e crua.
Porém vale ressaltar que não são todos os adultos que assim agem e, consequentemente nem toda criança falseia a verdade criando fantasias, provocando a culpabilidade do agente, onde a mesma não existe. Muitas declarações correspondem exatamente ao que fora ocorrido realmente, mas nem por isso deve-se deixar de tomar a cautela necessária da harmonização com as outras evidências processuais dos autos. Quanto aos adolescentes, as suas declarações podem ser as mais confiáveis, a depender do seu modo de vida e do seu comportamento em geral.
O outro elemento traumático que se substancia é o trauma que fora gerado pelo crime, onde pode-se reproduzir novamente em juízo, quando a vítima for obrigada a relatar em um ambiente formal tudo aquilo que passou. Nestes casos, aponta-se como solução mais benéfica para a colheita deste depoimento, o método do depoimento sem dano (DSD), este método visa colher o depoimento da vítima em um ambiente mais agradável, aconchegante, em uma sala especial, este será colhido por um psicólogo ou assistente social, acompanhando por vídeo em tempo real, o magistrado e demais partes do processo. Dessa forma, as perguntas a criança ou ao adolescente seriam feitas por um profissional capacitado para tal, evitando que a vítima passe por uma exposição pública vexatória dentro de um ambiente austero que é a sala de audiências.
A outra face do tema se dá no confronto direto entre a palavra da criança ou adolescente e a do réu. Não deve-se adotar uma postura absoluta, sob nenhum prisma, ou seja, prevalecendo sempre a da vítima, pois o acusado sempre mente; prevalecendo sempre a palavra do réu, pois ele é adulto e tem menor chance de fantasiar os fatos.
A regra que deve ser observada pelos magistrados é a valoração deste confronto de declarações, feitas com o auxílio interpretativo das partes, onde se extrai das entrelinhas de ambos os declarantes os dados relevantes para a solução do feito criminoso. Visto que há contradições de ambos os lados, o certo a se fazer é a exploração em contraste com as demais provas coletadas no processo, chegando-se à conclusão de quem forneceu a versão mais plausível, mais real e concreta dos fatos, independentemente de ser a vítima ou o réu.
Sendo assim, no mais, embora sejam gravíssimos e repugnantes os delitos sexuais contra a criança e ao adolescente não pode-se olvidar o princípio constitucional da prevalência do interesse do réu, o in dubio pro reo, que inspira e norteia todo o processo penal. Portanto, conclui-se que em caso de confronto integral entre a palavra da vítima e a do acusado, sem maiores dados probatórios que prevaleçam, deve-se promover a absolvição do acusado.
Considerações finais
A presente pesquisa buscou analisar a importância de um estudo minucioso no processo de apuração do crime de estupro praticado contra os vulneráveis na construção de uma linha de raciocínio no que diz respeito à história do estupro, a cultura do estupro que é vivenciada nos dias atuais, a estrutura da vulnerabilidade das vítimas deste crime, e como elas são classificadas, e o principal de todos, o método de colheita de provas que deve ser feito para que se apure a verdade real dos fatos ocorridos. Buscando sempre corroborar todas as provas obtidas nos autos, não dando prevalência a um só meio probatório, visto a gravidade do delito criminoso, e a dificuldade que se estabelece para a apuração da consumação do crime, por ser de grande dificuldade o encontro de provas lascivas para tal feito.
Não obstante, ao se condenar um indivíduo utilizando-se somente um meio probatório, grandes riscos exsurgem, que podem resultar numa condenação injusta de um inocente atribuindo-lhe a carga de culpado por a prática de um crime tão odioso e repugnante pela sociedade.
Por outro lado, os magistrados não têm como apurar de forma precisa e com veracidade todos os detalhes do que aconteceu realmente na conduta do agente e da vítima. Nestes casos, existem métodos como o depoimento sem dano que devem ser utilizados para que se apure ou chegue mais perto de se apurar a realidade do ocorrido, buscando não ensejar a revitalização do trauma que a vítima sofreu, obrigando-a a relatar o drama passado frente a sala de audiências num ambiente austero e vexatório.
Portanto, faz-se necessário que a apuração do crime de estupro de vulnerável seja de forma minuciosa, buscando colher todas as provas possíveis para corroborar umas com as outras, juntamente das declarações prestadas pela vítima e pelo réu, nunca devendo uma delas ser o prisma, mas sim o confrontamento de ambas, para assim chegar-se a conclusão de quem forneceu a versão mais plausível dos fatos, independentemente de quem seja ela, vítima ou réu. Não devendo ser afastado o princípio constitucional da prevalência do interesse do réu, onde se entende que se não houver provas necessárias para a condenação sumária do mesmo, deve-se absolve-lo.
Pondera-se que, nesse estudo percebe-se que o Estupro de Vulnerável não deixará de existir no cotidiano da sociedade, se as pessoas não se atentarem para a repugnância e gravidade que esse crime resulta, e nos imensuráveis e eternos traumas que ficam marcados na vítima, onde o crime é visto como uma cultura e nada é feito para que se mude tal concepção horrenda, são ensinadas as mulheres e crianças a não serem estupradas, ao invés de ensinar os possíveis estupradores a não serem esse agente doloso. Uma vez que muitos exemplos da normalidade dos casos de estupro são vistos diariamente na mídia, mostrando que essa cultura e aceitação de tal fato atual, na verdade é um modelo de cultura antigo, que é vigente na atualidade, é conservador, dominador e destrutivo.
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[1] Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Luterano de Ji-Paraná (CEULJI/ULBRA). E-mail: matheus.valle@live.com
[2] Professor orientador; docente no curso de Direito da Faculdade Panamericana de Ji-Paraná UNIJIPA. Bacharel em Direito pela Universidade Paulista, 2005, Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Mackenzie em 2008, Mestre em Filosofia do Direito e do Estado, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em 2012, Pesquisador da CNPq e PUC/SP. E-mail: prof.marcosaduarte@gmail.com
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