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Expressões da subjetividade no Direito: de instância hermenêutica ao bem jurídico. Uma análise do emprego da subjetividade pelos magistrados

Resumo: após apresentar o plano do problema da subjetividade no Direito, investiga-se um breve percurso histórico e conceitual do termo, para se escolher um conceito básico estabilizador. Passa-se, então, à análise de julgados selecionados no tocante da subjetividade em suas argumentações, de modo a se sistematizar algumas linhas gerais de emprego da expressão pelos julgadores. Por fim, conclui-se enfatizando as virtuosidades e potencialidades da discussão da subjetividade no campo do Direito.


Palavras-chave: subjetividade; hermenêutica; interpretação; bem jurídico; dignidade da pessoa humana.


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Sumário: Introdução. 1. Plano do problema. 2.breve percurso histórico e conceitual pela subjetividade. 2.1. Uma subjetividade para hoje. 3. Magistrados e subjetividade. 3.1 subjetividade como “locus” hermenêutico do julgador. 3.2 subjetividade como vício de interpretação. 3.3 subjetividade como bem jurídico tutelado pelo ordenamento. Onsiderações finais. Referências.


INTRODUÇÃO


A indissociabilidade total de um ordenamento jurídico de sua realidade referente se concretiza como pressuposto de compreensão do fenômeno jurídico nas sociedades atuais.


O Direito “é” porque “diz sobre” e “fala para” uma coletividade humana em convivência. Esta característica demarca a função antropológica inerente ao Direito de modo muito próximo à compreensão do jurista francês Alain Supiot: “O Direito liga a infinitude de nosso universo mental à finitude de nossa experiência física, cumprindo em nos uma função antropológica de instituição da razão“ (2007, p. X).


Se as propostas positivistas foram magistrais e eficientes na construção de sistemas abstratos, ordenados e hierarquizados de estruturação jurídica, o déficit de contexto social, moral e político propiciou, em contrapartida, vácuos éticos ao exemplo das barbáries fascistas.


Hodiernamente, tendo-se tamanho legado de propostas jurídicas diversas historicamente criadas e experimentadas, trabalha-se, muito em suma, com ambas heranças, incluindo a atualização do debate filosófico pós segunda guerra, que reinseriu na pauta os princípios éticos na fundamentação da vida jurídica.


Assim, não se pode prescindir das virtudes cognoscitivas e estruturantes do positivismo, ao compasso de que não se pode tornar cativo da segurança trazida por ele a serviço de qualquer ideologia, donde o necessário contraponto do pós-positivismo e a inafastável apreciação do neoconstitucionalismo, que reata as pontas do ordenamento com a axiologia.


O Texto Constitucional Brasileiro de 1988, neste sentido, é notável e prestimoso, axiologicamente afortunado.


Tendo em vista este contexto de ideias, este artigo pretende problematizar a “subjetividade” no Direito, tomando por base tanto referências do pensamento jurídico quanto do filosófico e sociológico e, em especial, o recurso à referência analítica do uso do termo “subjetividade” e seus sentidos em alguns julgados.


1. PLANO DO PROBLEMA


De um modo geral, o conceito de subjetividade pode ser problematizado pensando-se no estudo científico do Direito: o enfoque recai sobre a subjetividade “do” cientista do Direito e sua relação com o conhecimento produzido — eis a subjetividade nos quadrantes da epistemologia jurídica, grande corolária da epistemologia filosófica, em especial do racionalismo.


Ainda, a relação pode ser dar tendo por objeto a prática profissional do Direito: a subjetividade do “operador do direito”, do profissional das carreiras jurídicas (mediador, conciliador, advogado, consultor jurídico, promotor, magistrado etc.), e então se está referindo à subjetividade no contexto da hermenêutica jurídica enquanto trabalho de comunicação e de interpretação.


Em sentido similar, mas diferenciado por destaque que se deve dar aos destinatários do ordenamento jurídico, tem-se a subjetividade trançada nos problemas da vida prática do Direito: a subjetividade dos destinatários do Direito, que dependem da interpretação dos profissionais do Direito; este prisma se perfaz em “subjetividades que agem sobre subjetividades”, ou seja, a subjetividade dos intérpretes influindo na subjetividade dos destinatários. Nesta orbe, pode-se evidenciar que há diferentes medidas desejáveis de subjetividade: parece, em uma primeira abordagem, que é mais viável um advogado tendente à subjetividade (aliás, a subjetividade pode lhe ser um dever profissional, recortando o caso no interesse da parte) do que um magistrado, eis que este se pauta pela impressão de neutralidade (já por muitos desacreditada) e imparcialidade.


Algumas questões básicas distintitivas que se enfrenta podem assim ser enunciadas: Há um grau relevante de discussão acerca de “objetividade” e “subjetividade” no Direito? Há uma fidelidade conceitual? Quais os sentidos empregados no uso dos termos? Subjetividade é o mesmo que subjetivismo? Subjetividade é um bem jurídico ou um vício hermenêutico? Nos usos das expressões, almeja-se a uma relação de objetividade externa e autônoma ou intersubjetividade construída em contextos de discussão e consenso?


Sem esgotar tais questionamentos, nos itens seguintes realiza-se um percurso por meio de algumas destas inquietações, focalizando o debate nos vértices do bem jurídico da “subjetividade”, assim como da instância hermenêutica e da subjetividade como vício.


2. BREVE PERCURSO HISTÓRICO E CONCEITUAL PELA SUBJETIVIDADE


Além do mais central dos conceitos, o “sujeito de direito”, centro de imputação jurídica (direitos e obrigações), os elementos volitivos muitas vezes são imediatamente associados à subjetividade.


Assim, ao se falar em “aspecto subjetivo” de algum instituto jurídico, está-se referindo, geralmente, aos caracteres de voluntariedade do agente, o que permite identificar os componentes de culpa e dolo, por exemplo, ou dizendo-se respeito a algum pólo da relação referente a uma pessoa, em contraponto ao objeto ou a demais critérios não-pessoais. Em geral tem-se a subjetividade ativa e passiva em uma relação obrigacional, ou em uma estruturação de tipo penal ou administrativo, por exemplo.


Aí tem mais força a noção de “subjetivo”, e não tão fortemente a de “subjetividade” que, entende-se, tem sido considerada de modo mais amplo e complexo, pois vai evocar um plexo de dados conformadores de uma identidade e de suas respectivas práticas, por isso mesmo conceito correlato ao de subjetivação, conforme se pode destacar em Alain Touraine.


Ter em mente a distinção entre os sentidos moderno e pós-moderno de “subjetividade” pode ser útil para delimitar os campos de sua aplicação e, assim, a fixação de alguns de seus sentidos.


Clewell (p. 381-383) compreende que, de um lado, se pode verificar a tradição cartesiana de compreensão do sujeito até meados da intervenção filosófica de Kant, de modo que o “sujeito” consistiria na instância fortemente limitada do agente racional enquanto contraponto do objeto. De modo muito sucinto, nesta linha de pensamento se daria a versão moderna da subjetividade.


O outro entendimento, advindo das discussões e formulações críticas dos pós-modernistas e pós-estruturalistas, atacaria justamente esta segurança e solidez do “sujeito” enquanto fonte de conhecimento e de produção de significados, desconstruindo-nas e, no mais das vezes, redimensionando-nas ou lhes buscando outros sentidos.


Assim, o desafio pós-moderno consistiria em analisar o ser humano e sua respectiva noção de “self” enquanto entidade construída por múltiplos discursos, estruturas lingüísticas e práticas significativas, de modo que a perspectiva da construção se afirma sobre a de se a subjetividade ser um mero reflexo destas ordens em que o sujeito se encontra imerso.


Novamente Clewell (p. 382) destaca a psicanálise de Jacques Lacan, a desconstrução de Jacques Derrida, a semiótica de Roland Barthes, a análise do discurso histórico de Michel Foucault e os entendimentos feministas de Luce Irigay e de Julia Kristeva como repositórios desta percepção de subjetividade. Mas não só estes autores.


A grande inflexão na percepção do sujeito e de sua subjetividade adviria das contribuições teóricas de Karl Marx (prioridade aos aspectos materiais da vida no funcionamento do capitalismo) e de Sigmund Freud (irrompendo o absolutismo racional por meio da depuração de noções do inconsciente como determinantes do pensamento e ação humanas). 


A partir destas rupturas históricas encontrar-se-ia o solo fértil para o desdobramento das perspectivas teóricas fornecidas pela constitutividade da linguagem na formatividade do sujeito.


Assim, conforme Clewell (p. 382) depreende de Ferdinand de Saussure (conjuntamente aos entendimentos de Emile Beneviste e Roland Barthes), ter-se-ia que o significado emerge de uma série de relações de diferenças por dentre os sistemas lingüísticos sociais. A mais disso, a teoria lacaniana da subjetividade demonstraria como o processo de significação e formação do sujeito ocorreria em conjunto, com uma unidade disposta atrás da outra: passando pelo estágio do espelho e adquirindo as habilidades da linguagem a criança ganharia posição enquanto sujeito em um sistema e práticas significativas na sociedade. Esta inclusão na ordem simbólica das coisas é o que tornaria a subjetividade possível, mas, ao mesmo tempo, seria o que cindiria o sujeito de uma ligação imediata de consciência sobre o seu corpo ou psique.


Por sua vez, Jacques Derrida definiu o sujeito pós-moderno na dimensão dos efeitos da linguagem. Por isso, no raciocínio pós-estruturalista, a subjetividade segue o movimento da linguagem em um caminho de escritura sem fim orientada pela noção comportada no termo por ele criado de “différance” e que combina as noções de diferença e de diferimento, o qual, aplicado ao entendimento do ser humano e de seu “self” induz à percepção de um sujeito discursivamente construído e que nunca se perfaz em uma forma individual completa ou sem contradições.


Para Foucault, ainda segundo as interpretações de Clewell (p. 382), o sujeito cartesiano e idéia tradicional de autor estariam mortos, tendo-lhes no lugar as idéias de ênfase na noção de discurso como primeiro intermediário na construção da subjetividade, de conhecimento e de poder.


Já a crítica feminista incidiria sobre a construção do gênero dos sujeitos, refletindo sobre questões que nem sempre teriam sido abarcadas pelos pensadores tradicionais. Assim, as feministas constantemente contestariam os paradigmas teóricos na medida em que estes enfocariam a constituição da subjetividade masculina o que denunciaria, em alguma medida e dentre outras causas, que as mulheres historicamente teriam tido a sua subjetividade negada.


É neste lapso de conteúdo, pois, que as feministas desenvolveriam larga produção, com diferentes motes de argumentação, a partir dos anos 1970, como, por exemplo, Irigay (apontando a tradicional exclusão das mulheres da ordem simbólica e, consequentemente, da ordem cultural), Kristeva, Elizabeth Grosz, Judith Butler, Jacqueline Rose entre outros.


Desde os anos 1980 os estudos culturais a respeito da subjetividade desenvolveram-se com força nos delineamentos postos por Foucault, em especial quanto à análise da congruência entre os modos de constituição social dos sujeitos e as maneiras de distribuição de poder social.


Neste orbe, avultaram-se as discussões sobre as múltiplas arenas culturais e identitárias, como as sociedades pós-colonialistas, assim como estudos gays e lésbicos e demais debates e produção vinculados aos sujeitos cuja subjetividade historicamente teria sido suprimida, como mulheres, homossexuais, negros e demais etnias, não-proprietários, enfim, na tentativa de criação e de estabelecimento de espaços sociais para que a definição do “self” fosse possível.


Problemas contemporâneos a estes debates, ainda, a consideração da complexa interação entre elementos lingüísticos determinantes e intervenções pessoais, comunidades reguladoras de conduta, protocolos de comunicação em diversos âmbitos, potenciais de transformação das condições sociais, construção da subjetividade masculina. Neste rol mereceriam destaque Homi K. Bhabba, Gloria Jean Watkins (bell hooks), Kaya Silverman, Gayatri Spivak.


2.1 UMA SUBJETIVIDADE PARA HOJE


Condensando as variáveis de toda esta banda histórica do termo, acima sugerida por Clewell, e exaltando a subjetividade como legítima categoria hermenêutica — e não enquanto mero vício hermenêutico, como adiante se poderá vislumbrar — um sintético e apropriado conceito pode ser referenciado a partir de Hall (2004):


“Subjectivity: often used interchangeably with the term “identity,” subjectivity more accurately denotes our social constructs and consciousness of identity. We commonly speak of identity as a flat, one-dimensional concept, but subjectivity is much broader and more multifaceted; it is social and personal being that exists in negotiation with broad cultural definitions and our own ideals. We may have numerous discrete identities, of race, class, gender, sexual orientation, etc., and a subjectivity that is comprised of all of those facets, as well as our own imperfect awareness of our selves”. (HALL, 2004, p. 134) [grifou-se].


Sendo assim, o conceito de subjetividade a partir de Hall (2004) comporta que o termo é frequentemente associado, em intercâmbio, à ideia de “identidade”, mas com ela não se confunde.


A subjetividade denota, pensando-se na unidade individual, as construções sociais ali projetadas, bem como a consciência das identidades que o compõe, sendo que a identidade é uma noção plana e unidimensional e a subjetividade apresenta-se como ideia multifacetada pelas identidades, comportando dimensões pessoal e social.


Assim entendida, a subjetividade é encarada como complexo pessoal-social que advém de negociações com definições culturais amplas e ideais individuais. Uma mesma pessoa pode possuir diversas identidades: raça, classe, gênero, orientação sexual etc. e a subjetividade se compõe pelas diversas facetas identitárias e, também — o que não pode ser olvidado, uma das tarefas psicanalíticas — pela parcela de desconhecimento que temos de nós mesmos.


Uma subjetividade para hoje não pode passar ao largo de todo o acúmulo de conhecimentos acerca da complexidade humana amplificada na realidade social. A força, abrangência e presença deste conceito o faz reverberar na vida das formas jurídicas e, assim, os magistrados não passam ao largo do problema, dantes tendo que manejá-lo competentemente sob pena de incomunicabilidade do Direito ante sua sociedade, em total ruptura da precípua função que é a antropológica do Direito.


3. MAGISTRADOS E SUBJETIVIDADE


A percepção do fenômeno jurídico que se tem exposto levanta diversos problemas, entendidos como pontos de enfoque do interesse do estudioso do Direito que pensa nas normas, mas não olvida da contemporização e contemporaneização delas junto aos destinatários e ao contexto, o que representa uma sofisticação dos estudos e uma abrangência de entendimento.


Estas características têm sido perceptíveis em alguns julgados que inserem em suas argumentações reflexões sobre o próprio ato de julgar, os papéis do Direito, os processos empregados pelo julgador e assim por diante. Um pertinente exemplo desta percepção pode abaixo ser citado e analisado.


“[…] O direito deve ser encarado como uma ciência de experiência, na medida em que a interpretação não pode ser resumida a uma mera operação lógico-formal, ou seja, deve recair sobre a conduta do agente e não sobre a norma jurídica. Ao se dar ênfase à subjetividade e a intersubjetividade, valorizando a ação humana, aproxima-se o direito da aplicação do justo, tocado pelo critério da razoabilidade.” […] (STJ; HC 166.523; Proc. 2010/0051465-1; SP; Quinta Turma; Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho; Julg. 09/11/2010; DJE 13/12/2010).


Vê-se, pois, que o âmbito de preocupação do profissional do Direito se expande, o que representa uma demanda de manejo de conhecimento, abrangendo a incidência de seu olhar sobre o objeto de sua hermenêutica (a conduta humana), sem se prescindir da norma, o que demonstra a clássica lição da “fusão normativa”, de Miguel Reale.


Em três pontos a seguir delimitados, investigam-se sentidos da subjetividade em julgados selecionados e delimitados na parte específica em que se valem da subjetividade, sistematizando-se sentidos do termo na prática dos julgadores.


3.1 SUBJETIVIDADE COMO “LOCUS” HERMENÊUTICO DO JULGADOR


A subjetividade do magistrado é um verdadeiro marco agregador de esforços processuais na medida em que é nela que se encontra o ponto sensível ao convencimento racional e, portanto, à produção de decisão por meio da qual se promoverá ou não o atingimento do interesse das partes envolvidas.


“[…] O que traduz, por modo automático, prejuízo processual irreparável, pois nunca se pode saber que efeitos produziria na subjetividade do magistrado processante a contradita do acusado quanto ao juízo do recebimento da denúncia.” […] (STF; HC 95.712; RJ; Primeira Turma; Rel. Min. Ayres Britto; Julg. 20/04/2010; DJE 21/05/2010; Pág. 24) 


Nestes casos, a subjetividade do magistrado apresenta-se como um grande plano de escritura em que insistentemente agem as manifestações processuais.


“[…] Dessa forma, a aferição dos honorários, pelos critérios porque se baseia o julgador ante a complexidade e o valor da causa, sopesada na subjetividade do juiz, motiva-se pelos atos e méritos processuais dentro da Lei, cuja revisão em sede especial encontra óbice na Súmula nº 7 desta C. Corte. 4. Embargos de declaração rejeitados.” (STJ; EDcl-AgRg-EDcl-Ag 942.291; Proc. 2007/0195180-2; SC; Primeira Turma; Rel. Min. Luiz Fux; Julg. 17/02/2009; DJE 25/03/2009) 


Assim, a subjetividade do magistrado é ponto gravitacional de produção da fusão normativa e entrelaçamento dos preceitos jurídicos com as realidades fáticas ou jurídicas apresentadas, de modo que consiste em centro de conhecimento e enunciação, atendendo à expectativa de jurisdição e possibilitando, pois, que, na estrutura jurídica, o texto da Lei e da Constituição se conforme às variações do mundo da vida.


3.2 SUBJETIVIDADE COMO VÍCIO DA INTERPRETAÇÃO


Há um traço vicioso da subjetividade, muito embora entendida como “subjetivismo”, ou seja, como um excesso de pessoalidade e idiossincrasia do intérprete. Certamente, não se trata desta dimensão o objeto deste texto, eis que o subjetivismo é incompatível com o ordenamento, por força simples e imediata de princípios como o da impessoalidade e moralidade na Administração Pública. Neste sentido, avultam decisões que encontram na “subjetividade” um motivo reprovável. Leia-se um exemplo clássico da subjetividade maculante.


“MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. CRITÉRIOS DE CORREÇÃO DAS PROVAS. NOTA GLOBAL. A atribuição de nota global, sem especificação dos critérios e da pontuação atribuída para cada critério considerado, confere ao examinador uma margem de subjetividade incompatível com a transparência que deve reger os concursos públicos”. (TRF 4ª R.; APL-RN 2008.70.00.000071-2; PR; Terceira Turma; Relª Desª Fed. Maria Lúcia Luz Leiria; Julg. 31/03/2009; DEJF 23/04/2009; Pág. 478)


No exemplo a seguir, percebe-se que a “subjetividade” de uma expressão jurídica colocaria em perigo a segurança jurídica, tendo em vista a amplitude de matérias e sentidos que se poderia abarcar na expressão “interesse público”. Esta visão, contudo, parece desconsiderar a viabilidade das possibilidades de construção argumentativa e balizamento pela razoabilidade e proporcionalidade, razão pela qual decidiu por extirpar a possibilidade hermenêutica então em jogo.


“[…] A Segunda Turma desta Corte, na assentada de 23 de março de 2010, quando do julgamento do AGRG no RESP 920.521/SP, de relatoria do Ministro Mário Campbell, decidiu ser dispensável a análise acerca da existência de interesse público, a fim de se evitar a interpretação restritiva e abusiva do permissivo legal, o que poderia levar à quebra do princípio da isonomia, tendo em vista a subjetividade do conceito “interesse público”. […]” (STJ; AgRg-REsp 1.172.728; Proc. 2010/0000535-8; SP; Segunda Turma; Rel. Min. Humberto Martins; Julg. 11/05/2010; DJE 21/05/2010)


Quase ao contrário do anterior, no julgado seguinte considerou-se não haver “qualquer grau de subjetividade” do dispositivo, que então seria de interpretação única e clara. O dispositivo, pois, indene do vício da subjetividade, não traria o problema indesejado — afinal, para quem deve decidir, a unidade de sentido é uma necessidade, eis que se deve, de algum modo, estabilizar a discussão — da multiplicidade de vozes dissonantes acerca de um mesmo texto.


“[…] Não havendo vício de inconstitucionalidade, e tratando-se de dispositivo cuja literalidade não contém qualquer grau de subjetividade que possa ensejar diferentes interpretações, não há como lhe negar vigência ou condicioná-la a interpretação mais consentânea com o espírito das alterações legislativas que sucederam a redação original do indigitado artigo 75 da Lei de Benefícios da Previdência Social. O equívoco, se houve, foi corrigido pela Lei nº 9.528/97, mas os efeitos que lhe foram dados pela Lei nº 9.032/95 não lhe podem ser negados ou retirados, dada a ausência de qualquer vício que impossibilitasse sua aplicação.” (TRF 4ª R.; AC 2006.71.08.012602-4; RS; Quinta Turma; Rel. Juiz Fed. José Francisco Andreotti Spizzirri; Julg. 26/05/2009; DEJF 23/06/2009; Pág. 299) 


Assim visto, a subjetividade revela-se enquanto um desvio do sentido normativo, ou da imantação principiológica incidente. Então, a subjetividade representa um traço personalíssimo além da técnica, da necessidade e do cabimento, revelando-se apenas como alvedrio, talante, arbítrio, desvio, desestabilização. É propriamente o sentido do subjetivismo, que não se coaduna com a idéia de uma normatização externa (afinal o sistema jurídico não é desenhado com base na moral pessoal do julgador).


3.3 SUBJETIVIDADE COMO BEM JURÍDICO TUTELADO PELO ORDENAMENTO


Os estudos culturais, psicanalíticos, sociológicos e filosóficos abordados na retomada histórica da subjetividade perfazem propriamente a ideia mais próxima da subjetividade como bem jurídico. Isto porque condensam noções da complexidade da vida humana individual, social e interrelacional, demonstrando dificuldades e aspirações das diversas subjetividades que interagem em um cenário coletivo e que é abrangido pela representação e normatividade jurídicas.


Julgados neste sentido têm tutelado as pessoas aderindo justamente a esta dimensão personalíssima e íntima da subjetividade, que é a contraface de uma mesma representação que se volta à coletividade.


“[…] O dano moral qualifica-se em razão da esfera da subjetividade, ou do plano valorativo da pessoa na sociedade, em que repercute o fato violador, havendo-se, portanto, como tais, aqueles que atingem os aspectos mais íntimos da personalidade humana, ou o da própria valoração da pessoa no meio em que vive e atua.” […] (TRF 4ª R.; APL-RN 2000.72.00.005924-4; SC; Quarta Turma; Relª Desª Fed. Marga Inge Barth Tessler; Julg. 14/04/2010; DEJF 27/04/2010; Pág. 412)


A tutela da criança e do adolescente, assim como o Direito de Família, justamente por dizerem respeito às bases da individualidade e da formação humanas, também recorrem com freqüência à idéia de subjetividade como bem jurídico tutelado.


“[…] A proteção integral, conferida pelo ECA, à criança e ao adolescente como pessoa em desenvolvimento, deve pautar de forma indelével as decisões que poderão afetar o menor em sua subjetividade. – Sob a ótica dos Direitos da Criança e do Adolescente, não são os pais que têm direito ao filho, mas sim, e sobretudo, é o menor que tem direito a uma estrutura familiar que lhe confira segurança e todos os elementos necessários a um crescimento equilibrado.” […] (STJ; REsp 1.076.834; Proc. 2008/0161854-0; AC; Terceira Turma; Relª Minª Fátima Nancy Andrighi; Julg. 10/02/2009; DJE 04/08/2009) 


O poder de intervenção estatal na esfera da liberdade individual também é enfocado, e a esfera de direitos e garantias age justamente na tutela desta subjetividade que pode ser estraçalhada se desmedido o poder estatal sobre ela projetada.


“[…] Não há como negar que a imposição de uma sanção administrativa, fundamentalmente a demissão, por significar de juízo severa reprovação proveniente da sociedade e do Estado, possui uma carga extremamente negativa, que afeta sobremodo a subjetividade do sancionado. Por esta e outras razões, o servidor sujeito a um Processo Administrativo, possui inúmeras garantias processuais insuscetíveis de eliminação, como sói ser no processo penal”. […] (STJ; RMS 25.952; Proc. 2007/0299021-5; DF; Quinta Turma; Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho; Julg. 19/08/2008; DJE 08/09/2008).


Visualiza-se, assim, nos julgados, que a subjetividade dos destinatários do ordenamento jurídico é demarcada enquanto bem jurídico e que, portanto, deve ser livre de lesões ou agressões, seja por entes privados ou pelos públicos, em especial pela força sancionadora.


Este conceito é o que perfaz propriamente uma junção do conceito científico com o jurídico, e que não se desdobra em indistinção do subjetivismo, de modo que, conjuntamente ao sentido da subjetividade do magistrado, pode compor um interessante e útil quadro de discussão jurídica.


CONSIDERAÇÕES FINAIS


Da análise dos julgados, assim como do percurso histórico e conceitual da “subjetividade”, pode-se destacar que o termo “subjetividade” é ponto nevrálgico dos debates jurídicos, eis que pode ser porta de entrada de vícios de interpretação e, assim, elisão de regras e princípios jurídicos, tais como os da isonomia, impessoalidade e moralidade.


O termo, ademais, encontra uso e reveste-se de utilidade em uma série de discursos produzidos no âmbito das ciências humanas e sociais, dentre elas, por certo, o Direito, e demonstra-se apropriado para descrever uma sorte de elementos constitutivos do próprio ser humano e que se encontram ao sabor de estruturas históricas, sociais e lingüísticas. Aí a subjetividade é bem jurídico tutelado, eis que noção íntima e sintética da interioridade e intimidade das pessoas e suas relações identitárias, o que é objeto de forte tutela constitucional, veja-se o objetivo constitucional de promoção do bem de todos em plena transcendência das formas discriminatórias, ressalta-se, que se baseiem em traços da subjetividade (origem, raça, cor, sexo, idade e quaisquer outras formas).


A perspectiva das discussões de subjetividade, subjetivação, sujeito e demais conceitos afins, enriquece a interpretação jurídica dos fatos sociais na medida em que redesenha e contemporaneiza o cerne do “sujeito de direito”, densificando-lhe de possibilidades humanas e corroborando a função precípua do direito em uma sociedade, qual seja, a tuitiva, na qual a “subjetividade” emerge como direto bem jurídico e foco de atenção não apenas, mas em especial, dos magistrados, dos quais se espera (como se pôde constatar nas análises empreendidas) a prudência e discernimento acerca de, afina, diante de qual subjetividade se está a conhecer e a decidir.


A discussão da subjetividade no Direito em muito tem a enriquecer, com bases deveras sérias e consistentes, o tão valoroso princípio da dignidade da pessoa humana.


 


Referências bibliográficas:

CLEWELL, Tammy. Subjectivity. In: WINQUIST, Charles E.; TAYLOR, Victor E. Enciclopédia of Postmodernism. New York: Routlegde, 2007. p. 381-383.

HALL, Donald E. Subjectivity. Nova Iorque: Routledge, 2004. p. 134.

SUPIOT, Alain. Homo juridicus. Ensaio sobre a função antropológica do Direito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.

Informações Sobre o Autor

Eliseu Raphael Venturi

advogado em Curitiba, especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal no Paraná e mestrando em Direitos Humanos e Democracia pela UFPR


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